sábado, 6 de outubro de 2012

MACHADO DE ASSIS,POLÍTICA,RIO DE JANEIRO -- IV


a propósito do iminente pleito municipal em todo o país, convém conhecer o que Machado de Assis -- que tratou muito de política em suas crônicas -- comentou (com ironia crítica e lúcida obser
vação) sobre eleições na cidade do Rio de Janeiro e sobre a Câmara Municipal 
-- veiculo aqui algumas das 53 crônicas que compõem a totalidade do conjunto -- 


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crônica 46
27 de janeiro de 1895
 gazeta de notícias –  A Semana
                                                                                 apuração das eleições municipais,e “mais cédulas que eleitores,e  mais eleitores que cédulas”;
 mandato de intendente

Se há ainda boas fadas por esse mundo, com certeza estarão agora junto ao berço do partido parlamentar, que vai nascer ou nasceu esta semana. O berço há de ser enorme, muito maior que o túmulo que Heine queria para o seu amor. E elas predir-lhe-ão grande futuro, brilhante e talvez próximo. Não vás contar a proximidade como é uso daqueles que pensam que o mundo acaba sexta-feira ou sábado; falo de uma proximidade relativa. Não sou procurador de fadas, mas juro que há de ser, assim; se for o contrário, façamos de conta que não jurei nada.
Aparentemente, a ocasião não é própria à criação de um partido parlamentar, agora que os presidentes estão abdicando por não poderem formar ministérios. Mas é só aparentemente. Indo ao fundo das coisas, veremos que o caso do presidente argentino (aliás não aplicável) pode explicar-se com os suicídios de imitação, o do presidente francês terá tido causas diversas. Ainda quando os dois fenômenos procedam da mesma causa única, resta provar que isto tem alguma coisa com o parlamentarismo. E quando provado, ainda há que provar que um sistema acarreta consigo as mesmas conseqüências, qualquer que seja o meio em que respire. A própria diversidade daquelas duas repúblicas mostra que tenho razão.
Relevem-me que lhes fale assim grosso, fora das minhas frouxas melodias de menino, porque eu sou menino, leitor da minha alma; assim me chama um velho amigo, olho claro, cabeça firme, sobre a qual, só por esta exata noção que ele tem dos tempos e das pessoas, edificarei a minha igreja. Apesar disso, tenho uns dias, umas horas, em que dou para subir a montanha e doutrinar os homens. A natureza, que não faz saltos, me repõe no caminho direito, que é na planície.
Mas, enfim, para acabar com isto, uma vez que comecei por aí, direi que o partido parlamentar está com visos de querer viver. Cabe aos presidencialistas, lutar bastante para não correrem o risco de verem o princípio contrário infiltrar-se nas instituições. O Sr. Saraiva, que nunca foi inventor de governos, propôs na Constituinte uma emenda que ninguém quis, e realmente não trazia boa cara. Refiro-me à emenda que reduzia a dois anos o prazo da presidência da República. À primeira vista era um presidencialismo vertiginoso; mas, bem considerado, era um parlamentarismo automático. Os dois anos não eram só da presidência, mas virtualmente eram também do ministério. Não se pode dizer que tal prazo fosse excessivamente curto, mas estava longe de ser uma eternidade; era meia eternidade. Se tivesse sido deputado, o Sr. Cezar Zama, dado aos seus estudos romanos, viria propor ao congresso uma emenda constitucional que reduzisse a presidência ao consulado, e os dois anos a um. Os ministérios teriam assim um anuo apenas. Era o parlamentarismo hiper-automático.
Não me digas que confundo alhos com bugalhos, ignorando que parlamentarismo quer dizer governo de parlamento, — coisa que nada tem com prazos curtos nem compridos. Eu sei o que digo, leitor; tu é que não sabes o que lês. Desculpa, se falo assim a um amigo, mas não é com estranhos que se há de ter tal ou qual liberdade de expressão, é com amigos, ou não há estima nem confiança.
Para não ouvir novo dichote, calo-me em relação a outro partido, que também nasceu esta semana, e já publicou manifesto. É do primeiro distrito da capital. Não pede parlamentarismo, embora admita alguma reforma constitucional, quando houvermos entrado no regime metálico e outros. Tem por fim organizar a opinião pública. O fim é útil e o estilo não é mau, salvo alguns modos de dizer, aliás bonitos, mas que esta pobre alma cansada e séptica já mal suporta. Tal qual o estômago, que não mais aceita certos manjares. Como Epicuro põe a alma no estômago, vem daí essa coincidência de fastio. A terra da promissão, por exemplo, já não é comigo. Citei-a muita vez, chamando-lhe, no segundo caso, pelo nome de Canaã, por causa das belas rimas (manhã, louçã, etc.) mas tudo isso foi-se com os ventos.
Prosa ou verso, não quero já saber de Canaã, a não ser que me levem até lá os pretores encarregados de apurar as eleições municipais. Mas quando? O fim da apuração, se eu a vir algum dia, há de ser como Moisés viu a terra da promissão, de longe e do alto, — digamos por um óculo, pois que o óculo está inventado. Só Josué a pisará, mas Josué ainda não nasceu. Bem sei que os pretores, em vez de fazer trabalho a olho, esgaravatam todas as atas, e, o que é mais, todos os artigos de lei. Sendo assim severos, que será da virtude e da verdade, — da verdade eleitoral, ao menos? Que importa que em uma seção de distrito haja mais cédulas que eleitores? Outra terá mais eleitores que cédulas, e tudo se compensa. Adeus, o calor é muito.
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crônica 47
3 de fevereiro de 1895
 gazeta  de notícias –  A Semana
                               apuração das eleições municipais no Rio de Janeiro;
  “cédulas dentro de um chapéu” como método de apuração eleitoral

Andam listas de assinaturas para uma petição ao Congresso Nacional. Há já cerca de duzentas assinaturas, e espera-se que daqui até maio passarão de mil. Com o que se conta obter dos Estados, chegar-se-á a um total de cinco ou seis mil.
 Não é demais para reformar a Constituição. Com efeito, trata-se de reformá-la, embora os inventores da idéia declarem que não é propriamente reforma, mas acréscimo de um artigo. Este sofisma é transparente. Não se emenda nenhum dos artigos constitucionais, mas a matéria do artigo aditivo é tal que altera o direito de representação, estabelecendo um caso de hereditariedade, contrário ao principio democrático.
Não li a petição, mas alguém que a leu afirma que o que se requer ao congresso é nada menos que isto: Quando acontecer que um deputado, senador ou intendente municipal, deixe de tomar assento ou por morte, ou porque a apuração das atas eleitorais seja tão demorada que primeiro se esgote o prazo do mandato, o diploma do intendente, do deputado ou do senador passará ao legítimo herdeiro do eleito, na linha direta. Quis-se estender ao genro o direito ao diploma, visto que a filha não pode ocupar nenhum daqueles cargos; mas, tal idéia, foi rejeitada por grande maioria. Também se examinou se o eleito, em caso de doença mortal, sobrevinda seis meses depois de começada a apuração dos votos, e na falta de herdeiro direto, podia legar o diploma por testamento. Os que defendiam essa outra idéia, e eram poucos, fundavam-se em que o mandato é uma propriedade temporária de natureza política, dada pela soberania nacional, para utilidade pública, se era transmissível por efeito do sangue, igualmente o podia ser por efeito da vontade.
Negou-se esta conclusão, e a petição limita-se ao exposto.
O exposto é incompreensível. Entendo o caso de morte; mas, como se há de entender o de demora na apuração dos votos Se a petição desse, para essa segunda hipótese, um terço do prazo do mandato ou um limite fixo, digamos um ano, isto é, se determinasse que, no caso em que a apuração eleitoral durasse um ano, o intendente, deputado ou senador poderia transmitir ao seu herdeiro varão o mandato recebido nas urnas, entendia-se a medida. Mas estabelecê-la para quando a apuração vá além do prazo do mandato, é absurdo. Que é então que o eleito transmite se o mandato acabou? Não desconheço que a apuração pode ultrapassar o prazo do mandato, mas para esse caso a medida há de ser outra.
Outra objeção. Suponhamos que a apuração das últimas eleições municipais, já adiantada, acabe dentro de três meses. Pode um intendente eleito transmitir o mandato, no fim de tão curto prazo? Parece que devia haver um limite mínimo e outro máximo, seis meses e um ano. Não faltam objeções à reforma que se vai pedir ao Congresso. Uma das mais sérias é a que respeita às opiniões políticas. Pode haver transmissão de diploma no caso em que o filho do eleito professa opiniões diversas ou contrarias às do pai? Evidentemente não, porque os eleitores, votando no pai, votaram em certa ordem de idéias, que não podem ser excluídas da representação, sem audiência deles. É verossímil que alguns filhos mudem de idéias, ajustando as suas ao diploma, desde que não podem ajustar o diploma às suas; Lambem se pode dizer, com bons fundamentos, que um diploma é em si mesmo um mundo de idéias. Conheci um homem que não possuía nenhuma antes de diplomado; uma vez diplomado, não só as tinha para dar, como para as vender. Talvez o leitor conhecesse outro homem assim. O que não falta neste mundo são homens.
Esperemos o resultado. Não creio que tal reforma passe; ela é contraria, não só aos princípios democráticos, mas à boa razão. O que louvo na petição que está sendo assinada é o uso desse direito por parte do povo para requerer o que lhe parece necessário ao bem público. Só condeno a circulação clandestina. Que há que esconder no uso da petição? Que mania é essa de tratar um direito como se fora um crime?
Afinal, talvez fosse melhor trocar o modo eleitoral, substituindo o voto pela sorte. A sorte é fácil e expedita; escrevem-se os nomes dos candidatos, metem-se as cédulas dentro de um chapéu, e o nome escrito na cédula que sair é o eleito. Com este processo, fica reduzida a apuração a quinze dias, mais ou menos. Não é menos democrático. Cidades, antigas o tiveram, de parceria com o outro, e Aristóteles faz a tal respeito excelentes reflexões no capítulo dos chapéus. Que seja sujeito à fraude, acredito; mas tudo corre o mesmo perigo. Um amigo meu, tendo de deixar o lugar que exercia em um conselho de cinco, assistia à cerimônia das cédulas e do chapéu. Saía o seu nome e saía ele. De noite, quando dormia, apareceu-lhe um anjo, que lhe falou por estas palavras: “Procópio, todas as cédulas tinham o teu nome, porque nenhum dos outros queria sair; para outra vez lê as cédulas, antes que as enrolem e te enrolem”.
Disse que bastava isto; resta-me agora, já que estamos no capítulo das petições, propor uma aos altos poderes do céu. Há mostras evidentes de nojo de Deus para com os homens; tal é a explicação dos desastres contínuos, das tempestades de neve na Europa, das de água, ventos e raios nesta cidade, quarta-feira última, da manga d'água no Amparo, de tantos outros temporais, males diversos, grandes e acumulados.
As criaturas humanas vão imitando os desconcertos da natureza. Na Espanha, o general Fuentes pespega um sopapo no embaixador marroquino, diz um telegrama. Outro refere que na Áustria a embaixatriz japonesa acaba de converter-se ao catolicismo... Deus meu, não há loucura em ser católico; mas as embaixatrizes não nos tinham acostumado a esses atos de divergência com os embaixadores, seus maridos. Assim, só por uma sublime loucura se explicará esta conversão, que o marido chamará apostasia. Também pode ser que a conversão não passe de um ardil diplomático do embaixador, para ser agradável ao governo de Sua Majestade Católica. Se estivesse na Turquia, talvez a esposa se fizesse muçulmana. Quando fores a Roma, ser romano, diz o adágio.
Oh! séculos idos em que S. Francisco Xavier andou por aquelas partes do Japão, China e Índia, a recolher almas dentro da rede cristã! Hoje são elas mesmas que vão buscar o pescador católico. É verdade que o papa acaba de condecorar um rajá, sectário de Buda; mas é também verdade que este rajá auxilia do seu bolsinho a fundação de conventos cristãos. Vento de conciliação e de eqüidade, tempera estes nossos ares controversos e turvos.
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crônica 48
26  de maio de 1895
gazeta de notícias –  A Semana
 condição e  comportamento de eleitor com relação a se representante;
 o  Conselho Municipal do Rio de Janeiro;
voto de um intendente sobre transportes na cidade

Sou eleitor, voto, desejo saber o que fazem e dizem os meus representantes. Não podendo ir às câmaras, aprovo este meio de fazer da própria casa do eleitor uma galeria, taquigrafando e publicando os discursos. É assim que acompanho a vida dos meus representantes, as opiniões que exprimem, o estilo em que o fazem, as risadas que provocam e os apoiados que alcançam. A publicação é a fotografia dos debates.
Entretanto, disse-se agora uma coisa no Conselho Municipal que absolutamente me deixou às escuras. Um intendente, — e, não havendo injúria, nisto, não sei por que lhe não ponho o nome, o Sr. Cesário Machado deu este aparte: “Há carros da Companhia Carris Urbanos que podem comportar perfeitamente quatro passageiros em cada banco”. A isto replicou o Sr. Julio Carmo: “Magros como eu, mas não gordos como V. Ex.” Explicou o Sr. Cesário Machado: “Passageiros regulares”. É claro que, em tais casos, não há meio de conhecer o alcance das afirmações. Se os intendentes falassem de gordura e magreza, em geral, teríamos uma idéia aproximada dos bancos; mas um deles definiu a gordura e a magreza pelos nomes das pessoas, e não conhecendo nós a gordura do Sr. Cesário, nem a magreza do Sr. Carmo, ficamos sem entender esta explicação do primeiro: “Passageiros regulares”. O regular aqui é o termo médio entre o primeiro e o segundo.
Como suprir essa lacuna e outras da publicação dos debates? Empregando a gravura. Uma gravura que nos desse no próprio texto, no lugar da troca dos apartes, as figuras dos dois intendentes, com a diferença visual da abundancia e da escassez das carnes, e a competente escala métrica, poria a idéia inteiramente clara, e qualquer de nós acharia na própria ata os elementos para julgar da votação do conselho. Fora disso, palavras, palavras, palavras.
A gravura pode, na verdade, prestar grandes serviços a este respeito. Falo aqui, porque já em outras partes, mormente nos Estados Unidos da América, ela é a irmã natural do texto. As folhas andam cheias de retratos, cenas, salas, campos, armas, máquinas, tudo o que pode, melhor ou mais prontamente que palavras, incutir a idéia no cérebro do leitor. Não há por essas outras terras notícia de casamento sem retrato dos noivos, nem decreto de nomeação sem a cara do nomeado. Nós podíamos ensaiar politicamente, e mais extensamente, essa parte do jornalismo.
Os discursos ilustrados teriam outra vida e melhor efeito. O pensamento do orador, nem sempre claro no texto, ficaria claríssimo. As cenas tumultuosas seriam reproduzidas. Uma das regras, que podiam ser fixas, era fazer preceder cada discurso pelo retrato do orador, com a atitude que lhe fosse própria e habitual, ou a que tivesse naquela ocasião. Também se podiam reproduzir pela gravura as figuras de retórica, e, quando conviesse, as perorações.
A amizade pessoal ou política podia favorecer assim mais um orador que outros, dando maior número de gravuras a um amigo ou correligionário. Nem contesto que um ou outro orador, sabendo desenhar, levasse por si mesmo à imprensa as imagens que lhe parecessem necessárias e dignas. O primeiro caso podia trazer inconvenientes, mas tendo cada um os seus amigos, nenhum ficaria propriamente na miséria. O segundo era legítimo. Além de auxiliar a imprensa, aquele orador que assim praticasse, faria a maior parte da sua reputação, dever que não cabe só ao homem particular, mas também ao publico
A mim poucas coisas me fortalecem tanto como ver cumprir da parte de um homem, particular ou público, esse dever humano: O verdadeiro homem público é o que não deixa esse encargo exclusivamente aos outros, mas toma uma parte, a mais pesada, sobre os seus próprios ombros. Nem de outro modo se pode servir utilmente a pátria. A pátria é tudo, a rua, a casa, o gabinete, o templo, o campo, o porão, o telhado, — mais ainda o telhado que o porão; o telhado confina com o azul, e o azul é o zimbório da felicidade...
Nem sempre o será, creio; mas os conceitos falsos, e principalmente absolutos, sendo brilhantes, parecem verdades puras. Toda a questão é expressá-los com o gesto largo e a convicção nos beiços. Imaginai que o período anterior é a conclusão de uma arenga, dita com os braços estendidos, as mãos abertas e voltadas para baixo, os polegares unidos, dando uma imagem vaga do zimbório. Imaginai isto, dizei se o próprio teto azul não viria abaixo com palmas.
Alguns, vendo esta minha insistência, suporão que ando com o cérebro um pouco desequilibrado. Melancolia é meia demência. Ora, eu ando melancólico, depois que li que acabou a parede dos alfaiates de Buenos Aires. A elegante Buenos Aires é um ponto da terra; mas Nazaré também o era, e de lá saiu Jesus; também o era Meca, e de lá saiu Mafamede. Comparo assim coisas tão essencialmente opostas, como a fé cristã e a peste muçulmana, para mostrar que o bem e o mal do mundo podem vir de um ponto escasso. De Buenos-Aires contava eu que viesse uma religião nova.
A parede dos alfaiates ia estender-se, alastrar pela América, transportar-se à Europa, e passar de lá a toda a parte do globo onde o homem veste o homem. A constância dos paredistas, o orgulho do desespero, ajudados pela ação do tempo, iriam acabando com as casacas, coletes e calças. Os criados receberiam ordem de servir em mangas de camisa. A criada obrigaria os amos à adoção da simples camisa e do resto. A natureza readquiriria assim metade dos seus direitos; era a nova religião esperada. Se não falo da costureira, é porque a natureza é só uma, e os vestidos seguiriam o rumo das casacas... A decência seria muito menor; mas que economia!

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