sábado, 24 de maio de 2008

Telenovela e Literatura


atual cartaz no horário das 18 horas, na Rede Globo de Televisão, “Ciranda de pedra” é adaptação(pela segunda vez:a primeira foi em 1981 ) do romance de estréia de Lygia Fagundes Telles -- a meu juízo, uma das cinco maiores ficcionistas da literatura brasileira contemporânea(as outras : Rachel de Queiroz;Clarice Lispector:Maria Alice Barroso: Lya Luft –só a excepcional romancista e contista, não a de Perdas e ganhos,que é literariamente sofrível).


A condição humana em Ciranda de pedra
o primeiro romance de Lygia Fagundes Telles, escrito em 1954, trata de temas recorrentes em toda sua obra ficcional ,como o amor, a morte, a fragilidade da alma humana, a solidão, a loucura, o sonho -- além de outros dos capitais assuntos que habitam os romances e contos da escritora :a família, a conjuntura social (que , se influi nos atos das personagens, quase nunca coincide com o que se passa em seu interior ), a religião e o sexo (e nestes , a rarefeita opção para aqueles que querem harmonizá-los : alguns se entregam aos vícios do mundo, embora saibam-nos vazios e pouco compensadores, outros se entregam a uma fé estóica).
Lygia baseou-se num fato real para escrever Ciranda de pedra : numa de suas caminhadas a pé, passou em frente a um casarão que estava sendo demolido; entrou, passeou pelos cômodos vazios e encantou-se com uma fonte cercada por uma ciranda de anões de pedra com uma , que descreve no livro e o intitula, e imaginou os dramas que se desenrolaram naqueles jardins, as tristezas e alegrias que envolveram os antigos habitantes daquela casa.
O romance conta justamente a história de uma família que se desagregou com a separação dos pais: uma das filhas, Virginia – protagonista principal ,em torno da qual estrutura-se e desenrola-se a trama -- passa a morar com a mãe (Laura) e o segundo marido dela (Daniel) numa casa pequena e desconfortável, enquanto as outras duas meninas (Bruna e Otávia) permanecem com o pai(Natércio) num casarão cercado de riqueza e conforto.
Como em toda sua ficção, Ciranda de pedra é uma incursão corajosa e sensível a uma complexa situação familiar, ao acompanhar a trajetória de Virgínia com perfeito delineamento psicológico das personagens e linguagem precisa,em estilo por vezes coloquial – mas na linguagem só aparentemente coloquial de Lygia Fagundes Telles e no seu olhar sobre as coisas perpassa sempre uma ironia de matizes afetivos e uma ambiguidade bem patente, por exemplo, no dissolver da oposição entre o bem e o mal ; ambiguidade e ironia que,de resto, são dois traços marcantes da escrita da autora, desde o romance inaugural , passando por As meninas, obra de uma juventude empenhada nas lutas da década de 1960, até ao deslumbramento de A noite escura mais eu, uma extraordinária reflexão sobre a morte.
A obra de Lygia, contudo, não abriga qualquer tipo de determinismo social , mas sim a influência que o meio desempenha em cada pessoa, bem como a luta personalíssima travada para afirmação individual. Parte de seu encanto literário vem exatamente da fina argúcia para este desabrochar da personalidade, tema tão bem tratado em cada um de seus romances.Suas personagens parecem manter uma conduta condizente com seu papel na sociedade. Vestem a máscara social que lhes cabem e atuam coerentemente com essa identidade pela qual são conhecidas – mas apesar deste aparente comportamento de certo modo estereotipado, mantêm vida interior das mais intensas .
As personagens femininas de Lygia retêm o foco dessa análise psicológica profunda .Apresentada no início de sua carreira como adepta da ficção introspectiva, sofreu comparação inevitável com Clarice Lispector, de quem seria uma espécie de herdeira menor : embora desde o início Lygia revelasse gosto pela análise psicológica e pela criação de personagens femininas, normalmente vistas a partir de narrativas em primeira pessoa, sempre demonstrou uma originalidade resultante da síntese -- que realiza como poucas escritoras -- entre uma arguta visão da interioridade feminina e a convincente construção de um mundo objetivo.
O que se dá plenamente em Ciranda de pedra, conciliando a refinada análise psicológica, a desintegração das formas realistas convencionais, a criação de um novo realismo, então inovador , e a elaboração de um painel de época. No romance, Lygia cria individualidades ricas e complexas e, simultaneamente, lhes dá representatividade histórico-social, sob um universo ficcional vigoroso e coerente graças a um ousado—já para a época -- processo de técnica romanesca, deslocando constantemente o foco narrativo para cada um das três jovens (Virginia,Bruna e Otávia) , valendo-se a de monólogos interiores e apresentando, cada qual, os seus dramas íntimos e a sua visão de mundo : Lygia constrói um jogo de espelhos que retoma e repete (de outro ângulo) a realidade vivida pelas personagens, em contínuos fluxos de consciência que estruturam a fisionomia moral e psicológica das três moças.
Segundo Antonio Candido, Ciranda de Pedra seria o marco da maturidade intelectual de Lygia , observando ainda o quanto o mundo de ficção lygiano expõe a complexidade da vida humana ao mesmo tempo em que constrói uma obra comprometida com a condição humana nas suas desigualdades sociais.

sábado, 17 de maio de 2008

mais um brinde especial !

YouTube - Beethoven - Symphonie Nr. 6 (Pastoral) I

um brinde especial


Beethoven, por Karajan

como poucos, o polêmico (engajou-se ao nazismo, primou pela ostentação e pela vaidade desmedida ) regente austríaco Herbert von Karajan elevou a Orquestra Filarmônica de Berlim a um padrão técnico sem precedentes na história da música orquestral : atingiu a marca dos 200 milhões de discos e tornou-se o artista mais vendido de todos os tempos no gênero da música de concerto -- o que veio a fortalecer, por meio de sua própria personalidade, a mitologia da figura implacável do regente de orquestra.

veja,ouça e deleite-se com os primeiros movimentos da Sinfonia No. 9 em Ré Menor, Op. 125, de Beethoven, conduzida (magistralmente)por Karajan.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

feliz aniversário !

A imprensa , a tipografia , a literatura aniversariam
Há exatos 200 anos, com a chegada e estadia da Família Real Portuguesa, nascia a imprensa brasileira e a impressão de publicações e era dado um passo decisivo e vital para a própria formação e sedimentação da literatura brasileira
.

Em 13 de maio de 1808, dia do aniversário de d. João, foi criada a Impressão Régia, que além de publicar a documentação oficial, previa a impressão de todas e quaisquer obras, sobretudo daquelas que ajudassem a divulgar a imagem da própria monarquia (ao longo do tempo o nome de batismo foi se alterando, acompanhando de perto os acontecimentos políticos : em 1815, ano da elevação da colônia a Reino Unido de Portugal e de Algarves, passou a Régia Oficina Tipográfica; em 1818, d. João era aclamado rei, e a oficina mudou o nome para Tipografia Real). Peça-chave na nova arquitetura que se montava, a Impressão faria as vezes da "propaganda de Estado": sem ela, mal se tomaria conhecimento, no imenso território brasileiro , da quantidade de mudanças que ocorriam naquele exato momento e das outras tantas que estavam por vir.
O gigantismo da tarefa que se apresentava logo de início -- a veiculação de todas as medidas do novo Estado – implicou, como aliás a prática institucionalizada desde a criação e atuação da Inquisição, na Península Ibérica(Espanha e Portugal) e em suas colônias, no exercício da censura : subordinada à Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, coube a eese órgão a responsabilidade do exame de tudo o que se mandasse publicar e o impedimento da impressão de papéis e livros cujo conteúdo contrariasse o governo, a religião e os bons costumes, a fim de impedir a divulgação de idéias que ameaçassem a já frágil estabilidade da Coroa portuguesa. Para exercer a função foram escolhidos censores régios dentre os homens de confiança de d. João, os quais – num Estado absolutista em que o cargo público carrega status e prestígio, além de chamar para si estima e recompensa por parte do soberano -- não pouparam esforços nem mesmo no cerceamento da opinião pública. As obras que o governo mandava publicar chegavam à oficina trazendo, ao pé da página de rosto, a indicação “Por Ordem de S. A. R.”, e quando encaminhadas pelos próprios autores eram antes submetidas aos censores,daí emitindo-se a mensagem “ Com Licença de S. A. R.”, ou apenas “Com Licença”.
A Impressão Régia já nasceu com o trabalho atrasado. Uma pilha de documentos expedidos pela Secretaria foi reunida e impressa com o título “Relação dos Despachos Publicados na Corte pelo Expediente A Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra no Faustíssimo Dia dos Annos de S. A. R. O Príncipe Regente N. S. - E de todos os que se têm expedido pela mesma Secretaria desde a feliz chegada de S. A. R. aos Estados do Brasil” – e aí está a primeira publicação oficialmente produzida no Brasil.
Para ter uma idéia do volume de trabalho acumulado e do acrescentado no percurso, basta dizer que, até 1822, foram publicados 1427 documentos oficiais e mais 720 títulos entre pequenas brochuras, folhetos, opúsculos, sermões, prospectos, obras científicas, literárias, traduções de textos franceses e ingleses versando sobre agricultura, comércio, ciências naturais, matemática, história, economia política, filosofia, teatro , romance, oratória sacra, poesia --enfim, ali se imprimia de tudo um pouco, desde que tivesse passado pelo crivo da censura.
E dos prelos da Tipografia Real saiu o primeiro periódico brasileiro: a Gazeta do Rio de Janeiro, cujo primeiro número circulou num sábado, 10 de setembro de 1808, com a epígrafe (era prática comum e generalizada,no mundo, adotar-se um lema que transmitisse a filosofia do jornal ) “ Doctrina [ ... ] vim promovert isitam, Rectiques cultus pectora roborant"[A doutrina promove a força inata e os cultos corretos fortalecem os peitos] - extraído de frase do poeta romano Horácio -- que parece sinalizar não só os vínculos existentes entre o periódico e o Estado, como o fato de o redator ser um frei franciscano. Também suas dimensões seguiam os padrões dos jornais estrangeiros --19 x 13,5 -- com formato in-quarto, em quatro páginas; originalmente seria semanal, mas a partir do segundo número passou a ser publicado duas vezes por semana.A Gazeta do Rio de Janeiro era o veículo certo para publicar feitos da monarquia que contribuíssem para expandir a imagem que lhe convinha e seu conteúdo não passava da reprodução de atos oficiais e de elogios e reverências à Família Real.Foi o viajante Armitage quem melhor definiu o jornal: em suas páginas, o Brasil parecia um paraíso terrestre, onde ninguém reclamava de nada.
Mas nem todos se iludiam. "Gastar tão boa qualidade de papel em imprimir tão ruim matéria, que melhor se empregaria se fosse usado para embrulhar manteiga" era a queixa de Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, que era do ramo. Brasileiro, morou em Portugal, onde foi diretor da Junta da Imprensa Régia em Lisboa, passando a inimigo do governo português, acusado de ser maçom, perseguido pela Inquisição e detido de 1802 a 1804, quando fugiu da prisão e foi para a Inglaterra. Três meses antes da oficial Gazeta do Rio de Janeiro, Hipólito da Costa lançou o seu Correio Braziliense, em Londres : o periódico era mensal e durou até 1822. Sem papas na língua, muito bem informado, livre de censura e com inspiração iluminista, Hipólito da Costa redigia notícias, resumos analíticos, comentários e críticas sobre os acontecimentos políticos da época, sempre destacando os erros e os acertos do governo português : convém esclarecer que Hipólito era um monarquista que pregava reformas e a união monárquico- constitucional do Império luso-brasileiro, e só aderiu mesmo à causa da independência em julho de 1822, quando o movimento já ia adiantado.O jornal foi proibido de entrar no Brasil, mas circulava clandestinamente pelas capitanias
Por outro lado, desde a pacificação de 1814 - e até um pouco antes dela - a influência francesa na área cultural se fazia notar mais e mais : nos jornais da época, imigrantes franceses ofereciam seus préstimos e prometiam, pelo valor de 480 réis, milagres para quem quisesse aprender a língua de Rousseau ; costureiras imigradas e modistas alardeavam serviços para donzelas desejosas de se vestir nos trópicos como nos amenos climas temperados; centenas de produtos de vestuário e cosméticos destinados a mulheres e homens vinham da França.
E disso não ‘escapou’ a própria impressão de publicações : na Tipografia Real documentos oficiais conviviam com inúmeros tratados em francês e além disso, chegavam ao prelo as primeiras novelas : Diabo coxo, de Alain-René Lesage, de 1809; e Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre, de 1811. Mas foi a partir de 1815, e com a derrota de Napoleão, que essa voga literária francesa pegou para valer, fazendo a loucura dos leitores mais românticos com títulos variados: O amor ofendido e vingado, A boa mãe, O bom marido, As duas desafortunadas, Triste efeito de uma infidelidade. Sofria-se com motes e personagens franceses, assim como se lia a boa literatura iluminista como “Henriada”, poema épico de Voltaire, “As cantatas”, de Rousseau, ou “Ifigênia”, de Racine. Também entre os livreiros locais a presença de títulos franceses era uma constante, incluindo-se aí obras de religião, filosofia, ciências e artes, história, novelas, dicionários, livros de geografia e de história. A idéia era, daí para a frente, portar-se como pessoas familiarizadas com as modas européias e os ditames franceses.
O que viria a ter influência decisiva e absolutamente vital na implementação do Romantismo literário no Brasil e na produção ficcional dos maiores escritores brasileiros a partir das décadas de 1840-50 -- como se dará a conhecer proximamente.
Da mesma forma haverá o instante de se comentar como a vinda da Família Real, e suas consequências -- entre elas, a instalação da Imprensa Régia, e depois o translado da Biblioteca Real -- e desdobramentos de cunho institucional,político, econômico e cultural, propiciaram , vis a vis com a autonomia política , a formação e sedimentação da literatura brasileira, por via do Romantismo impregnado do sentimento nacionalista e de reflexões acerca de uma ‘identidade cultural brasileira’.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

“nasci no 13 de maio ,por isso sou assim ,negro e marginalizado(...)”


a bem da justiça e da riqueza cultural de um país que se pretende civilizado, o Brasil não deve deixar de comemorar o nascimento, neste dia , de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos – que não chegou a ser um virtuose, mas produziu pelo menos três dos maiores romances da literatura nacional , um número significativo de pequenas obras-primas do conto e um conjunto excepcional de crônicas que representam um retrato da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil como nenhum outro construiu em seu tempo; além de memoráveis obras de sátira.
Tanto na ficção quanto na obra não-ficcional, virtuose não podia ser, porquanto a par de outros aspectos — um deles, criticado que foi por alguns (incautos) por força de um “estilo desleixado” e um texto “cheio de erros gramaticais”(sic) — era conscientemente praticante de uma escrita diferenciada de seus pares, até porque ele mesmo diferenciado literária,ideológica e socialmente de seus contemporâneos. Seus textos são exemplos de relações e interações entre modos tradicionais de narrar e as especificidades da escrita moderna : com seu estilo simples, direto e objetivo, que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc ,impôs os prenúncios do Modernismo logo a seguir irrompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana -- tanto que foi reverenciado, à época, pelos modernistas e hoje consagrado como um renovador (revolucionário) e autêntico formulador da linguagem literária brasileira que atravessou o século XX e tem sua expressão contemporânea no que se faz hoje na ficção urbana.
A problemática existencial de Lima Barreto, marcada sobretudo pela origem negra e pobre e por dramas familiares, enfim pela marginalidade, formaram, sedimentaram e conduziram sem dúvida o espírito de intelectual combativo,engajado, consciente ,atuante, fazendo-o destoar do cenário literário de seu tempo e forjaram uma temática ficcional e uma forma literária que rompe com os cânones da escrita de então. O tom de denúncia conferido por ele à sua literatura emerge com muita intensidade e frequência em todos seus textos , seja nos romances e contos seja nas crônica --- tematizantes em sua essência da discriminação racial e social, o preconceito de cor, o vazio moral, intelectual e ético dos políticos, a ganância e a ambição, o arrivismo, o bovarismo, a miséria e a opressão social .
Nos artigos e crônicas,nos romances e nos contos, Lima Barreto é um dos mais profícuos e instigantes analistas da realidade brasileira. Sua obra ficcional e não-ficcional desenvolvem-se em torno de cinco eixos temáticos : a política; a mulher; o cotidiano da cidade; o subúrbio; a vida literária – mas com um tema nuclear : o poder e seus efeitos discricionários — o poder visto e descrito por ele como “o variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis, tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa inserção social”.
Na ficção ,poucos, na literatura brasileira – nem mesmo Machado de Assis-- criaram e apresentaram um elenco de personagens tão variado e vasto – homens e mulheres despojados pela sorte, políticos empenhados unicamente com o poder , pseudo- intelectuais abarrotados de retórica e voltados para a futilidade, militares crentes da própria infabilidade e “ignorantes das coisas da guerra”, os donos de jornais venais e corruptos, os magnatas, banqueiros, empresários, fazendeiros do café, os burocratas ,pequenos burgueses, arrivistas,charlatães,almofadinhas, melindrosas,aristocratas, gente do subúrbio, operários, artesãos, vadios, mendigos,bêbados, meliantes, prostitutas,mandriões,subempregados, artistas, coristas, alcoviteiras, funcionários, moças casadoiras, noivas, solteironas, loucos, adúlteros, agitadores, usurários, estrangeiros.Sobretudo procurando dar voz e vida aos “humilhados e ofendidos”, aos excluídos sociais ,em especial ao negro : falava sempre em escrever “a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência em nossa nacionalidade” – que no entanto ficou apenas no projeto ; pensou também num romance descrevendo “a vida e o trabalho dos negros numa fazenda... uma espécie de Germinal negro [ referência à famosa obra de Èmile Zola], com mais psicologia especial e maior sopro de epopéia”, sustentando que seria sua “obra-prima” com a qual introduziria na literatura brasileira uma nova escola, o “negrismo”—que não levou adiante; mas em 1903 escreveu uma peça teatral em um ato, “Os negros”, que permanece praticamente inédita [oportunamente a publicaremos neste espaço, o que se constituirá em empreendimento histórico]. Esses ideais e projetos na verdade iriam em parte consubstanciar-se no romance que começou a escrever em 1904, “Clara dos Anjos” – originado do conto com mesmo título – não concluído e que veio a ser publicado postumamente (1948) como novela inacabada : nela, expõe como tema a humilhação não apenas da mulher mas de toda a população negra do Brasil – exatamente no dia 13 de maio a mulata Clara é seduzida e deflorada por um rapaz branco que recusa casar e a abandona ...
A Lima Barreto cabe o mérito de ter introduzido na literatura brasileira, de forma contundente,incisiva, consistente – como nem os autores do Realismo o fizeram – a temática social de modo crítico. O caráter militante de sua literatura adquire funções revolucionárias –inclusive tendo ele,ideologicamente se manifestado como um “maximalista”,que equivalia à época ser um misto de anarquista e socialista (em algumas crônicas enalteceu a Revolução Russa de 1917 e o novo regime implantado) – sua escrita combativa utiliza-se da ficção como meio de expressar os problemas sociais que enxerga na sociedade brasileira, especialmente na ordem republicana.
A rigor e na essência, Lima Barreto sempre tratou mais de política do que qualquer outro tema: ninguém como ele, em seu tempo, escreveu tanto sobre o tema e,por extensão, sobre questões sociais . Sua ‘literatura militante’, assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra ; sua visão crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da luta social; nos jornais e revistas investiu contra todos os signos do poder, nos textos ficcionais denunciou as profundas injustiças da sociedade brasileira. As colaborações para revistas e jornais ‘alternativos’ da época, oposicionistas -- O Debate, O Careta, A Lanterna,
Rio-Jornal,A .B . C., Hoje
-- constituem o conjunto de maior teor explícito de crítica política e social aos problemas do País e à República, da qual se fez opositor irascível e irreversível, implacável e demolidor : utilizando os recursos da sátira, da ironia, da caricatura, da crítica contundente, desmontou todo o esquema de sustentação do regime republicano recém-implantado. Crítico intransigente dos presidentes republicanos, da intervenção dos militares na política , de formas de governo autoritário e ultracentralizado ,de todo e qualquer tipo de violência na sociedade, das ideologias intolerantes , não se cansou de causticar por toda sua obra as mazelas do governo republicano, o grau de corrupção política e econômica que empestava o regime .
Marginalizado por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira que lhe foi contemporânea .Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma verdadeira missão – ideal expresso categoricamente no artigo “Amplius!”., publicado originalmente no primeiro número da Floreal, em 25.10.1907 , depois em A Época, em 18.02.1916, e incorporado como abertura da coletânea de contos Histórias e sonhos ), em que sentenciava : “(...)A literatura do nosso tempo (...)possa ela realizar, pela virtude da forma,(...) a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o açoite da vida, para maiorglória e perfeição da humanidade. (...).” Conferiu à sua obra o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo,de uma nação, da humanidade” – conceito reflexivo de felicidade também exposto nas páginas do romance Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá quando o protagonista conversa com o personagem Augusto Machado :
“(...) Imaginas tu que Mme. Belasman, de Petr6polis, tem um grande joanete, um defeito hediondo, com o qual sobremaneira sofre ; e o operário Felismino, da Mortona, orgulha-se em possuir um filho com talento. ( ... ) à vista disso, poderás dizer que todas as damas de Petr6polis são felizes e os operários da fundição são desgraçados? Há média possível para a felicidade das classes? N6s, os modernos, nos vamos esquecendo que essas hist6rias de classe, de povos, de raças, são tipos de gabinete, fabricados para as necessidades de certos tipos de edifícios l6gicos, mas que fora deles desaparecem completamente ( ... )”

sábado, 10 de maio de 2008

Mãe, em duas versões literárias


Neste comemorado ‘Dia das mães’, vale lembrar duas criações literárias , de dois excepcionais escritores, que ao reportarem-se ao tema têm , cada uma das criações, características específicas – uma, registra exatamente 150 anos de existência , outra inaugura uma atividade diferenciada e anuncia uma teoria .
A peça “Mãe”, de José de Alencar – que, para quem não sabe, foi também dramaturgo, e dos mais produtivos e polêmicos -- foi escrita em 1858, encenada no início de 1859, no Rio de Janeiro, e publicada por Paula Brito em 1860 : é das mais representativas do teatro abolicionista do século XIX,ainda que tenha o aspecto de melodrama amoroso.
O poema “Minha mãe” foi dado a lume por Machado de Assis em
A Marmota Fluminense, em 2 setembro 1856 , na verdade uma tradução, a primeira de uma profícua atividade ,pouco conhecida e reconhecida, de Machado : é o exercício inicial de uma teoria tradutória machadiana em muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada e adotada pelos conceitos de Teoria Literária do século XX.

“Mãe”, de José de Alencar

A posteridade consagrou José de Alencar como o mais brasileiro dos escritores românticos, o mais empenhado em dotar o país de uma nacionalidade literária – e com o mesmo empenho, e competência, dedicou-se também à criação do teatro nacional. A carreira de dramaturgo de Alencar foi pontuada de sucessos e fracassos, sobretudo por suas rumorosas polêmicas travadas com a polícia, com os críticos, com o Conservatório Dramático e até com um empresário teatral.
Aqueles acostumados com a imagem de Alencar como escritor substancialmente romântico surpreendem-se com peças alencarinas , como p. ex. “O demônio familiar" e “As asas de um anjo", que revelam um autor polêmico e incisivo, tratando de dois temas difíceis em seu tempo : na primeira, cujo sucesso foi extraordinário, a escravidão doméstica lhe dá material para execrar este costume das famílias brasileiras; na segunda, o tema da prostituta regenerada pelo amor é abordado de forma nada convencional, o que, aliás, contribuiu para que a peça fosse proibida pela polícia imediatamente após as três primeiras apresentações,considerada imoral e uma afronta aos bons costumes.. Na visão do pesquisador Flávio Aguiar, José de Alencar foi provavelmente o primeiro intelectual orgânico da dramaturgia brasileira moderna.
A peça “Mãe” desenvolve-se em torno de um filho pobre que penhora a mãe escrava – prática comum à época – para salvar o pai da namorada que ameaça suicidar-se por causa de dívidas (o dinheiro , sempre na temática alencarina)

Mãe
drama em quatro atos
à minha mãe e minha senhora D. Ana de Alencar
Mãe,
Em todos os meus livros há uma página que me foi inspirada por ti. É aquela em que fala esse amor sublime que se reparte sem dividir-se e remoça quando todas as afeições caducam.
Desta vez não foi uma página, mas o livro todo.
Escrevi-o com o pensamento em ti, cheio de tua imagem, bebendo em tua alma perfumes que nos vêm do céu pelos lábios maternos. Se, pois, encontrares ai uma dessas palavras que dizendo nada exprimem tanto, deves sorrir-te; porque foste tu, sem o querer e sem o saber quem me ensinou a compreender essa linguagem.
Acharás neste livro uma história simples; simples quanto pode ser.
É um coração de mãe como o teu. A diferença está em que a Providência o colocou o mais baixo que era possível na escala social, para que o amor estreme e a abnegação sublime o elevassem tão alto, que ante ele se curvassem a virtude e a inteligência; isto é, quanto se apura de melhor na lia humana.
A outra que não a ti causaria reparo que eu fosse procurar a maternidade entre a ignorância e a rudeza do cativeiro, podendo encontrá-la nas salas trajando sedas. Mas sentes que se há diamante inalterável é o coração materno, que mais brilha quanto mais espessa é a treva. Rainha ou escrava, a mãe é sempre mãe.
Tu me deste a vida e a imaginação ardente que faz que eu me veja tantas vezes viver em ti, como vives em mim; embora mil circunstâncias tenham modificado a obra primitiva. Me deste o coração que o mundo não gastou, não; mas cerrou-o tanto e tão forte, que só, como agora, no silêncio da vigília, na solidão da noite, posso abri-lo e vazá-lo nestas páginas que te envio.
Recebe, pois, Mãe, do filho a quem deste tanto, esta pequena parcela da alma que bafejaste.
J. de Alencar
Rio de Janeiro, 1858


Machado de Assis tem em seu ‘curriculo’, 48 textos traduzidos entre 1856 e 1894 : estreando com o poema “On the receipt of my mother’s picture” [“Minha mãe”], publicado como “uma imitação de William Cowper”, e logo depois com o texto “A literatura durante a Restauração”, de Lamartine; seguiram-se 16 peças de teatro , 24 poemas, 3 ensaios, 2 romances, 1 conto , 1 fábula e até 1 canção — sendo 39 textos oriundos do francês,4 do inglês, 3 do alemão, 1 texto cada do italiano e do espanhol. — de autores, entre outros, como Lamartine, Dante Alighieri, Alexandre Dumas Filho, Chateaubriand, Racine, La Fontaine, Alfred de Musset, Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Schiller e Heine e o Canto XX do “Inferno”, da Divina Comédia de Dante.
Em sua ação tradutória Machado não compartilhava com seus contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo , e ia além, criando e praticando um conceito da tradução – na verdade, um processo criador -- que, entre outros aspectos, incorporava em maior ou menor grau sua célebre “teoria do molho” , segundo a qual "pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica." : vale dizer, embora bebesse nas fontes européias utilizadas como ‘comida para seus pensamentos’, ruminava os diversos alimentos e os transformavam em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que praticava pioneiramente como ninguém. Como tradutor e crítico-teórico do traduzir, desde o início de sua carreira literária percebeu como nenhum de seus contemporâneos a importância do papel da tradução como geradora e incentivadora do ‘diálogo’ entre textos, ou ‘diálogo entre literaturas’,como propiciadora da hoje extremamente citada e difundida intertextualidade — na qual, como em muitos outros campos e searas, foi ele também um precursor.

Minha mãe
(imitação de Cowper *)
Quanto eu, pobre de mim! quanto eu quisera
Viver feliz com minha mãe tambéml
C.A.de SÁ
Quem foi que o berço me embalou da infância
Entre as doçuras que do empíreo vêm?
E nos beijos de célica fragrância
Velou meu puro sono? Minha mãe!
Se devo ter no peito uma lembrança
É dela que os meus sonhos de criança
Dourou: - é minha mãe!
Quem foi que no entoar canções mimosas
Cheia de um terno amor - anjo do bem
Minha fronte infantil - encheu de rosas
De mimosos sorrisos? - Minha mãe!
Se dentro do meu peito macilento
O fogo da saudade me arde lento
É dela: minha mãe.
Qual anjo que as mãos me uniu outrora
E as rezas me ensinou que da alma vêm?
E a imagem me mostrou que o mundo adora,
E ensinou a adorá-Ia? - Minha mãe!
Não devemos nós crer num puro riso
Eesse anjo gentil do paraíso
Que chama-se uma mãe?
Por ela rezarei eternamente
Que ela reza por mim no céu também;
Nas santas rezas do meu peito ardente
Repetirei um nome: - minha mãe!
Se devem louros ter meus cantos d'alma
Oh! do porvir eu trocaria a palma
Para ter minha mãe!
__________________
* William Cowper(1731-1800), poeta inglês

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Um fato, uma notícia, Machado de Assis

O fato, a notícia : "Equador debate "direito ao prazer" ...[veja ao lado]
e atualidade machadiana
Pois é exatamente, claro que com outras palavras, o que ninguém menos que Machado de Assis sustentava, melhor, escrevia , há cerca de 150 anos. O que comprova o muito de sua incontestável atualidade. Porque Machado foi um precursor e anunciador de muita coisa dos dias de hoje – em questões políticas (sim senhor), econômicas (para quem não sabe), temas sociais, comportamentais, e em especial no que se refere à mulher.
Em sua prosa ficcional, isto é nos contos e romances, Machado sempre escreveu sobre mulheres e para as mulheres e não era segredo – pelo menos até 1881,quando consolidou a longa e profícua atuação nas páginas da Gazeta de Notícias -- preferir colaborar em publicações cujo público predominante era feminino, primeiro no Jornal das Famílias , de 1864 a 1876, e a partir de 1879 em A Estação.
Sua obra, de modo geral, encena vários tipos femininos, com histórias povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que as mulheres se defrontam na vida: assim é com Lívia de Ressurreição, Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Virgília e Marcela de Brás Cubas, Sofia de Quincas Borba, Capitolina de Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das protagonistas de inúmeros contos, como em “Missa do galo”, “Capítulo dos chapéus”, “Singular ocorrência” ,”Uma senhora”, “Trina e una”, “Primas de Sapucaia!”, “Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”, “Uns braços”, “D. Paula”, que abrigam vários tipos femininos e situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum – podendo mesmo serem catalogado como ‘estudos sobre a mulher”, ao revelarem de forma soberba a mais aguda sensibilidade de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética, preconceito social, autoritarismo, amor e ciúme.
Sem se constituir propriamente em explícito ‘defensor dos direitos da mulher’ – muito menos um ‘dialético feminista’ -- Machado era convicto de que as mulheres deviam ser instruídas e não permanecerem atadas à vida doméstica, ao mesmo tempo sempre preocupado e atento para as necessidades emocionais, afetivas e mesmo sexuais das mulheres . Desde o início de sua gestação ficcional em prosa, Machado traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as mulheres, muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade : criou um estilo de literatura não apenas de observação das pessoas mas sobretudo de interpretação, expondo das pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes, um outro lado , que muitas vezes aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente. Sempre foi um autor interessado em prospectar as paixões humanas, em dissecar-lhes as intimidades, em levantar ques­tões e em torná-las públicas pela voz de seus personagens.
Especialmente a partir do final da década de 1870, sua obra segue a linha da litera­tura psicológica -- protagonistas e personagens com seus conflitos, complexos, dúvidas e hesitações -- e traz, para o centro das discussões, a questão da afetividade feminina : na ficção machadiana surge uma mulher que aspira poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de, quase sempre , não poder dizer de seu desejo.
Nenhum escritor de seu tempo ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis — nem Joaquim Manuel de Macedo (de A Moreninha e em inúmeros contos), José de Alencar( notadamente na trilogia urbana Senhora, Diva e Lucíola, além das novelas A viuvinha, Cinco minutos e A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação), nem Taunay (em Inocência), Bernardo Guimarães (e sua Escrava Isaura), Domingos Olímpio ( com Luzia Homem), nem Lima Barreto (de suas Clara e Castorina em Clara dos Anjos , Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma , Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; etc., das instigantes crônicas em torno do tema “Não as matem!”).
Em Machado, os amores e frustrações femininos eram temas constantes, inclusive o adultério e a pros­tituição - anteriormente inaceitáveis na literatura. Um verdadeiro modernista, nas linhas e entrelinhas de seus contos, romances, e também de suas crônicas, Machado chamou atenção para as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras : argumentava que a mulher devia receber instrução e não ficar com­pletamente confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à li­berdade. Obsessivamente observador, a aguda e profunda visão machadiana das “cousas deste mundo” o fez constatar o quanto a mulher na sociedade imperial brasileira—reclusa e dominada, doméstica e servil-- era ‘anulada’ por sua própria condição feminina: se o mundo da mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.
Em suas histórias , a mulher é o elemento forte, traz o homem dependente de si, ela é o esteio, a base da relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, viúvas que não mais casam, em que se percebe que a figura masculina é, por vezes, desnecessária (Machado chega a reduzir o homem a um nada : em Memorial de Aires, por exemplo, D. Carmo segue a linha da mulher totalmente dedicada à famí­lia, e que firmemente controla não só o espaço doméstico, como, e prin­cipalmente, o marido; daí a famosa frase: "Aguiar sem Carmo é nada" ). Importante notar, como que a reciclagem de um processo desenvolvido por longos 36 anos (desde Ressureição, em 1872), em seu último romance,sua obra conclusiva – Memorial de Aires -- a par de continuar a privilegiá-las, valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as mulheres : não mais a figura impulsionada pela emoção, a ponto de preferirem os tolos ao invés dos homens de espírito (a partir de seu primeiro livro publicado, Queda que a smulheres têm para os tolos ,em 1861, a tríade tolo -- mulher --homem de espírito permeia a ficção machadiana, presente em contos e romances ao longo do tempo e de sua evolução literária), mas a mulher proba, que pode ser amada e admirada.
Nesse privilegiar a mulher como personagem primordial de sua ficção, pretenderia Machado de Assis o matriarcado ? seria ele um ‘feminista’ ,comme il faut ? -- especulam muitos dos estudiosos machadianos. Em todos os aspectos, a cada leitura de sua obra nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo ; e certificamo-nos de quanto o feminino,em Machado, confirma-se como autêntica categoria literária.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Notícia sobre um gigante do Brasil


O Primeiro de Maio comemora o Dia do Trabalho -- mas também o nascimento de um dos maiores nomes da literatura nacional, o grande epígono do Romantismo e ,para quem não sabe, o maior defensor da criação de uma “língua literária brasileira”.
Ao lado de Coelho Neto e Olavo Bilac (e um tanto de Joaquim Manuel de Macedo), ele é um dos mais ‘injustiçados’ autores brasileiros, não devidamente reconhecido seu excepcional valor literário — e até mesmo político-ideológico, no que diz respeito à sua luta em prol de uma “língua semântica e literária brasileira”. Hoje, felizmente, denota-se um processo de merecidissimo resgate : não se tem nenhuma dúvida a respeito da importância fundamental de seus romances para compreensão do nacionalismo na literatura brasileira.
Nenhum , rigorosamente nenhum , escritor brasileiro foi (e é) tão versátil e eclético como ele, autor de romances (urbanos, indianistas, históricos, de costumes ), novelas, teatro, poesia, ensaios, artigos jornalísticos, memorialística. Nenhum escritor elevou o Romantismo literário brasileiro a escalas quantitativas e qualitativas como ele. E quase nenhum de seus contemporâneos (obviamente à exceção de Machado de Assis) soube, como ele , captar e retratar tão bem o tempo histórico-político-social-cultural do século XIX, no País.

Ele é José Martiniano de Alencar , nascido em 1.º de maio de 1829, em Mecejana, Ceará, filho do padre José Martiniano de Alencar (deputado pela província do Ceará) , que assumiu o cargo de senador do Rio de Janeiro em 1830 e obrigou a família a se mudar.Filho de político, o jovem Alencar assistia a tudo de perto -- assistia e, certamente, tomava gosto pela política, tanto que mais tarde tornou-se ministro da Justiça.
Em 1844, resolveu ir para São Paulo, a fim de cursar direito e seguir a mesma carreira do primo que o influenciara a tal : formou-se em 1850.Nas históricas arcádias da Academia de Direito do Largo de São Francisco discutia-se tudo: política, arte, filosofia, direito e, sobretudo, literatura. Era o tempo do Romantismo, novo estilo artístico importado da França – mas que acabou tornando-se um estilo de vida. Seus seguidores, como os acadêmicos de direito, exibiam um comportamento bem típico: vida boêmia, regada a muita bebida e farras, segundo eles para animar a vida na tediosa cidade e ao mesmo tempo serem tocados pelo sopro da inspiração.
Introvertido, quase tímido, o jovem Alencar mantinha-se alheio a esses hábitos, metido em estudos e leituras. Lia principalmente os grandes romancistas franceses da época. Arredio à vida estudantil, viveu então uma fase de recolhimento e estudo na qual cuidou de expandir sua cultura literária, lendo os grandes autores estrangeiros, os clássicos, os filósofos, os historiadores e cronistas do Brasil colonial. Familiarizou-se com Balzac, Chateaubriand, Victor Hugo, Dumas e Byron, ao mesmo tempo que desenvolvia no espírito a idéia da nacionalidade literária, para definir e estabelecer os lineamentos da literatura brasileira. Motivado pelo êxito de A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, escreveu em 1847, aos 18 anos, os romances “Os contrabandistas”, “O ermitão da glória” e “A alma de Lázaro”, nunca publicados [segundo seu próprio depoimento , um dos inúmeros hóspedes que freqüentavam sua casa usava as folhas manuscritas para... acender charutos. Verdade? Invenção? Muitos biógrafos duvidam da ocorrência, atribuindo-a à tendência que o escritor sempre demonstrou a dramatizar excessivamente os fatos de sua vida.] .O jovem cearense jamais se adaptaria às rodas boêmias tão assiduamente freqüentadas por outro companheiro que também ficaria famoso: Álvares de Azevedo.
O senador Alencar, muito doente, voltou para o Ceará em 1847, deixando o resto da família no Rio. Alencar viajou para o estado de origem, a fim de assistir o pai. O reencontro com a terra natal faria ressurgir as recordações de infância e fixaria na memória do escritor a paisagem da qual ele jamais conseguiria se desvincular inteiramente. É esse o cenário que aparece retratado em um de seus romances mais importantes: Iracema. Transferiu-se para a Faculdade de Direito de Olinda. O pai, bem de saúde, logo voltava ao Rio, e Alencar, a São Paulo, onde terminaria o curso. Dessa vez morava numa rua de prostitutas, gente pobre e estudantes boêmios. Alencar continuava desligado da boemia. Com certeza preparando sua sólida carreira, pois seu trabalho literário resultou de muita disciplina e estudo.
Em 1850, Alencar já estava no Rio de Janeiro, trabalhando num escritório de advocacia. Começava o exercício da profissão que jamais abandonaria e que garantiria seu sustento. Ao mesmo tempo, começou a escrever artigos no Jornal do Commercio.
Em setembro de 1854, um dos números do jornal Correio Mercantil trazia uma seção nova, "Ao correr da pena'' , assinada por José de Alencar. O folhetim, muito em moda na época, era um misto de jornalismo e literatura: crônicas leves, tratando de acontecimentos sociais, de teatro, de política, do cotidiano da cidade.Alencar tinha 25 anos e obteve sucesso imediato no jornal onde trabalharam posteriormente Machado de Assis (dez anos mais jovem que ele) e Joaquim Manuel de Macedo. Sucesso imediato e de curta duração: o jornal censurou um de seus artigos e o escritor desligou-se de sua função.
Começaria nova empreitada no Diário do Rio de Janeiro, outrora um jornal bastante influente, que passava naquele momento por séria crise financeira. Alencar e alguns amigos resolveram comprar o jornal e tentar ressuscitá-lo, investindo dinheiro e trabalho.Nesse jornal aconteceu sua estréia como romancista: em 1856 saiu em folhetins a novela Cinco minutos. Ao final de alguns meses, completada a publicação, juntaram-se os capítulos em um único volume , oferecido como brinde aos assinantes do jornal. No entanto, muitas pessoas que não eram assinantes do jornal procuraram comprar a brochura. Alencar comentaria: '' foi a única muda mas real animação que recebeu essa primeira prova. Tinha leitores espontâneos, não iludidos por falsos anúncios''. Nas entrelinhas, percebe-se a queixa que se tornaria obsessiva ao longo dos anos: a de que a crítica atribuía pouca importância à sua obra.
Com Cinco minutos e, logo em seguida, A viuvinha, Alencar inaugurou uma série de obras em que buscava retratar (e questionar) o modo de vida na Corte : nelas aparece um painel da vida burguesa, seus costumes, moda, regras de etiqueta... tudo entremeado por enredos tendo o amor e o casamento como tônica. Por suas páginas circulam padrinhos interesseiros, agiotas, negociantes espertos, irmãs abnegadas e muitos outros tipos que servem de coadjuvantes nos dramas de amor enfrentados pelo par amoroso central. É o chamado romance urbano de Alencar, tendência em que se enquadram, além daquelas duas primeira novelas, Lucíola, Diva, A pata da gazela, Sonhos d'ouro e Senhora -- este , considerado sua melhor realização na ficção urbana e uma das grandes obras de literatura brasileira. Os romances também mostram um escritor preocupado com a psicologia dos personagens, principalmente os femininos, alguns deles até chamados de "perfis de mulheres". Em todos, a presença constante do dinheiro, provocando desequilíbrios que complicam a vida afetiva dos personagens e conduzindo basicamente a dois desfechos: a realização dos ideais românticos ou a desilusão, numa sociedade em que ter vale muito mais do que ser. Alguns exemplos: em Senhora, a heroína arrisca toda sua grande fortuna na compra de um marido ; Emitia, o personagem central de Diva, busca incansavelmente,e idilicamente, um marido mais interessado em amor que em dinheiro ; em Sonhos d'ouro, o dinheiro representa o instrumento que permitiria autonomia de Ricardo e seu casamento com Guida; a narrativa de A viuvinha gira em torno do compromisso assumido por um filho para pagar todas as dívidas deixadas pelo pai ; Lucíola resume toda a questão de uma sociedade que transforma amor, casamento e relações humanas em mercadoria, e o assunto do romance, a prostituição, obviamente mostra a degradação a que o dinheiro pode conduzir o ser humano.
Entre Cinco minutos (1856) e Senhora (1875), passaram-se quase vinte anos e muitas situações polêmicas .Alencar estreou como autor de teatro em 1857, com a peça “Rio de Janeiro : verso e reverso”, em que focalizava o Rio de Janeiro de sua época. No mesmo ano, o enredo da peça “O crédito” antecipava um problema que o País logo iria enfrentar: a desenfreada especulação financeira, responsável por grave crise político-econômica. Desse ano data ainda a comédia “O demônio familiar”. Em 1858, estreou a peça “As asas de um anjo”, de um Alencar já bastante conhecido. Três dias após a estréia, a peça foi proibida pela censura, que a considerou imoral: tendo como personagem central uma prostituta regenerada pelo amor, o enredo ofendeu a sociedade ainda provinciana de então. (O curioso é que o tema era popular e aplaudido no teatro da época, em muitas peças estrangeiras). Alencar reagiu, acusando a censura de proibir sua obra pelo simples fato de ser ''produção de um autor brasileiro. . .'' Mas a reação mais concreta viria quatro anos mais tarde, no romance em que o autor retoma o tema: Lucíola.
Profundamente decepcionado com a situação, Alencar declarou que iria abandonar a literatura para dedicar-se exclusivamente à advocacia. É claro que isso não aconteceu : escreveu ainda o drama “Mãe”, levado ao palco em 1860, ano em que morreu seu pai. Para o teatro, produziu ainda a opereta “A noite de São João” e a peça “O jesuíta”.
A questão em torno de “As asas de um anjo” não era a primeira nem seria a última polêmica enfrentada por Alencar. De todas , a que mais interessa para a literatura foi anterior ao caso com a censura e relaciona-se ao aproveitamento da cultura indígena como tema literário. Segundo os estudiosos, foi este o primeiro debate literário ocorrido no Brasil.Certamente, quando resolveu assumir o Diário do Rio de Janeiro, Alencar pensava também num veículo de comunicação que permitisse a ele expressar livremente seu pensamento. Foi nesse jornal que travou seu primeiro ‘confronto’ literário e político: nele, o escritor confronta-se indiretamente com ninguém menos que o imperador D. Pedro II.
Gonçalves de Magalhães (que seria considerado o iniciador do Romantismo brasileiro) escrevera um longo poema intitulado “A confederação dos Tamoios”, em que faz um exaltado elogio à raça indígena. D. Pedro II, homem voltado às letras e artes, viu no poema de Magalhães o verdadeiro caminho para uma genuína literatura brasileira. Imediatamente, o imperador ordenou que se custeasse a edição oficial do poema. Alencar, sob o pseudônimo "Ig", utilizando seu jornal como veículo, escreveu cartas a um suposto amigo, questionando a qualidade da obra de Magalhães e o patrocínio da publicação por parte do imperador: "As virgens índias do seu livro podem sair dele e figurar em um romance árabe, chinês ou europeu (...) o senhor Magalhães não só não conseguiu pintar a nossa terra, como não soube aproveitar todas as belezas que lhe ofereciam os costumes e tradições indígenas...".No início, ninguém sabia quem era o tal Ig, e mais cartas foram publicadas sem merecer réplica. Após a quarta carta, alguns escritores e o próprio imperador, sob pseudônimo, vieram a público na defesa de Magalhães. Ig não deixou de treplicar.A extrema dureza com que Alencar tratou o poeta Magalhães e o imperador parece refletir a reação de um homem que se considerava sempre injustiçado e perseguido. Qualquer que tenha sido o motivo, essa polêmica existe um interesse fundamental. Discutia-se de fato, naquele momento, o que seria o verdadeiro nacionalismo na literatura brasileira, que até então sofrera grande influência da portuguesa. Alencar considerava a cultura indígena como um assunto privilegiado, que “na mão de um escritor hábil” – convém notar a irônica ressalva -- poderia tornar-se a marca distintiva da autêntica literatura nacional.
Aos 25 anos, Alencar apaixonou-se pela jovem Chiquinha Nogueira da Gama, herdeira de uma das grandes fortunas da época. Mas o interesse da moça era outro: um rapaz carioca também muito rico. Desprezado, custou muito ao altivo Alencar recuperar-se do orgulho ferido. Somente aos 35 anos iria experimentar, na vida real, a plenitude amorosa que tão bem soube inventar para o final de muitos de seus romances. Desta vez, paixão correspondida, namoro e casamento rápidos : a moça era Georgiana Cochrane, filha de inglês. Conheceram-se no bairro da Tijuca, para onde o escritor se retirara a fim de se recuperar de uma das crises de tuberculose; casaram-se em 20 de junho de 1864. Muitos críticos vêem no romance Sonhos d'ouro, de 1872, algumas passagens que consideram inspiradas na felicidade conjugal que Alencar parece ter experimentado ao lado de Georgiana.
Nessa altura, o filho do ex-senador Alencar já se achava metido, e muito , na vida política do Império – mas apesar de ter herdado do pai o gosto pela política, não era dotado da astúcia e da flexibilidade que fizeram a fama do velho Alencar. Seus companheiros da Câmara enfatizam sobretudo a recusa quase sistemática de Alencar em comparecer a solenidades oficiais e a maneira pouco polida com que tratava o imperador. A inflexibilidade no jogo político fazia prever a série de decepções que de fato ocorreriam. Eleito deputado e depois nomeado ministro da Justiça, Alencar conseguiu irritar o imperador como poucos o conseguiram até então. Enquanto ministro da Justiça, contrariando ainda a opinião de D. Pedro, Alencar resolveu candidatar-se ao senado : foi o mais votado dos candidatos de uma lista tríplice, porém de acordo com a constituição da época, a indicação definitiva estava nas mãos do imperador -- e o nome de Alencar foi vetado.
Esse fato marcaria o escritor para o resto da vida. Daí para diante, sua ação política traz os sinais de quem se sentia irremediavelmente injustiçado. Os amigos foram aos poucos se afastando e sua vida política parecia ter terminado. Mas era teimoso o suficiente para não abandoná-la.Retirou-se para o sítio da Tijuca, onde voltou a escrever. Desse período resultam O gaúcho e A pata da gazela (1870). Tinha 40 anos, sentia-se abatido e guardava um imenso rancor de D. Pedro . Eleito novamente deputado, voltou à Câmara, onde ficaria até 1875. Nunca mais, como político, jornalista ou romancista, iria poupar o imperador.
Em 1866 e 1867 publicou as “ Cartas políticas de Erasmo”. Partindo da suposta condição de que D. Pedro ignorava a corrupção e a decadência em que se achava o governo, Alencar dirige-se ao imperador tentando mostrar a situação em que se encontrava o país, com seus inúmeros problemas, entre eles o da libertação dos escravos e o da Guerra do Paraguai (1865-1870).No entanto, foi a questão dos escravos que mais aborrecimentos trouxe ao escritor : manifestando-se contra a Lei do Ventre Livre (1871), tomava posição ao lado dos escravocratas, despertando a ira de grande contingente de pessoas que, no país inteiro, consideravam a aprovação dessa lei uma questão de honra nacional.
Em 1876, Alencar leiloou tudo o que tinha e foi com Georgiana e os seis filhos para a Europa, em busca de tratamento para a saúde precária. Tinha programado uma estada de dois anos. Durante oito meses visitou a Inglaterra, a França e Portugal. Seu estado de saúde se agravou e, muito mais cedo do que esperava, voltou ao Brasil. A pesar de tudo, ainda havia tempo para atacar D. Pedro , Alencar editou alguns números do semanário O Protesto durante os meses de janeiro, fevereiro e março de1877. Nesse jornal, o escritor deixou vazar todo o seu antigo ressentimento com o imperador, por sua não-indicação para o Senado em 1869.Mas nem só de desavenças vivia o periódico. Foi nele que Alencar iniciou a publicação do romance Exhomem ,em que se mostraria contrário ao celibato clerical, assunto muito discutido na época. Escondido sob o pseudônimo Synerius, o escritor faz questão de explicar o título do romance : literalmente exprime ” o que já foi homem ".
Alencar não teve tempo de passar do quinto capítulo da obra que lhe teria garantido o lugar de primeiro escritor do Realismo brasileiro. Com a glória de escritor já um tanto abalada, morreu no Rio de Janeiro, em 12 de dezembro de 1877. Ao saber de sua morte, o imperador teria se manifestado : "Era um homenzinho teimoso''.
Mais sábias seriam as palavras de Machado de Assis, ao escrever seis anos depois:
"Quando entrei na adolescência, fulgiam os raios daquele grande engenho: vi-os depois em tanta cópia e com tal esplendor, que eram já um sol quando entrei na mocidade. Gonçalves Dias e os homens do seu tempo estavam feitos; Álvares de Azevedo, cujo livro era a Boa Nova dos poetas, falecera antes de revelado ao mundo. Todos eles influíam profundamente no ânimo juvenil, que apenas balbuciava alguma coisa; mas a ação crescente de Alencar dominava as outras. A sensação que recebi no primeiro encontro pessoal com ele foi extraordinária: creio ainda agora que não lhe disse nada, contentando-me de fitá-lo com os olhos assombrados do menino Oleine ao ver passar Napoleão. A fascinação não diminuiu com o trato do homem e do artista..." "...podemos dizer que ele saiu da Academia para a celebridade. Quem o lê agora, em dias e horas de escolha, e nos livros que mais lhe aprazem, não tem idéia da fecundidade extraordinária que revelou tão depressa entrou na vida. Desde logo pôs mãos à crônica, ao romance, à crítica e ao teatro, dando a todas essas formas do pensamento um cunho particular e desconhecido.(...)(...) José de Alencar escreveu as páginas que todos lemos, e que há de ler a geração futura. O futuro não se engana.”