quinta-feira, 30 de abril de 2015

o 1º. de Maio e Euclides da Cunha


Euclides da Cunha foi essencialmente um ser político – um pensador, a princípio convicto militante republicano, depois,desiludido com o regime, crítico vigoroso,por fim (em essência, depois de Canudos) presumivelmente socialista ( com efeito,se achegou,por influência do  amigo Francisco Escobar, ao grupo socialista de São José do Rio Pardo ,onde deu forma final ao texto de Os sertões ) --o que, na verdade, delineara-se,configurara-se e consolidara-se gradativamente  em todas as fases e  estágios de seu espectro político-ideológico. 
Haja vista, a expressar e comprovar com clareza absoluta a postura euclidiana face à questão social e ao socialismo, três  textos em três períodos distintos  todos datados de 1º. de maio : um artigo de 1892; o texto,de 1899, do programa de O Proletário, órgão do “Clube Internacional Os Filhos do Trabalho”,em São José do Rio Pardo; o artigo,de 1904, intitulado  “Um velho problema” – este, o mais avançado de sua lavra e um dos mais radicais de seu tempo.
[excertos de meu livro Escritos de Euclides da Cunha : política,ecopolítica,etnopolítica (PUC-Rio/Loyola, 2009)]
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o estado  de  S. Paulo,  1º. maio  1892

Extraordinário amanhecer o de hoje nas velhas capitais da Europa...
Como que assaltada por uma síncope, subitamente, se paralisa a complicadíssima vida da mais alta civilização; todo o movimento das grandes sociedades, toda a espantosa atividade de um século e a admirável continuidade dessa existência moderna tão poderosa e tão vasta, se extinguem, aparentemente, esvaindo-se em vinte e quatro horas de inatividade sistemática.
Abandonam o cérebro dos políticos os interesses nacionais mais urgentes; desaparecem por um dia todas as fronteiras; reconciliam-se incorrigíveis ódios seculares de governos - e aqueles exércitos formidáveis, que a todo o instante ameaçam abalar a civilização, num espantoso duelo, formam silenciosos, pela primeira vez, sob uma mesma bandeira...
Tudo isto porque o anônimo extraordinário que é o maior colaborador da história, o Povo que trabalha e que sofre - sempre obscuro - entende, nessa festiva entrada da primavera, deixar por momentos as ásperas ferramentas e sonhar também como os felizes, pensar, ele que só tem um passado, no futuro.
O escravo antigo, que ia nos circos romanos distrair o humor tigrino dos reis, num pugilato desigual e trágico com as feras; o servo da gleba, o vilão cobarde que atravessou a idade média, à sombra dos castelos sob a guante do feudalismo; que tem alimentado com o sangue a alma destruidora das guerras; ele - a matéria prima de todas as hecatombes, seguindo sempre acurvado a todos os jugos - transfigura-se realmente, alentado por uma aspiração grandiosa e apresenta esta novidade à história - pensa!
Deu todas as energias ao progresso humano, sempre inconsciente da própria força, e quando no fim do século XVIII, uma grande aura libertadora perpassou a terra, ele se alevantou, aparentemente apenas - para trazer às costas, até os nossos dias - a burguesia triunfante.
Cansado de escutar todas as teorias dos filósofos ou os devaneios dos sonhadores, que de há muito, intentam-lhe a regeneração - desde os exageros de Proudhon às utopias de Luis Blanc - ele inicia por si o próprio levantamento.
E para abalar a terra inteira basta-lhe um ato simplíssimo - cruzar os braços.
E que triste e desoladora perspectiva esta - de vastas oficinas e ruidosas fábricas desertas, sem mais a movimentação fecunda do trabalho - e as profundas minas, abandonadas, abrindo para os céus as gargantas escuras - num tenebroso bocejo...

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Se entrarmos na análise dos cambiantes que tem assumido o socialismo, temo-lo como uma ideia vencedora.
O Quarto Estado adquirirá, por fim, um lugar bem definido na vida universal.
Nem se lhe faz para isto preciso agitar o horror da anarquia ou fazer saltar a burguesia a explosões de dinamite. Fala todas as línguas e é de todas as pátrias.
Toda a sua força está nessa notável arregimentação, que ora desponta à luz de uma aspiração comum; a anarquia é justamente o seu ponto vulnerável - quer se defina por um caso notável de histeria - Luiza Michel, ou por um caso vulgar de estupidez - Ravachol.
Não existe, talvez, um só político proeminente hoje, que se não tenha preocupado com esse grave problema - e o mais elevado deles, o menos inglês dos pensadores britânicos, Gladstone, cedendo à causa dos home-rulers o espírito robusto - é, verdadeiramente, um socialista de primeira ordem.
Realmente, a vitória do socialismo bem entendido, exprime a incorporação à felicidade humana dos que foram sempre dela afastados. Em nossa pátria - moça e rica - chegamos as vezes a não o compreender - transportando-nos porém aos grandes centros populosos, observando todas as dificuldades que assoberbam a vida ali, sentimos quão criminosa tem sido a exploração do trabalho. Ali, aonde o operário mal adquire para a base material da vida, a falsíssima lei de Malthus parece se exemplificar ampla e desoladora. Preso a longas horas de uma agitação automática e além disto cerceado da existência civil, o rude trabalhador é muito menos que um homem e pouco mais que uma máquina.
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Os governos da Europa hão de transigir porém; hão de entabular os preliminares da paz, pelas concessões justas e inevitáveis que terão de fazer.
Nós assistimos ao espetáculo maravilhoso da grande regeneração humana.
Pela segunda vez se patenteia na História, o fato de povos que se fundem num sentimento comum - e não sabemos qual mais grandioso, se o quadro medieval das Cruzadas ou se esta admirável cruzada para o futuro.
Seja qual for este regime porvir, traduza-se ele pela proteção constante do indivíduo pela sociedade, como pensa Spencer ou pelas inúmeras repúblicas, em que se diferenciará o mundo, segundo acredita Augusto Comte - ele será, antes de tudo, perfeitamente civilizador.
Que se passe sem lutas este dia notável. O socialismo, que tem hoje uma tribuna em todos os parlamentos, não precisa de se despejar nas revoltas desmoralizadas da anarquia.
Que saia às ruas das grandes capitais a legião vencedora e pacífica; e levante altares à esperança, nessa entrada iluminada de primavera, sem que se torne preciso ao glorioso vencido - o Exército - abandonar a penumbra em que lentamente emerge à medida que sobe a consciência humana.
E.C.
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o proletário,1º. maio  1899

Programa
I. Proibição do trabalho das crianças de qualquer dos sexos até a idade de 14 ou 15 anos.
II. Escolas gratuitas, com o ensino leigo e obrigatório para todas as crianças, sem distinção de sexo, de cor e de nacionalidade, tendo as crianças pobres todo o necessário para freqüentar as escolas: roupa, comida, cuidados médicos, farmácias, etc, etc.
III. Estabelecimentos apropriados para recolher os inválidos do trabalho, pobres, velhos e defeituosos, dando-lhes com abundância roupa, comida, médico, farmácia, etc., para não irem morrer nas enxergas dos hospitais e nos adros das igrejas, ou nas calçadas das ruas, implorando aviltadora caridade, ministrada pelos ricos, e remédios.
IV. Emancipação da mulher, reconhecendo-se-lhes iguais direitos e iguais deveres: aos do homem, inclusive o de votar e ser votadas.
V. Impostos diretos e pesadíssimos sobre a renda.
VI.Substituição das Forças Armadas pelo povo armado.
VII. Organização do trabalho por ser o único fator de riqueza.
VIII. Estabelecimento de bolsas de trabalho.
 IX. Proporcionar a preços módicos a cada família uma casa confortável para sua residência.
X. Fornecer água e luz grátis a todos em geral.
XI. Tribunais arbitrais obrigatórios para as questões internacionais.
XII. Justiça gratuita para todos.
XIII. Supressão dos empréstimos internos e externos.
XIV. Tribunais arbitrais para decidir as questões entre patrões e operários.
XV. Decretar leis de oito horas de trabalho e a proibição do trabalho à noite para os assalariados.
XVI. Leis repressivas contra os usurários, estabelecendo uma só taxa de juros para todos os negócios.
XVII. Nacionalização do crédito.
XVIII. Leis reguladoras da venda de bebidas, para acabar com o alcoolismo.
XIX. Leis que estabeleçam o divórcio, dando à mulher as mesmas garantias que ao homem.
XX. Pensão aos inválidos do trabalho.
XXI. Reivindicação dos bens do clero para a comunhão social.
                                                     A mensagem
Festa  exclusivamente popular, ela se destina a preparar o advento da mais nobre e fecunda das aspirações humanas : a reabilitação do proletariado pela exata distribuição da justiça, cuja fórmula suprema consiste em dar cada um o que cada um merece. Daí a abolição dos privilégios derivados quer do nascimento, quer da fortuna, quer da força. Para esse fim é mister promover a solidariedade entre todos os que formam a imensa maioria dos oprimidos sobre que pesam as grandes injustiças das instituições e preconceitos sociais da atualidade, destinados a desaparecer para que reine a paz e felicidade entre os povos civilizados. Promovendo, entre nós, a comemoração de uma data tão notável, o Clube "Filhos do Trabalho" promoverá a divulgação dos princípios essenciais do programa socialista, empenhando –se em difundi-los entre todas as classes sociais.

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O estado de s. paulo,  1º. maio  1904

 

Um velho problema


Li há tempos alentada dissertação sobre um singularíssimo direito expresso em velhas leis consuetudinárias da Borgonha. Direito de roubos...
Recordo-me que, surpreendido com tal antinomia, tão revolucionária, sobretudo para aquela época, ainda mais alarmado fiquei notando que a patrocinava o maior dos teólogos, S. Thomaz de Aquino; e com tal brilho e cópia de argumentos, que a perigosa tese repontava com a estrutura inteiriça de um princípio positivo. Realmente a repassava uma nobre e incomparável piedade, fazendo que aquela extravagância resumisse e espelhasse um dos aspectos mais impressionadores da justiça.
Tratava-se, ao parecer, de um código da indigência; e os graves doutores, no avantajarem-se tanto, rompendo com nobre rebeldia as barreiras da moral comum, para advogarem a causa da enorme maioria de espoliados, chegavam à conclusão de que a opulência dos ricos se traduzia como um delitum legale, um crime legalizado. Impressionava-os o problema formidável da miséria na sua feição dupla - material e filosófica - pois é talvez menos doloroso refletido nos andrajos das populações vitimadas, que na triste inopia de elementos da civilização para o resolver.
E como lhes faleciam, mais do que hoje nos falecem, elementos para a extinção do mal, justificavam aos desvalidos num crudelíssimo título de posse a todos os bens - a fome.
O indigente tornava-se um privilegiado afrontando impune toda a ortodoxia econômica. O roubo transmudava-se, do mesmo passo, num direito natural de legítima defesa contra a Morte e num dever imperioso para com a Vida.
Mas não foram além deste expediente, e dessas declamações, os piedosos doutores. Tolhia-os, senão a situação mental da Idade Média imprópria a uma apreciação exata do conjunto do progresso humano, a mesma ditadura espiritual do catolicismo, na plenitude de força, e para o qual a miséria - eloqüentíssima expressão concreta do dogma do pecado original - era sempre um horroroso e necessário capital negativo, avolumando-se com as provações e com os martírios para a posse anelada da bem-aventurança, nos céus...
Por outro lado, os pensadores leigos do tempo, e os que os encalçaram até ao século XVIII, não partiram esta tonalidade sentimental Mais sonhadores que filósofos, o que os atraía era o lado estético do infortúnio, a visão empolgante do sofrimento humano, a que nos associamos sempre pela piedade. Os seus livros, pelos próprios títulos hiperbólicos, à maneira dos das novelas do tempo, retratam uma intervenção brilhante e imaginosa, mas inútil. São como títulos de poemas. De fato, na Utopia de Thomaz Morus, na Oceana de Hallis, ou na Basilidade de Morelly, a perspectiva de uma existência melhor, oriunda da riqueza eqüitativamente distribuída e dos privilégios extintos, irrompe :num fervor de ditirambos, aos quais não faltam, para maior destaque, prólogos arrepiadores de agruras e tormentas indescritíveis...
As medidas propostas raiam pelos exageros máximos da fantasia: do nivelamento absoluto de João Libburne, ao platonismo adorável de Fontenelle e ao niilismo religioso de Diderot; e para lhes não faltar grotesco, esse cruel e antilógico grotesco imanente às mais trágicas situações, culmina-as o desvairado comunismo de Campanella com os seus trezentos monges, trezentos ascetas barbudos e melancólicos, tentando uma república igualitária que seria o desabamento de todas as conquistas do progresso.
Ora, tudo isto caracteriza bem o completo desequilíbrio das almas rudemente trabalhadas pelas doutrinas opostas e de todo desapercebidas, então, de uma síntese filosófica que ao mesmo passo as emancipasse do apego tradicional ao catolicismo, cuja missão findara, e dos impulsos demolidores da metafísica triunfante.
Assim, ao arrebentar a crise decisiva de 1789, não é de estranhar ficasse inapercebido, e talvez sacrificado, o grande problema que desde Pitágoras e Platão vinha agitando os espíritos. E que a grande revolução, inspirada pela filosofia social do século XVIII, oferece o espetáculo singular de repudiar, desde os seus primeiros atos, os seus próprios criadores. A consideração de Guizot é profunda: nunca uma filosofia aspirou tanto ao governo do mundo e nunca foi tão despida do império.
Os filósofos foram, de pronto, suplantados, na agitação revolta dos panfletos e da retórica explosiva dessa literatura política sempre efêmera, com ser modelada pelos desvarios repentinos da multidão. A sólida estrutura mental de um d’Alembert antepôs-se o espírito imaginoso e pueril de um Vergniaud, e aos sonhos desmedidos de Mably e excesso de objetivismo do trágico casquilho que passeou pelas ruas de Paris :a deusa da Razão...
De sorte que a última pancada do antigo regime - já longamente solapado e prestes a cair por si mesmo - se fez com excesso de energias que atirou sobre os destroços da ordem antiga as ruínas da ordem nova planeada. Exclusivamente atraída pelo programa, que se lhe afigurava enorme e pouco valia, de derruir as classes privilegiadas, a Revolução firmou, nos "direito:; do homem", um duro individualismo que na ordem espiritual significava a negação dos seus melhores princípios e na ordem prática equivalia a destruir as corporações populares, isto é, a única criação democrática da Idade Média.
"Os direitos do homem... No entanto, a fórmula superior daquela filosofia, visava, de preferência, através da solidariedade humana crescente, exatamente o contrário - os deveres do homem". Mas era exigir muito à loucura política do momento. Fazia-se mister, antes de tudo, que as franquias recém-adquiridas tivessem um traço incisivamente antiaristocrático. Que o camponês, absolutamente livre, fosse absolutamente dono da quadra de terra onde nascera e onde tanto tempo jazera aguilhoado à gleba feudal; enquanto o burguês das cidades pudesse agir libérrimo, dispondo a bel-prazer de todos os seus bens, despeado do liame das jurandes.
E o trono vazio dos Capetos teve em roda a concorrência tumultuária de não sei quantos milhões de liliputinianos reis...
Despojados o clero e a aristocracia de suas propriedades (não raro precárias como privilégios sujeitos aos caprichos do poder monárquico) ficou em seu lugar - intangível, absoluta e sacratíssima - a propriedade burguesa, para a qual o ilustre Condorcet não encontrara limites no texto que forneceu à Convenção.
Por isto, a breve trecho, se patenteou a inanidade das reformas executadas; ao invés de um número restrito de privilegiados, nos quais o egoísmo se atenuava com as tradições cavalheirescas da nobreza, um outro, maior e formado pela burguesia vitoriosa, mais inapta ainda a compreender a missão social da propriedade,. .ávida por dominar na arena livre que se lhe abria, e tornando maior o contraste entre a sua opulência recente e a situação inalterável do proletariado sem voto naquele tumulto e destinada apenas a colaborar anonimamente na epopéia napoleônica, quando em breve, culminando a catástrofe revolucionária, o mais pequenino dos grandes homens surgisse, concretizando a reação disfarçada do antigo regime, e fosse restaurar, entre os fulgores de uma glória odiosa, o anacronismo da atividade militar.
Destruída desta maneira a obra memorável da Convenção, vê-se, contudo, que ela tinha latentes e aguardando apenas um meio propício, os princípios de uma distribuição mais eqüitativa da fortuna. Para o rígido Camus a propriedade "não era um direito natural, era um direito social"; acompanhava-o neste conceito o romântico Saint Just; e sobre todos, mais incisivamente, num dizer claríssimo que lhe dá as honras de um precursor do coletivismo moderno, o incomparável Mirabeau atirava na anarquia das assembléias estas palavras singularmente austeras: "Le proprietarie n’est lui-même que le premier des salariés. Ce que nous appelons vulgairement la proprieté n’est autre chose que le prix qui lui paye la societé pour les distribuitions qu’il est chergé de faire aux autres individus par ses consommations et ses depenses. Les proprietaires sont les agents, les economes du corps social".
Estas frases admiráveis, porém, que ainda hoje, transcorridos cento e tantos anos, são a síntese de todo o programa econômico de socialismo, ninguém as escutou. De modo que à massa infelicíssima do povo, a quem a revolução libertara para a morte despeando-a da gleba para jungi-la ao carro triunfal de um alucinado, restavam ainda, como nos velhos tempos, apenas as fórmulas enérgicas, mas inócuas, de alguns doutores canonizados; e em pleno repontar do século XIX - quando a filosofia natural já aparelhara o homem para transfigurar a terra um triste, um repugnante, um deplorável, e um horroroso direito: o direito do roubo
Mas esta filosofia natural, tão crescentemente revigorada e favorecendo tanto, no século que passou, o ascendente industrial, era por si mesma - isolada no campo das suas investigações - inapta à verdadeira solução do problema. Dizem-no os insucessos de todos os que o consideraram esteando-se nela, das estupendas utopias de Saint-Simon e dos seus extraordinários discípulos, às alienações de Proudhon, às tentativas bizarras de Fourier e ao soçobro completo da política de Luiz Blanc.
Fora logo acompanhá-los. Se o fizéssemos, veríamos que, malgrado todos os recursos das ciências, eles pouco se avantajaram aos sonhadores medievais: o mesmo agitar de medidas fantásticas, e tão radicais, algumas, abalando tanto os fundamentos da sociedade, a começar pela organização da família, que acarretavam ante novos elementos perturbadores e novas faces à questão, dando-lhe um caráter por igual revolucionário e complexo capaz de a tornar  perpetuamente insolúvel.
Assim ela chegou até meados do último século - até Karl Marx - pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhon que o socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva.
Nada de idealizações: fatos; e induções inabaláveis resultantes de uma análise rigorosa dos materiais objetivos; e a experiência e a observação, adestradas em lúcido tirocínio ao través das ciências inferiores; e a lógica inflexível dos acontecimentos; e essa terrível argumentação terra-a-terra, sem tortuosidades de silogismos, sem o idiotismo transcendental da velha dialética, mas toda feita de axiomas, de verdadeiros truísmos, por maneira a não exigir dos espíritos o mínimo esforço para a alcançarem, porque ela é quem os alcança independentemente da vontade, e os domina e os arrasta com a fortaleza da própria simplicidade.

A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as má quinas, nem o capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível: a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é uma espoliação.
Não se pode negar a segurança do raciocínio.
De efeito, desbancada a lei de Malthus, ante a qual nem se explicaria a civilização, e demonstrada a que se lhe contrapõe consistindo em que "cada homem produz sempre mais do que consome persistindo os frutos do seu esforço além do tempo necessário à sua reprodução" - põe-se de manifesto o traço injusto da organização econômica do nosso tempo.
A exploração capitalista é assombrosamente clara, colocando o trabalhador num nível inferior ao da máquina. De fato, esta, na permanente passividade da matéria, é conservada pelo dono; impõe-lhe constantes resguardos no trazê-la íntegra e brunida, corrigindo-lhe os desarranjos; e quando morre - digamos assim - fulminada pela pletora de força de uma explosão ou debilitada pelas vibrações que lhe granulam a musculatura de ferro, origina a mágoa real de um desfalque, a tristeza de um decréscimo da fortuna, o luto inconsolável de um dano. Ao passo que o operário, adstrito a salários escassos demais à sua subsistência, é a máquina que se conserva por si, e mal; as suas dores recalca-as forçadamente estóico; as suas moléstias, que, por uma cruel ironia, crescem com o desenvolvimento industrial - o fosforismo, o saturnismo, o hidrargirismo, o oxicarborismo - cura-as como pode, quando pode; e quando morre, afinal, às vezes subitamente triturado nas engrenagens da sua sinistra sócia mais bem aquinhoada, ou lentamente- esverdinhado pelos sais de cobre e de zinco, paralítico delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos de mercúrio, asfixiado pelo óxido de carbônico, ulcerado pelos cáusticos dos pós-arsenicais, devastado pela terrível embriaguez petrólica ou fulminado por um coup de plomb - quando se extingue, ninguém lhe dá pela falta na grande massa anônima e taciturna, que enxurra todas as manhãs à porta das oficinas.
Neste confronto se expõe a pecaminosa injustiça que o egoísmo capitalista agrava, não permitindo, mercê do salário insuficiente, que se conserve tão bem como os seus aparelhos metálicos, os seus aparelhos de músculos e nervos; e está em grande parte a justificativa dos socialistas no chegarem todos ao duplo princípio fundamental:
             Socialização dos meios de produção e circulação;
             Posse individual somente dos objetos de uso.

Este princípio,  unanimemente aceito, domina toda a heterodoxia socialista - de sorte que as cisões, e são numerosas, existentes entre eles, consistem apenas nos meios de atingir-se aquele objetivo. Para alguns, e citam-se apenas João Ligg e Ed. Vaillant, os privilégios econômicos e políticos devem cair ao choque de uma revolução violenta. É o socialismo demolidor que, entretanto, menos aterroriza a sociedade burguesa. Outros, como Emílio Vendervelde, se colocam numa atitude expectante: as reformas serão violentas ou não, segundo o grau de resistência da burguesia. Finalmente, outros ainda - os mais tranqüilos e mais perigosos - como Ferri e Colajanni, corretamente evolucionistas, reconhecendo a carência de um plano já feito de organização social capaz de substituir, em bloco, num dia, a ordem atual das coisas, relegam a segundo plano as medidas violentas, sempre infecundas e só aceitáveis transitoriamente, de passagem, num ou noutro ponto, para abrirem caminho à própria evolução.
Ferri, em belíssimo paralelo entre o desenvolvimento social e o terrestre, mostra como os imaginosos cataclismos de Cuvier, perturbaram, sem efeito, a geologia para explicarem transformações que se realizam sob o nosso olhar, sendo os grandes resultados, que mal compreendemos no estreito círculo da vida individual, uma soma de efeitos parcelados acumulando-se na amplitude das idades do globo. Deslocando à sociedade este conceito, aponta-nos o processo normal das reformas lentas, operando-se na consciência coletiva e refletindo-se pouco a pouco na prática, nos costumes e na legislação escrita, continuamente melhoradas.
Nada mais límpido. Realmente, as catástrofes sociais só podem provocá-las as próprias classes dominantes, as tímidas classes conservadoras, opondo-se a marcha das reformas - como a barragem contraposta a uma corrente tranqüila pode gerar a inundação. Mesmo nesse caso, porém, a convulsão é transitória; é um contrachoque ferindo a barreira governamental. Nada mais. Porque o caráter revolucionário do socialismo está apenas no seu programa radical. Revolução: transformação. Para a conseguir, basta-lhe erguer a consciência do proletário, e - conforme a norma traçada pelo Congresso Socialista de Paris, em 1900 - aviventar a arregimentação política e econômica dos trabalhadores.
Porque a revolução não é um meio, é um fim; embora, às vezes, lhe seja mister um meio, a revolta. Mas esta sem a forma dramática e ruidosa de outrora. As festas do primeiro de maio são, quanto a este último ponto, bem expressivas. Para abalar a terra inteira, basta que a grande legião em marcha pratique um ato simplíssimo: cruzar os braços...
 Porque o seu triunfo é inevitável.
Garantem-no as leis positivas da sociedade que criarão o reinado tranqüilo das ciências e das artes, fontes de um capital maior, indestrutível e crescente, formado pelas melhores conquistas do espírito e do coração...

      





terça-feira, 21 de abril de 2015

Machado de Assis e Tiradentes

Neste dia, vale a pena reportar à importante ilação que  o maior nome da literatura brasileira construiu com uma das figuras primordiais da história nacional – ilação retratada  em um significativo conjunto de crônicas  escritas a propósito do  21 de abril.
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Talvez nenhum dos escritores do século XIX admirassem, reverenciassem e cultuassem Tiradentes como Machado de Assis : um vínculo respeitoso ,que remonta à sua postura política durante a década de 1860 , pelo qual Machado investiu Tiradentes com algo semelhante “a aura cristã do martírio e sacrifício” . Só que justamente essa aura,de ‘martírio e sacrifício’, e a loa machadiana ao “homem do povo que sofrera por sua visão de um Brasil  independente”  foram os fatores, ou motes, determinantes ,cruciais para tornar Tiradentes um ‘símbolo republicano’ – suprema ironia : Machado de Assis, simpatizante da monarquia e crítico da República, foi quem no fundo provocou a assunção do inconfidente  a ícone anti-monarquista , dele ‘apropriando-se’ o novo regime e instituindo o dia 21 de abril  como feriado nacional.

Machado fez de Tiradentes  tema em várias crônicas . A começar pelos ácidos comentários críticos à edificação da estátua de d. Pedro I  no Largo do Rocio (atual praça Tiradentes, no centro da cidade do Rio de Janeiro), que se constituiu em um dos maiores conflitos  políticos em torno da figura do alferes : no lugar onde fora enforcado ‘o mártir’, o governo imperial erguia uma estátua ao neto da rainha que o condenara à morte ; o líder liberal mineiro Teófilo Otoni  chamou a estátua de “mentira de bronze”, e Machado participou intensamente dos protestos.  

Na crônica de  1 abril de 1862, publicada no Diário do Rio de Janeiro, a propósito da festiva  inauguração da estátua, Machado escreveu :
 
Está inaugurada a estátua eqüestre do primeiro imperador.
Os que a consideram como saldo de uma dívida nacional nadam hoje em júbilo e satisfação.
Os que, inquirindo a história, negam a esse bronze o caráter de uma legítima memória, filha da vontade nacional e do dever da posteridade, esses reconhecem-se vencidos, e, como o filósofo antigo, querem apanhar mas serem ouvidos.
Já é de mau agouro se à ereção de um monumento que se diz derivar dos desejos unânimes do país precedeu uma discussão renhida, acompanhada de adesões e aplausos.
O historiador futuro que quiser tirar dos debates da imprensa os elementos do seu estudo da história do império, há de vacilar sobre a expressão da memória que hoje domina a praça do Rocio.
A imprensa oficial, que parece haver arrematado para si toda a honestidade política, e que não consente aos cidadãos a discussão de uma obra que se levanta em nome da nação, caluniou a seu modo as intenções da imprensa oposicionista. Mas o país sabe o que valem as arengas pagas das colunas anônimas do Jornal do Comércio.
O que é fato, é que a estátua inaugurou-se, e o bronze lá se acha no Rocio, como uma pirâmide de época civilizada, desafiando a ira dos tempos.
O Rocio vestia anteontem galas e louçanias desusadas.
As ruas por onde passou o préstito estavam ornadas de bandeiras e colchas, e juncadas de folhas odoríferas, segundo as exigências oficiais.
Mas sabe o leitor quem teve grande influência na festa de anteontem? O adjetivo. Não ria, leitor, o adjetivo é uma grande força e um grande elemento . (......)
Foi o adjetivo quem fez as despesas das arengas escritas anteriormente em defesa da estátua.(.....)


Três anos depois, a 25 abril 1865, publicou também no Diário do Rio de Janeiro uma crônica que é uma verdadeira ode a Tiradentes , inclusive prenunciando e acabando por vir a formalizar,tempos depois,  a mitificação do inconfidente – logo por Machado – e fomentar, depois de 1889, sua construção como signo da República :

“Os povos devem ter os seus santos. Aquele que os tem merece o respeito da história, e está armado para a batalha do futuro.
Também o Brasil os tem e os venera; mas, para que a gratidão nacional assuma um caráter justo e solene, é preciso que não esqueça uns em proveito de outros; é preciso que todo aquele que tiver direito à santificação da história não se perca nas sombras da memória do povo.
É uma grande data 7 de setembro; a nação entusiasma-se com razão quando chega êsse aniversário da nossa independência. Mas a justiça e a gratidão pedem que, ao lado do dia 7 de setembro, se venere o dia 21 de abril. E quem se lembra do dia 21 de abril? Qual é a cerimônia, a manifestação pública?
Entretanto, foi nesse dia que, por sentença acordada entre os da alçada, o carrasco enforcou no Rocio, junto à rua dos Ciganos, o patriota Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado o Tiradentes.
A sentença que o condenou dizia que, uma vez enforcado, lhe fosse cortada a cabeça e levada a Vila Rica, onde seria pregada em um poste alto, até que o tempo a consumisse; e que o corpo, dividido em quatro pedaços, fosse pregado em postes altos, pelo caminho de Minas.
Xavier foi declarado infame, e infames os seus netos; os seus bens (pelo sistema de latrocínio legal do antigo regime) passaram ao fisco e à câmara real.
A casa em que morava foi arrasada e salgada.
Ora, o crime de Tiradentes foi simplesmente o crime de Pedro I e José Bonifácio. Ele apenas queria apressar o relógio do tempo; queria que o século XVIII, data de tantas liberdades, não caísse nos abismos do nada, sem deixar de pé a liberdade brasileira.
O desígnio era filho de alma patriótica; mas Tiradentes pagou caro a sua generosa sofreguidão. A idéia que devia robustecer e enflorar daí a trinta anos, não estava ainda de vez; a metrópole venceu a colônia; Tiradentes expirou pelo baraço da tirania.
Entre os vencidos de 1792, e os vencedores de 1822, não há senão a diferença dos resultados. Mas o livro de uma nação não é o livro de um merceeiro; ela não deve contar só com os resultados práticos, os ganhos positivos; a idéia, vencida ou triunfante, cinge de uma auréola a cabeça em que ardeu. A justiça real podia lavrar essa sentença digna dos tempos sombrios de Tibério; a justiça nacional, o povo de 7 de setembro, devia resgatar a memória dos mártires e colocá-los no panteon dos heróis.
No sentido desta reparação falou um dos nossos ilustrados colegas, nestas mesmas colunas, há quatro anos. As palavras dele foram lidas e não atendidas; não ousamos esperar outra sorte às nossas palavras.
Entretanto, consignamos o fato: o dia 21 de abril passa despercebido para os brasileiros. Nem uma pedra, nem um hino, recordam a lutuosa tragédia do Rodo. A última brisa que beijou os cabelos de Xavier levou consigo a lembrança de tamanha imolação.
Pois bem, os brasileiros devem atender que este esquecimento é uma injustiça e uma ingratidão. Os deuses podem aprazer-se com as causas vencedoras: aos olhos do povo a vitória não deve ser o criterium da homenagem.
É certo que a geração atual tem uma desculpa na ausência da tradição; a geração passada legou-lhe o esquecimento dos mártires de 1792. Mas por que não resgata o êrro de tantos anos? Por que não faz datar de si o exemplo às gerações futuras?
Falando assim, não nos dirigimos ao povo, que carece de iniciativa.
Tampouco alimentamos a idéia de uma dissensão política; conservadores ou liberais, todos são filhos da terra que Tiradentes queria tornar independente. Todavia, há razão para perguntar ao partido liberal, ao partido dos impulsos generosos, se não era uma bela ação, tomar ele a iniciativa de uma reparação semelhante; em vez de preocupar-se com as questões de subdelegados de paróquia e de influências de campanário.
Em desespero de causa, não hesitamos em volver os olhos para o príncipe que ocupa o trono brasileiro.
Os aduladores hão de ter-lhe lembrado que Tiradentes queria a república; mas o imperador é um homem ilustrado, e há de ver como se distancia dos aduladores o heróico alferes de Minas. Se os ânimos recuam diante de uma idéia que julgam ofensiva à monarquia, cabe ao príncipe sufocar os escrúpulos, tomando êle próprio a iniciativa de um ato que seria uma das mais belas páginas do seu reinado. Um príncipe esclarecido e patriota não podia fazer uma ação mais nobre, nem dar uma lição mais severa.
Uma cerimônia anual, com a presença do chefe da nação, com assistência do povo e dos funcionários do Estado, - eis uma coisa simples de fazer-se, e necessária para desarmar a justiça da história.
Não sabemos até que ponto devemos confiar nesta esperança; mas, ao menos, deixamos consignada a idéia.
Morro pela liberdade! disse Tiradentes do alto da forca: estas palavras, se o Brasil não reparar a falta de tantos anos, serão um açoite inexorável para os filhos do império.(......)

Em 1892, a propósito do centenário de morte de Tiradentes, Machado fez questão de marcar , o  início da importante série “A Semana”, publicadas na Gazeta de Notícias  de 1892 a 1900, escrevendo  em tom vibrante,pungente e patriótico no dia 24 abril  :
(......................)
Para não ir mais longe, Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tivemos esta semana o centenário do grande mártir. A ,prisão do heróico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra cousa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos Estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração de glória. Merecem, decerto, a nossa estima aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nêle, o enforcado, o esquartejado, o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos..
Um dos oradores do dia 21 observou que a Inconfidência tem vencido, os cargos iam. para os outros conjurados, não para o alferes.. Pois não é muito que, não tendo vencido, a história lhe dê a principal cadeira. A distribuição é justa. Os outros têm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um coro igual ao das Oceânides diante de Prometeu encadeado. Relede Ésquilo, amigo leitor. Escutai a linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é envolvido na conflagração geral das coisas. Mas, principalmente ouvi as palavras de Prometeu narrando  os seus crimes às ninfas amadas : Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinará todas as artes". Foi o que nos fez  Tiradentes. .
Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma cousa, a alcunha. Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião - dentista. Era o mesmo· herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião.(....)

Um mês depois, Machado torna a referir-se ao alferes ,  utilizando-se do tom mais irônico que sua contumaz verve satírica poderia conceber. Na crônica de 22 maio, estampada no mesmo jornal, o sarcasmo machadiano chega a criar uma fantasia – cheia de significados -- ao construir impagável narrativa, exemplar insofismável do alegórico,  acerca de um embuste imaginário :
“Este Tiradentes, se não toma cuidado emr si, acaba inimigo público. Pessoa, cuje nome ignoro, escreveu esta semana algumas linhas com o fim de retificar a opinião que vingou, durante um longo século, acerca do grande mártir da Inconfidência. "Parece (diz o artigo no fim) parece injustiça dar-se tanta importância a Tiradentes, porque morreu logo, e não prestar a menor consideração aos que morreram de moléstias e misérias na costa d'África." E logo em seguida chega a esta conclusão: "Não será possível imaginar que, se não fosse a indiscrição de Tiradentes, que causou o seu suplício, e o dos outros, que o empregaram, teria realidade o projeto ?"
Daqui a espião de polícia é um passo. Com outro passo chega-se à prova de que  ele nem mesmo morreu; o vice-rei mandou enforcar um furriel muito parecido com o alferes, e Tiradentes viveu até 1818 de uma pensão que lhe dava D. João VI. Morreu de um antraz, na antiga rua dos Latoeiros, entre as do Ouvidor e do Rosário, em uma loja de barbeiro, dentista e sangrador, que abriu em 1810, a conselho do próprio D. João, ainda príncipe regente, o qual lhe ·se (formais palavras):
- Xavier, já que não podes ser alferes, ,ma por ofício o que fazias antes por curioso ; vou mandar dar-te umas casas da rua ,os Latoeiros ...
- Oh ! meu senhor I
- Mas não digas quem és. Muda de nome, Xavier; chama-te Barbosa. Compreendes, não ? O meu fim é criar a lenda que tu é que foste o mártir e o herói da  Inconfidência, e diminuir assim a glória de João Alves Maciel.
- Príncipe sereníssimo, não há dúvida que esse é que foi o chefe da detestável conjuração.
- Bem sei, Barbosa, mas é do meu real agrado passá-lo ao segundo plano, para fazer crer que, apesar dos serviços que prestou, das qualidades que tinha e das cartas de Jefferson, pouco valeu, e que tu é que vales tudo. É um plano maquiavélico, para desmoralizar a conjuração. Compreendes agora ?
- Tudo, meu senhor.
- Assim é bem possível que, se algum dia, quiserem levantar um monumento à Inconfidência, vão buscar por símbolo o mártir, dando assim excessiva importância ao alferes indiscreto, que pôs tudo de pernas para o ar, e a pretexto de haver morrido logo. Não abanes a cabeça; tu não conheces os homens. Adeus; passa pela ucharia, que te dêem um caldo de vaca, e pede por Sua Real Majestade e por mim nas tuas orações, Consinto que também rezes pelo furriel Como se chamava ? Esquece-me sempre o nome.
- Marcolino.
- Reza pelo Marcolino.
- Ah! Senhor, os meus cruéis remorsos nunca terão fim!
- Barbosa, têm sempre fim os remorso! de um leal vassalo!

E assim ficará retificada a história, antes de 1904 ou 1905, Tiradentes será apeadodo pedestal que lhe deu um sentimentalismo que se .lembra de glorificar um só porque morreu logo, como se não morresse sempre antes de outros, e demais, enforcado, que é morte Quanto ao esquartejamento e exposição da cabeça, está provado empírica cientificamente que cadáver não padece, e tanto faz cortar-lhe as pernas como dar-lhe calças. Mas ainda restará alguma coisa ao alferes ; pode-se-lhe expedir a patente de capitão honorário. Se está no céu, e se os mártires formam lá em cima, pode comandar uma companhia. Antes isso que nada. (.....)

E um ano depois, a 23 abril 1893,  menciona Tiradentes e sua coragem e disposição para sacrificar a vida –  ainda que graciosa e bem-humoradamente :
(..........)

Para mistério, mistério e meio. Saí dali, corri à casa de um armeiro, onde comprei algumas espingardas e bastante cartuchame. Além disso, com o pretexto de saudar o dia 21 de abril, alcancei por empréstimo duas peças de artilharia. Assim armado, recolhi-me a 1 casa, jantei, digeri, e meti-me na cama. Naturalmente não dormi; mas também não vi a aurora, nem o sol de quinta-feira. Portas e janelas fechadas. Nenhum rumor em casa, comidas frias para não fazer fogo, que denunciasse pelo fumo a presença de refugiados. Ensinei à família a senha monástica; andávamos calados, interrompendo o silêncio de quando em quando para dizermos uns aos outros que era preciso morrer. Assim se passou a quinta-feira.
Na sexta-feira, pelas seis horas da manhã, ouvi tiros de artilharia. Ou é a salva de Tiradentes, disse à família, ou é a revolução que venceu. Saí à rua; era a salva. Perguntei pelos mortos. Que mortos ? Pelos acontecimentos. Que acontecimentos ? Nada houvera; toda a cidade vivera em paz. Assim se desvaneceram os sustos, filhos de boatos, filhos da imaginação. Assim se desvaneçam todos os demais ovos do marido de La Fontaine.
Só um fato se havia dado, como disse, o do coreto. Fui à praça ver os destroços, mas já não vi nada; achei a estátua e curiosos. Desandei, atravessei o largo de S. Francisco e desci pela rua do Ouvidor, ao encontro do préstito de Tiradentes. Soube que já não havia préstito. Era pena; esta cidade tem, para Tiradentes, não só a dívida geral da glorificação, como precursor da independência e mártir da liberdade, mas ainda a dívida  particular do resgate. Ela festejou com pompa a execução do infeliz patriota, no dia 21 de abril de 1792, vestindo-se de galas e ouvindo cantar um Te-Deum.
Espiando para casa , lembrei-me que esse dia 21 era ainda aniversário de outra tentativa política. O povo desta cidade e os eleitores convocados revolucionariamente pelo juiz da comarca, reuniram-se na praça do Comércio e pediram ao rei a constituição espanhola, interinamente. A constituição foi dada na mesma noite, contra a vontade de algumas pessoas, e retirada no dia seguinte, depois de alguns lances próprios de tais crises, não por ser constituição, - visto que, dois anos depois, tínhamos outra -- mas naturalmente por ser espanhola. De Espanha só mulheres, guitarras e pintores.(......)

As referências e menções a Tiradentes – como de resto os comentários e alusões feitas a diversas personalidades históricas, assim como a cobertura dos fatos políticos de sua época – constituem provas e exemplos eloqüentes do quanto Machado de Assis participava ativamente da história (política,institucional, econômica, social) e em nada – ao contrário da equivocada interpretação, que exige de uma vez por todas sua revisão – era alheio às questões de seu tempo.
Certamente pelo uso do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza – e do disfarce e do enigma—Machado de Assis recebeu, indevidamente, a pecha de “despolitizado”, “alienado”, “alheio às questões políticas e sociais de seu tempo”.
Ledo e puro engano. Machado de Assis foi um crítico ‘avassalador’ da sociedade e das instituições brasileiras, e escreveu – ou a elas se referiu -- em crônicas e artigos, mesmo em  contos e romances e até na poesia. , sobre política (muito) [e,para surpresa de alguns, sobre economia (em menor monta)]. Machado de Assis tinha opiniões políticas — era um monarquista liberal, não apoiava a República, repudiava Floriano Peixoto (que ,apoiado em golpe de Estado em 1891, governava com poderes autoritários, levando o País à ditadura, à censura e à guerra civil) —  e por meio de sua obra é possível observar a política brasileira de sua época através do olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio ) sentenciou que pode-se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra  de Machado : tanto na não-ficção quanto na ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e textos , utilizando uma série de categorias políticas - escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura ,aparelho policial, autocracia absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua  escritura literária, de uma  crítica da ideologia brasileira e de uma teoria política avançada,que no campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos especialistas.
As crônicas e artigos tratando de política são justamente aquelas que registram opiniões nunca expressadas por Machado com tanta clareza e coerência.

terça-feira, 14 de abril de 2015

PONTES DE VISTA : MACHADO DE ASSIS E OS PORTUGUESES


Lançada a 11 abril, com todas ‘pompa e circunstância’, na lendária Livraria Lello (todos devem saber, por certo, de sua gloriosa história), no Porto, Portugal, a 1ª. edição da revista acadêmica de filosofia e literatura “Pontes de Vista” [seu lema diz: “nascemos com pontos de vista, mas só crescemos com pontes de vista.”] publica contribuições de investigadores, filósofos e pensadores de língua portuguesa internacionais, 
-- e abriga meu artigo “Machado de Assis e os portugueses”, escrito especialmente para a revista
inerente a estudo que desenvolvo há mais de um ano, a gerar livro (“ Machado de Assis e os portugueses : influências, intertextualidades, convívios”), cuja finalização se dará no segundo semestre deste ano; livro aguardado com expresso interesse pelo Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa e pelo Instituto de Literatura Comparada da Universidade do Porto..

quinta-feira, 2 de abril de 2015

O cinema vai à literatura: um réquiem a Manoel de Oliveira

-- morreu em 01.04. um dos maiores cineastas da história do cinema : mais, um dos magistrais artista do mundo.

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O cinema vai à literatura
(e a literatura se vale do cinema)

Sempre é oportuno e indispensável tecer reflexões sobre a sempre vigente relação literatura-cinema, com suas interseções, confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos  contrastam- se; são  sempre  difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário -- originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
 A par das diferenças, entre a  página e a tela há laços  estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador  por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um  ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão --  meios que privilegiam a linha narrativa — também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, , James Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto."
“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ em parceria com o Globo Universidade para ministrar uma disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV. Para ele,  as relações entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a tela, apontando três outros importantes pontos de encontro : o primeiro seria os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam vários exemplos em cinematografias distintas; outro, seria o uso estrutural ou incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta indubitavelmente a ocorrência maior; e também  o encontro da literatura e do cinema poderia se dar através de referências como alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado,  Johnson critica  enfaticamente  a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser  muito comum entre os espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. . A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo. O conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se na discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no original.
Esse  freqüente discurso da fidelidade baseia-se,a meu juízo, na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à idéia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme secundário -- além evidentemente do pensamento de que cinema e literatura são rivais a partir da crença na idéia de que o filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro.
 Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus pontos de partida – as relações entre o cinema e a literatura são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos literários anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse modo, a narrativa cinematográfica já se encontraria latente em alguns textos narrativos literários, e  a relação logo passou a trilhar indissolúvel (sic)  mão dupla, quando literatos e dramaturgos começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em  poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada linguagem --- ísto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em 1950, etc ) : e o  momento histórico de cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um de seus produtos.
 Essa intrínseca, dialógica e dinâmica relação nasce no momento em que o cinema descobre seu potencial digamos literário , ao absorver o modelo narrativo do romance do século XIX a subsidiá-lo para melhor contar histórias – malgrado podermos hoje levantar a reflexão em plena  era da imagem digital em que vivemos : o cinema  continuaria ‘preso’ a um modelo narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria literatura? .Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?
Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo da narrativa, em sua já longa  história, o cinema não sofreu muitas variações – malgrado certas exceções, como experimentos  ‘de vanguarda’ – e vem à mente, por aproximação etimológica, a  “Nouvelle Vague” da década de 1960 , que se propunha a romper  com a lógica linearizante da estética e da narrativa fílmica de até então, inspirada num congênere da seara literária, o “nouveau roman”—ambas dialogando entre si pelas respctivas técnicas narrativas, num movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.Convém não esquecer,entretanto, que sob a égide de suas  afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já consagrados da narrativa literária – levando  Jorge Luis Borges  a  observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar  as limitações formais e “não procurando  ordenar o caos”, ao contrário, o caos tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”,p. ex., queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que os caminhos são múltiplos; e por fim  aquilo que Jean Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar, pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta e um papel.
Contudo, há de se atentar para um outro viés ,uma espécie de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de publicação de  livros motivados... pelo cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração de filmes(making-of), edição ou reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos iconográficos  que remetem para os filmes realizados a partir da adaptação da obra para  o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura.  De resto, uma tendência à qual avolumam-se questionamentos sobre até que ponto  sinaliza tanto  ‘perda de prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’ da matéria  literária, como sobretudo ‘dessacralização’ da literatura,  tênues que se tornam cada vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens culturais que circulam pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.
 Da mesma forma e desse processo decorrente, deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX,por parte e ação do setor  editorial ,a  contrapartida à incorporação da obra literária,fosse best seller ou não – muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o relançamento de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros .Toda a literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um filme, e na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o espaço do livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações derivadas de filmes.
Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico -- e menos literário. E além disso, mesmo que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam  lidar  com o onírico, o  sonho , e com o psicológico -- que é, sabemos,  elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles  antes e acima  de tudo pessoas do cinema.
Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O caso é que um diretor de cinema ou de tv  quando vai à literatura  leva com ele uma bagagem da linguagem  -- o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador -- e assim  comete  pecados e pecadilhos marcantes . Ao contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre -- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood ,e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias  atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate -- literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme -- e vale lembrar que  para o escritor Autran Dourado “não existe livro filmado, existe filme baseado em livro” -- mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto -- relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou inferidos\induzidos, alguns elementos que responderiam a Stanley Kubrick -- para quem “tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” --  também provando o inevitável  desejo de cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, que  ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito’...


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