segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

e viva os 458 anos; vida longa a São Paulo !.




São Paulo, genuína cidade literária
[este texto é inerente ao livro São Paulo, a cidade literária (2004), ora em processo de edição atualizada(que se quer publicada em 2012 ]

“Há uma história da literatura que se projeta na cidade de São Paulo; e há uma história da cidade de São Paulo que se projeta na literatura”
Antonio Candido

A cidade de São Paulo sempre foi pólo fundamental da literatura brasileira.

E a aura do pioneirismo sempre a acompanhou, desde seus primórdios. Não surpreende pois que em São Paulo tenha nascido e se manifestado um dos momentos fundamentais da história cultural brasileira , o Modernismo.A cidade , já natural e sequencialmente pioneira em diversas manifestações literárias — desde os jesuítas, fundadores da Vila São Paulo de Piratininga, a 25 de janeiro de 1554 (não se pode esquecer que o Diálogo sobre a conversão do gentio, de Manuel da Nóbrega, é o primeirissimo documento literário do Brasil, e o Auto da Pregação Universal, de José de Anchieta, a primeira peça encenatória) — o foi também , por exemplo, na precursora expressão poética do ‘indianismo’ no poema “Nênia” de Firmino Rodrigues Silva ; nela se deram ainda as realizações literárias iniciais de autores não paulistanos como José de Alencar, com seu “Como e por que me tornei romancista”, Castro Alves e seu “Navio negreiro”, Raimundo Corrêa com “Primavera”; nela ocorreu o primeiro movimento literário de vulto não apenas em relação à cidade mas ao próprio País ,em torno da Revista da Sociedade Filomática,em 1830,constituída na então recém-criada Faculdade de Direito — a primeira manifestação de brasilidade literária por sua consciência de fins e coesão de esforços renovadores.

A cidade pioneira e precursora

O retrato da História exibe a importância capital da Faculdade de Direito, a partir de 1827, na congregação de homens e idéias por meio da convivência acadêmica que propiciou a formação de agrupamentos de estudantes, com idéias estéticas, manifestações literárias e expressões próprias — deflagrando um processo vigoroso de efervescência intelectual que passou a agitar intensamente a pequena cidade de então. Ainda que se reconheça as limitações quantitativa e qualitativa da produção desses estudantes, não há como negar que estabeleceram a literatura como atividade presente na comunidade paulistana.
Deu-se por ela a primeira manifestação de uma vertente poética considerada “o início da escola brasileira” : o indianismo, desenvolvido na obra de Gonçalves Dias, mas praticado pioneiramente no poema “Nênia”, de Firmino Rodrigues Silva, composto entre as arcádias da Faculdade de Direito. E exercido ainda de forma pioneira em 1844, três anos antes do Primeiros cantos , de Gonçalves Dias, em “Cântico do tupi”, “Imprecação do índio” e “Prisioneiro índio”, do Barão de Paranapiacaba. Evidencia-se pois que quando Dias dominou o meio literário brasileiro, a poesia indianista -- base da obra do maranhense -- já existia e era praticada em São Paulo.Em 1845, com a fundação da Sociedade Epicuréia, consolida-se um processo de produção literária estudantil, embora de qualidade reduzida mas que viria a receber um influxo importante com a estadia de Castro Alves, em 1868 — foi em evento da Faculdade de Direito que declamou pela primeira vez o antológico poema “Navio negreiro” -- quem incutiu um teor social ao tipo de obra, sobretudo poética, que se fazia
Por essa época, o ‘corpo acadêmico’ já constitui um grupo social diferenciado da comunidade paulistana, a boemia e a literatura como manifestações mais características de um segmento com consciência grupal própria.Artistas criadores e ao mesmo tempo críticos, nas revistas e jornais , são os estudantes, entre os naturais da cidade e os migrantes e radicados, autores de denúncias e protestos contra a corrupção, a hipocrisia, as injustiças da sociedade . Na década de 1880 São Paulo acolhe também um grupo de jovens inflamados pelo verbo eloqüente de José Bonifácio o moço , uma geração empenhada numa luta em prol das idéias liberalistas e republicanas : Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Afonso Pena, Rodrigues Alves .

A cidade modernizada e mutante

O desenrolar e desdobrar de percursos literários que culminariam com o Modernismo foi coincidente e conseqüente de um vigoroso processo de evolução econômica, social e urbana da cidade, e há de obrigatoriamente levar em conta determinados ‘símbolos’ da época : o modus literário que passou a ser atuante deve necessariamente ser visto e analisado a partir do desenho dos cenários e ambientes em que veio a se desenrolar , que são representações significativas da própria literatura brasileira na passagem do século XIX para o século XX.
O declínio do Império coincidiu com a ascensão das classes médias urbanas por força do processo da gradativa metamorfose de uma sociedade rural para urbana.Em sua luta pela aquisição de status, segmentos da classe média passaram a prestigiar valores essencialmente burgueses, como o saber e agilidade intelectual -- até porque já era uma tradição,no mundo,a valorização de virtudes intelectuais, o escritor passando a ser objeto de grande consideração social e atividade cobiçada por muitos filhos da classe média. A valorização da inteligência -- a par de possibilitar uma “profissionalização da literatura” --com a ascensão social por via da literatura, fez com que o escritor absorvesse valores aristocráticos, desprovidos de visão crítica do real -- com raríssimas exceções— e veio a comprometer, na imensa maioria dos autores , a vitalidade do estilo, em troca do emprego de linguagem, digamos, ‘ornamental’.
No caso particular de São Paulo — então com cerca de 240 mil habitantes na passagem do século XIX para XX, em radical mudança de perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes, passa a ser executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu, eivada de academicismo art-nouveau.
Expressa-se sobretudo um certo aristocratismo intelectual, que agrada em cheio àquela burguesia ascendente : cristaliza-se pois um padrão estético-literário-cultural definido pela elite social, retirados do contingente inicial dos estudantes os valores e parâmetros da produção literária. Constitui-se, numa sociedade de classes, uma literatura ‘classista’, elitista, convencional, integrada aos padrões de refinamento da classe dominante. Acentuam-se então os teores de sentimentalismo e romantismo,privilegiando a ‘pureza’ da língua, a escrita correta, o ‘apuro’, a limpidez, a sonoridade, a ‘riqueza do vocabulário’. A literatura como meio e degrau de ascensão social incorpora-se à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas classes dominantes.
Contrária a essa vertente — personificada pelos “corifeus da bela escrita”, precipuamente, no Rio de Janeiro, Coelho Neto, Olavo Bilac, os membros da chamada “geração boêmia” ; em São Paulo, Francisca Julia, Vicente de Carvalho ,Julio Ribeiro, Silvio de Almeida — poucas vozes (ou melhor escritas ) se colocaram : notadamente Lima Barreto ,no Rio de Janeiro, e Alcântara Machado, em São Paulo (há de se considerar também Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, em especial Juó Bananére, e anos depois João Antonio) — que adotaram e assumiram temática, ambientação, personagens, trama, linguagem e estilo eminentemente populares e ‘anti-aristocráticas’.
Vale ainda considerar a tese do historiador e ensaísta José Murilo de Carvalho a distinguir cidades ortogenéticas -- caso do Rio do Janeiro, por exemplo -- e cidades heterogenéticas -- São Paulo como o maior exemplo, e que veio a marcar o tipo de intelectual e modo de produção cultural gerados pelas duas cidades .A ortogenética é caracterizada pela função política e administrativa, com grande peso do governo e do poder público, cidade de consumidores e não de produtores , baseada no comércio e na escravidão .Carvalho sustenta que a proclamação da República teria reforçado ainda mais essa função política do Rio de Janeiro, com mais intensa ainda presença do poder público, fazendo com que grande parte da intelectualidade se vinculasse de alguma forma à burocracia pública, em geral como funcionários do governo federal : e se tal fato não “introduzia necessariamente uma perspectiva governista na obra desses autores”, frisa ele, “certamente constituía limitação à sua liberdade de criação”. De outro lado, a quase obrigação que se impunha ao Rio de passar a imagem civilizada do país fazia com que seus intelectuais tivessem grande dificuldade em compreender perfeitamente a realidade do País e da cidade — daí as contradições e bloqueios que se interpunham no caminho da criatividade dos intelectuais, a cidade não conseguindo produzir uma cultura moderna/modernista. Diferente de São Paulo.

A cidade heterogenética, que São Paulo exemplifica, estava fora do centro do poder político, caracterizada como cidade de produtores, com maior liberdade de criação, maior iniciativa cultural, com predomínio da atividade econômica e comercial e não política e administrativa — somado ao fato de que nunca teve grande presença escrava Em contrapartida, a intelectualidade paulista era muito menos vinculada ao Estado, e era na verdade patrocinada pela própria oligarquia local -- muitos dos intelectuais eram aliás eles mesmos membros da oligarquia. A independência em relação ao Estado lhes dava maior liberdade de criação Além disso, havia maior homogeneidade social entre a intelectualidade paulista, e isso propiciou a São Paulo maior possibilidade do que o Rio de Janeiro de desenvolver um projeto cultural ,mais consistente e ‘autônomo’ : na Paulicéia, houve “melhor condição de um trabalho intelectual em cima da realidade social concreta”.
O Modernismo de 1922 expressou um esforço para retirar à literatura o caráter de classe -- dado pela elite social e cultural pós -1890 -- transformando-a em bem comum a todos. Como o Romantismo, o Modernismo é de todas as correntes literárias brasileiras a que adquiriu tonalidades especificamente paulistanas. Antonio Candido sentencia que “se em São Paulo não tivesse havido os escritores do período clássico, do Naturalismo, do Parnasianismo, do Simbolismo, a literatura brasileira teria perdido um ou outro bom autor, mas nada de irremediável. Se tal acontecesse no Romantismo e no Modernismo, o Brasil ficaria mutilado de algumas de suas mais altas realizações artísticas, de obras culminantes como Macário e Macunaíma, por exemplo. Dois momentos paulistanos, dois momentos em que a cidade se projeta sobre o País”.

Modernismo , destruidor”e criador

Nos primeiros anos do século XX, quando novas correntes artísticas começaram a circular pela Europa, a maior parte do mundo ocidental encontrava-se em meio a transformações sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e culturais que alteraram radicalmente a forma de viver e de sentir o mundo. Invenções revolucionárias como o rádio, o telefone, o automóvel e o cinema passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, cada vez mais urbanizadas. A industrialização modificara a economia das potências, e os lucros acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados garantiam tamanha sensação de conforto, segurança e otimismo em relação ao futuro, que o período ficou conhecido como belle époque — uma época de efervescência artística sem precedentes. Mas no extremo oposto,para as classes trabalhadoras o tempo era de lutas por melhores condições de vida e, no plano internacional um conjunto de fatores econômicos e políticos levaram à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. O Brasil vivia então período de grandes mudanças, com a urbanização e a adoção de novas tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário das grandes cidades, e que pareciam alterar a percepção do mundo. O intenso crescimento urbano e industrial, acelerado desde o começo do século, e a chegada em massa de imigrantes, principalmente italianos, muitos dos quais haviam vivido a experiência da luta de classes em seus países, propiciando inclusive a difusão de idéias anarquistas e socialistas, fizeram com que o proletariado crescesse e se organizasse : nas primeiras décadas do século XX ocorreram várias greves em São Paulo, a maior delas em 1917 - mesmo ano da Revolução Russa. Nos primeiros anos do século XX vieram radicais transformações políticas, com acontecimentos decisivos para a vida nacional, como as revoltas deflagradas pelo movimento tenentista ( julho de 1922 no Rio de Janeiro; julho de 1924 em São Paulo),a Coluna Prestes, a fundação do Partido Comunista, a derrocada da República Velha, das oligarquias rurais e da "política café-com-leite", o início da Era Vargas.
É nesse contexto de crises e incertezas que surgiram as correntes de vanguarda (do francês avant-garde, "o que marcha à frente"), entre elas o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo, recebidas com entusiasmo por escritores que procuravam renovar as formas de expressão artística. Muito antes de 1922 os artistas participantes da Semana já produziam obras influenciadas pelas novas correntes européias, como a publicação, em 1917, de diversos livros de poemas em que jovens autores buscavam uma nova linguagem, ainda não bem realizada., em Nós, de Guilherme de Almeida; Juca Mulato, de Menotti del Picchia; Há uma gota de sangue em cada poema, de Mário de Andrade — e a célebre exposição de Anita Malfatti, em 1917, duramente criticada por Monteiro Lobato no famoso artigo “Paranóia ou mistificação ?”
A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o fato concreto que definitivamente integrava o Brasil no contexto filosófico-estético-cultural do século XX e levava-o a inserir-se nas coordenadas culturais, políticas e socioeconômicas dos novos tempos —o mundo da técnica, o mundo mecânico e mecanizado. A partir dela caminha o movimento modernista em busca de padrões autônomos e formas autênticas para a criação estética nacional -- e não somente no âmbito artístico : da mesma forma no campo do pensamento social, os intelectuais procuravam estabelecer novos modos de se tratar e compreender a cultura e a história do Brasil, estabelecendo novas interpretações e valores para a identidade nacional e dando início à consolidação institucional do pensamento sociológico brasileiro. Gerou sobretudo um estado permanente, latente , criativo, estimulante, instigante, de inquietação intelectual, e iniciou um processo de unificação cultural sem precedentes no Brasil.

Fica para a História o depoimento de Mário de Andrade:
"A Semana de Arte Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos dissolvia nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E vivemos uns oito anos até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história do país registra. (...) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor.".

A "destruição" tinha como objetivo, em um primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas, especialmente a parnasiana — em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico parnasianos, os poetas modernistas valorizavam a incorporação de gírias e de sintaxe irregular, e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da sociedade brasileira— e mais: a preparação de um terreno onde se pudesse reconstruir a a cultura brasileira, sobre bases nacionais, a realização de uma revisão crítica da história e das tradições culturais do país. Os autores do Modernismo procuraram no índio e no negro os elementos primordiais da cultura brasileira que proporcionariam a reconstrução da realidade nacional, e procuraram retratar a mistura de culturas e raças existente no país.
Porém, o nacionalismo, a mais marcante característica do Modernismo, iria separar ideologicamente os adeptos do movimento, opondo os grupos “Pau-Brasil”,e depois “Antropofágico”(que incorporva o comunismo, o freudianismo e o matriarcalismo), de Oswald de Andrade , Raul Bopp e Tarsila do Amaral , e o “Verde-Amarelismo , de Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Estudiosos sustentam que a verdadeira ‘revolução’ modernista se deu mesmo em 1924, ano do rompimento de Graça Aranha com a Academia Brasileira de Letras, ano do “Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, anos de dois textos fundamentais de Mario de Andrade : A escrava que não é Isaura — a ‘teoria’ do modernismo compendiada - e seu livro mais ousado, em termos formais, Losango caqui.
Em seguida, 1928 marca a publicação de Macunaíma, de Mario de Andrade, máxima obra literária do movimento, excepcional romance-retrato do Brasil de grande miscigenação cultural — as tradições culturais indígenas dos primórdios ao lado da modernidade europeizada dos centros urbanos brasileiros da época — e de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, inaugurando o ensaio de cunho ao mesmo tempo histórico e sociológico que abriria caminho para o grande ciclo de “interpretações do Brasil”.À renovação estética modernista,na década de 1920, alia-se no decênio seguinte o ensaio de interpretação e crítica social, que tenta recontar o processo de formação histórica do país: a procura da identidade social passa igualmente pela busca premente de uma ponte entre uma completa renovação cultural e a reforma da sociedade, uma ponte entre a modernidade e a modernização do país .
O ano de 1930 é a época de instauração do Estado Novo, que se ‘apropria’ ideológica e retoricamente do Modernismo — Getulio Vargas declarava em seu discurso de posse: “As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do Modernismo na literatura brasileira foram as mesmas que precipitaram no campo social e político a Revolução de 1930” (seguindo uma sugestão formulada por Cassiano Ricardo) — mas inicia um período de intensa fermentação política, social e cultural. É na primeira metade dessa década que nascem as primeiras tentativas de interpretação de conjunto da história, da economia e da sociedade brasileira.Sobretudo a prosa literária se desenvolve, ficcionalmente no romance e no conto, que retratam decadência da aristocracia rural, a formação do proletariado urbano, a luta do trabalhador, o êxodo rural, as cidades em rápida transformação — os cenários para a expansão e proliferação dos ensaios de interpretação do País, de Gilberto Freyre , Paulo Prado (Retrato do Brasil), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) ,Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo), todos lastreados pela ‘índole’ modernista em busca da síntese explicativa dos múltiplos aspectos da vida social brasileira e de seu desenvolvimento histórico.

Acima de tudo um processo de mudança cultural geral, em direção a uma nova reconstrução sócio-política da identidade nacional, o Modernismo “difunde-se no tempo, balizando grande parte dos sequentes debates intelectuais, espalha-se no espaço, o poderoso ímã da literatura interferindo com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil”, sentencia Antonio Candido. Irradiante , difuso e difusor, o Modernismo modelou substancialmente a literatura brasileira no século XX e desdobrou-se pelas décadas seguintes em irreversível processo de amadurecimento : uma terceira fase do movimento,na busca de uma nova linguagem, que expressasse os anseios de renovação do pós-guerra, veio na denominada “geração de 1945”, depois, na Poesia Concreta, da mesma forma na Poesia-Práxis , na atual narrativa em prosa — caracterizada esta por novas formas de linguagem , ora intensa e ágil, ‘cinematográfica’ , ora densa e introspectiva, ‘filosófica’,e pela preponderante ambiência urbana retratando “a vivência vertiginosa nas grandes cidades”, confluiu no último decênio do século XX e no despontar deste Terceiro Milênio para o irreversível despontar de uma nova geração de escritores, que abre espaço na literatura brasileira com uma marcante característica vetorial : o deslocamento maciço do eixo principal da nova criação literária para São Paulo.
Na cidade, os novos e novíssimos ficcionistas exercem sua prosa “de estrutura desconstrutivista , subversiva da linearidade, de narrativa fragmentada, quebradiça, de temática citadina, com os elementos da urbanidade pós-moderna , as tensões sociais e os conflitos individuais, o envolvimento pela violência urbana , os impasses existenciais — fomentando uma produção literária como não é feita em nenhuma outra cidade do País.

A São Paulo heterogenética continua abrigando escritores, naturais ou imigrantes, paulistas ou radicados, que produzem uma literatura ímpar, diferenciada, atualizada com os elementos da realidade, afinada com a modernidade, determinante — hoje como ontem, e desde sempre — da própria cultura brasileira.




























São Paulo, genuína cidade literária

“Há uma história da literatura que se projeta na cidade de São Paulo; e há uma história da cidade de São Paulo que se projeta na literatura”
Antonio Candido

A cidade de São Paulo sempre foi pólo fundamental da literatura brasileira.

E a aura do pioneirismo sempre a acompanhou, desde seus primórdios. Não surpreende pois que em São Paulo tenha nascido e se manifestado um dos momentos fundamentais da história cultural brasileira , o Modernismo.A cidade , já natural e sequencialmente pioneira em diversas manifestações literárias — desde os jesuítas, fundadores da Vila São Paulo de Piratininga, a 25 de janeiro de 1554 (não se pode esquecer que o Diálogo sobre a conversão do gentio, de Manuel da Nóbrega, é o primeirissimo documento literário do Brasil, e o Auto da Pregação Universal, de José de Anchieta, a primeira peça encenatória) — o foi também , por exemplo, na precursora expressão poética do ‘indianismo’ no poema “Nênia” de Firmino Rodrigues Silva ; nela se deram ainda as realizações literárias iniciais de autores não paulistanos como José de Alencar, com seu “Como e por que me tornei romancista”, Castro Alves e seu “Navio negreiro”, Raimundo Corrêa com “Primavera”; nela ocorreu o primeiro movimento literário de vulto não apenas em relação à cidade mas ao próprio País ,em torno da Revista da Sociedade Filomática,em 1830,constituída na então recém-criada Faculdade de Direito — a primeira manifestação de brasilidade literária por sua consciência de fins e coesão de esforços renovadores.

A cidade pioneira e precursora

O retrato da História exibe a importância capital da Faculdade de Direito, a partir de 1827, na congregação de homens e idéias por meio da convivência acadêmica que propiciou a formação de agrupamentos de estudantes, com idéias estéticas, manifestações literárias e expressões próprias — deflagrando um processo vigoroso de efervescência intelectual que passou a agitar intensamente a pequena cidade de então. Ainda que se reconheça as limitações quantitativa e qualitativa da produção desses estudantes, não há como negar que estabeleceram a literatura como atividade presente na comunidade paulistana.
Deu-se por ela a primeira manifestação de uma vertente poética considerada “o início da escola brasileira” : o indianismo, desenvolvido na obra de Gonçalves Dias, mas praticado pioneiramente no poema “Nênia”, de Firmino Rodrigues Silva, composto entre as arcádias da Faculdade de Direito. E exercido ainda de forma pioneira em 1844, três anos antes do Primeiros cantos , de Gonçalves Dias, em “Cântico do tupi”, “Imprecação do índio” e “Prisioneiro índio”, do Barão de Paranapiacaba. Evidencia-se pois que quando Dias dominou o meio literário brasileiro, a poesia indianista -- base da obra do maranhense -- já existia e era praticada em São Paulo.Em 1845, com a fundação da Sociedade Epicuréia, consolida-se um processo de produção literária estudantil, embora de qualidade reduzida mas que viria a receber um influxo importante com a estadia de Castro Alves, em 1868 — foi em evento da Faculdade de Direito que declamou pela primeira vez o antológico poema “Navio negreiro” -- quem incutiu um teor social ao tipo de obra, sobretudo poética, que se fazia
Por essa época, o ‘corpo acadêmico’ já constitui um grupo social diferenciado da comunidade paulistana, a boemia e a literatura como manifestações mais características de um segmento com consciência grupal própria.Artistas criadores e ao mesmo tempo críticos, nas revistas e jornais , são os estudantes, entre os naturais da cidade e os migrantes e radicados, autores de denúncias e protestos contra a corrupção, a hipocrisia, as injustiças da sociedade . Na década de 1880 São Paulo acolhe também um grupo de jovens inflamados pelo verbo eloqüente de José Bonifácio o moço , uma geração empenhada numa luta em prol das idéias liberalistas e republicanas : Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Afonso Pena, Rodrigues Alves .



A cidade modernizada e mutante

O desenrolar e desdobrar de percursos literários que culminariam com o Modernismo foi coincidente e conseqüente de um vigoroso processo de evolução econômica, social e urbana da cidade, e há de obrigatoriamente levar em conta determinados ‘símbolos’ da época : o modus literário que passou a ser atuante deve necessariamente ser visto e analisado a partir do desenho dos cenários e ambientes em que veio a se desenrolar , que são representações significativas da própria literatura brasileira na passagem do século XIX para o século XX.
O declínio do Império coincidiu com a ascensão das classes médias urbanas por força do processo da gradativa metamorfose de uma sociedade rural para urbana.Em sua luta pela aquisição de status, segmentos da classe média passaram a prestigiar valores essencialmente burgueses, como o saber e agilidade intelectual -- até porque já era uma tradição,no mundo,a valorização de virtudes intelectuais, o escritor passando a ser objeto de grande consideração social e atividade cobiçada por muitos filhos da classe média. A valorização da inteligência -- a par de possibilitar uma “profissionalização da literatura” --com a ascensão social por via da literatura, fez com que o escritor absorvesse valores aristocráticos, desprovidos de visão crítica do real -- com raríssimas exceções— e veio a comprometer, na imensa maioria dos autores , a vitalidade do estilo, em troca do emprego de linguagem, digamos, ‘ornamental’.

No caso particular de São Paulo — então com cerca de 240 mil habitantes na passagem do século XIX para XX, em radical mudança de perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes, passa a ser executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu, eivada de academicismo art-nouveau.

Expressa-se sobretudo um certo aristocratismo intelectual, que agrada em cheio àquela burguesia ascendente : cristaliza-se pois um padrão estético-literário-cultural definido pela elite social, retirados do contingente inicial dos estudantes os valores e parâmetros da produção literária. Constitui-se, numa sociedade de classes, uma literatura ‘classista’, elitista, convencional, integrada aos padrões de refinamento da classe dominante. Acentuam-se então os teores de sentimentalismo e romantismo,privilegiando a ‘pureza’ da língua, a escrita correta, o ‘apuro’, a limpidez, a sonoridade, a ‘riqueza do vocabulário’. A literatura como meio e degrau de ascensão social incorpora-se à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas classes dominantes.
Contrária a essa vertente — personificada pelos “corifeus da bela escrita”, precipuamente, no Rio de Janeiro, Coelho Neto, Olavo Bilac, os membros da chamada “geração boêmia” ; em São Paulo, Francisca Julia, Vicente de Carvalho ,Julio Ribeiro, Silvio de Almeida — poucas vozes (ou melhor escritas ) se colocaram : notadamente Lima Barreto ,no Rio de Janeiro, e Alcântara Machado, em São Paulo (há de se considerar também Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, em especial Juó Bananére, e anos depois João Antonio) — que adotaram e assumiram temática, ambientação, personagens, trama, linguagem e estilo eminentemente populares e ‘anti-aristocráticas’.

Vale ainda considerar a tese do historiador e ensaísta José Murilo de Carvalho a distinguir cidades ortogenéticas -- caso do Rio do Janeiro, por exemplo -- e cidades heterogenéticas -- São Paulo como o maior exemplo, e que veio a marcar o tipo de intelectual e modo de produção cultural gerados pelas duas cidades .A ortogenética é caracterizada pela função política e administrativa, com grande peso do governo e do poder público, cidade de consumidores e não de produtores , baseada no comércio e na escravidão .Carvalho sustenta que a proclamação da República teria reforçado ainda mais essa função política do Rio de Janeiro, com mais intensa ainda presença do poder público, fazendo com que grande parte da intelectualidade se vinculasse de alguma forma à burocracia pública, em geral como funcionários do governo federal : e se tal fato não “introduzia necessariamente uma perspectiva governista na obra desses autores”, frisa ele, “certamente constituía limitação à sua liberdade de criação”. De outro lado, a quase obrigação que se impunha ao Rio de passar a imagem civilizada do país fazia com que seus intelectuais tivessem grande dificuldade em compreender perfeitamente a realidade do País e da cidade — daí as contradições e bloqueios que se interpunham no caminho da criatividade dos intelectuais, a cidade não conseguindo produzir uma cultura moderna/modernista. Diferente de São Paulo.

A cidade heterogenética, que São Paulo exemplifica, estava fora do centro do poder político, caracterizada como cidade de produtores, com maior liberdade de criação, maior iniciativa cultural, com predomínio da atividade econômica e comercial e não política e administrativa — somado ao fato de que nunca teve grande presença escrava Em contrapartida, a intelectualidade paulista era muito menos vinculada ao Estado, e era na verdade patrocinada pela própria oligarquia local -- muitos dos intelectuais eram aliás eles mesmos membros da oligarquia. A independência em relação ao Estado lhes dava maior liberdade de criação Além disso, havia maior homogeneidade social entre a intelectualidade paulista, e isso propiciou a São Paulo maior possibilidade do que o Rio de Janeiro de desenvolver um projeto cultural ,mais consistente e ‘autônomo’ : na Paulicéia, houve “melhor condição de um trabalho intelectual em cima da realidade social concreta”.

O Modernismo de 1922 expressou um esforço para retirar à literatura o caráter de classe -- dado pela elite social e cultural pós -1890 -- transformando-a em bem comum a todos. Como o Romantismo, o Modernismo é de todas as correntes literárias brasileiras a que adquiriu tonalidades especificamente paulistanas. Antonio Candido sentencia que “se em São Paulo não tivesse havido os escritores do período clássico, do Naturalismo, do Parnasianismo, do Simbolismo, a literatura brasileira teria perdido um ou outro bom autor, mas nada de irremediável. Se tal acontecesse no Romantismo e no Modernismo, o Brasil ficaria mutilado de algumas de suas mais altas realizações artísticas, de obras culminantes como Macário e Macunaíma, por exemplo. Dois momentos paulistanos, dois momentos em que a cidade se projeta sobre o País”.



Modernismo , destruidor”e criador

Nos primeiros anos do século XX, quando novas correntes artísticas começaram a circular pela Europa, a maior parte do mundo ocidental encontrava-se em meio a transformações sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e culturais que alteraram radicalmente a forma de viver e de sentir o mundo. Invenções revolucionárias como o rádio, o telefone, o automóvel e o cinema passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, cada vez mais urbanizadas. A industrialização modificara a economia das potências, e os lucros acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados garantiam tamanha sensação de conforto, segurança e otimismo em relação ao futuro, que o período ficou conhecido como belle époque — uma época de efervescência artística sem precedentes. Mas no extremo oposto,para as classes trabalhadoras o tempo era de lutas por melhores condições de vida e, no plano internacional um conjunto de fatores econômicos e políticos levaram à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. O Brasil vivia então período de grandes mudanças, com a urbanização e a adoção de novas tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário das grandes cidades, e que pareciam alterar a percepção do mundo. O intenso crescimento urbano e industrial, acelerado desde o começo do século, e a chegada em massa de imigrantes, principalmente italianos, muitos dos quais haviam vivido a experiência da luta de classes em seus países, propiciando inclusive a difusão de idéias anarquistas e socialistas, fizeram com que o proletariado crescesse e se organizasse : nas primeiras décadas do século XX ocorreram várias greves em São Paulo, a maior delas em 1917 - mesmo ano da Revolução Russa. Nos primeiros anos do século XX vieram radicais transformações políticas, com acontecimentos decisivos para a vida nacional, como as revoltas deflagradas pelo movimento tenentista ( julho de 1922 no Rio de Janeiro; julho de 1924 em São Paulo),a Coluna Prestes, a fundação do Partido Comunista, a derrocada da República Velha, das oligarquias rurais e da "política café-com-leite", o início da Era Vargas.

É nesse contexto de crises e incertezas que surgiram as correntes de vanguarda (do francês avant-garde, "o que marcha à frente"), entre elas o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo, recebidas com entusiasmo por escritores que procuravam renovar as formas de expressão artística. Muito antes de 1922 os artistas participantes da Semana já produziam obras influenciadas pelas novas correntes européias, como a publicação, em 1917, de diversos livros de poemas em que jovens autores buscavam uma nova linguagem, ainda não bem realizada., em Nós, de Guilherme de Almeida; Juca Mulato, de Menotti del Picchia; Há uma gota de sangue em cada poema, de Mário de Andrade — e a célebre exposição de Anita Malfatti, em 1917, duramente criticada por Monteiro Lobato no famoso artigo “Paranóia ou mistificação ?”

A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o fato concreto que definitivamente integrava o Brasil no contexto filosófico-estético-cultural do século XX e levava-o a inserir-se nas coordenadas culturais, políticas e socioeconômicas dos novos tempos —o mundo da técnica, o mundo mecânico e mecanizado. A partir dela caminha o movimento modernista em busca de padrões autônomos e formas autênticas para a criação estética nacional -- e não somente no âmbito artístico : da mesma forma no campo do pensamento social, os intelectuais procuravam estabelecer novos modos de se tratar e compreender a cultura e a história do Brasil, estabelecendo novas interpretações e valores para a identidade nacional e dando início à consolidação institucional do pensamento sociológico brasileiro. Gerou sobretudo um estado permanente, latente , criativo, estimulante, instigante, de inquietação intelectual, e iniciou um processo de unificação cultural sem precedentes no Brasil.

Fica para a História o depoimento de Mário de Andrade:
"A Semana de Arte Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos dissolvia nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E vivemos uns oito anos até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história do país registra. (...) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor.".

A "destruição" tinha como objetivo, em um primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas, especialmente a parnasiana — em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico parnasianos, os poetas modernistas valorizavam a incorporação de gírias e de sintaxe irregular, e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da sociedade brasileira— e mais: a preparação de um terreno onde se pudesse reconstruir a a cultura brasileira, sobre bases nacionais, a realização de uma revisão crítica da história e das tradições culturais do país. Os autores do Modernismo procuraram no índio e no negro os elementos primordiais da cultura brasileira que proporcionariam a reconstrução da realidade nacional, e procuraram retratar a mistura de culturas e raças existente no país.

Porém, o nacionalismo, a mais marcante característica do Modernismo, iria separar ideologicamente os adeptos do movimento, opondo os grupos “Pau-Brasil”,e depois “Antropofágico”(que incorporva o comunismo, o freudianismo e o matriarcalismo), de Oswald de Andrade , Raul Bopp e Tarsila do Amaral , e o “Verde-Amarelismo , de Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Estudiosos sustentam que a verdadeira ‘revolução’ modernista se deu mesmo em 1924, ano do rompimento de Graça Aranha com a Academia Brasileira de Letras, ano do “Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, anos de dois textos fundamentais de Mario de Andrade : A escrava que não é Isaura — a ‘teoria’ do modernismo compendiada - e seu livro mais ousado, em termos formais, Losango caqui.

Em seguida, 1928 marca a publicação de Macunaíma, de Mario de Andrade, máxima obra literária do movimento, excepcional romance-retrato do Brasil de grande miscigenação cultural — as tradições culturais indígenas dos primórdios ao lado da modernidade europeizada dos centros urbanos brasileiros da época — e de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, inaugurando o ensaio de cunho ao mesmo tempo histórico e sociológico que abriria caminho para o grande ciclo de “interpretações do Brasil”.À renovação estética modernista,na década de 1920, alia-se no decênio seguinte o ensaio de interpretação e crítica social, que tenta recontar o processo de formação histórica do país: a procura da identidade social passa igualmente pela busca premente de uma ponte entre uma completa renovação cultural e a reforma da sociedade, uma ponte entre a modernidade e a modernização do país .

O ano de 1930 é a época de instauração do Estado Novo, que se ‘apropria’ ideológica e retoricamente do Modernismo — Getulio Vargas declarava em seu discurso de posse: “As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do Modernismo na literatura brasileira foram as mesmas que precipitaram no campo social e político a Revolução de 1930” (seguindo uma sugestão formulada por Cassiano Ricardo) — mas inicia um período de intensa fermentação política, social e cultural. É na primeira metade dessa década que nascem as primeiras tentativas de interpretação de conjunto da história, da economia e da sociedade brasileira.Sobretudo a prosa literária se desenvolve, ficcionalmente no romance e no conto, que retratam decadência da aristocracia rural, a formação do proletariado urbano, a luta do trabalhador, o êxodo rural, as cidades em rápida transformação — os cenários para a expansão e proliferação dos ensaios de interpretação do País, de Gilberto Freyre , Paulo Prado (Retrato do Brasil), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) ,Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo), todos lastreados pela ‘índole’ modernista em busca da síntese explicativa dos múltiplos aspectos da vida social brasileira e de seu desenvolvimento histórico.

Acima de tudo um processo de mudança cultural geral, em direção a uma nova reconstrução sócio-política da identidade nacional, o Modernismo “difunde-se no tempo, balizando grande parte dos sequentes debates intelectuais, espalha-se no espaço, o poderoso ímã da literatura interferindo com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil”, sentencia Antonio Candido. Irradiante , difuso e difusor, o Modernismo modelou substancialmente a literatura brasileira no século XX e desdobrou-se pelas décadas seguintes em irreversível processo de amadurecimento : uma terceira fase do movimento,na busca de uma nova linguagem, que expressasse os anseios de renovação do pós-guerra, veio na denominada “geração de 1945”, depois, na Poesia Concreta, da mesma forma na Poesia-Práxis , na atual narrativa em prosa — caracterizada esta por novas formas de linguagem , ora intensa e ágil, ‘cinematográfica’ , ora densa e introspectiva, ‘filosófica’,e pela preponderante ambiência urbana retratando “a vivência vertiginosa nas grandes cidades”, confluiu no último decênio do século XX e no despontar deste Terceiro Milênio para o irreversível despontar de uma nova geração de escritores, que abre espaço na literatura brasileira com uma marcante característica vetorial : o deslocamento maciço do eixo principal da nova criação literária para São Paulo.

Na cidade, os novos e novíssimos ficcionistas exercem sua prosa “de estrutura desconstrutivista , subversiva da linearidade, de narrativa fragmentada, quebradiça, de temática citadina, com os elementos da urbanidade pós-moderna , as tensões sociais e os conflitos individuais, o envolvimento pela violência urbana , os impasses existenciais — fomentando uma produção literária como não é feita em nenhuma outra cidade do País.
A São Paulo heterogenética continua abrigando escritores, naturais ou imigrantes, paulistas ou radicados, que produzem uma literatura ímpar, diferenciada, atualizada com os elementos da realidade, afinada com a modernidade, determinante — hoje como ontem, e desde sempre — da própria cultura brasileira.


















sábado, 14 de janeiro de 2012

diálogos de lima barreto com machado de assis



Ambos cases primordiais de meus estudos literários, Machado de Assis e Lima Barreto trocam instigantes diálogos, em sucessivos encontros em diversos locais, num exercício ‘híbrido’ de ficção – nãoficção que ando a idealizar (quem sabe, torne-se uma obra...).

Iniciados ficticiamente na rua do Ouvidor no ano de 1906,desdobrados em sequência em outros momentos (até 1908: ano da morte de Machado) e locais, com interferência descritiva e comentada de um narrador (em primeira pessoa – no caso, eu), os diálogos ‘ganham vida’ como resultante de estudos e investigações acerca das relações entre os dois grandes autores,não propriamente pessoais porquanto nunca se encontraram nem se falaram muito menos trocaram correspondência ou debates – relações perfeitamente existentes na ‘seara comum da literatura’, ambos verdadeiros ‘parentes literários’, nas quais é possível detectar , por certo predominantes, diferenças e divergências , mas também muitos elementos comuns e pontos de contato[escrevi artigo a respeito,já veiculado aqui] – ambos de comum origem étnica e social, ambos valendo-se da literatura como manifestação mais legítima para expressar suas respectivas posições perante a vida, ambos críticos vigorosos da República, ambos satíricos,sarcásticos, alegóricos -- inclusive muito respeito, admiração e elogios por parte de Lima para com Machado.

os diálogos

---- como vai, mestre Machado ? prazer em encontrá-lo...só poderia mesmo ser aqui em plena rua do Ouvidor... veio da Garnier? [do ‘herdeiro’ do “Bom Ladrão Garnier”?...]

--meu caro Afonso Henriques, malgrado sua pilhéria, tão contumaz quanto desnecessária, [com relação ao livreiro], acreditaria fosse verdade o prazer que menciona se tivesse eu a mente alterada ou em estado de certo desequilíbrio; mas sinto satisfação em vê-lo aqui, um tanto surpreso, é claro, pois raríssimas vezes o vi e muito menos cá na Ouvidor, que sabemos não é o comum em sua freqüência ou trânsito..

-- ...se a mente alterada, emérito mestre, ou se deixasse de lado, pelo menos por um instante, seu já proverbial ceticismo, no caso com relação a um real sentimento que externo em sua presença.

- solicito o obséquio de dispensar esse detestável tratamento de “mestre”,que soa bastante irônico, assim creio.

Tinha plena consciência de que tudo isso que me ponho a escrever possa parecer algo onírico ou fantasioso, até mesmo delirante; poderia mesmo formulá-lo qual um sonho, um curioso sonho, um esplendoroso sonho, a que por certo todo escritor, estudioso e pesquisador,ou quem lida nas letras – ainda mais quando se idealiza ensaios sobre Machado, Lima (e Alencar, Euclides, etc ) – está propenso, quiçá desejoso,a isso. Mas confiro a estes escritos as forma e formato de ficção, de exercício ficcional : o que me inspira e leva a tal ? serei bem sucedido ? Bem, de qualquer modo registro-o por inteiro, em seus vários desdobramentos – a quem interessar possa...

-- não tenho a tenção de lhe desagradar, prezado confrade , permita-me chamar-lhe assim, pois afinal o somos pela atividade comum na imprensa, eu um ainda iniciante, aprendiz, discípulo por certo do senhor, consagrado cronista de tantas e tantas décadas e tantas e tantas memoráveis páginas em nossas folhas.

-- mas pelo que sei, e li, o senhor já possui uma razoável, e peculiar a meu gosto, trajetória na imprensa, iniciada há seis anos, não é isso ? naquele jornalzinho, perdoe-me o diminutivo, não é depreciativo, meramente ilustrativo de seu formato e característica, de estudantes...

-- sim, e guardo ótimas recordações daquele tempo... o senhor conheceu meu primeiro artigo, dirijo-me ao maestro Francisco Braga, seu dileto amigo,estou certo ? que inclusive apresentava-se com frequência, e sucesso, no Club Beethoven, de sua especial predileção e assiduidade, não ? lá, me lembro de uma crônica sua, de 5 abril 1888, o Ferreira Vianna, então ministro da Justiça no Gabinete João Alfredo, discursara em 24 março já anunciando a inevitável abolição, que viria em maio, estou correto ?

Em meio ao diálogo dos dois, que dava-se em 1906, numa tarde ensolarada de agosto no ameno inverno carioca, lembrei-me de que Lima, com efeito, iniciara-se como jornalista há apenas seis anos ,no modesto A Lanterna, pequeno jornal de estudantes(à época, ainda estudava na Escola Politécnica) --"órgão oficioso da mocidade de nossas escolas superiores” -- fundado por Júlio Pompeu de Castro e Albuquerque, onde também colaborava Bastos Tigre.O artigo debutante a que Lima se refere, publicado em dezembro de 1900 , reporta a “um magnífico e interessante concerto sinfônico”, o primeiro de Francisco Braga, e enaltece a formação erudita do maestro e o saúda como “um formoso talento musical que se evidencia, à força de extraordinária cultura, e honrará a pátria”. -- inclusive eu acabei por assumir o posto de bibliotecário do saudoso Clube, e sempre me encontrava, com imenso prazer, com o Braga : que belas conversas tínhamos,e foi lá que ele pela primeira vez me falou do desejo de vir a musicar meu poema “Lágrimas de cera”, o que veio a fazer em 1893. e pensar que três anos depois o Beethoven fecharia de vez suas portas

-- lembro que o senhor publicou uma crônica,em 5 julho 1896, na Gazeta de Notícias, tratando de música em geral, na qual menciona com emoção o Club.

-- pois então, recordo agora de um fato muito importante :muito lutei para que as mulheres pudessem freqüentar o Club. Sabe o senhor que musas ou virtuosas, aqueles anos não eram fáceis para as mulheres talentosas e nem para as sedentas de cultura e informação. . Era o caso de Luisa Leonardo, bisneta da Viscondessa de Nassau e o próprio imperador Pedro I custeou seus estudos musicais em Paris, tamanho o vituosismo e a precocidade dela , se apresentara ao piano aos 8 anos de idade e em 1880 tornou-se pianista oficial da Real Câmara de Luis I em Lisboa. De volta ao Brasil, foi prestigiada pela intelectualidade da época, mas não encontrou espaço como musicista. Por isso passou a dedicar-se ao teatro musicado, ao lado de Chiquinha Gonzaga, e a contribuir para A Gazetinha com o pseudônimo de Vítor Luis. onde pretendo chegar: para ela, escrevi "paroles françaises" a compor sua canção "Inocência", com letra em português do Louis Guimarães Junior .

Ton âmeau ciel

Au sein dans ton sein

Ma bien aimé

Tu as la sainte

La sainte pudeur...

-- e também me consta que “inocência”, aliás acoplado a “culpa” parecem-me tema capital em boa parte de sua ficção, não ? e vieram inclusive ‘moldar’ a magnífica, assim penso, Capitu, mas esse binômio digamos veio inspirar essa sua parceria com o maestro Braga no "Lágrimas de cera", pois não ?

Citam o poema, e me vem aos ouvidos a letra machadiana e a música criada por Braga, cantadas pela mezzosoprano brasileira Anna Maria Kieffer., registradas numa primorosa edição sonora que não deixo de costumeiramente ouvir, gratificado, embevecido.Por outro lado, à referência feita por Machado acerca das “paroles françaises” sinto quase um sobressalto – pois ainda não logrei fazer publicar (apesar de as Universidade do Porto, Université de Rennes e University of Bristol terem se interessado...) -- meu trabalho sobre “Machado de Assis e os franceses”, na verdade um estudo de Literatura Comparada machadiana a compor um conjunto com as influências,citações, referências e recorrências portuguesas, inglesas, saxônicas, alemães e russas em sua obra.

-- mas vejo que o senhor me conhece bem, e apesar de muitas diferenças, notórias, essenciais, eu diria até orgânicas, entre nós, interessa-se, ou interessou-se em alguns momentos, por minhas criações...

--- por isso o chamo de mestre... oh, desculpe-me, um lapso ...

-- o senhor sempre preferiu essa, digamos, ‘imprensa menor’, não ? ... haja vista o que fez depois desse início.

-- ah, sim,vieram ainda em 1902(nesse ano fui reprovado em Mecânica na Escola Politécnica) A Quinzena Alegre, do Bastos Tigre de efêmera duração,depois em 1903 no Tagarela, jornal humorístico de Raul Klixto, onde usei meu primeiro pseudônimo, também os tive , e muitos, como aliás o senhor, Rui de Pina , e em O Diabo, semanário do Bastos Tigre,que só durou quatro números...e meu plano é vir a criar minha própria publicação, saiba o senhor. a propósito : nunca pensou em algo assim ?

-- ah, certa feita o Ferreira de Araújo, lá na própria Gazeta de Notícias, começou a insistir comigo , repetidas vezes, para tal, mas eu sempre recusei. Voltemos ao senhor : idealista como é; tranqüilize-se que não vou dizê-lo ‘sonhador’, quando muito proclamo-o ‘visionário’... mas em 1905 o senhor escrevia no grande Correio da Manhã, no qual a proposto nunca tive vontade de publicar , ainda mais depois da experiência de meu dileto amigo e companheiro no Ministério [da Viação,Indústria e Obras Públicas],e também um de meus mais severos,embora amigável, críticos...

À medida que aquela conversa magicamente onírica se desdobrava, eu lembrava e incorporava, a cada palavra deles, registros e mais registros biográficos, bibliográficos, literários, etc de um e de outro Veio-me a recordação\referência ao episódio, bastante significativo diga-se, tanto do Correio da Manhã, como do cronista,poeta,contista,criador de teatro : o conto “A viúva” foi enviado por Arthur Azevedo ao jornal, onde escrevia aos domingos, para concorrer a um prêmio em dinheiro e à vaga aberta , devido à decisão da direção do jornal de substituí-lo por outro colaborador, instituindo um concurso ; assinado por pseudônimo, o conto foi dado como vencedor e publicado, mas então Arthur revelou o estratagema à direção, deixando claro que interesses subalternos ou julgamentos equivocados estavam por trás da decisão de defenestrá-lo da redação; devolveu o prêmio e pediu demissão “irrevogável”.

-- fui para o Correio levado pelo Pausílipo da Fonseca, grande amigo do Edmundo Bittencourt, mas atraído, até com entusiasmo e esperança, pela linha de então do jornal, em contraste com a passividade e covardia das outras folhas, denunciador das falcatruas e negociatas dos poderosos, crítico mordaz dos políticos corruptos ; logo depois,já neste ano de 1906, me decepcionei , me desiludi, por perceber que no fundo não era muito diferente dos outros, veja o exemplo de sua atitude com o Azevedo, convenci-me da inutilidade do esforço de procurar o caminho da imprensa burguesa.... mas o fato é que exatamente em 28 abril iniciei uma série de reportagens, sem assinatura – atitude de cautela,para não correr riscos : tocaria em certas,até então, ‘verdades históricas’ – com o título “Os subterrâneos do morro do Castelo”, que se deram a público até 3 junho; se o senhor as conheceu deve ter notado que intencionalmente dei um tom romanceado, o título original é quilométrico, nem vou aqui lhe dizer.

--.ah, sim, recordo-me que provocaram grande repercussão na época, eu me interessei muito, gostei mesmo e lhe parabenizo pelo ótimo trabalho. o Veríssimo elogiava muito seus textos, sempre que nos encontrávamos lá na livraria.

-- obrigado, senhor. não sabia dos comentários do Veríssimo, nem que ele tenha escrito algo a respeito. mas ,e isso para mim é importante, desconheço que o senhor o saiba, nesse mesmo ano de 1905 comecei a escrever meu primeiro romance, que concebo ‘a clef’ , e imagino talvez venha a ser bastante revelador, bastante impactante . a propósito, tenho aqui comigo o prefácio que vou levar mais tarde para o Noronha [Antonio Noronha Santos]...mas deixe-me confidenciar-lhe algo : penso em criar romances desde antes até no esboço nos “Subterrâneos...”, em fevereiro 1904 publiquei um texto,informando ser “capítulo de romance inédito”, em A Lanterna, com o título de “Chez Madame da Costa”...

Ativo a memória para registrar que José Veríssimo estampou uma referência, amável, quando do terceiro número da Floreal -- revista criada por Lima em 1907,realizando o intento comentado com Machado, após demitir-se,em junho, da Fon-Fon,de Mario Pederneiras, onde começara a colaborar em abril, levado pelo “insuportável desagrado,humilhante para meu orgulho, com a atitude de superioridade para comigo dos donos da revista – e que só vingou por quatro números, de 25 outubro a 31 dezembro -- em sua coluna do Jornal do Commercio, em dezembro 1907 -- de que parte Lima transcreveria no prefácio da 2ª. edição do romance Recordações do escrivão Isaias Caminha, de 1917:"Ai de mim, se fosse a 'revistar' aqui quanta revistinha por aí aparece com presunção de literária, artística e científica.Não teria mãos a medir e descontentaria a quase todos; pois a máxima parte delas me parecem sem o menor valor, por qualquer lado que as encaremos. Abro uma justa exceção, que não desejo fique como precedente, para uma magra brochurazinha que com o nome esperançoso de Floreal veio ultimamente a público, e onde li um artigo "Spencerismo e Anarquia", do Senhor M. Ribeiro de Almeida, e o começo de uma novela Recordações do Escrivão Isaías Caminha, pelo Senhor Lima Barreto, nos quais creio descobrir alguma cousa. E escritos com uma simplicidade e sobriedade, e já tal qual sentimento de estilo que corroboram essa impressão."

A Floreal, embora efêmera, de certo modo marcou presença no panorama jornalístico e mesmo literário de então, no que contrastava com o espírito da época e em especial tornava pública, de forma expressa, o pensamento,concepção e postura de Lima com relação à literatura e sua “missão” . O artigo de apresentação – cujo teor e essência estariam também no texto “Amplius” que abre a coletânea de contos Histórias e sonhos, em 1920 (a única publicada em vida por Lima) -- representava,com efeito, uma espécie de ‘profissão de fé’ de escritor: “(...) a grandeza da literatura não reside em ‘rutilantes crônicas duvidosamente impressionistas ou no desenvolvimento em contos de anedotas das folhinhas Laemmert(...)”.

Antonio Noronha Santos,jornalista,escritor,veio a se tornar melhor e maior amigo de Lima : conheceram-se em 1903, no Café Java, ponto predileto dos estudantes da Politécnica, localizada em frente, no largo de São Francisco, a sólida amizade se formando em vários encontros subseqüentes, nas mesas da Americana ou do Jeremias, na Avenida Central – sabemos o quanto de separação, e mesmo ‘rivalidade’, existia entre os grupos de literatos freqüentadores dos bares e cafés, o de Bastos Tigre, Domingos Ribeiro Filho,Noronha Santos,Curvelo de Mendonça, Fabio Luz,Lima Barreto no Java, na Americana, no Jeremias, ou no Café Papagaio – neles inclusive foram feitos os planos para o lançamento da Floreal – opondo-se ao de Olavo Bilac, Elisio de Carvalho, Coelho Neto, Medeiros e Albuquerque,e outros a que os primeiros denominavam “nefelibatas”(e assentando mais ainda sua rejeição ao grupo liderado justamente por Machado de Assis, que freqüentava a Garnier e dominava a Academia). Em fevereiro 1909 Noronha viajaria a Lisboa para entregar os originais do romance de Lima ao editor português A.M. Teixeira , que os publicaria em livro no mês de dezembro. Lima, no entanto, começara a publicar em folhetins na Floreal. Em fins desse ano, Noronha Santos edita com Lima um panfleto contra a candidatura de Hermes da Fonseca à presidência da República, intitulado O Papão, “semanário dos bastidores da política, das artes e...das candidaturas”,anunciado em boletins distribuídos nas ruas centrais da cidade : circulou apenas uma vez.. Hermes da Fonseca, como se sabe, foi um dos alvos capitais de - mais do que críticas - verdadeira repulsa por parte de Lima,sob o forte sentimento antimilitarista desde a juventude, exposta em crônicas e vários contos, em especial, sob simulacros e alegorias, nos célebres “contos argelinos”,que Lima publicou entre 1915 e 1922.

-- ora, uma surpresa, e uma deferência , agradeço muito pela gentileza da confiança em me revelar seu projeto, que vejo ser genuíno de sua parte, em me dar a conhecer tanto o fato com relação ao romance,que diz vir a ser “a clef” como das tentativas anteriores.

-- não quero nem vou fazê-lo, abandonar o jornalismo, mas faço-lhe aqui uma revelação: vou ser escritor, sim: tenho grandes ambições, aspiro à ‘glória literária’, sim. alguns contos já estão prontos, inclusive há cerca de dois anos escrevi um para o qual dedico especiais atenção e carinho , até mesmo para torna-lo um dia uma novela : tem o título com o nome da protagonista, “Clara dos Anjos”, que para mim simboliza, emblematiza a mulher brasileira, não a mulher rica, burguesa, ‘republicana’, fútil, fugaz, mas a moça humilde, pobre, mestiça e, no conto, iludida, traída, manipulada sentimentalmente pelo homem, deflorada por um pseudo noivo que lhe aparecera para turvar seus sonhos de amor...essa mulher,para mim a verdadeira brasileira, é motivo de dois outros contos, “Um especialista”, também de 1904 , aliás ano de seu esplêndido Esaú e Jacó, não imagina como admiro esse romance, pelo que ,permita-me, coloca a República em seus devidos termos, e “O filho da Gabriela”, que acabei de escrever: nenhum deles publicado ainda...

-- pois então o senhor também se incorpora, permita-me dizê-lo, à preocupação, a rigor ‘dedicação’, com a mulher, à defesa intransigente de seus direitos, afetivos, conjugais, sociais, culturais. temos muito a dialogar sobre tão relevante tema.

-- além da mulher, a que se refere, permita-me dizer-lhe que temos outros dois temas principais em comum, digamos; deles fizemos, tanto eu como o senhor, clave para crônicas e contos : a política e a escravidão – desde 1900,eu ainda estudante na Politécnica, passava a maior parte do tempo na biblioteca lendo filosofia e em especial Condorcet e sua Reflexions sur l’esclavage des nègres, que me inspirou acalentar o ideal de escrever uma “História da escravidão negra no Brasil”.na verdade, tenho idéias em profusão para muitos contos, assim como para romances. e um dia candidato-me à Academia, de sua idealização,criação e que o senhor preside desde sempre e ad eternum, ao que parece...

-- terei redobrado prazer em ouvi-lo, caro senhor Barreto, redobrado agora por sabê-lo tão afável e receptivo ao diálogo : tinha o senhor como pessoa de trato difícil, amargo e irrascível. mas no momento tenho de me despedir pois compromissos inadiáveis me esperam. sugiro, proponho nos reencontremos...

--- ... em data,hora e local que o senhor, prezado Assis, sugerir. o prazer será todo meu.

(........)



[1] Francisco Braga (Rio de Janeiro, 1868 – 1945), músico, maestro e professor , logo destacou-se por seu talento, pelo que o governo republicano concedeu-lhe uma bolsa de estudos no exterior : em 1890, obtém o primeiro lugar no concurso para admissão ao Conservatório de Paris, tornando-se aluno de Massenet; viveu por dez anos na Europa, fixando residência em Dresden.Como compositor abordou todos os gêneros musicais, da ópera à música de câmara, da música orquestral à música instrumental e vocal, da música sacra à banda e à musica de caráter popular.Escreveu mais de 30 canções, nem todas de cunho erudito – todas marcadas por acentuado teor de nacionalismo, então emergente na seara musical. O Teatro Municipal do Rio de Janeiro foi inaugurado em 1909 com sua composição “Insônia”, com orquestra sinfônica regida por ele ; foi também o compositor do "Hino à Bandeira”.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Freud não explica -- complica


‎"Freud explica", comentavam na festa de aniversário a que compareci no sábado. mas,retruco e sustento eu, Freud está longe de explicar, ao contrário está para complicar,isto sim. complicar no sentido de questionar,induzir à reflexão, incitar o debate, fazer prevalecer a livre,e lúcida,intensa, circulação - não em uníssonom, mas em troca,contraposição -- de ideias. assim foi por ele concebido e conceituado nas origens, assim tem sido com os postulados,teses e teorias freudianas (um dos pilares culturais-filosóficos-literários da civilização ocidental) há mais de 100 anos tanto que se debate,discute,discorda,polemiza,etc, assim será até o fim dos tempos. o que só confirma sua majestade eterna.
e sobre Freud, ex-alunas minhas e outras pessoas então ouvintes de curso e palestras minhas sobre "Machado de Assis,Freud e as mulheres" instaram-me a postar, aqui, algo dessas minhas 'perorações' (aliás, tb. um artigo já veiculado na www). então:
Machado, Freud, as mulheres
Machado sempre foi um autor interessado em prospectar as paixões dos homens, em dissecar-lhes as intimidades, em levantar ques¬tões e em torná-las públicas pela voz de seus personagens; sobretudo percebia, com clareza, o lado trágico das relações humanas. Este lado trági¬co passa pelo permanente mal-entendido dos encontros humanos, de um ser humano permanentemente acossado pelo outro, num processo originado,determinado e materializado pelo ciúme e a desconfiança implícita, pela traição e pela infidelidade, de resto temas constantes na quase totalidade de sua obra ficcional. Muito da temática e da tramática machadianas gira em torno do ciúme e do perdão -- presente e atuante em romances como Ressurreição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos – binômio que remete a ... Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...—os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise, desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó (1904), por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”. Foi ele o autor brasileiro que introduziu a perspectiva crítica, fazendo da dúvida, do questionamento e da argumentação, ‘a la Freud’, uma constante em sua obra.
A literatura de Machado traz, juntamente com Freud, para o centro das discussões, a questão da sexualidade feminina. Nenhum escritor de seu tempo ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis : escrevia sobre mulheres e para mulheres : são elas as protagonistas, as personagens primordiais, o elemento central em torno das quais desenrola-se a trama e a narrativa. Na ficção machadianas surge uma mulher que almeja poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de, algu¬mas vezes, ao não poder dizer de seu desejo — a maioria das mulheres da época vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse amor, melhor, mas não era o principal, pois a questão do amor era secundária, era um luxo que muitas mulheres não tinham : Machado,fiel à ‘ideologia’ das décadas de 1850-60, assim o trata em Ressurreição , em A mão e luva, mas redime o amor em Memorial de Aires, numa “recomposição com a vida” — fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita .