quinta-feira, 30 de abril de 2015
o 1º. de Maio e Euclides da Cunha
Euclides da Cunha foi
essencialmente um ser político – um pensador, a princípio convicto militante
republicano, depois,desiludido com o regime, crítico vigoroso,por fim (em
essência, depois de Canudos) presumivelmente socialista ( com efeito,se achegou,por
influência do amigo Francisco Escobar,
ao grupo socialista de São José do Rio Pardo ,onde deu forma final ao texto de Os sertões ) --o que, na verdade,
delineara-se,configurara-se e consolidara-se gradativamente em todas as fases e estágios de seu espectro político-ideológico.
Haja vista, a expressar e
comprovar com clareza absoluta a postura euclidiana face à questão social e ao
socialismo, três textos em três períodos
distintos todos datados de 1º. de maio :
um artigo de 1892; o texto,de 1899, do programa de O Proletário, órgão do “Clube Internacional Os Filhos do Trabalho”,em São José do Rio Pardo; o
artigo,de 1904, intitulado “Um velho
problema” – este, o mais avançado de sua lavra e um dos mais radicais de seu
tempo.
[excertos de meu livro Escritos de Euclides da Cunha :
política,ecopolítica,etnopolítica (PUC-Rio/Loyola, 2009)]
_______________________
o estado
de S. Paulo, 1º. maio 1892
Extraordinário
amanhecer o de hoje nas velhas capitais da Europa...
Como
que assaltada por uma síncope, subitamente, se paralisa a complicadíssima vida
da mais alta civilização; todo o movimento das grandes sociedades, toda a
espantosa atividade de um século e a admirável continuidade dessa existência
moderna tão poderosa e tão vasta, se extinguem, aparentemente, esvaindo-se em
vinte e quatro horas de inatividade sistemática.
Abandonam
o cérebro dos políticos os interesses nacionais mais urgentes; desaparecem por
um dia todas as fronteiras; reconciliam-se incorrigíveis ódios seculares de
governos - e aqueles exércitos formidáveis, que a todo o instante ameaçam
abalar a civilização, num espantoso duelo, formam silenciosos, pela primeira
vez, sob uma mesma bandeira...
Tudo
isto porque o anônimo extraordinário que é o maior colaborador da história, o
Povo que trabalha e que sofre - sempre obscuro - entende, nessa festiva entrada
da primavera, deixar por momentos as ásperas ferramentas e sonhar também como
os felizes, pensar, ele que só tem um passado, no futuro.
O
escravo antigo, que ia nos circos romanos distrair o humor tigrino dos reis,
num pugilato desigual e trágico com as feras; o servo da gleba, o vilão cobarde
que atravessou a idade média, à sombra dos castelos sob a guante do feudalismo;
que tem alimentado com o sangue a alma destruidora das guerras; ele - a matéria
prima de todas as hecatombes, seguindo sempre acurvado a todos os jugos -
transfigura-se realmente, alentado por uma aspiração grandiosa e apresenta esta
novidade à história - pensa!
Deu
todas as energias ao progresso humano, sempre inconsciente da própria força, e
quando no fim do século XVIII, uma grande aura libertadora perpassou a terra,
ele se alevantou, aparentemente apenas - para trazer às costas, até os nossos
dias - a burguesia triunfante.
Cansado
de escutar todas as teorias dos filósofos ou os devaneios dos sonhadores, que
de há muito, intentam-lhe a regeneração - desde os exageros de Proudhon às
utopias de Luis Blanc - ele inicia por si o próprio levantamento.
E
para abalar a terra inteira basta-lhe um ato simplíssimo - cruzar os braços.
E
que triste e desoladora perspectiva esta - de vastas oficinas e ruidosas
fábricas desertas, sem mais a movimentação fecunda do trabalho - e as profundas
minas, abandonadas, abrindo para os céus as gargantas escuras - num tenebroso
bocejo...
*
Se
entrarmos na análise dos cambiantes que tem assumido o socialismo, temo-lo como
uma ideia vencedora.
O
Quarto Estado adquirirá, por fim, um lugar bem definido na vida universal.
Nem
se lhe faz para isto preciso agitar o horror da anarquia ou fazer saltar a
burguesia a explosões de dinamite. Fala todas as línguas e é de todas as
pátrias.
Toda
a sua força está nessa notável arregimentação, que ora desponta à luz de uma
aspiração comum; a anarquia é justamente o seu ponto vulnerável - quer se
defina por um caso notável de histeria - Luiza Michel, ou por um caso vulgar de
estupidez - Ravachol.
Não
existe, talvez, um só político proeminente hoje, que se não tenha preocupado
com esse grave problema - e o mais elevado deles, o menos inglês dos pensadores
britânicos, Gladstone, cedendo à causa dos home-rulers
o espírito robusto - é, verdadeiramente, um socialista de primeira ordem.
Realmente,
a vitória do socialismo bem entendido, exprime a incorporação à felicidade
humana dos que foram sempre dela afastados. Em nossa pátria - moça e rica -
chegamos as vezes a não o compreender - transportando-nos porém aos grandes
centros populosos, observando todas as dificuldades que assoberbam a vida ali,
sentimos quão criminosa tem sido a exploração do trabalho. Ali, aonde o
operário mal adquire para a base material da vida, a falsíssima lei de Malthus
parece se exemplificar ampla e desoladora. Preso a longas horas de uma agitação
automática e além disto cerceado da existência civil, o rude trabalhador é
muito menos que um homem e pouco mais que uma máquina.
*
Os
governos da Europa hão de transigir porém; hão de entabular os preliminares da
paz, pelas concessões justas e inevitáveis que terão de fazer.
Nós
assistimos ao espetáculo maravilhoso da grande regeneração humana.
Pela
segunda vez se patenteia na História, o fato de povos que se fundem num
sentimento comum - e não sabemos qual mais grandioso, se o quadro medieval das
Cruzadas ou se esta admirável cruzada para o futuro.
Seja
qual for este regime porvir, traduza-se ele pela proteção constante do
indivíduo pela sociedade, como pensa Spencer ou pelas inúmeras repúblicas, em
que se diferenciará o mundo, segundo acredita Augusto Comte - ele será, antes
de tudo, perfeitamente civilizador.
Que
se passe sem lutas este dia notável. O socialismo, que tem hoje uma tribuna em
todos os parlamentos, não precisa de se despejar nas revoltas desmoralizadas da
anarquia.
Que
saia às ruas das grandes capitais a legião vencedora e pacífica; e levante
altares à esperança, nessa entrada iluminada de primavera, sem que se torne
preciso ao glorioso vencido - o Exército - abandonar a penumbra em que
lentamente emerge à medida que sobe a consciência humana.
E.C.
___________________
o proletário,1º.
maio 1899
Programa
I. Proibição do trabalho das
crianças de qualquer dos sexos até a idade de 14 ou 15 anos.
II. Escolas gratuitas, com o
ensino leigo e obrigatório para todas as crianças, sem distinção de sexo, de
cor e de nacionalidade, tendo as crianças pobres todo o necessário para
freqüentar as escolas: roupa, comida, cuidados médicos, farmácias, etc, etc.
III. Estabelecimentos
apropriados para recolher os inválidos do trabalho, pobres, velhos e
defeituosos, dando-lhes com abundância roupa, comida, médico, farmácia, etc.,
para não irem morrer nas enxergas dos hospitais e nos adros das igrejas, ou nas
calçadas das ruas, implorando aviltadora caridade, ministrada pelos ricos, e
remédios.
IV. Emancipação da mulher,
reconhecendo-se-lhes iguais direitos e iguais deveres: aos do homem, inclusive
o de votar e ser votadas.
V. Impostos diretos e
pesadíssimos sobre a renda.
VI.Substituição das Forças
Armadas pelo povo armado.
VII. Organização do trabalho
por ser o único fator de riqueza.
VIII. Estabelecimento de
bolsas de trabalho.
IX. Proporcionar a preços módicos a cada
família uma casa confortável para sua residência.
X. Fornecer água e luz grátis
a todos em geral.
XI. Tribunais arbitrais
obrigatórios para as questões internacionais.
XII. Justiça gratuita para
todos.
XIII. Supressão dos
empréstimos internos e externos.
XIV. Tribunais arbitrais para
decidir as questões entre patrões e operários.
XV. Decretar leis de oito
horas de trabalho e a proibição do trabalho à noite para os assalariados.
XVI. Leis repressivas contra
os usurários, estabelecendo uma só taxa de juros para todos os negócios.
XVII. Nacionalização do
crédito.
XVIII. Leis reguladoras da
venda de bebidas, para acabar com o alcoolismo.
XIX. Leis que estabeleçam o
divórcio, dando à mulher as mesmas garantias que ao homem.
XX. Pensão aos inválidos do
trabalho.
XXI. Reivindicação dos bens
do clero para a comunhão social.
A mensagem
Festa exclusivamente popular, ela se destina a
preparar o advento da mais nobre e fecunda das aspirações humanas : a
reabilitação do proletariado pela exata distribuição da justiça, cuja fórmula
suprema consiste em dar cada um o que cada um merece. Daí a abolição dos
privilégios derivados quer do nascimento, quer da fortuna, quer da força. Para
esse fim é mister promover a solidariedade entre todos os que formam a imensa
maioria dos oprimidos sobre que pesam as grandes injustiças das instituições e
preconceitos sociais da atualidade, destinados a desaparecer para que reine a paz
e felicidade entre os povos civilizados. Promovendo, entre nós, a comemoração
de uma data tão notável, o Clube "Filhos do Trabalho" promoverá a
divulgação dos princípios essenciais do programa socialista, empenhando –se em
difundi-los entre todas as classes sociais.
____________________
O estado de s. paulo, 1º. maio
1904
Um velho problema
Li há tempos alentada dissertação sobre um
singularíssimo direito expresso em velhas leis consuetudinárias da Borgonha.
Direito de roubos...
Recordo-me que, surpreendido com tal antinomia, tão
revolucionária, sobretudo para aquela época, ainda mais alarmado fiquei notando
que a patrocinava o maior dos teólogos, S. Thomaz de Aquino; e com tal brilho e
cópia de argumentos, que a perigosa tese repontava com a estrutura inteiriça de
um princípio positivo. Realmente a repassava uma nobre e incomparável piedade,
fazendo que aquela extravagância resumisse e espelhasse um dos aspectos mais
impressionadores da justiça.
Tratava-se, ao parecer, de um código da indigência;
e os graves doutores, no avantajarem-se tanto, rompendo com nobre rebeldia as
barreiras da moral comum, para advogarem a causa da enorme maioria de
espoliados, chegavam à conclusão de que a opulência dos ricos se traduzia como
um delitum legale, um crime legalizado.
Impressionava-os o problema formidável da miséria na sua feição dupla -
material e filosófica - pois é talvez menos doloroso refletido nos andrajos das
populações vitimadas, que na triste inopia de elementos da civilização para o
resolver.
E como lhes faleciam, mais do que hoje nos falecem,
elementos para a extinção do mal, justificavam aos desvalidos num crudelíssimo
título de posse a todos os bens - a fome.
O indigente tornava-se um privilegiado afrontando
impune toda a ortodoxia econômica. O roubo transmudava-se, do mesmo passo, num
direito natural de legítima defesa contra a Morte e num dever imperioso para
com a Vida.
Mas não foram além deste expediente, e dessas
declamações, os piedosos doutores. Tolhia-os, senão a situação mental da Idade
Média imprópria a uma apreciação exata do conjunto do progresso humano, a mesma
ditadura espiritual do catolicismo, na plenitude de força, e para o qual a
miséria - eloqüentíssima expressão concreta do dogma do pecado original - era
sempre um horroroso e necessário capital negativo, avolumando-se com as
provações e com os martírios para a posse anelada da bem-aventurança, nos
céus...
Por outro lado, os pensadores leigos do tempo, e os
que os encalçaram até ao século XVIII, não partiram esta tonalidade sentimental
Mais sonhadores que filósofos, o que os atraía era o lado estético do
infortúnio, a visão empolgante do sofrimento humano, a que nos associamos
sempre pela piedade. Os seus livros, pelos próprios títulos hiperbólicos, à
maneira dos das novelas do tempo, retratam uma intervenção brilhante e
imaginosa, mas inútil. São como títulos de poemas. De fato, na Utopia de Thomaz
Morus, na Oceana de Hallis, ou na Basilidade de Morelly, a perspectiva de uma
existência melhor, oriunda da riqueza eqüitativamente distribuída e dos
privilégios extintos, irrompe :num fervor de ditirambos, aos quais não faltam,
para maior destaque, prólogos arrepiadores de agruras e tormentas
indescritíveis...
As medidas propostas raiam pelos exageros máximos da
fantasia: do nivelamento absoluto de João Libburne, ao platonismo adorável de
Fontenelle e ao niilismo religioso de Diderot; e para lhes não faltar grotesco,
esse cruel e antilógico grotesco imanente às mais trágicas situações,
culmina-as o desvairado comunismo de Campanella com os seus trezentos monges,
trezentos ascetas barbudos e melancólicos, tentando uma república igualitária
que seria o desabamento de todas as conquistas do progresso.
Ora, tudo isto caracteriza bem o completo
desequilíbrio das almas rudemente trabalhadas pelas doutrinas opostas e de todo
desapercebidas, então, de uma síntese filosófica que ao mesmo passo as
emancipasse do apego tradicional ao catolicismo, cuja missão findara, e dos
impulsos demolidores da metafísica triunfante.
Assim, ao arrebentar a crise decisiva de 1789, não é
de estranhar ficasse inapercebido, e talvez sacrificado, o grande problema que
desde Pitágoras e Platão vinha agitando os espíritos. E que a grande revolução,
inspirada pela filosofia social do século XVIII, oferece o espetáculo singular
de repudiar, desde os seus primeiros atos, os seus próprios criadores. A
consideração de Guizot é profunda: nunca uma filosofia aspirou tanto ao governo
do mundo e nunca foi tão despida do império.
Os filósofos foram, de pronto, suplantados, na
agitação revolta dos panfletos e da retórica explosiva dessa literatura
política sempre efêmera, com ser modelada pelos desvarios repentinos da
multidão. A sólida estrutura mental de um d’Alembert antepôs-se o espírito
imaginoso e pueril de um Vergniaud, e aos sonhos desmedidos de Mably e excesso
de objetivismo do trágico casquilho que passeou pelas ruas de Paris :a deusa da
Razão...
De sorte que a última pancada do antigo regime - já
longamente solapado e prestes a cair por si mesmo - se fez com excesso de
energias que atirou sobre os destroços da ordem antiga as ruínas da ordem nova
planeada. Exclusivamente atraída pelo programa, que se lhe afigurava enorme e
pouco valia, de derruir as classes privilegiadas, a Revolução firmou, nos
"direito:; do homem", um duro individualismo que na ordem espiritual
significava a negação dos seus melhores princípios e na ordem prática equivalia
a destruir as corporações populares, isto é, a única criação democrática da
Idade Média.
"Os direitos do homem... No entanto, a fórmula
superior daquela filosofia, visava, de preferência, através da solidariedade
humana crescente, exatamente o contrário - os deveres do homem". Mas era
exigir muito à loucura política do momento. Fazia-se mister, antes de tudo, que
as franquias recém-adquiridas tivessem um traço incisivamente
antiaristocrático. Que o camponês, absolutamente livre, fosse absolutamente
dono da quadra de terra onde nascera e onde tanto tempo jazera aguilhoado à
gleba feudal; enquanto o burguês das cidades pudesse agir libérrimo, dispondo a
bel-prazer de todos os seus bens, despeado do liame das jurandes.
E o trono vazio dos Capetos teve em roda a
concorrência tumultuária de não sei quantos milhões de liliputinianos reis...
Despojados o clero e a aristocracia de suas propriedades
(não raro precárias como privilégios sujeitos aos caprichos do poder
monárquico) ficou em seu lugar - intangível, absoluta e sacratíssima - a
propriedade burguesa, para a qual o ilustre Condorcet não encontrara limites no
texto que forneceu à Convenção.
Por isto, a breve trecho, se patenteou a inanidade
das reformas executadas; ao invés de um número restrito de privilegiados, nos
quais o egoísmo se atenuava com as tradições cavalheirescas da nobreza, um
outro, maior e formado pela burguesia vitoriosa, mais inapta ainda a
compreender a missão social da propriedade,. .ávida por dominar na arena livre
que se lhe abria, e tornando maior o contraste entre a sua opulência recente e
a situação inalterável do proletariado sem voto naquele tumulto e destinada
apenas a colaborar anonimamente na epopéia napoleônica, quando em breve,
culminando a catástrofe revolucionária, o mais pequenino dos grandes homens
surgisse, concretizando a reação disfarçada do antigo regime, e fosse
restaurar, entre os fulgores de uma glória odiosa, o anacronismo da atividade
militar.
Destruída desta maneira a obra memorável da
Convenção, vê-se, contudo, que ela tinha latentes e aguardando apenas um meio
propício, os princípios de uma distribuição mais eqüitativa da fortuna. Para o rígido
Camus a propriedade "não era um direito natural, era um direito
social"; acompanhava-o neste conceito o romântico Saint Just; e sobre
todos, mais incisivamente, num dizer claríssimo que lhe dá as honras de um
precursor do coletivismo moderno, o incomparável Mirabeau atirava na anarquia
das assembléias estas palavras singularmente austeras: "Le proprietarie
n’est lui-même que le premier des salariés. Ce que nous appelons vulgairement
la proprieté n’est autre chose que le prix qui lui paye la societé pour les
distribuitions qu’il est chergé de faire aux autres individus par ses
consommations et ses depenses. Les proprietaires sont les agents, les economes
du corps social".
Estas frases admiráveis, porém, que ainda hoje,
transcorridos cento e tantos anos, são a síntese de todo o programa econômico
de socialismo, ninguém as escutou. De modo que à massa infelicíssima do povo, a
quem a revolução libertara para a morte despeando-a da gleba para jungi-la ao
carro triunfal de um alucinado, restavam ainda, como nos velhos tempos, apenas
as fórmulas enérgicas, mas inócuas, de alguns doutores canonizados; e em pleno
repontar do século XIX - quando a filosofia natural já aparelhara o homem para
transfigurar a terra um triste, um repugnante, um deplorável, e um horroroso
direito: o direito do roubo
Mas esta filosofia natural, tão crescentemente
revigorada e favorecendo tanto, no século que passou, o ascendente industrial,
era por si mesma - isolada no campo das suas investigações - inapta à
verdadeira solução do problema. Dizem-no os insucessos de todos os que o
consideraram esteando-se nela, das estupendas utopias de Saint-Simon e dos seus
extraordinários discípulos, às alienações de Proudhon, às tentativas bizarras
de Fourier e ao soçobro completo da política de Luiz Blanc.
Fora logo acompanhá-los. Se o fizéssemos, veríamos
que, malgrado todos os recursos das ciências, eles pouco se avantajaram aos
sonhadores medievais: o mesmo agitar de medidas fantásticas, e tão radicais,
algumas, abalando tanto os fundamentos da sociedade, a começar pela organização
da família, que acarretavam ante novos elementos perturbadores e novas faces à
questão, dando-lhe um caráter por igual revolucionário e complexo capaz de a
tornar perpetuamente insolúvel.
Assim ela chegou até meados do último século - até
Karl Marx - pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhon que
o socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e
positiva.
Nada de idealizações: fatos; e induções inabaláveis
resultantes de uma análise rigorosa dos materiais objetivos; e a experiência e
a observação, adestradas em lúcido tirocínio ao través das ciências inferiores;
e a lógica inflexível dos acontecimentos; e essa terrível argumentação
terra-a-terra, sem tortuosidades de silogismos, sem o idiotismo transcendental
da velha dialética, mas toda feita de axiomas, de verdadeiros truísmos, por
maneira a não exigir dos espíritos o mínimo esforço para a alcançarem, porque
ela é quem os alcança independentemente da vontade, e os domina e os arrasta
com a fortaleza da própria simplicidade.
A fonte única da produção e do seu corolário
imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as má quinas, nem o capital,
ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível:
a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito
dedutivo: o capital é uma espoliação.
Não se pode negar a segurança do raciocínio.
De efeito, desbancada a lei de Malthus, ante a qual
nem se explicaria a civilização, e demonstrada a que se lhe contrapõe
consistindo em que "cada homem produz sempre mais do que consome
persistindo os frutos do seu esforço além do tempo necessário à sua
reprodução" - põe-se de manifesto o traço injusto da organização econômica
do nosso tempo.
A exploração capitalista é assombrosamente clara,
colocando o trabalhador num nível inferior ao da máquina. De fato, esta, na
permanente passividade da matéria, é conservada pelo dono; impõe-lhe constantes
resguardos no trazê-la íntegra e brunida, corrigindo-lhe os desarranjos; e
quando morre - digamos assim - fulminada pela pletora de força de uma explosão
ou debilitada pelas vibrações que lhe granulam a musculatura de ferro, origina
a mágoa real de um desfalque, a tristeza de um decréscimo da fortuna, o luto
inconsolável de um dano. Ao passo que o operário, adstrito a salários escassos
demais à sua subsistência, é a máquina que se conserva por si, e mal; as suas
dores recalca-as forçadamente estóico; as suas moléstias, que, por uma cruel
ironia, crescem com o desenvolvimento industrial - o fosforismo, o saturnismo,
o hidrargirismo, o oxicarborismo - cura-as como pode, quando pode; e quando
morre, afinal, às vezes subitamente triturado nas engrenagens da sua sinistra
sócia mais bem aquinhoada, ou lentamente- esverdinhado pelos sais de cobre e de
zinco, paralítico delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos de mercúrio,
asfixiado pelo óxido de carbônico, ulcerado pelos cáusticos dos pós-arsenicais,
devastado pela terrível embriaguez petrólica ou fulminado por um coup de plomb - quando se extingue,
ninguém lhe dá pela falta na grande massa anônima e taciturna, que enxurra
todas as manhãs à porta das oficinas.
Neste confronto se expõe a pecaminosa injustiça que
o egoísmo capitalista agrava, não permitindo, mercê do salário insuficiente,
que se conserve tão bem como os seus aparelhos metálicos, os seus aparelhos de
músculos e nervos; e está em grande parte a justificativa dos socialistas no
chegarem todos ao duplo princípio fundamental:
Socialização dos meios de produção e circulação;
Posse individual somente dos objetos de uso.
Este princípio, unanimemente aceito, domina toda a heterodoxia
socialista - de sorte que as cisões, e são numerosas, existentes entre eles,
consistem apenas nos meios de atingir-se aquele objetivo. Para alguns, e
citam-se apenas João Ligg e Ed. Vaillant, os privilégios econômicos e políticos
devem cair ao choque de uma revolução violenta. É o socialismo demolidor que,
entretanto, menos aterroriza a sociedade burguesa. Outros, como Emílio
Vendervelde, se colocam numa atitude expectante: as reformas serão violentas ou
não, segundo o grau de resistência da burguesia. Finalmente, outros ainda - os
mais tranqüilos e mais perigosos - como Ferri e Colajanni, corretamente
evolucionistas, reconhecendo a carência de um plano já feito de organização
social capaz de substituir, em bloco, num dia, a ordem atual das coisas,
relegam a segundo plano as medidas violentas, sempre infecundas e só aceitáveis
transitoriamente, de passagem, num ou noutro ponto, para abrirem caminho à
própria evolução.
Ferri, em belíssimo paralelo entre o desenvolvimento
social e o terrestre, mostra como os imaginosos cataclismos de Cuvier,
perturbaram, sem efeito, a geologia para explicarem transformações que se
realizam sob o nosso olhar, sendo os grandes resultados, que mal compreendemos
no estreito círculo da vida individual, uma soma de efeitos parcelados
acumulando-se na amplitude das idades do globo. Deslocando à sociedade este
conceito, aponta-nos o processo normal das reformas lentas, operando-se na
consciência coletiva e refletindo-se pouco a pouco na prática, nos costumes e
na legislação escrita, continuamente melhoradas.
Nada mais límpido. Realmente, as catástrofes sociais
só podem provocá-las as próprias classes dominantes, as tímidas classes
conservadoras, opondo-se a marcha das reformas - como a barragem contraposta a
uma corrente tranqüila pode gerar a inundação. Mesmo nesse caso, porém, a
convulsão é transitória; é um contrachoque ferindo a barreira governamental.
Nada mais. Porque o caráter revolucionário do socialismo está apenas no seu
programa radical. Revolução: transformação. Para a conseguir, basta-lhe erguer
a consciência do proletário, e - conforme a norma traçada pelo Congresso
Socialista de Paris, em 1900 - aviventar a arregimentação política e econômica
dos trabalhadores.
Porque a revolução não é um meio, é um fim; embora,
às vezes, lhe seja mister um meio, a revolta. Mas esta sem a forma dramática e
ruidosa de outrora. As festas do primeiro de maio são, quanto a este último
ponto, bem expressivas. Para abalar a terra inteira, basta que a grande legião
em marcha pratique um ato simplíssimo: cruzar os braços...
Porque o seu
triunfo é inevitável.
Garantem-no
as leis positivas da sociedade que criarão o reinado tranqüilo das ciências e
das artes, fontes de um capital maior, indestrutível e crescente, formado pelas
melhores conquistas do espírito e do coração...
terça-feira, 21 de abril de 2015
Machado de Assis e Tiradentes
Neste dia, vale a pena reportar à importante ilação
que o maior nome da literatura
brasileira construiu com uma das figuras primordiais da história nacional –
ilação retratada em um significativo
conjunto de crônicas escritas a
propósito do 21 de abril.
_______________
Talvez nenhum dos escritores do século XIX
admirassem, reverenciassem e cultuassem Tiradentes como Machado de Assis : um vínculo
respeitoso ,que remonta à sua postura política durante a década de 1860 , pelo
qual Machado investiu Tiradentes com algo semelhante “a aura cristã do martírio
e sacrifício” . Só que justamente essa aura,de ‘martírio e sacrifício’, e a loa
machadiana ao “homem do povo que sofrera por sua visão de um Brasil independente”
foram os fatores, ou motes, determinantes ,cruciais para tornar Tiradentes
um ‘símbolo republicano’ – suprema ironia : Machado de Assis, simpatizante da monarquia
e crítico da República, foi quem no fundo provocou a assunção do inconfidente a ícone anti-monarquista , dele ‘apropriando-se’
o novo regime e instituindo o dia 21 de abril
como feriado nacional.
Machado fez
de Tiradentes tema em várias crônicas .
A começar pelos ácidos comentários críticos à edificação da estátua de d. Pedro
I no Largo do Rocio (atual praça Tiradentes,
no centro da cidade do Rio de Janeiro), que se constituiu em um dos maiores
conflitos políticos em torno da figura do
alferes : no lugar onde fora enforcado ‘o mártir’, o governo imperial erguia
uma estátua ao neto da rainha que o condenara à morte ; o líder liberal mineiro
Teófilo Otoni chamou a estátua de
“mentira de bronze”, e Machado participou intensamente dos protestos.
Na crônica de 1 abril
de 1862, publicada no Diário do Rio de
Janeiro, a propósito da festiva
inauguração da estátua, Machado escreveu :
Está inaugurada a estátua eqüestre do primeiro imperador.
Os que a consideram como saldo de uma dívida nacional nadam hoje em
júbilo e satisfação.
Os que, inquirindo a história, negam a esse bronze o caráter de uma
legítima memória, filha da vontade nacional e do dever da posteridade, esses
reconhecem-se vencidos, e, como o filósofo antigo, querem apanhar mas serem
ouvidos.
Já é de mau agouro se à ereção de um monumento que se diz derivar dos
desejos unânimes do país precedeu uma discussão renhida, acompanhada de adesões
e aplausos.
O historiador futuro que quiser tirar dos debates da imprensa os
elementos do seu estudo da história do império, há de vacilar sobre a expressão
da memória que hoje domina a praça do Rocio.
A imprensa oficial, que parece haver arrematado para si toda a
honestidade política, e que não consente aos cidadãos a discussão de uma obra
que se levanta em nome da nação, caluniou a seu modo as intenções da imprensa
oposicionista. Mas o país sabe o que valem as arengas pagas das colunas
anônimas do Jornal do Comércio.
O que é fato, é que a estátua inaugurou-se, e o bronze lá se acha no
Rocio, como uma pirâmide de época civilizada, desafiando a ira dos tempos.
O Rocio vestia anteontem galas e louçanias desusadas.
As ruas por onde passou o préstito estavam ornadas de bandeiras e
colchas, e juncadas de folhas odoríferas, segundo as exigências oficiais.
Mas sabe o leitor quem teve grande influência na festa de anteontem? O
adjetivo. Não ria, leitor, o adjetivo é uma grande força e um grande elemento .
(......)
Foi o adjetivo quem fez as despesas das arengas escritas anteriormente
em defesa da estátua.(.....)
Três anos depois, a 25 abril 1865, publicou também
no Diário do Rio de Janeiro uma
crônica que é uma verdadeira ode a Tiradentes , inclusive prenunciando e
acabando por vir a formalizar,tempos depois,
a mitificação do inconfidente – logo por Machado – e fomentar, depois de
1889, sua construção como signo da República :
“Os povos devem ter os seus santos. Aquele que os tem merece o respeito
da história, e está armado para a batalha do futuro.
Também o Brasil os tem e os venera; mas, para que a gratidão nacional
assuma um caráter justo e solene, é preciso que não esqueça uns em proveito de
outros; é preciso que todo aquele que tiver direito à santificação da história
não se perca nas sombras da memória do povo.
É uma grande data 7 de setembro; a nação entusiasma-se com razão quando
chega êsse aniversário da nossa independência. Mas a justiça e a gratidão pedem
que, ao lado do dia 7 de setembro, se venere o dia 21 de abril. E quem se
lembra do dia 21 de abril? Qual é a cerimônia, a manifestação pública?
Entretanto, foi nesse dia que, por sentença acordada entre os da
alçada, o carrasco enforcou no Rocio, junto à rua dos Ciganos, o patriota
Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado o Tiradentes.
A sentença que o condenou dizia que, uma vez enforcado, lhe fosse
cortada a cabeça e levada a Vila Rica, onde seria pregada em um poste alto, até
que o tempo a consumisse; e que o corpo, dividido em quatro pedaços, fosse
pregado em postes altos, pelo caminho de Minas.
Xavier foi declarado infame, e infames os seus netos; os seus bens
(pelo sistema de latrocínio legal do antigo regime) passaram ao fisco e à
câmara real.
A casa em que morava foi arrasada e salgada.
Ora, o crime de Tiradentes foi simplesmente o crime de Pedro I e José
Bonifácio. Ele apenas queria apressar o relógio do tempo; queria que o século
XVIII, data de tantas liberdades, não caísse nos abismos do nada, sem deixar de
pé a liberdade brasileira.
O desígnio era filho de alma patriótica; mas Tiradentes pagou caro a
sua generosa sofreguidão. A idéia que devia robustecer e enflorar daí a trinta
anos, não estava ainda de vez; a metrópole venceu a colônia; Tiradentes expirou
pelo baraço da tirania.
Entre os vencidos de 1792, e os vencedores de 1822, não há senão a
diferença dos resultados. Mas o livro de uma nação não é o livro de um
merceeiro; ela não deve contar só com os resultados práticos, os ganhos
positivos; a idéia, vencida ou triunfante, cinge de uma auréola a cabeça em que
ardeu. A justiça real podia lavrar essa sentença digna dos tempos sombrios de
Tibério; a justiça nacional, o povo de 7 de setembro, devia resgatar a memória
dos mártires e colocá-los no panteon dos heróis.
No sentido desta reparação falou um dos nossos ilustrados colegas,
nestas mesmas colunas, há quatro anos. As palavras dele foram lidas e não
atendidas; não ousamos esperar outra sorte às nossas palavras.
Entretanto, consignamos o fato: o dia 21 de abril passa despercebido
para os brasileiros. Nem uma pedra, nem um hino, recordam a lutuosa tragédia do
Rodo. A última brisa que beijou os cabelos de Xavier levou consigo a lembrança
de tamanha imolação.
Pois bem, os brasileiros devem atender que este esquecimento é uma
injustiça e uma ingratidão. Os deuses podem aprazer-se com as causas
vencedoras: aos olhos do povo a vitória não deve ser o criterium da homenagem.
É certo que a geração atual tem uma desculpa na ausência da tradição; a
geração passada legou-lhe o esquecimento dos mártires de 1792. Mas por que não
resgata o êrro de tantos anos? Por que não faz datar de si o exemplo às
gerações futuras?
Falando assim, não nos dirigimos ao povo, que carece de iniciativa.
Tampouco alimentamos a idéia de uma dissensão política; conservadores
ou liberais, todos são filhos da terra que Tiradentes queria tornar
independente. Todavia, há razão para perguntar ao partido liberal, ao partido
dos impulsos generosos, se não era uma bela ação, tomar ele a iniciativa de uma
reparação semelhante; em vez de preocupar-se com as questões de subdelegados de
paróquia e de influências de campanário.
Em desespero de causa, não hesitamos em volver os olhos para o príncipe
que ocupa o trono brasileiro.
Os aduladores hão de ter-lhe lembrado que Tiradentes queria a
república; mas o imperador é um homem ilustrado, e há de ver como se distancia
dos aduladores o heróico alferes de Minas. Se os ânimos recuam diante de uma
idéia que julgam ofensiva à monarquia, cabe ao príncipe sufocar os escrúpulos,
tomando êle próprio a iniciativa de um ato que seria uma das mais belas páginas
do seu reinado. Um príncipe esclarecido e patriota não podia fazer uma ação
mais nobre, nem dar uma lição mais severa.
Uma cerimônia anual, com a presença do chefe da nação, com assistência
do povo e dos funcionários do Estado, - eis uma coisa simples de fazer-se, e
necessária para desarmar a justiça da história.
Não sabemos até que ponto devemos confiar nesta esperança; mas, ao
menos, deixamos consignada a idéia.
Morro pela liberdade! disse Tiradentes do alto da forca: estas
palavras, se o Brasil não reparar a falta de tantos anos, serão um açoite
inexorável para os filhos do império.(......)
Em 1892,
a propósito do centenário de morte de Tiradentes,
Machado fez questão de marcar , o início
da importante série “A Semana”, publicadas na Gazeta de Notícias de 1892 a 1900, escrevendo em tom vibrante,pungente e patriótico no dia
24 abril :
“(......................)
Para não ir mais longe, Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tivemos esta
semana o centenário do grande mártir. A ,prisão do heróico alferes é das que
devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo,
ou se esse patriotismo é outra cousa mais que um simples motivo de palavras
grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos Estados estão vindo boas
notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do
alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a
meia ração de glória. Merecem, decerto, a nossa estima aqueles outros; eram
patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que
chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros,
pena que só ia ser executada nêle, o enforcado, o esquartejado, o decapitado,
esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos,
visto que pagou por todos..
Um dos oradores do dia 21 observou que a Inconfidência tem vencido, os
cargos iam. para os outros conjurados, não para o alferes.. Pois não é muito
que, não tendo vencido, a história lhe dê a principal cadeira. A distribuição é
justa. Os outros têm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um
coro igual ao das Oceânides diante de Prometeu encadeado. Relede Ésquilo, amigo
leitor. Escutai a linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis,
quando o grande titão é envolvido na conflagração geral das coisas. Mas,
principalmente ouvi as palavras de Prometeu narrando os seus crimes às ninfas amadas : Dei o fogo
aos homens; esse mestre lhes ensinará todas as artes". Foi o que nos
fez Tiradentes. .
Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma cousa, a
alcunha. Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que
não podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a
familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o
alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião -
dentista. Era o mesmo· herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra
dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte,
dentista, e quedar-se apenas cirurgião.(....)
Um mês depois, Machado torna a referir-se ao
alferes , utilizando-se do tom mais
irônico que sua contumaz verve satírica poderia conceber. Na crônica de 22
maio, estampada no mesmo jornal, o sarcasmo machadiano chega a criar uma
fantasia – cheia de significados -- ao construir impagável narrativa, exemplar
insofismável do alegórico, acerca de um
embuste imaginário :
“Este Tiradentes, se não toma cuidado emr si, acaba inimigo público.
Pessoa, cuje nome ignoro, escreveu esta semana algumas linhas com o fim de
retificar a opinião que vingou, durante um longo século, acerca do grande
mártir da Inconfidência. "Parece (diz o artigo no fim) parece injustiça
dar-se tanta importância a Tiradentes, porque morreu logo, e não prestar a
menor consideração aos que morreram de moléstias e misérias na costa
d'África." E logo em seguida chega a esta conclusão: "Não será possível
imaginar que, se não fosse a indiscrição de Tiradentes, que causou o seu
suplício, e o dos outros, que o empregaram, teria realidade o projeto ?"
Daqui a espião de polícia é um passo. Com outro passo chega-se à prova
de que ele nem mesmo morreu; o vice-rei
mandou enforcar um furriel muito parecido com o alferes, e Tiradentes viveu até
1818 de uma pensão que lhe dava D. João VI. Morreu de um antraz, na antiga rua
dos Latoeiros, entre as do Ouvidor e do Rosário, em uma loja de barbeiro,
dentista e sangrador, que abriu em 1810, a conselho do próprio D. João, ainda
príncipe regente, o qual lhe ·se (formais palavras):
- Xavier, já que não podes ser alferes, ,ma por ofício o que fazias
antes por curioso ; vou mandar dar-te umas casas da rua ,os Latoeiros ...
- Oh ! meu senhor I
- Mas não digas quem és. Muda de nome, Xavier; chama-te Barbosa.
Compreendes, não ? O meu fim é criar a lenda que tu é que foste o mártir e o
herói da Inconfidência, e diminuir assim
a glória de João Alves Maciel.
- Príncipe sereníssimo, não há dúvida que esse é que foi o chefe da
detestável conjuração.
- Bem sei, Barbosa, mas é do meu real agrado passá-lo ao segundo plano,
para fazer crer que, apesar dos serviços que prestou, das qualidades que tinha
e das cartas de Jefferson, pouco valeu, e que tu é que vales tudo. É um plano
maquiavélico, para desmoralizar a conjuração. Compreendes agora ?
- Tudo, meu senhor.
- Assim é bem possível que, se algum dia, quiserem levantar um
monumento à Inconfidência, vão buscar por símbolo o mártir, dando assim
excessiva importância ao alferes indiscreto, que pôs tudo de pernas para o ar,
e a pretexto de haver morrido logo. Não abanes a cabeça; tu não conheces os
homens. Adeus; passa pela ucharia, que te dêem um caldo de vaca, e pede por Sua
Real Majestade e por mim nas tuas orações, Consinto que também rezes pelo
furriel Como se chamava ? Esquece-me sempre o nome.
- Marcolino.
- Reza pelo Marcolino.
- Ah! Senhor, os meus cruéis remorsos nunca terão fim!
- Barbosa, têm sempre fim os remorso! de um leal vassalo!
E assim ficará retificada a história, antes de 1904 ou 1905, Tiradentes
será apeadodo pedestal que lhe deu um sentimentalismo que se .lembra de
glorificar um só porque morreu logo, como se não morresse sempre antes de
outros, e demais, enforcado, que é morte Quanto ao esquartejamento e exposição
da cabeça, está provado empírica cientificamente que cadáver não padece, e
tanto faz cortar-lhe as pernas como dar-lhe calças. Mas ainda restará alguma
coisa ao alferes ; pode-se-lhe expedir a patente de capitão honorário. Se está
no céu, e se os mártires formam lá em cima, pode comandar uma companhia. Antes
isso que nada. (.....)
E um ano depois, a 23 abril 1893, menciona Tiradentes e sua coragem e disposição
para sacrificar a vida – ainda que
graciosa e bem-humoradamente :
“(..........)
Para mistério, mistério e meio. Saí dali, corri à casa de um armeiro,
onde comprei algumas espingardas e bastante cartuchame. Além disso, com o
pretexto de saudar o dia 21 de abril, alcancei por empréstimo duas peças de
artilharia. Assim armado, recolhi-me a 1 casa, jantei, digeri, e meti-me na
cama. Naturalmente não dormi; mas também não vi a aurora, nem o sol de
quinta-feira. Portas e janelas fechadas. Nenhum rumor em casa, comidas frias
para não fazer fogo, que denunciasse pelo fumo a presença de refugiados.
Ensinei à família a senha monástica; andávamos calados, interrompendo o
silêncio de quando em quando para dizermos uns aos outros que era preciso
morrer. Assim se passou a quinta-feira.
Na sexta-feira, pelas seis horas da manhã, ouvi tiros de artilharia. Ou
é a salva de Tiradentes, disse à família, ou é a revolução que venceu. Saí à
rua; era a salva. Perguntei pelos mortos. Que mortos ? Pelos acontecimentos.
Que acontecimentos ? Nada houvera; toda a cidade vivera em paz. Assim se
desvaneceram os sustos, filhos de boatos, filhos da imaginação. Assim se
desvaneçam todos os demais ovos do marido de La Fontaine.
Só um fato se havia dado, como disse, o do coreto. Fui à praça ver os
destroços, mas já não vi nada; achei a estátua e curiosos. Desandei, atravessei
o largo de S. Francisco e desci pela rua do Ouvidor, ao encontro do préstito de
Tiradentes. Soube que já não havia préstito. Era pena; esta cidade tem, para
Tiradentes, não só a dívida geral da glorificação, como precursor da
independência e mártir da liberdade, mas ainda a dívida particular do resgate. Ela festejou com pompa
a execução do infeliz patriota, no dia 21 de abril de 1792, vestindo-se de
galas e ouvindo cantar um Te-Deum.
Espiando para casa , lembrei-me que esse dia 21 era ainda aniversário
de outra tentativa política. O povo desta cidade e os eleitores convocados
revolucionariamente pelo juiz da comarca, reuniram-se na praça do Comércio e
pediram ao rei a constituição espanhola, interinamente. A constituição foi dada
na mesma noite, contra a vontade de algumas pessoas, e retirada no dia
seguinte, depois de alguns lances próprios de tais crises, não por ser
constituição, - visto que, dois anos depois, tínhamos outra -- mas naturalmente
por ser espanhola. De Espanha só mulheres, guitarras e pintores.(......)
As referências e menções a Tiradentes – como de
resto os comentários e alusões feitas a diversas personalidades históricas,
assim como a cobertura dos fatos políticos de sua época – constituem provas e
exemplos eloqüentes do quanto Machado de Assis participava ativamente da
história (política,institucional, econômica, social) e em nada – ao contrário
da equivocada interpretação, que exige de uma vez por todas sua revisão – era
alheio às questões de seu tempo.
Certamente pelo uso do
subterfúgio, da dissimulação, da sutileza – e do disfarce e do enigma—Machado
de Assis recebeu, indevidamente, a pecha de “despolitizado”, “alienado”,
“alheio às questões políticas e sociais de seu tempo”.
Ledo e puro engano. Machado de
Assis foi um crítico ‘avassalador’ da sociedade e das instituições brasileiras,
e escreveu – ou a elas se referiu -- em crônicas e artigos, mesmo em contos e romances e até na poesia. , sobre
política (muito) [e,para surpresa de alguns, sobre economia (em menor monta)].
Machado de Assis tinha opiniões políticas — era um monarquista liberal, não
apoiava a República, repudiava Floriano Peixoto (que ,apoiado em golpe de
Estado em 1891, governava com poderes autoritários, levando o País à ditadura,
à censura e à guerra civil) — e por meio
de sua obra é possível observar a política brasileira de sua época através do
olhar literário. Raymundo Faoro (em A
pirâmide e o trapézio ) sentenciou que pode-se vislumbrar toda a sociedade
brasileira do século XIX na obra de
Machado : tanto na não-ficção quanto na ficção, arrancou da História a própria
substância de suas narrativas e textos , utilizando uma série de categorias
políticas - escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura ,aparelho policial,
autocracia absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua escritura literária, de uma crítica da ideologia brasileira e de uma
teoria política avançada,que no campo dos estudos literários não foi
adequadamente percebida pelos especialistas.
As crônicas
e artigos tratando de política são justamente aquelas que registram opiniões
nunca expressadas por Machado com tanta clareza e coerência.
terça-feira, 14 de abril de 2015
PONTES DE VISTA : MACHADO DE ASSIS E OS PORTUGUESES
Lançada a 11 abril, com todas ‘pompa e circunstância’, na lendária Livraria Lello (todos devem saber, por certo, de sua gloriosa história), no Porto, Portugal, a 1ª. edição da revista acadêmica de filosofia e literatura “Pontes de Vista” [seu lema diz: “nascemos com pontos de vista, mas só crescemos com pontes de vista.”] publica contribuições de investigadores, filósofos e pensadores de língua portuguesa internacionais,
-- e abriga meu artigo “Machado de Assis e os portugueses”, escrito especialmente para a revista
-- e abriga meu artigo “Machado de Assis e os portugueses”, escrito especialmente para a revista
inerente a estudo que desenvolvo há mais de um ano, a gerar livro (“ Machado de Assis e os portugueses : influências, intertextualidades, convívios”), cuja finalização se dará no segundo semestre deste ano; livro aguardado com expresso interesse pelo Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa e pelo Instituto de Literatura Comparada da Universidade do Porto..
quinta-feira, 2 de abril de 2015
O cinema vai à literatura: um réquiem a Manoel de Oliveira
-- morreu em 01.04. um dos maiores cineastas da história
do cinema : mais, um dos magistrais artista do mundo.
O cinema vai à literatura
(e a literatura se vale do cinema)
Sempre é oportuno e indispensável tecer reflexões sobre a sempre
vigente relação literatura-cinema, com suas interseções, confluências ...e
divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de
sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de
“infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até
porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e
modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se
e na maioria dos casos contrastam- se;
são sempre difíceis as transposições de uma para o
outro, pois as características intrínsecas do texto literário --
originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não
encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, entre a página e a tela há laços estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ :
a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do
leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas
pelo expectador por meio de palavras.Entre
a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou
sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e
expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por
meio de um ‘cinema interior ou mental’
sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao
advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da
literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de
início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações
mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o
surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade
continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí,
adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à
cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói,
Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para
citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale
a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns,
tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras
literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão -- meios que privilegiam a linha narrativa —
também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em
empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período
clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de
legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela,
tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de
escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores
como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, , James
Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas
histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários
empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já
é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de
alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo
sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me
dizem para fazer; é um emprego, e pronto."
“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o
pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University
of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar
quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de
Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ em parceria com o
Globo Universidade para ministrar uma disciplina compactada sobre Cinema,
Literatura e TV. Para ele, as relações
entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a
tela, apontando três outros importantes pontos de encontro : o primeiro seria
os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam vários exemplos
em cinematografias distintas; outro, seria o uso estrutural ou incorporação de
textos literários no discurso cinematográfico – esta indubitavelmente a
ocorrência maior; e também o encontro da
literatura e do cinema poderia se dar através de referências como alusões
literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou
escritas diretamente na tela – um expediente cada vez mais recorrente na
produção contemporânea. Por outro lado,
Johnson critica
enfaticamente a valorização do
texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser muito comum entre os espectadores uma
exigência de fidelidade do filme ao livro. . A insistência na fidelidade da
adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode resultar em
julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra literária em
detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados
criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo. O
conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se na
discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita
em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos
filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como
está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no
original.
Esse freqüente
discurso da fidelidade baseia-se,a meu juízo, na crença difundida de que a
literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura
ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à idéia de que o livro é
historicamente mais nobre e o filme secundário -- além evidentemente do pensamento
de que cinema e literatura são rivais a partir da crença na idéia de que o
filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro.
Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem
sido um de seus pontos de partida – as relações entre o cinema e a literatura
são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes
mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a
qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos literários
anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como
especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da
incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse
modo, a narrativa cinematográfica já se encontraria latente em alguns textos
narrativos literários, e a relação logo
passou a trilhar indissolúvel (sic) mão dupla, quando literatos e dramaturgos
começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em
poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários
e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada
linguagem --- ísto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado
na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em
1950, etc ) : e o momento histórico de
cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum
filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme,
quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e
circulação de cada um de seus produtos.
Essa intrínseca, dialógica e dinâmica relação nasce no
momento em que o cinema descobre seu potencial digamos literário , ao absorver
o modelo narrativo do romance do século XIX a subsidiá-lo para melhor contar
histórias – malgrado podermos hoje levantar a reflexão em plena era da imagem digital em que vivemos : o
cinema continuaria ‘preso’ a um modelo
narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria literatura? .Se o
cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era da imagem
digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais alto,
continuam-se a ilustrar romances do século XIX?
Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo
da narrativa, em sua já longa história,
o cinema não sofreu muitas variações – malgrado certas exceções, como
experimentos ‘de vanguarda’ – e vem à
mente, por aproximação etimológica, a
“Nouvelle Vague” da década de 1960 , que se propunha a romper com a lógica linearizante da estética e da
narrativa fílmica de até então, inspirada num congênere da seara literária, o
“nouveau roman”—ambas dialogando entre si pelas respctivas técnicas narrativas,
num movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.Convém não
esquecer,entretanto, que sob a égide de suas
afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a
se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica
hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já
consagrados da narrativa literária – levando
Jorge Luis Borges a observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a
épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela
épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar as limitações formais e “não procurando ordenar o caos”, ao contrário, o caos
tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”,p. ex.,
queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que os caminhos são múltiplos; e por
fim aquilo que Jean Cocteau afirmou
sobre o cinema pode agora se efetivar, pois para ele, os filmes só seriam bons
quando fossem acessíveis como uma caneta e um papel.
Contudo, há de se atentar para um outro viés ,uma espécie
de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um
contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo
setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de
publicação de livros motivados... pelo
cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração
de filmes(making-of), edição ou
reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos
iconográficos que remetem para os filmes
realizados a partir da adaptação da obra para
o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura. De resto, uma tendência à qual avolumam-se
questionamentos sobre até que ponto
sinaliza tanto ‘perda de
prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’ da matéria literária, como sobretudo ‘dessacralização’
da literatura, tênues que se tornam cada
vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens culturais que circulam
pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.
Da mesma forma e desse processo decorrente,
deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX,por parte e ação do
setor editorial ,a contrapartida à incorporação da obra
literária,fosse best seller ou não –
muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o relançamento
de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros .Toda a
literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um filme, e
na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o espaço do
livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações derivadas de
filmes.
Por
outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas
e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o
timbre, o ritmo, o timing fílmico --
e menos literário. E além disso, mesmo que sua estória e trama seja de ação,de
movimento, costumam lidar com o onírico, o sonho , e com o psicológico -- que é,
sabemos, elemento recorrente ao extremo
no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais
a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles antes e acima
de tudo pessoas do cinema.
Tudo isso propicia
um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de
profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O
caso é que um diretor de cinema ou de tv
quando vai à literatura leva com
ele uma bagagem da linguagem -- o ritmo,
o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador --
e assim comete pecados e pecadilhos marcantes . Ao
contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre
-- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são
melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores
norte-americanos com Hollywood ,e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo
no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões
literárias atuarem numa espécie de
contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate --
literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias
por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no
caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme -- e vale lembrar que para o escritor Autran Dourado “não existe
livro filmado, existe filme baseado
em livro” -- mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de
seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo
instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto --
relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou
inferidos\induzidos, alguns elementos que responderiam a Stanley Kubrick --
para quem “tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” -- também provando o inevitável desejo de cineastas e roteiristas, ao
escreverem uma obra literária, que ‘tudo
que pode ser filmado poderia ser
escrito’...
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