segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

um brinde machadiano


Soneto de Natal

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço no Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"


Machado de Assis

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O patrimonialismo, dos ‘donos do poder no Brasil, e Lima Barreto


A propósito dos 50 anos de publicação de uma das maiores obras ensaísticas da literatura brasileira – Os donos do poder, 1958– convém uma necessária ilação do patrimonialismo, primorosa e irretocavelmente conceituado,exposto e dissecado por Raymundo Faoro , com uma das mais importantes e significativas peças da vibrante obra de Lima Barreto.

Em essência, Lima Barreto sempre tratou mais de política do que qualquer outro tema. Ninguém como ele, em seu tempo, escreveu tanto sobre o tema e, por extensão, sobre questões sociais. Toda a obra barretiana desenvolve-se a partir e em torno de um tema nuclear: o poder e seus efeitos discricionários — o poder visto e descrito por ele como “o variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis, tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa inserção social”. Tinha a visão verticalizada, analisando desde as estruturas políticas como o governo e as ideologias, e as instituições culturais como a imprensa e a ciência, até os modelos determinantes do comportamento coletivo e do relacionamento cotidiano. Lima Barreto era, acima de tudo, um anti-patrimonialista.
Exemplares insofismáveis da veemente oposição de Lima Barreto à República, da ferrenha crítica aos governos republicanos , expressão do intransigente e obstinado repúdio para as coisas da política, aos políticos, aos conchavos partidários,às oligarquias , são , na obra barretiana, os “contos argelinos” que têm em seu cerne paródico a ascensão dos militares, com sua crescente participação na política, e o militarismo. E em outro viès de leitura e interpretação trazem em si a emblematização ficcional do patrimonialismo, contra o qual Lima Barreto se colocava na própria essência de sua ideologia.
Os “contos argelinos”, per se dotados de excepcional especificidade e acentuadas peculiaridades,constituem um conjunto único na obra ficcional de Lima Barreto , com características próprias de temática mas também muito especiais de teor, 'timbre', linguagem,estilo, ambiência. Sobretudo porque utilizam ,mais do que em quaisquer outros — e desse recurso muito se valeu em sua obra ficcional — a sátira , o sarcasmo e em especial um expressivo tom de alegoria,uma fina ironia alegórica que os percorre e faz se ‘entrecruzarem’, pioneiro exercício barretiano de intertextualidade a solicitar pois leitura em conjunto, cada um motivando novos aspectos interpretativos sobre o mundo ficcional neles desenhado.
Sob essa denominação, Lima Barreto escreveu 13 contos, publicados seqüencialmente sob numeração contínua, na revista Careta , do Rio de Janeiro , entre 1915 e 1922 . Comportam,cada um deles, no mise-em-scéne as maquinações do sistema de poder no Brasil -- vale dizer, manifestações do patrimonialismo -- desveladas e reveladas em ambiências de sultanatos,canatos — os estados brasileiros: “Al-Bandeirah” é São Paulo, “Al-Súgar” [açúcar] como Pernambuco, “Hbaya” sendo a Bahia — domínios de sultões, xeiques e personagens ‘orientalizados’ deliberadamente inspirados e relacionados a figuras políticas e estabelecendo claras referências a acontecimentos da época : o Brasil recriado como “o País de Al-Patak”, governado pelo “usurpador Abu-Al-Dhudut”, vale dizer Hermes da Fonseca, mais tarde por Basileus Epitaphio, isto é, Epitácio Pessoa ; palco das aventuras e desventuras de tipos secundários, como o “ministro da guerra, o polemarca Bem-Zuff Kalogheras e os modos desastrados de comandar o exército” , o “ministro dos negócios internos do reino, Cide Ércu Bem-Lânod” e seus “hábitos sacrílegos”, o “kaïa, chefe da polícia militar, Pessh Bem-Hoa” — os recursos à clef’ fazendo-se presentes em todos os Lima Barreto os teria concebido e criado -- com seus jogos de simulacros ,alegorias e paródias, e pela conotação que o âmbito de “sultões, quedivas, felás do Império Otomano” e da cultura muçulmana contêm -- como a própria expressão ficcional do patrimonialismo e seus fundamentos ideológicos e históricos.
[em 2009 publicarei “Lima Barreto e a política : os ‘contos argelinos' e outros textos recuperados]
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segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

em torno de Capitu e o exercício machadiano da dúvida.


a propósito da "Capitu" televisiva


Machado sempre cultivou a dúvida como instrumento de reflexão, e evitava o maniqueísmo de personagens por não aflorar os questionamentos. Uma das expressões de sua evolução literária foi a narração. O narrador machadiano muda. Existem as expressões cunhadas no estudo machadiano do narrador confiável e do narrador não-confiável; o narrador não-confiável se sobressaindo a partir da segunda fase, iniciada em 1880. Esse tipo de narrador é quem coloca dúvidas sobre as coisas. Nesse particular, costuma-se conferir importância desmesurada àquela grande questão do romance Dom Casmurro: Capitu traiu ou não traiu? – o que é absolutamente descartável e desprezível. E aqui peço licença para abrir um longo parênteses e me estender nesse assunto, que é importante para caracterizar um elemento fundamental , um dos fulcros capitais de toda a ficção machadiana . A tola discussão se Capitu traiu ou não traiu é o que menos -- na verdade,nada – importa :Machado faz de Dom Casmurro -- a meu juízo, a maior obra da literatura brasileira, anos-luz acima de qualquer outra, comparável às maiores obras-primas da literatura universal -- um transcendental exercício da dúvida, um ensaio sobre a dúvida, que de resto permeia toda sua ficção : evoca-se,nesse romance, o 'shakespearianismo' [sic : neologismo meu...] do ciúme e traição a la Otelo \Desdêmona, mas o que existe mesmo, assim entendo,é uma conotação 'hamletiana', vale dizer o 'ser ou não ser', que seria traduzido, sob a égide do exercício machadiano da dúvida,pelo 'traiu ou não traiu' inerente a Capitu -- aliás, a mais complexa e bem construída protagonista feminina da literatura brasileira , a suma da mulher machadiana criada e fomentada em toda sua ficção . Nesse ‘teor hamletiano’ reside toda a ficção machadiana, mormente na seara contística : é o 'fez\nãofez',''disse\não disse', ' saiu\não saiu', 'roubou\não roubou', 'recaiu\não recaiu' (caso do primoroso conto "Singular ocorrência"), e por aí vai. E o narrador é o agente dessas dúvidas .Examinado, ou lido, pela ótica, ou na órbita do ciúme --'oteliano': e Shakespeare foi a maior influência sobre Machado, suas referência e citação prediletas, mil vezes referenciado em contos e crônicas -- Capitu é julgada infiel pelo narrador Bentinho, um ciumento nato e hereditário,doentio,e dissimulado -- e aqui entra outra grande influência de Machado : Freud , pois fomenta a pseudo-traição de Capitu como processo de transferência de sua atração pela mulher de Escobar. Bentinho é o narrador da história . e aqui chegamos ao âmago da coisa, no âmbito da análise literária, que creio 'mata' a questão : o narrador-em –primeira- pessoa machadiano, mormente pós-1880 é um narrador não-confiável, que de resto Machado adotou em muitos dos textos ficcionais desse período -- justo os mais importantes e impactantes -- ao contrário do narrador confiável de antes, que se expressa pelo chamado narrador-em terceira-pessoa (embora Machado tenha também criado um ‘falso’ narrador-em-terceira-pessoa, mas isso faz parte de outra digressão) . Se o narrador de Dom Casmurro fosse este, distanciado e isento tanto quanto possível, haveria campo para se cogitar de Capitu infiel, adúltera , mas não : sendo em primeira-pessoa, nada a declarar, ou melhor nada a discutir. Dom Casmurro surgiu cerca de 3 ou 4 anos depois de Madame Bovary, de Flaubert, e de O primo Basilio, de Eça de Queiroz, dois 'parentes' sanguíneos ,literariamente, do romance de Machado, mas neles o narrador –em- terceira-pessoa não deixa dúvidas quanto à infidelidade de Ema Bovary e de Luisa , que são personagens 'chapados',definidos, mulheres praticantes nitidamente da infidelidade --não cabe aqui discutir quais os motivos que as levaram, ainda que saibamos ter sido o abandono por parte dos maridos ou a insatisfação com o casamento, etc : aliás, a infidelidade que Machado insinua em suas protagonistas, ao longo de sua ficção, é exatamente motivada ou gerada por esse comportamento dos homens, vide como exemplo emblemático disso o conto "Uma partida',neste livro que ora publico. Capitu não, não é nada 'chapada', é primorosamente construída como figura literária , sua grandeza ficcional é comparável á de Ana Karenina, e por aí vai.
Machado ao longo de sua ficção levantava ,incentivava, insuflava e cultuava todas essas dúvidas,praticava quase que permanentemente esse exercício, e as colocava no leitor. Então, ao mesmo tempo em que Machado moldava ,e mutava, sua trama e seus protagonistas, também moldava e mutava narradores e, conseqüentemente, leitores. Esse culto ao questionamento passou para o leitor, que começou a ler,ou pelo menos deveria ler – o que é mais do válido para o leitor de hoje, também -- as histórias de Machado de forma diferente. E nisso está plenamente demonstrada a genialidade de um autor : na evolução literária de Machado, alteram-se formas e ritmos narrativos (condimentados de ironia e humor,adquirem um tom mais coloquial e de certa forma intimista), transformam-se protagonistas, transmutam-se narradores e leitores. Mutações e transformações, dos protagonistas , que se manifestam também em transmutação do narrador e da voz narrativa e a criação de um ‘novo’ leitor, o leitor- modelo em contraponto ao leitor-empírico. Machado construiu em seu texto ,e por meio dele, um novo “leitor-modelo” — definido este conforme a conceituação de “leitor-modelo’ e “leitor-empírico” de Umberto Eco. Machado formou seus leitores recorrendo a estratégias temáticas,tramáticas,narrativas,estilísticas que ,como poucos, tinha e sabia usar -- entre essas estratégias ,as digressões,fragmentações narrativas,retardamentos de fatos anunciados ou prometidos ao leitor, metamorfoses de vozes narrativas, de forma e de linguagem .Machado descondicionou o leitor empírico do leitor-modelo, como ninguém na literatura brasileira, 'desconstruiu' essa relação, embora via de regra seja ela utilizada para que o leitor chegue aonde o autor deseja. Contudo, não satisfeito,na esteira desse 'dissídio' fez o leitor(o empírico) oscilar em "grave"-- que espera algo mais do que um 'simples texto', ou um 'puro romance', ou uma 'obra correta',um leitor que deseja reflexões de caráter mais realista-- e "frívolo"-- que espera impactos e emoções no texto ou na obra,um leitor de tipo romântico ; ora graves ora frívolos, esses leitores são por assim dizer 'transportados' para dentro dos romances e para a maioria dos contos pós-1880 : na obra machadiana, o leitor empírico é o ‘frívolo’, e ‘grave’ é o leitor-modelo. Até o final da década de 1870, os romances e contos , atendiam ao leitor empírico\frívolo , como aliás não poderia deixar de ser, condicionado e formado no âmbito do Romantismo e seus valores ; ao passo que o grave mantinha-se em ‘surdina’. As metamorfose ao longo do tempo, a partir da década de 1860, deram-se concomitantes : na medida da evolução literária machadiana,o leitor empírico\frívolo vai ‘cedendo espaço’ ao leitor-modelo (inclusive um novo,criado por Machado)\grave, ao mesmo tempo em Machado 'camufla' as diferenças existentes entre injunções ficcionais e reais ,incentiva o leitor a acreditar no fictício,ou embuste\artimanha, e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando um narrador de pouca,ou nenhuma, confiabilidade, uma espécie de 'narrador volúvel' que habita e conduz muitos de seus contos. E o leitor situa-se como um ‘espelho’ desse narrador.No fim , ainda que sob o controle do autor, ou do narrador cabe ao leitor,quase que exclusivamente, o acesso a unidade dentro da imensa e complexa obra ficcional de Machado – que nisso parece contrariar Nietzsche\Zaratustra : “Alguém que conhece o leitor, nada fará por ele...”
Vale lembrar que desde seu primeiro livro publicado,em 1861 , Queda que as mulheres têm para os tolos – que título instigante, provocador ! – Machado fomenta o enigma,o mistério, o disfarce,o subterfúgio: porque persiste a dúvida histórica de ser uma tradução ou uma criação original dele – de que não tenho a menor dúvida que seja(criação) : vejam a propósito minha edição crítica sobre esse livro. Cá entre nós e para nós, a versão de ser criação original é muito mais,digamos,’charmosa’, muito mais – não há dúvida alguma — ao estilo e espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado -- a par de outras igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado. Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’— e é esse teor ‘hamletiano’, a ligá-lo e referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores admirações e citação constante .Dele, Machado assimilou e incorporou à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ – presente e atuante em romances como Ressureição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos : binômio que remete a Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...— os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise, desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”.
O certo é que Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é , primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressureição (1872), e finalmente na opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.1899) . Queda que as mulheres têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia, de seu primeiro romance, e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora. Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” -- traduzida ou não por Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
Em Dom Casmurro a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês : Machado embebeu-se nas lições shakespeareanas e delas impregnou seu romance mais lido e estudado , conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo, e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose, inclusive, Machado como que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigente no âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX — proposta por especialista, “a ficção vista como nova fonte de teorização para a tradução”, a tradução aparecendo como fio condutor e meio operandi , quer tendo sido feita realmente em Queda que as mulheres têm para os tolos , quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro, e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida literária de Machado.Um elo a ligar ‘primeiras obras’ — a pioneira publicada, o exercício teatral inicial, o romance precursor — com aquela que é a síntese, corolário, consolidação. Elo que se alonga mais , visto por outros aspectos e ângulos: vai a Esaú e Jacó e atinge o corolário final em Memorial de Aires. Nos dois derradeiros trabalhos, Machado opta por um expediente ficcional — dentre os vários que utiliza ao longo de sua obra – atribuindo a um morto a autoria desses romances, deslocando-se para uma condição ambígua de editor e crítico de si mesmo, fingindo abrir mão da autoria de seu texto –- ambiguidade gerada e conduzida pelo mesmíssimo vetor que o fez, nos primórdios, assumir a também condição ambígua de ‘tradutor’ em Queda... e da mesma forma abrir mão da autoria de seu texto.


segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Os sertões: contemporâneo da posteridade


“O livro número um do Brasil”- que neste dezembro completa 106 anos de publicação -- diz muito de um drama da história nacional, e também de dramas dos tempos atuais.

“Só as obras bem escritas hão de passar à posteridade" :palavras lapidares escritas por um naturalista, o conde de Buffon (mais conhecido por uma frase que se tornou famosa :’le style c'est l'homme même’), ao tomar posse na Academia Francesa, em 1753.
Os sertões estão fadados à posteridade. A obra-prima de Euclides da Cunha, completa 106 anos celebrada por muitos, muitissimos motivos __ em especial por sua espantosa atualidade
Já se falou e escreveu __ vai-se falar e escrever sempre, ao que parece __ de sua linguagem difícil : o que não o impediu de ser o primeiro best-seller da história editorial brasileira , com três edições sucessivas no lançamento, a 2 de dezembro de 1902, (ou seja, cinco anos após o fim de Canudos), pela editora Laemmert, e de ser consensualmente considerado “o livro do Brasil”, “a obra número 1”. É bom lembrar que o “livro vingador” __ assim ele mesmo, Euclides da Cunha, o batizou, ao lançá-lo __ teve sua primeira edição (custeada com recursos próprios do autor) de 2 mil exemplares, rapidamente esgotados.
O que mais dizer de um livro que conta com mais de 30 edições em português, traduzida em 3 idiomas, em mais de 60 países__ em muitos deles foram feitas traduções sucessivas, em tentativa de contínuo aprimoramento. Mas, por outro lado, é equivocado pensar que sobre Os sertões tudo já foi dito, lido,ouvido e escrito : muito há o que comentar, muito o que refletir, muito até mesmo o que de críticas e ressalvas ouvir e ler, muito o que debater e meditar.
O que fez ,e faz, Os sertões tão célebre?
A consagração de Euclides e de sua obra se de um lado foi, à primeira vista, um fato relâmpago e inesperado __ um anônimo engenheiro e pouco conhecido jornalista ter se transformado no mais celebrado escritor do país, na época __ de outro está sedimentado por dois fatores básicos: 1) a aceitação de alguns conceitos –chave de Os sertões relacionava-se com um longo trabalho de imposição de novas idéias e concepções e de novos valores que vinham sendo gestados no país há pelo menos 30 anos __ o cientificismo da ‘geração 1870’; 2) a consagração-relâmpago foi impulsionada por alguns dos críticos literários mais importantes do país, José Verissimo, Araripe Juniorr e depois Silvio Romero__ além de Roquette-Pinto. Todos enalteceram , insistindo em signos de raridade na obra, mostrando o quanto texto, tessitura, forma, estrutura e conteúdo escapavam do comum, do conhecido.__ e os ensaios críticos que vieram em sequência, ao longo dos anos(e até hoje), enfatizam esse caráter de descobertas de verdades fundamentais para o destino do país, como “a tese dos dois Brasis”, a necessidade de olhar para o interior, para “o Brasil real”. O consenso era de que Os sertões não podia ser comparado a nenhum outro livro: era “uma bíblia permanentemente aberta para interpretações, vindas de diversas áreas : literatura, história, geografia, geologia, política,biografia,matemática, engenharia”.Tanto Verissimo como Araripe sublinhavam a idéia de totalidade encontrada no livro, resultado da soma da arte com a ciência, do épico com o trágico e da emoção com a razão. Euclides produzira uma obra científica, uma obra histórica, mantendo “a continuidade da emoção, sempre crescente, sempre variada, que sopra rija, de princípio a fim, no transcurso de 634 páginas, um livro fascinante, resultado de um conjunto de qualidades artísticas e de preparo científico”. Eis aí uma das vertentes do aspecto ‘ fundador’ da obra, tão mencionado pelos críticos literários ao longo do tempo.
Sim, pois na consagração de Os sertões menciona-se o aspecto “fundador” da obra. Em que consiste essa fundação ? por inovar , por renovar, por revolucionar.... por tornar-se enfim um clássico, em meio a elementos histórico-político-sociológicos e literário-culturais específicos de um período de fortes mudanças no país__ não apenas pela substituição da monarquia pela república, que seria aliás interpretado como um dos motivadores da ‘rebelião de Canudos’.
Euclides da Cunha, embora Os sertões fosse o seu primeiro livro, já havia atingido um alto estágio de amadurecimento, revelando nessa obra um perfeito domínio da língua e uma clara consciência da sua arte : Wilson Martins, por exemplo, reconhece que todos os elementos que formam o estilo euclidiano , e que em qualquer outro escritor” poderiam resultar em desastre”, salvam-se graças ao “poder transfigurador do grande artista da palavra que nele preexistia”. Alfredo Bosi sustenta que pode-se ler a obra principal de Euclides aproximando-a da prosa do seu tempo: naturalista no espírito, acadêmica no estilo”.Bosi argumenta ainda que Euclides não se teria tornado um dos nomes centrais da cultura brasileira pelo determinismo estreito das idéias nem pelo rebuscado da linguagem : Euclides implementou “uma consistência nova em nossas letras: o estatuto da contradição , expressa no livro em forma de opostos inconciliáveis”. Contradição e jogo de opostos, dicotomia tese/antítese que de resto constituem a essência mesma de toda a obra euclidiana __ os ‘contrastes e confrontos’(que deram título, aliás, a uma delas)
A questão de originalidade e autenticidade de Os sertões em última análise nada mais seria do que reflexo da personalidade de Euclides. Se o estilo é natural e original, “ele escreve o que vem de dentro, como sente”, nas palavras de José Verissimo, diferencia-se do escritor guiado apenas por sua subjetividade, pois examina a realidade exterior com as lentes da ciência, procurando o distanciamento __ outra das características apontadas pelos críticos: o ecletismo,o jogo de oposições, de tese e antítese( na melhor acepção da filosofia‘hegeliana’),de ‘contrastes e confrontos’, presente da primeira obra a todos os escritos posteriorede Euclides , em que trata de “assuntos mais opostos, psicologia, socialismo, religião, política, envoltos em problemas de história, pátria, imigração, povoamento, indústria, engenharia”, como chamou a atenção Araripe Junior.
A permanência e a atualidade de Os sertões se devem à veemência de sua denúncia, à sua pertinência histórica e à sua excelência literária, o que o sustenta como um marco fundamental da cultura brasileira. Por todas suas implicações, significações, interpretações e nuances, um livro enfim que veio afirmar novos valores e novos temas de literatura e ciência, obra com a rara qualidade de possibilitar aproximação plural e múltiplas leituras __ entre elas uma reinterpretação do Brasil, renovado com a descoberta dos sertões.
A modernidade de Os sertões __ mais: sua ‘eternidade’ __ está em ser entendido como verdadeiro fenômeno cultural, inserido no cenário de constituição e transformação do pensamento social sobre o Brasil.
Euclides da Cunha mostra-se sempre um intelectual preocupado em "pensar" o Brasil dentro de um momento histórico e complexo processo de formação de uma sociedade que fosse capaz de integrar os diversos grupos humanos (litoral e sertão) na definição da identidade nacional. Com toda justiça passou a ser reverenciado como o primeiro autor a escrever um ‘clássico’ no Brasil, uma obra de peso, científica, densa, consistente, vigorosa, que até então só podia ser encontrada em autores e livros estrangeiros. E ter um ‘clássico nacional’ adquiria valor especial : igualava-nos às nações civilizadas do mundo moderno da época.
A criação de Os sertões faz parte do rol dos ‘grandes momentos’ da história do Brasil, e não é por acaso que tenha atravessado um século como obra mater, ‘bíblia da nacionalidade’ e seja fadado à posteridade.

No lastro da posteridade, porque Os sertões, simbiose entre jornalismo,literatura,história, ensaismo, ciência, geografia, sociologia, antropologia, geologia, é obra de múltiplos atributos primordiais: factualidade, perenidade, atualidade.
Factualidade, por ser antes de tudo de uma obra jornalística (mas tão grandiosa que abriga outras características), livro de um jornalista, “o maior feito jornalístico das letras brasileiras ou o maior feito literário do jornalismo brasileiro”, ao retratar um dos episódios mais marcantes da história republicana, registrar o conflito “elite x povo”, “sertão x litoral”, “monarquia x república”, e sobretudo expor condições e situações sociais e culturais de contingentes populacionais, obra que é “uma epifania de brasilidade, uma fala do Brasil”.
Perenidade, em sendo um cânone literário, por constituir-se uma das obras fundadoras da nacionalidade, “a mais representativa da cultura brasileira de todas as épocas”, capaz de expressar importantes dilemas nacionais que extrapolam a própria narrativa da tragédia de Canudos; obra incluída entre os textos fundadores, fontes da historiografia literária : Euclides, ao lado de Manuel Bonfim e Gilberto Freyre, como um dos pioneiros grandes intérpretes do Brasil ; um dos textos básicos de “história e construção do pensamento brasileiro” , um acervo formado por obras de Gonçalves de Magalhães, Francisco Varnhagen, Marquês de Maricá, Joaquim Norberto de Souza e Silva , José do Patrocínio. Perenidade, ainda, por ser inovadora de uma literatura-denúncia.
Atualidade por “chamar a atenção para os excluídos”, denunciar uma questão social, expor mazelas e injustiças, a miséria, a fome, registrar “tendências conflituosas da sociedade brasileira”, enfocar “um Brasil injusto e dividido”, anotar a religiosidade, a crendice, o misticismo e o messianismo __ algo sempre latente no cenário político brasileiro (a eterna expectativa pelo ‘pai da Pátria’, pelo ‘salvador da Pátria’).
Sobretudo, a atualidade da obra deve-se à inquietação que seu caráter de denúncia provoca, um livro que oferece a oportunidade de ,a partir de Canudos, ter uma visão clara de questões de origens sociais.
Os sertões diz muito de um drama da história brasileira, e também de dramas dos tempos atuais.