segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
2014, um ano de ‘entradas na posteridade’— IV
significativo, histórico este ano – nele se dá
o 175º. aniversário de nascimento da maior figura da literatura brasileira. predestinado foi Machado de Assis naquele 21 junho 1839 quando vindo ao mundo
dos homens, na chácara do Livramento no Rio de Janeiro, abria as portas da
posteridade que se configuraria pelo supremo quilate de sua obra.
_______________
Machado de Assis, esfinge de transcendência literária
“Decifra-me – mas não te devoro”[sic] : parece dizer Machado de Assis,
dirigindo-se ao leitor.
Brincadeira, talvez... – mas
expressa uma espécie de lema machadiano a pautar as relações com aquele que o
lê.; Machado, na verdade, ‘brinca’ (no bom sentido), essencialmente na
crônica,no conto, até no romance, com aquele que o lê. Em seus textos, às
características de leveza de tom , fluência textual e estilística muito
próxima da oralidade, ironia satírica e pilhéria, metáfora e paródia, alia-se a
presença incisiva dos admiráveis elementos machadianos do disfarce, da
dissimulação, do subterfúgio, da sutileza, postos como desafios ao leitor..
A nem sempre linear narrativa,
ficcional ou não-ficcional – na crônica, por exemplo, nela predominante a “arte
das transições”, levada a extremos no unir tópicos aparentemente distintos, um
parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um
resultado surpreendente; no conto,
oferecidas explícitas ou veladas armadilhas retóricas e significados ocultos -- tem seu
trajeto ‘amenizado’ para o leitor
, primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e
reintegrando-o,numa espiral de circularidade muitas vezes nem percebida de
todo. Machado esconde ou disfarça uma
parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir -- o
conhecido narrador machadiano, o ‘narrador volúvel’, presente tanto na ficção
quanto na não-ficção..
Sua
obra parece sempre ‘pronta’ a oferecer e
revelar surpresas – não fosse ele autêntico mestre do subterfúgio, da
dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma, inclusive por meio de
outras de suas peculiaridades, o uso do anonimato e do pseudônimo: foram quase
40 assinaturas em contos (como eram publicados em folhetins, por vezes uma
assinatura diferente para cada capítulo) e em crônicas.
Um, ou o, Machado ‘misterioso’ fez
seu debut literário, por assim dizer, logo em seu primeiro livro publicado, Queda que as mulheres têm pelos tolos,
em 1861 (antes, nesse mesmo ano,
veiculado em folhetins em A
Marmota ). Obra de extrema representatividade histórico-literária na
produção machadiana, revestida de características especiais de definição
genérica, conotação autoral, geradora de polêmica entre machadianos e de
fundamental, crucial relevância pelo que contém, e projeta, de elementos e
concepções que pautariam toda sua ficção literária.
Além
de abrigar um conjunto de peculiaridades que a fazem única e diferenciada.A
primeira de suas peculiaridades refere-se ao fato de ter despertado ao longo do tempo – não tanto
quando de sua publicação – dúvidas, daí uma salutar (culturalmente falando)
polêmica, quanto à sua condição de criação original ou tradução de Machado de
Assis,contendo em si, portanto, uma conotação de mistério,dúvida e polêmica,
que de resto apenas corroboram, por assim dizer, o ‘espírito’ machadiano de
fazer literatura.
Outra das particularidades --que se percebe de imediato – reside em
não constituir-se em um gênero definido, difícil de classificar nos
moldes tradicionais, aproximando-se mais de uma sátira e menos de um ensaio,
muito longe de ser um romance,uma novela, um conto ou uma crônica.
Sobretudo a multiplicidade da representatividade
histórica de Queda que as mulheres têm
para os tolos expressa-se em especial por deflagrar um elo de interações, afinidades e
intertextualidades , prenunciando,anunciando, antecipando e consubstanciando em
sua forma,linguagem,estilo e conteúdo muito
do que viria a seguir na lavra ficcional do autor. Que elos de
intertextualização são esses ? a)
como suposta tradução, inserida na
produção machadiana, constitui manifestação pioneira do conceito da tradução, a
incorporar a célebre “teoria do molho” ,
reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo
elaboradas por ele próprio, em muitos
aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada ; b) a ‘teoria amorosa’ desenvolvida em
“Desencantos”, em Ressurreição, e chegando a Dom Casmurro –
o livro inaugural interagindo com a
primeira peça teatral, com o primeiro romance e
com a opera-mater : em todas
elas, a ‘ideologia’ da dubiedade,
da ambigüidade, da dicotomia ; c) a mulher como protagonista
primordial da ficção machadiana ,que
traz para o centro das discussões, o feminino e a questão da sexualidade feminina : nenhum escritor de seu tempo ‘edificou’ tanto a mulher como personagem
capital e leitmotiv básico de seus textos
como Machado ,que escrevia sobre mulheres e para mulher ; d)
a tríade tolo -- mulher -- homem de espírito , que
permeia toda a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente em
contos e romances ao longo do tempo e da evolução literária de Machado
,transportando a 'ideologia' de Queda que
as mulheres têm para os tolos para
muitas das obras posteriores.
Em se tratando de Machado,
sabemos tudo ser possível – o feito pelo não-feito, o criado pelo traduzido, o
escrito pelo não-escrito. A alimentarem
especulações, ilações e interpretações em torno não apenas de Queda que as mulheres têm pelos tolos, a
rigor, um prenúncio do que se desenrolaria na produção literária de
Machado, mas de várias outras obras,
entre dúvidas , sutilezas e enigmas, disfarces
e subterfúgios -- que não faltam na obra e na carreira literária machadiana.
‘Mistérios’, subterfúgios,
disfarces, ‘jogos com o leitor’ à parte,
na verdade, sempre existiu em Machado um notável e meticuloso experimentador
-- mutável na utilização de
formas,estilos e modelos -- mas
absolutamente seguro,determinado e consciente.. Ao longo do tempo, sempre preocupou-se com configurações para sua obra –
essencialmente, tanto o conto quanto a crônica foram notáveis e eficazes
terrenos de experimentações narrativas, nelas se revelando uma seqüência
notável de exercícios formais,estilísticos, de linguagem e de enfoque ao longo
de sua produção e evolução literárias..
Evolução literária machadiana que
desenvolveu-se ao longo de sua vida
literária (e pessoal) como um todo coerente e consistente – obediente a escalas
e estágios – mediado por um período de marcante inflexão que antecede o que se
convencionou denominar ‘o grande salto’, a grande mudança -- que tanto instiga
estudiosos, pesquisadores,historiadores, críticos ; e leitores, claro. Inflexão
que, a par de contribuir positivamente para a análise e interpretação adequadas
da trajetória machadiana, em
contrapartida serve para sedimentar um conceito, ou avaliação, de muitas
formas discutível : a divisão da obra --
ficcional e não-ficcional -- de Machado em duas fases ,o ‘aprendizado’ versus a ‘maturidade’, a ‘formação’ versus a ‘radicalização’.
Para de uma vez por todas reformular
o conceito estabelecido sobre tal
dicotomia : a obra machadiana submete-se
a estruturas básicas que se superpõem, se interligam e se renovam “como um todo coerentemente organizado(...) à
medida que seus textos se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias
e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas
diferentes,mais complexas e mais sofisticadas”, sentencia Silviano
Santiago. Na verdade, a estética ficcional e não-ficcional e o pensamento literário machadianos não podem
nem devem ser tão facilmente encaixados
nesses dois blocos distintos, até porque
se desenvolvem e se coadunam concomitantemente,seguindo, ambos, vis a vis,a
mesma linha no decorrer de toda sua carreira,apenas sedimentando-se e
amadurecendo consistentemente pós-1880 e nas obras seqüentes -- o romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e a coletânea de contos Papéis avulsos (1882), como
incontestáveis epígonos da transformação.
Nítida
e lídima é a relação-interação entre a
mudança do contexto político-social do Brasil do século XIX – notadamente a
partir de 1871 -- e as transformações formais e de conteúdo da obra machadiana,
em cujo cerne encontrava-se o pensamento político-histórico sobre o Brasil --
haja vista a extrema ‘presença’ da política,e do lúcido olhar para ela -- que
permeou e sedimentou a totalidade quer da
ficção quer da não-ficção, numa espécie de espinha-dorsal, no decorrer
de todas as ‘fases’ e estágios de sua trajetória literária.Machado percebeu
nitidamente a necessidade de fazer algo mais diferenciado – no plano estritamente literário, tanto do Romantismo
ainda vigente (para ele, já “acabado”) quanto do Realismo-Naturalismo, que então impunha
narrativas e descrições ao mesmo tempo minuciosas e contundentes da vida real (
via de regra surpreendendo,e muitas vezes ‘assustando’, o público-leitor); no plano histórico, em função da própria mutação política e
social que o país experimentava .
‘Dinâmico’ na construção e
sedimentação de sua vida literária,
obediente a um consciente,coerente e
consistente processo evolutivo, de ‘camadas’
superpostas, interligadas e re-articuladas ; ‘misterioso’, ‘enigmático’,
disfarces e subterfúgios postos a serviço e uso da criação ficcional e
não-ficcional – sempre ‘pronta’ a revelar surpresas(e inéditos...)-- Machado de
Assis e sua magnífica obra exemplificam e emblematizam à perfeição a sentença
do crítico e ensaísta Alcides Villaça: “é
papel da Literatura dar expressão ao que não a tem, revelar disfarçadamente o
que se disfarça de fato”. A relativização de valores constituía-se numa
estratégica de Machado para levar adiante seu projeto literário, e certa
contundência de suas relativizações, não
conclusivas em si mesmas,
propicia e estimula de resto reflexões e interpretações que servem para
valorizar e enriquecer mais e mais,através dos tempos, sua grandiosa obra literária.
Na qual evidencia-se e
sedimenta-se o vaticínio que ele mesmo formulou:
“A literatura, como Proteu, troca de
formas, e nisso está a condição de sua
vitalidade.”
domingo, 21 de dezembro de 2014
2014, UM ANO DE ‘ENTRADAS NA POSTERIDADE’—III
As outras facetas de Coelho Neto
Coelho Neto (1864-1934) abriga duas marcas de efemérides, neste 2014 : sesquicentenário de seu nascimento (1864), 80 anos de morte (1934).
* [por essa dupla significância, publico pela Academia Brasileira de Letras a coletânea de contos , na verdade quase crônicas, A cidade maravilhosa, rigorosamente a última obra ficcional do escritor, de edição original pode-se dizer rara pois publicada apenas em 1928; do mesmo modo, algo inusitada, pois revela em Coelho Neto um afastamento definitivo das linhas do naturalismo e do regionalismo que conferiu e com as quais pautou e pontuou os contos escritos em períodos e fases imediatamente anteriores a estes: nos contos denotam-se nitidamente, uns mais outros menos, claros vieses e cunhos essencialmente reflexivos, mais discursivos e dialéticos e menos descritivos, sob um fluxo algo filosófico de expressão e formalização de pensamentos, interpretações, especulações intelectuais -- ainda que exibam e sejam permeados por manifestações do ‘parnasianismo’ marcantes genericamente de sua escrita , desde sempre ].
Ao pesquisar e estudar Coelho Neto para o livro que publiquei em 2010, acerca do antagonismo com Lima Barreto, já tivera a atenção despertada – sem poder então dedicar-me e aprofundar-me nisso – para as crônicas do escritor, bem mais conhecido (e pouco valorizado) por romances,contos,teatro e mesmo artigos na imprensa pautados, pelos estilo e escrita que tão ‘ácidos’ comentários críticos,desairosos mesmo, provocaram p. ex. em Lima Barreto durante a ‘convivência’ dos dois – década de 1910 (e os dois primeiros anos dos 20,uma vez Lima ter morrido em 1922) – nos modernistas,a partir da década de 1920, e nos analistas e leitores de hoje.
O que pouco, muito pouco se conhece – até porque raramente divulgado e estudado—é justamente o Coelho Neto cronista, ‘fértil’ cronista diga-se, pois bastante alentado o acervo de sua produção em jornais e revistas ao longo de quase 50 anos.
E o que menos,muito menos ainda se sabe, é o quanto ,e como, Coelho Neto tratou, em determinadas séries de crônicas, da... política de seu tempo. Registrou e legou importante testemunho textual sobre momentos e processos de grande importância na história brasileira do final do século XIX e primeiras décadas do século XX – e relevante observar : face a seu grande poder de comunicação,por via de uma linguagem assimilável pelo leitor e mercê do prestígio que foi angariando no decorrer dos anos, procurou levar a camadas de público normalmente distantes dos fatos políticos não apenas registros e retratos mas sobretudo comentários pessoais sobre a realidade então vigente. Coelho Neto, a propósito, expressou em entrelinhas logo na primeira das séries seu entendimento de que somente pela crônica – deixava então de se dedicar apenas à ficção (antes, publicara alguns contos no mesmo veículo no qual se iniciaria na crônica) poderia levar a literatura a “um meio despreparado para recebê-la e entendê-la,face ao atraso e ignorância de um público distante das letras” [sic], ao mesmo tempo fazendo da crônica um canal direto de intervenção social. .
Basicamente, são quatro os conjuntos cronísticos nos quais Coelho Neto tratou de temas e questões políticas poemas e contos de verdadeiros libelos contra a escravidão e a favor da República: a par de muitas considerações e apreciações passíveis – e necessárias – de a eles se fazerem, esses conjuntos cronísticos , com seus respectivos enfoques político e social , afastam-se sensivelmente das características mais marcantes da prosa de Coelho Neto.
De um modo geral, os estudiosos da literatura brasileira concordam em que ninguém como Coelho Neto encarnou “mais dramaticamente” o problema da forma. Romântico por inclinação e formação natural, realista em algumas obras, simbolista em outras, sobretudo parnasiano na essência da maioria de seus escritos, a Coelho Neto na verdade nunca faltou capacidade criadora, mas ele próprio a relegou a segundo plano em sua obsessão da escrita de efeito, obsessão que o levou a procurar seguir todas as correntes literárias das épocas em que viveu : somente no fim da vida rebelou-se contra a moda e os modismos.
Coelho Neto incorporou e personificou como nenhum outro múltiplas, e indubitavelmente conflitantes, características e propósitos , “querendo ser primitivo e heleno, colher motivos em lendas nórdicas e orientais, exprimir a natureza de sua terra e a gente contemporânea, fazendo isso tudo menos por curiosidade intelectual do que pelo prazer de ouvir soarem vocábulos exóticos ou onamotopaicos”, sentenciou Lúcia Miguel Pereira.
Por força do culto ao virtuosismo, “deixou-se dominar pela palavra, em lugar de dominá-la”,observou ela em artigo publicado na Gazeta de Notícias, de 9 de dezembro de 1934, exatos 10 dias depois da morte do escritor : “Sua obra visava à fruição estética e, mesmo quando incluía um conteúdo social pendia para o artificialismo, porque tomou o meio pelo fim, confundiu expressão e idéia; suas fases prolixas, difusas, onde a função do adjetivo é muito mais importante que a do substantivo, revelam a tendência a impressionar-se excessivamente com os detalhes, a sentir mais o aspecto exterior das coisas que a sua essência, ao mesmo tempo em que seus vocábulos raros traduzem o gosto pelo bonito, pelo brilhante; a força interior, a obedecer enfim a todas as exigências da moda”.
Coelho Neto (1864-1934) abriga duas marcas de efemérides, neste 2014 : sesquicentenário de seu nascimento (1864), 80 anos de morte (1934).
* [por essa dupla significância, publico pela Academia Brasileira de Letras a coletânea de contos , na verdade quase crônicas, A cidade maravilhosa, rigorosamente a última obra ficcional do escritor, de edição original pode-se dizer rara pois publicada apenas em 1928; do mesmo modo, algo inusitada, pois revela em Coelho Neto um afastamento definitivo das linhas do naturalismo e do regionalismo que conferiu e com as quais pautou e pontuou os contos escritos em períodos e fases imediatamente anteriores a estes: nos contos denotam-se nitidamente, uns mais outros menos, claros vieses e cunhos essencialmente reflexivos, mais discursivos e dialéticos e menos descritivos, sob um fluxo algo filosófico de expressão e formalização de pensamentos, interpretações, especulações intelectuais -- ainda que exibam e sejam permeados por manifestações do ‘parnasianismo’ marcantes genericamente de sua escrita , desde sempre ].
Ao pesquisar e estudar Coelho Neto para o livro que publiquei em 2010, acerca do antagonismo com Lima Barreto, já tivera a atenção despertada – sem poder então dedicar-me e aprofundar-me nisso – para as crônicas do escritor, bem mais conhecido (e pouco valorizado) por romances,contos,teatro e mesmo artigos na imprensa pautados, pelos estilo e escrita que tão ‘ácidos’ comentários críticos,desairosos mesmo, provocaram p. ex. em Lima Barreto durante a ‘convivência’ dos dois – década de 1910 (e os dois primeiros anos dos 20,uma vez Lima ter morrido em 1922) – nos modernistas,a partir da década de 1920, e nos analistas e leitores de hoje.
O que pouco, muito pouco se conhece – até porque raramente divulgado e estudado—é justamente o Coelho Neto cronista, ‘fértil’ cronista diga-se, pois bastante alentado o acervo de sua produção em jornais e revistas ao longo de quase 50 anos.
E o que menos,muito menos ainda se sabe, é o quanto ,e como, Coelho Neto tratou, em determinadas séries de crônicas, da... política de seu tempo. Registrou e legou importante testemunho textual sobre momentos e processos de grande importância na história brasileira do final do século XIX e primeiras décadas do século XX – e relevante observar : face a seu grande poder de comunicação,por via de uma linguagem assimilável pelo leitor e mercê do prestígio que foi angariando no decorrer dos anos, procurou levar a camadas de público normalmente distantes dos fatos políticos não apenas registros e retratos mas sobretudo comentários pessoais sobre a realidade então vigente. Coelho Neto, a propósito, expressou em entrelinhas logo na primeira das séries seu entendimento de que somente pela crônica – deixava então de se dedicar apenas à ficção (antes, publicara alguns contos no mesmo veículo no qual se iniciaria na crônica) poderia levar a literatura a “um meio despreparado para recebê-la e entendê-la,face ao atraso e ignorância de um público distante das letras” [sic], ao mesmo tempo fazendo da crônica um canal direto de intervenção social. .
Basicamente, são quatro os conjuntos cronísticos nos quais Coelho Neto tratou de temas e questões políticas poemas e contos de verdadeiros libelos contra a escravidão e a favor da República: a par de muitas considerações e apreciações passíveis – e necessárias – de a eles se fazerem, esses conjuntos cronísticos , com seus respectivos enfoques político e social , afastam-se sensivelmente das características mais marcantes da prosa de Coelho Neto.
De um modo geral, os estudiosos da literatura brasileira concordam em que ninguém como Coelho Neto encarnou “mais dramaticamente” o problema da forma. Romântico por inclinação e formação natural, realista em algumas obras, simbolista em outras, sobretudo parnasiano na essência da maioria de seus escritos, a Coelho Neto na verdade nunca faltou capacidade criadora, mas ele próprio a relegou a segundo plano em sua obsessão da escrita de efeito, obsessão que o levou a procurar seguir todas as correntes literárias das épocas em que viveu : somente no fim da vida rebelou-se contra a moda e os modismos.
Coelho Neto incorporou e personificou como nenhum outro múltiplas, e indubitavelmente conflitantes, características e propósitos , “querendo ser primitivo e heleno, colher motivos em lendas nórdicas e orientais, exprimir a natureza de sua terra e a gente contemporânea, fazendo isso tudo menos por curiosidade intelectual do que pelo prazer de ouvir soarem vocábulos exóticos ou onamotopaicos”, sentenciou Lúcia Miguel Pereira.
Por força do culto ao virtuosismo, “deixou-se dominar pela palavra, em lugar de dominá-la”,observou ela em artigo publicado na Gazeta de Notícias, de 9 de dezembro de 1934, exatos 10 dias depois da morte do escritor : “Sua obra visava à fruição estética e, mesmo quando incluía um conteúdo social pendia para o artificialismo, porque tomou o meio pelo fim, confundiu expressão e idéia; suas fases prolixas, difusas, onde a função do adjetivo é muito mais importante que a do substantivo, revelam a tendência a impressionar-se excessivamente com os detalhes, a sentir mais o aspecto exterior das coisas que a sua essência, ao mesmo tempo em que seus vocábulos raros traduzem o gosto pelo bonito, pelo brilhante; a força interior, a obedecer enfim a todas as exigências da moda”.
2014, UM ANO DE ‘ENTRADAS NA POSTERIDADE’—II
Laurindo Rabello: ultra-romântico; “poeta lagartixa”; “o Bocage brasileiro”
“Que homem é esse?” assim exclamou, surpreendido, Antônio Álvares da Silva ao ver Laurindo Rabello pela primeira vez. E então observou : “língua desempeçada a cortar pelo mundo com um desembaraço ; com o maior sangue frio saltava por cima de certos respeitos e deferências, em uma linguagem que eu nunca tinha ouvido. O mais é que eu, tal era a minha comoção, não podia deixar de ouvi-lo, preso, encadeado, como me achava, a uma palavra rápida, correta, fluentíssima e cáustica que fascinava. “
Quem foi, enfim, Laurindo Rabello ?
Foi renomado poeta romântico -- embora no delineamento dos autores e obras representativos do romantismo literário brasileiro, normalmente não está incluído como dos grandes nomes, ao lado de Gonçalves Dias, Gonçalves Magalhães, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu, Castro Alves, por exemplo; mas deveria, sob todos os aspectos,sentidos e pontos de vista ter lugar honroso nos manuais canônicos de Literatura brasileira.
Laurindo foi dos mais famosos e estimados poetas brasileiros do seu tempo, mercê de acentuado teor de crítica social e diversidade temática nos variados estilos lírico, burlesco, épico, satírico, presentes em suas composições; notabilizando-se também pela habilidade para atacar e satirizar poeticamente as autoridades, e pelos exercícios poéticos de cunho obsceno -- nos “Poemas livres”, editados postumamente em 1882 , daí cognominado "o Bocage brasileiro", assim designado pela fértil acervo poético de cunho obsceno, erótico, pornográfico, fescenino, produzido mesmo em pleno romantismo literário brasileiro, de resto ‘púdico’, ‘sisudo’, rigorosamente balizado pela moral oitocentista.O autor desses impactantes poemas, vítima de leituras no mínimo incompletas de sua produção literária, teve esse grupo sumariamente expurgado das sucessivas edições de suas obras.
A par do próprio quilate de sua poética romântica, de grande , e qualitativa, diversidade temática nos variados estilos lírico, burlesco, épico, satírico, e erótico e obsceno , aliada a acentuado teor de crítica social, presentes em suas composições, o atributo que mais impressionava seus contemporâneos fosse o talento para os improvisos – repentista, compositor e cantor de modinhas e lundus , bem recebido e aclamado em todos os salões, “o desejado de todas as reuniões sociais e musicais”.
Laurindo Rabello tocava piano e violão, repentista, compositor e cantor de modinhas e lundus, sua popularidade estendendo-se por toda a cidade do Rio de Janeiro, era a figura principal da época, em torno de quem por cerca de 20 anos “girou o movimento harmonioso de nossas canções”.Daí carinhosamente apelidado “o poeta lagartixa”, pela maneira espontânea e alegre de viver, o jeito desengonçado de se trajar, andar e comportar.
Tamanha sua importância literária e intelectual que foi profunda e intensamente comentado por críticos proeminentes entre outros como Silvio Romero, José Veríssimo, Alfredo Bosi, Antonio Candido .Tal sua relevância bibliográfica, formidável é o volume de sua produção poética , seja assim propriamente dita, seja em composições musicais, publicadas, notadamente pos-mortem : são 13 obras poéticas, 11 antologias específicas, 1 seleta e 16 coletâneas de modinhas,lundus e canções -- além do conjunto fescenino , reunido nos “Poemas livres”.
Depois de morrer – em 1864, estamos pois no sesquicentenário de sua morte -- pouco a pouco, o nome de Laurindo Rabello embaçou-se e caiu no esquecimento, por vezes recebendo apenas menção de um estudioso, ou crítico, ou historiador da literatura brasileira.
* [ justamente por tal sesquicentenário, preparei duas obras (ainda a editar e publicar) : “Inéditos de Laurindo Rabello”, abrigando cinco poemas, um folhetim, uma modinha e um lundu, e “Laurindo Rabello fescenino”( este, na verdade o 1º. volume de um conjunto de obras e textos de mesmos teor, timbre e tom, escritos por renomados, consagrados, canônicos, ‘comportados’ escritores brasileiros clássicos), expondo 38 poemas “licenciosos, voluptuosos, obscenos”.
dupla homenagem,portanto : de um lado sejam dados ao conhecimento público os textos, até então inéditos em livro ou outro suporte, apenas publicados originalmente em periódicos de época; de outro, faça-se conhecer – e entreter -- os “Poemas livres”,publicados postumamente (1882) e de imediato colocada esta até então única e restrita edição no limbo das obras proibidas, censuradas, escondidas, confinadas aos porões do esquecimento literário.].
...................................
Eu possuo uma bengala
Eu possuo uma bengala
Da maior estimação,
É feita da melhor cana
E tem o melhor castão.
A minha bela caseira
Toda inteira se arrepia
Quando três vezes por dia
Dou bengaladas nela.
remate (refrão : Lhe ficando a bengalada...
-- lundu composto e cantado por Laurindo Rabello – e sempre pedido em suas apresentações e participações em salões, festas,eventos,etc; o remate, qual refrão, provocava na platéia “apartes picantes, imaginação lasciva e muita hilariedade...”
“Que homem é esse?” assim exclamou, surpreendido, Antônio Álvares da Silva ao ver Laurindo Rabello pela primeira vez. E então observou : “língua desempeçada a cortar pelo mundo com um desembaraço ; com o maior sangue frio saltava por cima de certos respeitos e deferências, em uma linguagem que eu nunca tinha ouvido. O mais é que eu, tal era a minha comoção, não podia deixar de ouvi-lo, preso, encadeado, como me achava, a uma palavra rápida, correta, fluentíssima e cáustica que fascinava. “
Quem foi, enfim, Laurindo Rabello ?
Foi renomado poeta romântico -- embora no delineamento dos autores e obras representativos do romantismo literário brasileiro, normalmente não está incluído como dos grandes nomes, ao lado de Gonçalves Dias, Gonçalves Magalhães, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu, Castro Alves, por exemplo; mas deveria, sob todos os aspectos,sentidos e pontos de vista ter lugar honroso nos manuais canônicos de Literatura brasileira.
Laurindo foi dos mais famosos e estimados poetas brasileiros do seu tempo, mercê de acentuado teor de crítica social e diversidade temática nos variados estilos lírico, burlesco, épico, satírico, presentes em suas composições; notabilizando-se também pela habilidade para atacar e satirizar poeticamente as autoridades, e pelos exercícios poéticos de cunho obsceno -- nos “Poemas livres”, editados postumamente em 1882 , daí cognominado "o Bocage brasileiro", assim designado pela fértil acervo poético de cunho obsceno, erótico, pornográfico, fescenino, produzido mesmo em pleno romantismo literário brasileiro, de resto ‘púdico’, ‘sisudo’, rigorosamente balizado pela moral oitocentista.O autor desses impactantes poemas, vítima de leituras no mínimo incompletas de sua produção literária, teve esse grupo sumariamente expurgado das sucessivas edições de suas obras.
A par do próprio quilate de sua poética romântica, de grande , e qualitativa, diversidade temática nos variados estilos lírico, burlesco, épico, satírico, e erótico e obsceno , aliada a acentuado teor de crítica social, presentes em suas composições, o atributo que mais impressionava seus contemporâneos fosse o talento para os improvisos – repentista, compositor e cantor de modinhas e lundus , bem recebido e aclamado em todos os salões, “o desejado de todas as reuniões sociais e musicais”.
Laurindo Rabello tocava piano e violão, repentista, compositor e cantor de modinhas e lundus, sua popularidade estendendo-se por toda a cidade do Rio de Janeiro, era a figura principal da época, em torno de quem por cerca de 20 anos “girou o movimento harmonioso de nossas canções”.Daí carinhosamente apelidado “o poeta lagartixa”, pela maneira espontânea e alegre de viver, o jeito desengonçado de se trajar, andar e comportar.
Tamanha sua importância literária e intelectual que foi profunda e intensamente comentado por críticos proeminentes entre outros como Silvio Romero, José Veríssimo, Alfredo Bosi, Antonio Candido .Tal sua relevância bibliográfica, formidável é o volume de sua produção poética , seja assim propriamente dita, seja em composições musicais, publicadas, notadamente pos-mortem : são 13 obras poéticas, 11 antologias específicas, 1 seleta e 16 coletâneas de modinhas,lundus e canções -- além do conjunto fescenino , reunido nos “Poemas livres”.
Depois de morrer – em 1864, estamos pois no sesquicentenário de sua morte -- pouco a pouco, o nome de Laurindo Rabello embaçou-se e caiu no esquecimento, por vezes recebendo apenas menção de um estudioso, ou crítico, ou historiador da literatura brasileira.
* [ justamente por tal sesquicentenário, preparei duas obras (ainda a editar e publicar) : “Inéditos de Laurindo Rabello”, abrigando cinco poemas, um folhetim, uma modinha e um lundu, e “Laurindo Rabello fescenino”( este, na verdade o 1º. volume de um conjunto de obras e textos de mesmos teor, timbre e tom, escritos por renomados, consagrados, canônicos, ‘comportados’ escritores brasileiros clássicos), expondo 38 poemas “licenciosos, voluptuosos, obscenos”.
dupla homenagem,portanto : de um lado sejam dados ao conhecimento público os textos, até então inéditos em livro ou outro suporte, apenas publicados originalmente em periódicos de época; de outro, faça-se conhecer – e entreter -- os “Poemas livres”,publicados postumamente (1882) e de imediato colocada esta até então única e restrita edição no limbo das obras proibidas, censuradas, escondidas, confinadas aos porões do esquecimento literário.].
...................................
Eu possuo uma bengala
Eu possuo uma bengala
Da maior estimação,
É feita da melhor cana
E tem o melhor castão.
A minha bela caseira
Toda inteira se arrepia
Quando três vezes por dia
Dou bengaladas nela.
remate (refrão : Lhe ficando a bengalada...
-- lundu composto e cantado por Laurindo Rabello – e sempre pedido em suas apresentações e participações em salões, festas,eventos,etc; o remate, qual refrão, provocava na platéia “apartes picantes, imaginação lasciva e muita hilariedade...”
sábado, 6 de dezembro de 2014
Humberto de Campos -- 80 anos depois
neste 05 dezembro, em 1934, morria Humberto de Campos, um dos mais ativos e profícuos escritores de seu tempo -- inclusive dono de uma verve satírica demolidora ,até mesmo contra seus pares e amigos literatos, e em especial de uma 'veia' fescenina (que na verdade era do Conselheiro XX, presente estará em meu livro com os fesceninos)
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As cruzes
As senhores grazinavam, como
periquitos em roçado, em torno da mesa do chá, quando Mme. Gama Simpson se
curvou, rindo com alarido, sobre a toalha de linho bordada de cegonhas
vermelhas, numa escandalosa explosão de alegria.
Segurando em uma das mãos a taça
de porcelana e na outra, fechadinha como um botão de rosa, uma torradinha cor
de ouro, a linda criatura ria despreocupadamente, agitando-se na cadeira,
quando, com o movimento do corpo, lhe saltou do colo de neve e rosa, pela
janela de seda do decote, a sua custosa cruz de brilhante, fugindo-lhe para o
ombro, com o risco de perder-se.
— Cuidado com a cruz, madame! —
avisou, atencioso, do outro lado da mesa, o conselheiro Atanásio, que
observava, sem perder um movimento do solo, as ondulações do Calvário e os
arredores da Jerusalém.
D. Lisete olhou o decote, apanhou
a cruz fugitiva, e, aconchegando-a à carnem rosada, queixou-se, risonha:
— Também, que idéia esta, de
inventar cruzes para o colo da gente!
— Vossa Excelência não sabe,
então, o que elas significam, na opinião de Tabarin?
As senhoras mostraram-se curiosas
de conhecer a origem daquele costume, e o antigo palaciano começou, medindo as
palavras:
— Na Idade Média, quando eram
deficientes os meios de comunicação de cidade para cidade, de aldeia para
aldeia, de um castelo para outro castelo, os monges, que dominavam nos países
barbarizados da Europa tomaram a si a incumbência de marcar os caminhos, cujas
direções eram assinaladas por meio de cruzes. Ao deparar, na mata ou na
montanha, um destes símbolos da cristandade, o viajante já sabia que não errara
o seu roteiro, e que a estrada era, mesmo, por ali...
— Mas... - interrompeu,
impaciente, Mme. Souza Batista.
— Espere... - implorou o
conselheiro.
E continuou:
— Mais tarde, com o advento das
modas femininas, e com o aproveitamento, por parte das mulheres, de todas as
conquistas do homem, entenderam elas de utilizar o mesmo símbolo, com a mesma
significação.
— A cruz no colo das mulheres
quer dizer, então, alguma coisa? — interrompeu, franzindo a testa, Mme.
Werther.
— Evidentemente, minha senhora! —
tornou o conselheiro.
E explicou:
— Elas estão dizendo, como nas
montanhas antigas, que... o caminho é por ali!
Quando o conselheiro terminou a
sua narrativa, Mme. Simpson procurou a sua cruz de brilhantes, e tomou um
susto. Com os seus modos estabanados, a cruz havia, de novo, abandonado o
decote, e fugido para trás...
______________ ______________
Ferrabrás
O coronel Otaviano de Meireles,
comandante de um batalhão da Guarda Nacional aquartelado em Niterói, era
conhecido em toda a cidade pela sua valentia, e, em especial, pela sua
intransigência em questões de honra. Casado com uma das senhoras mais formosas
do bairro, era tal o pavor infundido pelo seu nome, que ninguém se atrevia,
sequer, a levantar os olhos para a sua cara metade. Aquele que tal fizesse,
era, na opinião de toda a gente, um homem liquidado.
Foi por esse tempo, e quando mais
se acentuava, em toda a praia de Icaraí, a fama da coragem do coronel, que
passou a residir na vizinha capital o jovem advogado Dr. Otacílio Fernandes,
que não era coronel, nem major, nem capitão, nem tenente, mas fora, sempre, um
dos mais famosos namoradores de Niterói.
Proprietário do prédio em que o
coronel residia, não foi necessário grande esforço da parte do moço para travar
amizade com o inquilino; e esta foi tão rápida, e tão sincera, que, uma semana depois, era o Dr.
Otacílio convidado para um almoço, no primeiro domingo, na residência do brioso
militar.
Chegado o dia, lá estava, na
praia de Icaraí, o jovem capitalista. Risonho, amável, dissimulando com um
sorriso gentil a austeridade da sua fisionomia marcial, correu o dono da casa
ao portão, para receber o convidado e fazê-lo subir até à sala, onde madame já
o esperava, obsequiosa e linda, com o rosto a emergir, como uma grande rosa,
das espumas de neve do seu elegantíssimo "peignoir" de linho e renda.
— O Dr. Otacílio Fernandes —
apresentou o coronel.
E ao recém-chegado:
— Minha esposa...
Minutos depois, sentados à mesa
redonda, em que havia apenas três talheres, a palestra corria jovial, feliz,
entre petiscos saborosos e sorrisos significativos, quando o telefone tilintou.
Era o procurador do coronel que reclamava a sua presença, urgente, na estação
das barcas, para ultimação de um negócio inadiável.
— Diabo! — exclamou o bravo
militar. Tenho de ir, não há remédio!
E virando-se para o capitalista,
enquanto desamarrava o guardanapo:
— Esteja à vontade, doutor. É
questão de meia hora. Fique por aí; eu não demoro!
E para a esposa:
— Orminda, faze as honras da
casa; eu venho já!
Mal o coronel tomou o bonde, duas
taças se chocavam no ar, por cima da mesa, festejando ruidosamente aquele
encontro, há tanto desejado. E de tal forma foi a saudação, que, ao reentrar em
casa, o coronel foi encontrar os dois no seu gabinete, num colóquio de
excessiva intimidade. Apanhado em flagrante, o advogado pôs-se de pé, lívido.
Apoiado na porta, que empurrara, o coronel encarou-o trovejando:
— Sim, senhor, Sr. Dr. Fernandes!
Pálido, trêmulo, o advogado
lembrou-se da fama do coronel, e sentiu que chegara a última hora da sua vida.
— Sim, senhor! — tornou o
militar.
E abrandando a voz:
— Você não tem medo de uma
congestão?
Resposta difícil
Rosto em fogo, cabelos em
desalinho, Dr. Atanásio, que acaba de entrar da rua, passeia nervosamente de um
lado para outro no seu gabinete de trabalho, agitando nas mãos crispadas uma
carta que acabara de receber no escritório, e que fora, para ele, uma punhalada
no coração. À sua frente, no canapé de couro escuro, tauxiado de prata polida,
a jovem D. Eleonora esconde a face lavada de lágrimas nas duas conchas das mãos
cor de neve, soluçando de vergonha e de susto no horror daquela situação.
-- E dizer-se que eu confiava em
ti, tua honra, no teu amor, e que estava em S. Paulo tranqüilo, sereno, na certeza de que
procedias, aqui, com seriedade. com dignidade, com a correção que me havias
jurado, de joelhos, diante de Deus!... - geme, quase chorando, o pobre esposo
desesperado.
Madame procura, como um náufrago
na tormenta, uma frase com que inicie a desculpa impossível, mas o marido
atalha, agitado, com os olhos em chama, forçando-a a esconder, de novo, a
cabeça entre as mãos:
-- Que vergonha, meu Deus! que
vergonha, agora, para mim!... Nunca mais, na minha vida, poderei levantar o
rosto diante desta sociedade, que conhece, que sabe, que testemunhou,
impassível, o teu crime, a lama que atiraste sobre o meu nome!...
Enfiando os dedos na cabeleira
grisalha, passadas largas, o notável advogado mede, cada vez mais nervoso, a
extensão do gabinete, cujos tapetes lhe abafam os passos, quando, de repente,
pára, e reclama, cerrando os punhos:
-- Confessa-me. afinal: quando
foi que aquele miserável, abusando da tua fraqueza, e aproveitando a minha
ausência, penetrou nesta casa?
Adivinhando nessa pergunta um
caminho para a reconciliação, D. Eleonora levanta o lindo rosto ensopado de
lágrimas, e, fixando os grandes olhos úmidos nos olhos ardentes do marido,
indaga, apenas, pronta para uma explicação:
-- Qual?
Obediência
Mal saída do colégio, para onde
entrara ainda criança, isto é, desde que o pai, o comendador Anacleto,
enviuvara, foi a encantadora Maria Lúcia residir no palacete recentemente
alugado pelo velho capitalista em uma das ruas menos movimentadas de Botafogo.
Deslumbrada com a liberdade conquistada à força de estudo, de uma aplicação que
lhe granjeara o primeiro lugar na sua turma, apenas uma coisa a desgostou: foi
a recomendação que lhe fez o pai, severo e prudente:
-- Olha, minha filha; esta casa é
tua; governa-a como se fosses a dona. Uma coisa, apenas, eu te peço: vive
isolada, sem relações de amizade, e nunca, em hipótese alguma, incomodes os
vizinhos.
E beijando-lhe a testa clara.
coroada por uns lindos cabelos castanhos:
-- Muito juizinho; ouviu?
Duas semanas não se tinham
passado sobre a libertação de Maria Lúcia, quando uma quadrilha de ladrões,
vendo, uma tarde, sair as criadas, que a jovem patroa indultara naquele dia,
resolveu assaltar, pulando o muro dos fundos, o palacete do comendador.
Descalços, em mangas de camisa, chapéu em cima dos olhos, os miseráveis
penetraram na casa e, desrespeitando a fraqueza da moça, praticaram toda a
sorte de depredações, esvaziando as gavetas, arrombando os cofres de jóias, carregando,
enfim, com todas as coisas de valor que havia na residência do honrado
capitalista.
À noite, ao abrir a porta, de
regresso ao lar, o comendador teve um pressentimento triste, ao ver a casa às
escuras. Abertas, porém, as lâmpadas, recuou, horrorizado, para, em seguida,
precipitar-se, de compartimento em compartimento, chamando, aflito, pela
menina:
-- Maria Lúcia? Maria Lúcia? Onde
estás, minha filha?
No último quarto da casa,
esperava-o uma surpresa maior: sentada no leito, desgrenhada pálida, com as
vestes em desalinho, Maria Lúcia chorava, com a cabeça nas mãos.
-- Minha filha da minh'alma! -
gemeu o velho, atirando-se para ela. - Que foi isso?
-- Os ladrões!... - explicou a
moça, num gemido.
E enxugando os olhos;
-- Levaram tudo: as roupas, as jóias,
a louça, tudo, enfim. Depois...
-- Depois?... - rugiu o velho,
com os olhos esbugalhados.
-- Desgraçaram-me!... - concluiu
a moça, prorrompendo em soluços.
-- Desgraçaram-te?... - gritou o
velho, de dentes e punhos cerrados, com um rugido soturno, cavo, de fera
atingida no coração.
E após um instante de silencio
desesperado:
-- E como foi? Amarraram-te?
-- Não, senhor.
-- Subjugaram-te?
-- Não, senhor.
-- Taparam-te a boca?
-- Não, senhor.
-- E por que não gritaste? -
berrou o ancião, parando, de súbito, no meio do quarto.
E a moça, levantando para ele,
num soluço, os lindos olhos machucados de lágrimas:
-- Papai não disse que eu não
incomodasse os vizinhos?
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
2014, um ano de ‘entradas na posteridade’—i
Gonçalves
Dias : mais do que romantismo poético, etnia e alteridade, erotismo e sátira.
Dele,
sabe-se ser considerado ícone do romantismo poético brasileiro, quem aliás o
inaugurou temática e efetivamente : o
poeta, ensaísta e intelectual Antonio Carlos Secchin sentencia que “Canção do
exílio” é o “documento de identidade da história literária do Brasil”(segundo
ele, a carta de Caminha seria a “certidão de nascimento da história
institucional brasileira”).
Gonçalves
Dias teve vida curta: morreu aos 41 anos, a 03.11.1864, vítima de naufrágio, já
em águas brasileiras,próximo à costa, quando voltava da Europa—mas o suficiente
para merecer, com todas as honrarias, um posto no Olimpo literário do país,
ainda que com poucas obras, produzidas entre seus 23 e 29 anos : Primeiros cantos, Leonor de Mendonça (teatro), Segundos
cantos, Meditação, Últimos cantos, Os Timbiras (inacabado) , Dicionário
da Língua Tupi..
O
que pouco se conhece, e talvez muitos não sabem, é o quanto em Gonçalves Dias
existe o “alterofilista”[sem o h...]
, na expressão de Secchin, no sentido de sua dedicação, extremamente relevantes
para a historiografia literária brasileira,em estudos, reflexões e produção
poética e em prosa,inclusive em discursos e depoimentos, às questões de alteridade e de etnia, ele mesmo mestiço, filho de um
português com uma índia – apondo-as e expressando-as, sempre fazendo do índio o
elemento da identidade fundadora do
Brasil, nos poemas “Marabá”, em “I-Juca
Pirama”- em que inaugura, por assim
dizer, o ethnoslogos da literatura e
da cultura brasileiras -e em diversos outros, não fosse Dias o indianista por
excelência, e precursor, na literatura
brasileira.
Assim
como, e do mesmo modo provavelmente menos conhecida, duas outras facetas,
também importantes historiograficamente e literariamente : o erotismo e a
sátira – o primeiro presente, p. ex., em
“Leito de folhas verdes”,em “Marabá”, em “O canto do índio”; o Gonçalves Dias
satírico em “Sextilhas de Frei Antão” e
em “Que coisa é um ministro?” – apondo-se
aqui, uma observação pertinente : na
linha/via reversa, o indianismo gonçalviano,
teria sido satirizado, ou parodiado, por Bernardo Guimarães no “Elixir
do Pajé”(de resto, peça ‘clássica’ fescenina do romantismo brasileiro); e por
Múcio Teixeira em “Canto da bugra”, paródia a “O canto do tamoio”.
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Leito de Folhas Verdes
Gonçalves Dias
Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
À voz do meu amor moves teus passos?
À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.
Eu, sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.
Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.
Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!
A flor que desabrocha ao romper d`alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.
Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!
Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazóia na cinta me apertaram
Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!
Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
aos que vão ao ENEM
ainda mais neste 1750. ano de nascimento de Machado
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A crônica em Machado de Assis
Inovador na ficção, como contista e romancista – está na história da
literatura brasileira a magistral inflexão estilística, temática e de linguagem
por ele executada no final da década de 1870 -- Machado de Assis foi soberbo
cronista que fez da crônica muito mais do que um registro pontual do cotidiano,
transformando-a em um verdadeiro gênero literário, a servir de modelo, molde e
paradigma a tudo e todos que o
sucederam, inclusive os de hoje. .
Ao longo de 41 anos, Machado criou
crônicas, nos mais diversos veículos, séries, formatos e assinaturas (ou
disfarces), desde 1859, em O Parahyba (de
Petrópolis), seguindo-se colaborações para o Correio Mercantil (1859-1864), para O Espelho (1859-60); para o Diário
do Rio de Janeiro (1860-63: série “Comentários da Semana”; 1864-67: série
“Ao Acaso”), O Futuro (1862-63), Imprensa Acadêmica, de São Paulo (1864 ;
1868 :série “Correspondência da Imprensa Acadêmica”) A Semana Ilustrada (1865-75: séries “Crônicas do Dr. Semana”,
“Correio da Semana”, “Novidades da Semana” , “Pontos e Vírgulas”, “Badaladas”), Ilustração
Brasileira (1876-78: séries “Histórias de 15 dias”, “Histórias de 30
dias”), O Cruzeiro (1878: série
“Notas Semanais”), Revista Brasileira (1879), Gazeta de Notícias (1881-1900: séries
“Balas de Estalo”, “A + B”, “Gazeta de Holanda”— constituídas em versos,os ‘versiprosa’ (termo cunhado por ele e que
antecipa em muitos anos a mesma expressão usada por Carlos Drummond de Andrade
--“Bons Dias!” e “A Semana”).
Nessas quatro décadas -- com uma produção de 738 artigos -- o País teve oportunidade de conhecer um magnífico repositório da arte
machadiana de criação de muitas das
melhores crônicas da literatura brasileira – um número nada desprezível delas
consideradas verdadeiras obras-primas..
.
Machado fez da crônica mais do que simples jornalismo, superior ao
comum do gênero – haja vista o que Artur Azevedo sentenciou em artigo em O Álbum ,janeiro 1893 : "(...) Atualmente escreve Machado de Assis, todos
os domingos, na Gazeta de Notícias, uns artigos intitulados A Semana que noutro
país mais literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística",
a atestar o quanto dotou a crônica dos elementos de verdadeira literatura.
A crônica de Machado de Assis,
com suas primordiais características de leveza de tom e teor, fluência textual
e estilística muito próxima da oralidade, ironia satírica e pilhéria, metáfora
e paródia, ostenta também a presença incisiva (como ocorre em sua obra
ficcional) dos conhecidos e admiráveis elementos machadianos do disfarce, da
dissimulação, do subterfúgio, da sutileza, dos significados ocultos postos como
desafios ao leitor, por meio de outras de suas peculiaridades, o uso do
anonimato e do pseudônimo, de que ele foi um dos mais profícuos usuários, e em
especial a “arte das transições”-- levada a extremos no unir tópicos
aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que
justapostos oferecem um resultado
surpreendente,cujo trajeto é ‘amenizado’ para o leitor , primeiro desviando-o
do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral de
circularidade muitas vezes nem percebida de todo. Mestre do subterfúgio, da
dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma, Machado esconde ou disfarça
uma parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir,
utilizando armadilhas retóricas típicas de sua narrativa na ficção, executadas
também na crônica, sobretudo pelo absoluto
domínio da relação cronista-leitor, e a preponderância do conhecido
narrador machadiano, o ‘narrador volúvel’ da ficção aparecendo também na crônica :a rigor, nos
comentários e ilações desse narrador é que a crônica passa a se fazer e sentir.
Na verdade, sempre existiu em
Machado um notável e meticuloso experimentador -- mutável na utilização de formas,estilos e
modelos -- mas absolutamente
seguro,determinado e consciente.. Ao longo do tempo, Machado sempre
preocupou-se com configurações para sua
obra : (assim como o conto) a crônica foi um notável e eficaz terreno de
experimentações narrativas, nelas se revelando uma seqüência notável de
exercícios formais,estilísticos, de linguagem e de enfoque .As crônicas
machadianas possuem , em si, estrutura,forma e encadeamentos consistentes e
complexos, além de plena interação com os contextos histórico,
político,econômico, social,cultural,urbano sob os quais foram elaboradas : revelam cadeias de
pensamento e reflexão em muitos aspectos, passagens e nuances
intertextualizados, ou que viriam a se intertextualizar com elementos,ambiências
e situações de romances e contos.
Nesse particular, é possível a
construção de uma equação especulativa/ interpretativa sobre a correspondência
do estilo e enfoque machadianos postos na crônica com estilos, formas e temas
postos por ele na ficção e no conjunto de sua obra -- em especial o momento da
inflexão, por volta do final da década de 1870, cujas causas e motivos tanto
intrigam os analistas e estudiosos de
Machado. Em essência e matéria, a mesmíssima ‘reformulação’ de enfoque, forma e
estilo imprimida por Machado de Assis em sua criação ficcional –-- transpondo o
romantismo dos primeiros três romances (Ressurreição,
A mão e a luva, Helena) e a ‘ideologia’ presente nos contos iniciais (abrigados nas
coletâneas Contos fluminenses e Histórias da meia-noite), incorrente no
processo de transição no final da década de 1870 (representado por Iaiá Garcia e anunciador da inovação/
‘revolução’ sintetizada no ‘shandiano’ Memórias
póstumas de Brás Cubas) para um
aprofundamento e sedimentação do realismo, mas ‘subvertendo’ e renovando
esse realismo (em Papéis avulsos ,
consolidado em Quincas Borba , em Dom
Casmurro , depois em Esaú
e Jacó e no definitivo Memorial de
Aires ) . Esse processo de
reformulação, dizíamos , deu-se da mesma forma, sob o mesmo diapasão, com a
mesma ‘latitude’ literária , na mesma época, também na produção das crônicas publicadas na imprensa.
Ao se examinar a produção
croniquesca de Machado encontraremos
crônicas que .impressionam não apenas pela matéria registrada e narrada
mas sim pela forma de contá-la – quer interferindo direta e intimamente na
narração, fazendo do narrador o
comentarista, quer pelo distanciamento, numa forma de narrativa isenta
mas intrinsecamente crítica. Em determinadas crônicas há por certo um Machado
trivial e contido, em outros um autor meramente humorístico, com textos e
narrativas que não passam do simples divertimento; alguns, aparentemente
simplórios e despojados, mas carregados de significados; outros em que, sob a
capa de uma escrita sóbria, discreta e ‘bem-comportada’ reveste contradições e
ambigüidades comportamentais, , mazelas e injustiças sociais,hipocrisias morais
e políticas.
Importante observar ainda quanto
os períodos, os contextos históricos, os veículos e seus respectivos espaços dados à crônica, as assinaturas,
influíram tanto no enfoque temático, como
no timbre. Nenhuma série é essencial e totalmente idêntica a outra, ainda
que guardem afinidades e similaridades, mantidas as homogeneidade e unidade inerentes a
cada uma .Da mesma forma se
constata que cada época, ou série, trata ou prioriza um tema que
sobressai por sua relevância,sua particularidade, sobretudo por sua
correspondência-consonância com o momento histórico de sua feitura : às
distintas e seqüentes séries podem-se traçar a rigor, enredos e sub-enredos que
se desdobram e interligam-se em ciclos -- cada script com seu pano de fundo
temporal , sob o fio condutor da
própria história brasileira da segunda metade do século XIX.
Relevante e absolutamente
indispensável realçar, nesse sentido, o quanto Machado, ao contrário do que
equivocadamente interpretado e difundido, tratou de política em seus escritos –
também nos contos e romances, sobretudo nas crônicas -- a desmistificar a pecha
de “alheio a questões de seu tempo”, “alienado”, etc. Foi ele um lúcido
‘relator’ da história brasileira e um crítico atento e severo da sociedade e
das instituições do País : dedicou-se intensamente, para quem não sabe, a
registrar, comentar, refletir e especialmente criticar assuntos da esfera política., exposto em nada menos do que 385 crônicas
,vale dizer cerca de 52% de sua produção total de 738 artigos – o mesmo se dando com relação à economia,
referenciada e reportada em 77 crônicas..
Ficção e realidade, ficção e história, ficção
e sociedade brasileira constituem fulcros sempre presentes na obra machadiana.
Em boa parte de sua ficção e da
não-ficção Machado oferece ao leitor uma interpretação satírica, por vezes
alegórica, desnundando mitos e certezas,
aparências e disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu olhar ,por vezes direto e
transparente,por vezes machadianamente oblíquo e dissimulado, feito testemunho incomparável sobre a vida
brasileira do século XIX.
mr
sábado, 1 de novembro de 2014
aos que vão ao ENEM
ainda mais neste 175º. ano de nascimento (1839) de Machado de Assis
o conto em machado de assis
Pode-se
perfeitamente afirmar ter sido Machado de Assis mais do que o
decisivo ‘impulsionador’, do conto na literatura brasileira : foi com
efeito o criador do conto brasileiro ,porquanto a par da qualidade superior
de suas narrativas curtas, nenhum dos grandes autores que o antecederam pouco
,ou quase nada produziram no gênero -- basta examinar as obras de Gonçalves de
Magalhães, Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar, por exemplo – e extremamente
parcas,esparsas e efêmeras foram as manifestações anteriores. A altíssima qualidade literária
de Machado como contista tornou-o,desde sempre, comparável aos considerados
grandes mestres do gênero de sua época, como Edgard Allan Poe(1809-1849), Guy de
Maupassant(1850-1893),Anton Tchecov(1860-1904) – comparável e com eles
inter-textualizado .
Não obstante tal status de um dos maiores
contistas,quantitativa e qualitativamente, da literatura brasileira, quiçá o
maior, criador de 226 contos , Machado de Assis não recebeu ao longo dos anos,
mesmo nas edições póstumas, as obrigatórias integridade, completude e
responsabilidade no tratamento editorial de seus contos, cuja história
imperfeita de edições constitui-se um complexo enredo de erros, omissões, equívocos,
negligência..
Um
dos aspectos mais destacados no Machado contista – a rigor, de toda sua ficção
em prosa -- talvez sua qualidade essencial, é o emprego do esforço criador na
busca gradual e compassada,bem urdida, de uma coerência ,uma abrangência e uma
profundidade obtidas parte pelo talento nato parte (a maior) pelo exercício
consciente e meticuloso da prática literária , vis a vis com a percepção clara
do entorno histórico,social e cultural e dos meios de que dispõe para expressão
de sua obra.Essa combinação de vieses,convém enfatizar, determinou
substancialmente todo seu desenvolvimento como escritor e essencialmente o
processo da evolução literária de Machado
-- como “um todo consistente,
coerente, continuado”, com a marcante inflexão no início da década de 1880.
Inflexão
que, a par de contribuir positivamente para a análise e interpretação adequadas
da trajetória machadiana, em
contrapartida serve para sedimentar um conceito, ou avaliação, sob
alguns aspectos, discutível : a divisão
da obra -- ficcional e não-ficcional -- de Machado em duas fases ,o
‘aprendizado’ versus a ‘maturidade’,
a ‘formação’ versus a ‘radicalização’.
O fato de ser algo discutível
considerar a obra machadiana catalogada
em duas ‘fases’ não implica necessariamente em renegar a existência, como em todo processo , de
escalas e estágios, com nítidos pontos de inflexão,ou de mais intensa
transição : no caso de Machado, os anos
1868-71 , de resto condizente este com o próprio momento histórico-político do
País , e principalmente o biênio
1878-79, quando se deu, em O Cruzeiro
(março-setembro 1878), além de outros contribuições machadianas, a
publicação do romance Iaiá Garcia e
sete contos -- de titulação, temática,teor e conteúdo, que se podem considerar
‘insólitos’, ‘inusitados’,‘estranhos’[1],
diferenciados na contística machadiana --
como elementos decisivos de “ponto de viragem” ficcional antecipador da
experimentação levada a efeito em Memórias póstumas de Brás Cubas, e ainda
os contos “A chave”, “Curiosidade” e “Um
para o outro” (que recuperei – 2007-- depois de 128 anos desaparecido e tido
como perdido ), todos originariamente
veiculados em A
Estação no ano de 1879.
Notável
e meticuloso experimentador, mutável na utilização de formas, estilos e modelos,
preocupado com configurações (temáticas,tramáticas,estilísticas ,de linguagem)
para sua obra, Machado passou a fazer de
cada conto um exercício de forma,gênero e estilo – ora em diálogo, ora
paródia, ora sátira, ora epistolar, ora em forma de conferência ,ora denso, ora
leve, narrativa longa,narrativa curta, com narrador em primeira pessoa,
narrador em terceira pessoa, sem narrador; conto filosófico, conto político,
conto fantástico, história romântica, conto humorístico – e nisso vislumbram-se
diversas chaves temáticas pelas quais podem ser agrupados -- de análise psicológica , de denúncia social
, pendulando entre o formal e o
coloquial, o erudito e o popular, o nacional e o universal .
O
amor é o grande tema, central e capital, na contística de Machado. O amor visto, tido e exposto de Machado,
presentes sem exceção em todos os
contos, vez por outra inserindo como a única comunicação possível entre
pessoas,quaisquer que sejam suas natureza, caracteres, etnia,classe social, e o
casamento – e seu derivativo mordaz, o ciúme – tema difícil de ser tratado à
época ,mas sempre em defesa da base moral do amor : até mesmo quanto se reporta
a questões político-sociais como a
escravidão ,sobre a qual, ou a ela se
referindo, produziu um significativo
naipe de contos -- todos publicados,importante notar, no ‘feminino’ Jornal das Famílias.
Machado
sempre escreveu sobre mulheres e para as mulheres e não era segredo – pelo
menos até 1881,quando consolidou a longa e profícua atuação nas páginas da Gazeta de Notícias -- preferir colaborar em publicações cujo
público predominante era feminino, primeiro no Jornal das Famílias , de
1864 a
1876, e a partir de 1879 em A Estação. Tinha a mulher não apenas como protagonista de
seus romances e contos mas também sua
leitora predileta e leitmotiv. A
rigor, a mulher é a própria essência da
ficção machadiana – e nenhum escritor de seu tempo ‘edificou’ tanto a mulher como personagem
capital e basilar de seus textos como
Machado de Assis.(sem se constituir propriamente em explícito ‘defensor
dos direitos da mulher’ – muito menos um ‘dialético feminista’ -- Machado era
convicto de que as mulheres deviam ser instruídas e não permanecerem atadas à
vida doméstica,ao mesmo tempo sempre preocupado e atento para as necessidades
emocionais,afetivas e mesmo sexuais das mulheres.).
Condizentes
com as alterações e ebulições vivenciadas na sociedade brasileira nas três
décadas finais do século XIX, mutações e transformações da mesma forma se dão
no universo contístico: antes de 1880, os contos se centravam no namoro,paixão
e casamento o casamento,feliz ou
infeliz, consumado ou não, bem-sucedido ou não, por sentimento ou interesse ,
ao passo que no pós-1880 aparecem com mais nitidez formas e situações de
fragmentação e diluição do casamento e ,embora nunca consumadas de fato,
intenções e sentimentos de infidelidade afetiva – nos contos machadianos, há mulheres que flertam com a
idéia da infidelidade, mas acabam não a
consumando: importante observar que intencionada ou não, fomentada ou não,
incentivada ou não, quase sempre platônica, a infidelidade feminina é sempre contraposta, e
redimida, na redenção pelo amor -- o
grande e central tema da ficção
machadiana ; todos os sentimentos impuros e espúrios,proibidos e reprováveis,
se idealizados , ou cogitados,em nome dele , são no final por ele
regenerados.
M.R
[1] O Cruzeiro circulou no Rio de Janeiro de 01.01.1878 a 20.05.1883, e
nele Machado colaborou de 23.03
a 01.09.1878, com sete contos, 14 crônicas ( na série
“Notas Semanais”), uma ‘ópera-cômica em 7 colunas”(a definição é do próprio
Machado), um artigo referente a assunto da seara teatral, a (célebre) crítica
literária a O primo Basílio, de Eça
de Queiroz, além do romance “Iaiá Garcia”, em folhetins.
Neste particular,desenvolvi projeto de obra [ainda sem editor] que abriga os contos, e mais a “ópera-cômica em 7
colunas” e o artigo - do mesmo teor de ‘inusitado’-- que reporta ao teatro : tudo sob o título de “As
estranhas fantasias de Eleazar” (Eleazar, o pseudônimo utilizado por Machado em
todos os textos de colaboração em
O Cruzeiro )
sábado, 18 de outubro de 2014
Em tempo de eleições : Lima Barreto e a política
Em essência, Lima Barreto sempre tratou mais
de política do que qualquer outro tema. Ninguém como ele, em seu tempo,
escreveu tanto sobre o tema e, por extensão, sobre questões sociais. Sua ‘literatura militante’,
assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra: sua visão
crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da
luta social; nos jornais e revistas investiu contra todos os signos do poder,
nos textos ficcionais denunciou as profundas injustiças da sociedade
brasileira.
Toda a obra barretiana desenvolve-se a
partir e em torno de um tema nuclear: o
poder e seus efeitos discricionários — o poder
visto e descrito por ele como “o
variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior
da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis,
tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as
possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa
inserção social”. Tinha a visão verticalizada, analisando desde as
estruturas políticas como o governo e as ideologias, e as instituições
culturais como a imprensa e a ciência, até os modelos determinantes do
comportamento coletivo e do relacionamento cotidiano. Lima Barreto era, acima
de tudo, um anti-patrimonialista.
Crítico implacável da pretensa modernidade que
se queria implementar com a República, avesso a todas as formas de assimilação
de valores estrangeiros (no bojo, p. ex. de sua resistência ao futebol, ao
cinema e à cultura importada ), defensor ,por vezes intransigente, de uma
brasilidade que sustentava devia permear a “autêntica língua nacional”, foi no
entanto opositor ativo do nacionalismo
ufanista surgido no final do séc. XIX e início do XX,a começar por questionar as imagens errôneas que o Brasil
fazia de si mesmo, levando ad absurdum os clichês e mitos nacionalistas e os
desmascarando um a um.(no romance Triste
fim de Policarpo Quaresma parodia
implicitamente o opúsculo patrioteiro de Afonso Celso, filho de seu protetor,
intitulado Por que me ufano do meu país
(1901), livro muito popular no começo do século XX, que deu origem ao termo
ufanismo e foi traduzido para diversas línguas na época, inclusive o alemão. Lima Barreto inclusive alertava para
o que denominava “um dos mitos mais
perigosos,o do patriotismo : no fundo, os patriotas grandiloqüentes de plantão
não passam de traidores da pátria, pois a usam para a sua própria autopromoção
e enriquecimento (...), a sociedade
de classes e o Estado a
instrumentalizarem o patriotismo e o nacionalismo em favor do interesse das
elites.”. Na contrapartida, procurou esboçar um patriotismo social, com
consciência histórica e respeito pela cidadania, ancorado na cultura própria,
resistente ao cosmopolitismo e de reconhecimento da mestiçagem – étnica,social
e cultural --no Brasil.
Para
ele, a nova sociedade ,caracterizada
pelo binômio cosmopolitismo, inspirador das ações da elite do país , e
bovarismo[1],
“atitude mistificatória de o homem se
conceber outro que não é, entre o que é e o que acredita ser”, era um
sistema que premiava o egoísmo, o banal, a decadência dos costumes, o
preconceito, lastreada nos valores máximos da elite – a fruição do conforto
material, os privilégios, a superioridade, gerando discriminação e
sectarismo. “A nossa República se
transformou no domínio de um feroz sindicato de argentários cúpidos, com os
quais só se pode lutar com armas na mão. Deles saem todas as autoridades, deles
são os grandes jornais, deles saem as graças e os privilégios; e sobre a Nação
eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que
lhes convém” [2]
Lima Barreto,em sua fértil produção
contística, publicou 46 contos de teor explicitamente político – ainda que em
alguns deles, caso específico do conjunto de 13 textos que ele próprio batizou
de “contos argelinos”, se utilize da alegoria e do simulacro. Exemplares
insofismáveis de veemente oposição à República, da ferrenha crítica aos
governos republicanos ,notoriamente o ‘florianismo’ (referente a Floriano Peixoto) e o ‘hermismo’ ( a Hermes
da Fonseca)[3]
-- já objetos de críticas exacerbadas em inúmeros artigos e crônicas e também
na novela Numa e a ninfa e no memorialístico Diário íntimo --
expressão do intransigente e obstinado
repúdio para as coisas da política, aos
políticos, aos conchavos partidários,às oligarquias , Lima Barreto os “contos argelinos” têm
em seu cerne paródico a ascensão dos militares, com sua crescente participação
na política, e o militarismo — importando
notar que, em outro viés de leitura e interpretação, trazem em si a emblematização ficcional do patrimonialismo,
contra o qual Lima Barreto se colocava na própria essência de sua ideologia.
A
criação, confecção e publicação desses 46 contos deram-se em período histórico
conturbado, durante os sucessivos governos de Hermes da Fonseca, Venceslau Brás
e Epitácio Pessoa, em sete dos mais cruciais anos de plena sedimentação do
regime republicano — de resto um processo de altíssima ebulição política,
convulsionante e transformadora.
Por
essa época , apenas Lima Barreto (Euclydes
da Cunha morrera em 1909) mantinha , entre os escritores, uma postura
participativa – de natureza crítica -- nas coisas da política , uma vez que os
demais literatos se afastaram do
envolvimento e da militância a que se entregaram ainda durante as campanhas
abolicionista e republicana, nas últimas décadas do século XIX e início do
século XX : frustrados a expectativa e o entusiasmo iniciais despertados pela
República , os intelectuais desistiram da participação política ativa,
militante, que muitos tiveram no advento do novo regime e passaram a se
concentrar na literatura e em parte no jornalismo ‘croniquesco’,
dedicando-se a produzir uma literatura
de linguagem empolada, o ‘clássico’
calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos
estilísticos — uma literatura impregnada
de vocábulos garimpados do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da
frivolidade dominante. Uma literatura como “o sorriso da sociedade” de que
falava Afrânio Peixoto e contra a qual Lima Barreto lutava com denodo.
No
lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante ,
destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, Lima Barreto por
essa época já era respeitado como articulista e cronista e reconhecido como
excepcional escritor mercê dos elogiados romances publicados Recordações do escrivão Isaias Caminha(1909)
e Triste fim de Policarpo Quaresma
(1915)—que rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho
jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional,
“instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa
civilização”. Sustentava ele que fazia “uma
literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época
(...), por oposição às letras que,
limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da
idealização da natureza”.
Na
contrapartida ao aristocratismo da escrita de então , aos nefelibatas da
linguagem, tinha-se em
Lima Barreto um registro da
língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente
nacional que prenunciava a linguagem
modernista.
Contrariamente
à maioria de seus contemporâneos, Lima
Barreto conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão
social, de contribuir para a felicidade de um povo ,de uma nação, da
humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com
objetivo concreto e definido, como sentencia em entrevista a A Época,18.02.1916
: “(...)não desejamos mais uma literatura contemplativa, cheia de ênfase e
arrebiques ,falsa e sem finalidade, o que raramente ela foi; não é mais uma
literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre
mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a
morte dos que os adoravam; digamos não a uma
literatura puramente contemplativa, estilizante sem cogitações outras
que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados
pelo dinheiro, de amplo emprego por pretensos intelectuais,bacharéis e
políticos” (...) “a obra
de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Este é meu escopo.
Vim para a literatura com todo o desinteresse e toda coragem. As letras são o
fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar:
glória!”
Dono
de obra ficcional e não-ficcional com vigoroso fulcro ideológico, Lima Barreto
buscava na politização da literatura um sentido sobretudo ético.Na única
conferência literária que faria, mas não o fez — “O destino da Literatura”
[publicada na Revista Souza Cruz,Rio de Janeiro, 1921 , em cujo número
também apareceu trecho do romance O cemitério dos vivos ], em Rio Preto , São Paulo, em
fevereiro de 1921 — foi explícito :“A Beleza não está na forma, no encanto
plástico, na proporção e harmonia das partes, como querem os helenizantes de
última hora . A importância da obra literária que se quer bela
sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, deve residir
na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano(...)
E o destino da literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande
ideal de fraternidade e de justiça entre os homens para que ela cumpra ainda
uma vez sua missão quase divina. Mais do que qualquer outra atividade
espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me
dediquei e com quem me casei; mais do que ela, nenhum outro qualquer meio de
comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve,
tem e terá um grande destino em nossa triste humanidade.”
Marginalizado
por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à
modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira
que lhe foi contemporânea. Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de
militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos
intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma
literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma
verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais
de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado pensamento
de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face
do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta
na vida” [Bagatelas ; Empresa de Romances Populares, Rio de
Janeiro,1923].
Tanto nos romances e contos como nas crônicas
e artigos, Lima Barreto exerceu sempre
uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia
política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por
uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’,
para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da sociedade, da
política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público,
penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas nada o
fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da República.
A “esperança” mencionada por Lima
Barreto na entrevista de 1916 alimentava-se na verdade da recusa impassível em
transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por
via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos,
econômicos, sociais e culturais da República. Nada porém o fez submeter-se a
esses valores.
[1] bovarismo, conceito cunhado pelo filósofo francês Jules de Gaultier em
sua obra Le Bovarysme, em 1892, advindo de Gustave Flaubert e sua Madame
Bovary, seja em relação à figura do artista ‘sonhador irresponsável’ seja a
um comportamento artificial simbolizando
um falseamento da vida,um desejo irreal de fuga – o abismo que se abre entre as duas escalas, a
da realidade e a do imaginário, conferindo-lhe
uma dimensão ao mesmo tempo trágica e irônica ; o termo é especialmente
empregado também com o sentido da alienação intelectual que precede a construção
de uma identidade cultural própria. Lima Barreto -- para quem o bovarismo era
uma atitude mistificatória típica da nova elite, extremamente prejudicial para
o país, “o poder partilhado no homem de se conceber
outro que não é, o afastamento entre o indivíduo real e o imaginário,entre o
que é e o que acredita ser” -- aplicou esse conceito tanto literariamente –
no romance Triste fim de Policarpo Quaresma e nos contos “A biblioteca”, “Lívia” e “Na
janela” aparece como a própria essência
dos textos – quanto socialmente : segundo ele, a República estava toda imersa
em atitudes bovaristas e ,pior, os
próprios intelectuais, teoricamente dotados de maior capacidade e lucidez
críticas, mergulharam desde o início numa militância ufanista,destemperada, de
otimismo ingênuo ; e esse ufanismo bovarista era uma forma terrível de se
alienarem dos graves problemas do país.
[2] “Sobre a carestia”, in O
Debate, 15.09.1917.
[3] em dezembro de 1909,Lima Barreto editara com Antônio
Noronha Santos (o maior de seus amigos) um panfleto contra a candidatura Hermes
da Fonseca à presidência da República, intitulado “O Papão – semanário dos
bastidores da política,das artes e... das candidaturas”.
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