quinta-feira, 27 de novembro de 2014

2014, um ano de ‘entradas na posteridade’—i


Gonçalves Dias : mais do que romantismo poético, etnia e alteridade, erotismo e sátira.

Dele, sabe-se ser considerado ícone do romantismo poético brasileiro, quem aliás o inaugurou temática e efetivamente :  o poeta, ensaísta e intelectual Antonio Carlos Secchin sentencia que “Canção do exílio” é o “documento de identidade da história literária do Brasil”(segundo ele, a carta de Caminha seria a “certidão de nascimento da história institucional brasileira”).

Gonçalves Dias teve vida curta: morreu aos 41 anos, a 03.11.1864, vítima de naufrágio, já em águas brasileiras,próximo à costa, quando voltava da Europa—mas o suficiente para merecer, com todas as honrarias, um posto no Olimpo literário do país, ainda que com poucas obras, produzidas entre seus 23 e 29 anos : Primeiros cantos, Leonor de Mendonça (teatro), Segundos cantos, Meditação, Últimos cantos, Os Timbiras (inacabado) , Dicionário da Língua Tupi..
O que pouco se conhece, e talvez muitos não sabem, é o quanto em Gonçalves Dias existe o “alterofilista”[sem o h...] , na expressão de Secchin, no sentido de sua dedicação, extremamente relevantes para a historiografia literária brasileira,em estudos, reflexões e produção poética e em prosa,inclusive em discursos e depoimentos,  às questões de alteridade e  de etnia, ele mesmo mestiço, filho de um português com uma índia – apondo-as e expressando-as, sempre fazendo do índio o elemento da  identidade fundadora do Brasil,  nos poemas “Marabá”, em “I-Juca Pirama”-  em que inaugura, por assim dizer, o ethnoslogos da literatura e da cultura brasileiras -e em diversos outros, não fosse Dias o indianista por excelência, e  precursor, na literatura brasileira.

Assim como, e do mesmo modo provavelmente menos conhecida, duas outras facetas, também importantes historiograficamente e literariamente : o erotismo e a sátira – o primeiro presente, p. ex.,  em “Leito de folhas verdes”,em “Marabá”, em “O canto do índio”; o Gonçalves Dias satírico  em “Sextilhas de Frei Antão” e em  “Que coisa é um ministro?” – apondo-se  aqui, uma observação pertinente : na linha/via reversa, o indianismo gonçalviano,  teria sido satirizado, ou parodiado, por Bernardo Guimarães no “Elixir do Pajé”(de resto, peça ‘clássica’ fescenina do romantismo brasileiro); e por Múcio Teixeira em “Canto da bugra”, paródia a “O canto do tamoio”.

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                                                             Leito de Folhas Verdes
                                                                                                 Gonçalves Dias

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
À voz do meu amor moves teus passos?
À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,

Já nos cimos do bosque rumoreja.
Eu, sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,

Onde o frouxo luar brinca entre flores.
Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,

No silêncio da noite o bosque exala.
Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se

Um quebranto de amor, melhor que a vida!
A flor que desabrocha ao romper d`alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda

Doce raio do sol que me dê vida.
Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;

Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!
Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas

A arazóia na cinta me apertaram
Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,

Melhor perfume ao pé da noite exala!
Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

aos que vão ao ENEM

ainda mais neste 1750. ano de nascimento de Machado
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A crônica em Machado de Assis

Inovador na ficção, como contista e romancista – está na história da literatura brasileira a magistral inflexão estilística, temática e de linguagem por ele executada no final da década de 1870 -- Machado de Assis foi soberbo cronista que fez da crônica muito mais do que um registro pontual do cotidiano, transformando-a em um verdadeiro gênero literário, a servir de modelo, molde e paradigma  a tudo e todos que o sucederam, inclusive os de hoje. .
Ao longo de 41 anos, Machado criou crônicas, nos mais diversos veículos, séries, formatos e assinaturas (ou disfarces), desde 1859, em O Parahyba (de Petrópolis), seguindo-se colaborações para o Correio Mercantil (1859-1864), para O Espelho (1859-60); para o Diário do Rio de Janeiro (1860-63: série “Comentários da Semana”; 1864-67: série “Ao Acaso”), O Futuro (1862-63), Imprensa Acadêmica, de São Paulo (1864 ; 1868 :série “Correspondência da Imprensa Acadêmica”) A Semana Ilustrada (1865-75: séries “Crônicas do Dr. Semana”, “Correio da Semana”, “Novidades da Semana” , “Pontos e Vírgulas”, “Badaladas), Ilustração Brasileira (1876-78: séries “Histórias de 15 dias”, “Histórias de 30 dias”), O Cruzeiro (1878: série “Notas Semanais), Revista Brasileira (1879), Gazeta de Notícias (1881-1900: séries “Balas de Estalo”, “A + B”, “Gazeta de Holanda”— constituídas em versos,os ‘versiprosa’ (termo cunhado por ele e que antecipa em muitos anos a mesma expressão usada por Carlos Drummond de Andrade --“Bons Dias!”  e “A Semana).
Nessas  quatro décadas -- com uma produção de 738 artigos --  o País  teve oportunidade de  conhecer um magnífico repositório da arte machadiana de criação de muitas  das melhores crônicas da literatura brasileira – um número nada desprezível delas consideradas verdadeiras obras-primas..
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Machado fez da crônica  mais do que simples jornalismo, superior ao comum do gênero – haja vista o que Artur Azevedo sentenciou em artigo em O Álbum ,janeiro 1893 : "(...) Atualmente escreve Machado de Assis, todos os domingos, na Gazeta de Notícias, uns artigos intitulados A Semana que noutro país mais literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística", a atestar o quanto dotou a crônica dos elementos de verdadeira literatura.
A crônica de Machado de Assis, com suas primordiais características de leveza de tom e teor, fluência textual e estilística muito próxima da oralidade, ironia satírica e pilhéria, metáfora e paródia, ostenta também a presença incisiva (como ocorre em sua obra ficcional) dos conhecidos e admiráveis elementos machadianos do disfarce, da dissimulação, do subterfúgio, da sutileza, dos significados ocultos postos como desafios ao leitor, por meio de outras de suas peculiaridades, o uso do anonimato e do pseudônimo, de que ele foi um dos mais profícuos usuários, e em especial a “arte das transições”--  levada a extremos no unir tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado  surpreendente,cujo trajeto é ‘amenizado’ para o leitor , primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral de circularidade muitas vezes nem percebida de todo. Mestre do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma, Machado esconde ou disfarça uma parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir, utilizando armadilhas retóricas típicas de sua narrativa na ficção, executadas também na crônica, sobretudo pelo absoluto  domínio da relação cronista-leitor, e a preponderância do conhecido narrador machadiano, o ‘narrador volúvel’ da ficção aparecendo  também na crônica :a rigor,   nos  comentários e ilações desse narrador é que a crônica  passa a se fazer e  sentir.

Na verdade, sempre existiu em Machado um notável e meticuloso experimentador --  mutável na utilização de formas,estilos e modelos --  mas absolutamente seguro,determinado e consciente.. Ao longo do tempo, Machado sempre preocupou-se  com configurações para sua obra : (assim como o conto) a crônica foi um notável e eficaz terreno de experimentações narrativas, nelas se revelando uma seqüência notável de exercícios formais,estilísticos, de linguagem e de enfoque .As crônicas machadianas possuem , em si, estrutura,forma e encadeamentos consistentes e complexos, além de plena interação com os contextos histórico, político,econômico, social,cultural,urbano sob os quais  foram elaboradas : revelam cadeias de pensamento e reflexão em muitos aspectos, passagens e nuances intertextualizados, ou que viriam a se intertextualizar com elementos,ambiências e situações de romances e contos.
Nesse particular, é possível a construção de uma equação especulativa/ interpretativa sobre a correspondência do estilo e enfoque machadianos postos na crônica com estilos, formas e temas postos por ele na ficção e no conjunto de sua obra -- em especial o momento da inflexão, por volta do final da década de 1870, cujas causas e motivos tanto intrigam os analistas e estudiosos  de Machado. Em essência e matéria, a mesmíssima ‘reformulação’ de enfoque, forma e estilo imprimida por Machado de Assis em sua criação ficcional –-- transpondo o romantismo dos primeiros três romances (Ressurreição, A mão e a luva, Helena) e a ‘ideologia’ presente nos contos iniciais (abrigados nas coletâneas Contos fluminenses e Histórias da meia-noite), incorrente no processo de transição no final da década de 1870 (representado por Iaiá Garcia e anunciador da inovação/ ‘revolução’ sintetizada no ‘shandiano’ Memórias póstumas de Brás Cubas) para um  aprofundamento e sedimentação do realismo, mas ‘subvertendo’ e renovando esse realismo (em Papéis avulsos , consolidado em Quincas Borba, em Dom Casmurro, depois em Esaú e Jacó e no definitivo Memorial de Aires ) . Esse  processo de reformulação, dizíamos , deu-se da mesma forma, sob o mesmo diapasão, com a mesma ‘latitude’ literária , na mesma época, também na  produção das crônicas publicadas na imprensa.


Ao se examinar a produção croniquesca de Machado encontraremos  crônicas que .impressionam não apenas pela matéria registrada e narrada mas sim pela forma de contá-la – quer interferindo direta e intimamente na narração, fazendo do narrador  o  comentarista, quer pelo distanciamento, numa forma de narrativa isenta mas intrinsecamente crítica. Em determinadas crônicas há por certo um Machado trivial e contido, em outros um autor meramente humorístico, com textos e narrativas que não passam do simples divertimento; alguns, aparentemente simplórios e despojados, mas carregados de significados; outros em que, sob a capa de uma escrita sóbria, discreta e ‘bem-comportada’ reveste contradições e ambigüidades comportamentais, , mazelas e injustiças sociais,hipocrisias morais e políticas. 

Importante observar ainda quanto os períodos, os contextos históricos, os veículos e seus respectivos  espaços dados à crônica, as assinaturas, influíram tanto no enfoque temático, como  no timbre. Nenhuma série é essencial e totalmente idêntica a outra, ainda que guardem afinidades e similaridades, mantidas  as homogeneidade e unidade  inerentes a  cada uma .Da mesma forma se  constata que cada época, ou série, trata ou prioriza um tema que sobressai por sua relevância,sua particularidade, sobretudo por sua correspondência-consonância com o momento histórico de sua feitura : às distintas e seqüentes séries podem-se traçar a rigor, enredos e sub-enredos que se desdobram e interligam-se em ciclos -- cada script com seu pano de fundo temporal , sob o fio condutor   da própria história brasileira da segunda metade do século XIX.
Relevante e absolutamente indispensável realçar, nesse sentido, o quanto Machado, ao contrário do que equivocadamente interpretado e difundido, tratou de política em seus escritos – também nos contos e romances, sobretudo nas crônicas -- a desmistificar a pecha de “alheio a questões de seu tempo”, “alienado”, etc. Foi ele um lúcido ‘relator’ da história brasileira e um crítico atento e severo da sociedade e das instituições do País : dedicou-se intensamente, para quem não sabe, a registrar, comentar, refletir e especialmente criticar assuntos da esfera política.,  exposto em nada menos do que 385 crônicas ,vale dizer cerca de 52% de sua produção total de 738 artigos  – o mesmo se dando com relação à economia, referenciada e reportada em 77 crônicas..

Ficção e realidade, ficção e história, ficção e sociedade brasileira constituem fulcros sempre presentes na obra machadiana. Em boa parte  de sua ficção e da não-ficção Machado oferece ao leitor uma interpretação satírica, por vezes alegórica,  desnundando mitos e certezas, aparências e disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu olhar ,por vezes direto e transparente,por vezes machadianamente oblíquo e dissimulado, feito  testemunho incomparável  sobre a vida  brasileira  do século XIX.  


mr

sábado, 1 de novembro de 2014

aos que vão ao ENEM

ainda mais neste 175º. ano de nascimento (1839) de Machado de Assis

o conto em machado de assis

Pode-se perfeitamente afirmar ter sido Machado de Assis mais do que  o  decisivo ‘impulsionador’, do conto na literatura brasileira : foi com efeito o  criador do conto brasileiro ,porquanto a par da qualidade superior de suas narrativas curtas, nenhum dos grandes autores que o antecederam pouco ,ou quase nada produziram no gênero -- basta examinar as obras de Gonçalves de Magalhães, Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar, por exemplo – e extremamente parcas,esparsas e efêmeras foram as manifestações  anteriores. A altíssima qualidade literária de Machado como contista tornou-o,desde sempre, comparável aos considerados grandes mestres do gênero de sua época, como Edgard Allan Poe(1809-1849), Guy de Maupassant(1850-1893),Anton Tchecov(1860-1904) – comparável e com eles inter-textualizado .
Não obstante tal  status de um dos maiores contistas,quantitativa e qualitativamente, da literatura brasileira, quiçá o maior, criador de 226 contos , Machado de Assis não recebeu ao longo dos anos, mesmo nas edições póstumas, as obrigatórias integridade, completude e responsabilidade no tratamento editorial de seus contos, cuja história imperfeita de edições constitui-se um complexo enredo de erros, omissões, equívocos, negligência..
Um dos aspectos mais destacados no Machado contista – a rigor, de toda sua ficção em prosa -- talvez sua qualidade essencial, é o emprego do esforço criador na busca gradual e compassada,bem urdida, de uma coerência ,uma abrangência e uma profundidade obtidas parte pelo talento nato parte (a maior) pelo exercício consciente e meticuloso da prática literária , vis a vis com a percepção clara do entorno histórico,social e cultural e dos meios de que dispõe para expressão de sua obra.Essa combinação de vieses,convém enfatizar, determinou substancialmente todo seu desenvolvimento como escritor e essencialmente o processo da evolução literária de Machado  --  como “um todo consistente, coerente, continuado”, com a marcante inflexão no início da década de 1880.

Inflexão que, a par de contribuir positivamente para a análise e interpretação adequadas da trajetória machadiana, em  contrapartida serve para sedimentar um conceito, ou avaliação, sob alguns aspectos, discutível :  a divisão da obra -- ficcional e não-ficcional -- de Machado em duas fases ,o ‘aprendizado’ versus a ‘maturidade’, a ‘formação’  versus  a ‘radicalização’.
O fato de ser algo discutível considerar  a obra machadiana catalogada em duas ‘fases’ não implica necessariamente em renegar a existência,   como em todo processo  , de  escalas e estágios, com nítidos pontos de inflexão,ou de mais intensa transição :  no caso de Machado, os anos 1868-71 , de resto condizente este com o próprio momento histórico-político do País , e principalmente o biênio 1878-79, quando se deu, em O Cruzeiro (março-setembro 1878), além de outros contribuições machadianas,  a  publicação do romance Iaiá Garcia e sete contos -- de titulação, temática,teor e conteúdo, que se podem considerar ‘insólitos’, ‘inusitados’,‘estranhos’[1], diferenciados na contística machadiana -- como elementos decisivos de “ponto de viragem” ficcional antecipador da experimentação levada a efeito em  Memórias póstumas de Brás Cubas, e ainda os contos “A chave”, “Curiosidade” e  “Um para o outro” (que recuperei – 2007-- depois de 128 anos desaparecido e tido como perdido ),  todos originariamente veiculados  em A Estação no ano de 1879.
   
Notável e meticuloso experimentador, mutável na utilização de formas, estilos e modelos, preocupado com configurações (temáticas,tramáticas,estilísticas ,de linguagem) para sua obra, Machado passou a fazer de  cada conto um exercício de forma,gênero e estilo – ora em diálogo, ora paródia, ora sátira, ora epistolar, ora em forma de conferência ,ora denso, ora leve, narrativa longa,narrativa curta, com narrador em primeira pessoa, narrador em terceira pessoa, sem narrador; conto filosófico, conto político, conto fantástico, história romântica, conto humorístico – e nisso vislumbram-se diversas chaves temáticas pelas quais podem ser agrupados --  de análise psicológica , de denúncia social ,  pendulando entre o formal e o coloquial, o erudito e o popular, o nacional e o universal .
                
O amor é o grande tema, central e capital, na contística de Machado. O  amor visto, tido e exposto de Machado, presentes sem exceção em todos os  contos, vez por outra inserindo como a única comunicação possível entre pessoas,quaisquer que sejam suas natureza, caracteres, etnia,classe social, e o casamento – e seu derivativo mordaz, o ciúme – tema difícil de ser tratado à época ,mas sempre em defesa da base moral do amor : até mesmo quanto se reporta a  questões político-sociais como a escravidão ,sobre a  qual, ou a ela se referindo, produziu um significativo  naipe de contos -- todos publicados,importante notar,  no ‘feminino’ Jornal das Famílias.

Machado sempre escreveu sobre mulheres e para as mulheres e não era segredo – pelo menos até 1881,quando consolidou a longa e profícua atuação nas páginas da Gazeta de Notícias -- preferir colaborar em publicações cujo público predominante era feminino, primeiro no Jornal das Famílias  , de 1864 a 1876,  e a partir de 1879 em A Estação. Tinha a mulher não apenas como protagonista de seus romances e contos  mas também sua leitora predileta e leitmotiv. A rigor, a mulher é  a própria essência da ficção machadiana – e nenhum escritor de seu tempo  ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e basilar  de seus textos como Machado de Assis.(sem se constituir propriamente em explícito ‘defensor dos direitos da mulher’ – muito menos um ‘dialético feminista’ -- Machado era convicto de que as mulheres deviam ser instruídas e não permanecerem atadas à vida doméstica,ao mesmo tempo sempre preocupado e atento para as necessidades emocionais,afetivas e mesmo sexuais das mulheres.).

Condizentes com as alterações e ebulições vivenciadas na sociedade brasileira nas três décadas finais do século XIX, mutações e transformações da mesma forma se dão no universo contístico: antes de 1880, os contos se centravam no namoro,paixão e casamento  o casamento,feliz ou infeliz, consumado ou não, bem-sucedido ou não, por sentimento ou interesse , ao passo que no pós-1880 aparecem com mais nitidez formas e situações de fragmentação e diluição do casamento e ,embora nunca consumadas de fato, intenções e sentimentos de infidelidade afetiva – nos contos  machadianos, há mulheres que flertam com a idéia da infidelidade, mas  acabam não a consumando: importante  observar  que intencionada ou não, fomentada ou não, incentivada ou não, quase sempre platônica, a infidelidade  feminina é sempre contraposta, e redimida,  na redenção pelo amor -- o grande e central  tema da ficção machadiana ; todos os sentimentos impuros e espúrios,proibidos e reprováveis, se idealizados , ou cogitados,em nome dele , são no final  por ele  regenerados.
                                                                                                                                       M.R




[1] O Cruzeiro circulou no Rio de Janeiro de 01.01.1878 a 20.05.1883, e nele Machado colaborou de 23.03 a 01.09.1878, com sete contos, 14 crônicas ( na série “Notas Semanais”), uma ‘ópera-cômica em 7 colunas”(a definição é do próprio Machado), um artigo referente a assunto da seara teatral, a (célebre) crítica literária a O primo Basílio, de Eça de Queiroz, além do romance “Iaiá Garcia”, em folhetins.
   Neste particular,desenvolvi projeto de obra [ainda sem editor] que abriga os contos, e mais a “ópera-cômica em 7 colunas” e o artigo - do mesmo teor de ‘inusitado’-- que  reporta ao teatro : tudo sob o título de “As estranhas fantasias de Eleazar” (Eleazar, o pseudônimo utilizado por Machado em todos os textos de colaboração em O Cruzeiro)