quinta-feira, 14 de março de 2013

Os jesuítas e Literatura Brasileira


a propósito da  escolha do novo papa – um jesuíta (pela primeira vez no pontificado)  -- considerações sobre os jesuítas e a  própria formação e constituição da Literatura Brasileira (e especificamente a fundação da cidade de São Paulo).

o texto a seguir integra minha obra São Paulo, cidade literária [ 1ª. edição publicada em 2004; nova edição – atualizada,aperfeiçoada – ainda sem editor].
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      A par da própria fundação da Vila São Paulo de Piratininga, a existência  literária  da cidade  teve na instalação da Companhia de Jesus e no movimento de catequese seu impulso original , por meio de obras de caráter ‘semiliterário’, destinadas precipuamente a desígnios pedagógicos e ecumênicos.  O conjunto dos primeiros textos escritos no Brasil, produzidos no período imediatamente posterior à chegada dos portugueses, em 1500, até o ano de 1601, é conhecido como "literatura de informação", "textos de informação" ou "primeiras manifestações literárias" __ termo escolhido para se referir a essa produção do período formativo, anterior à constituição de uma literatura brasileira. São obras de reconhecimento e valorização da terra escritas por jesuítas, viajantes estrangeiros e colonizadores portugueses encarregados de enviar relatos sobre a nova terra ao rei de Portugal. Se hoje existe uma visão crítica do que significou o ‘descobrimento’ do Brasil e o decorrente processo civilizatório, não se pode negar que os textos produzidos naquela época são o melhor testemunho não apenas dos eventos que deram origem ao que se tornaria o Estado brasileiro, mas que principalmente revelam o pensamento político e religioso que estava na base de todo o colonialismo.
     Nessa fase em que a literatura colabora para a consolidação da conquista do território e do domínio português, o mesmo interesse "desbravador" une leigos e religiosos nos primeiros registros escritos sobre a nova terra, chamada Terra de Vera Cruz, Santa Cruz, dos Canibais, do Pau-Brasil, entre vários outros nomes.Ao lado de cronistas e viajantes --Pero Vaz de Caminha, Pero de Magalhães de Gandavo , Gabriel Soares de Sousa,Ambrósio Fernandes Brandão, além das narrativas de viajantes franceses e alemães, como de Jean de Léry e Hans Staden -- os jesuítas foram os autores mais assíduos da época. Chegados ao Brasil em 1549, chefiados pelo padre Manuel da Nóbrega, imbuídos da missão de catequizar o indígena, desempenharam papel crucial no início da organização da vida administrativa, econômica, política, militar, espiritual e social durante os primeiros anos da colonização.
               “Os documentos jesuíticos não são apenas história do Brasil: são essenciais à ética brasileira.”          (Afrânio Peixoto,in  “Introdução” a Cartas do Brasil, de Manuel da Nóbrega)
      A maior significação da obra  dos jesuítas no Brasil reside na heróica tentativa, nos séculos XVI e XVII, de contestar o tipo de sociedade em vias de formar-se, substituindo-a por um modelo teocrático de civilização, sem escravos, nativos ou importados. Os jesuítas -- em sua dupla atividade na Colônia: de magistério e de catequese(o índio como a matéria-prima de uma nova sociedade) --  tinham um projeto para o Brasil -- i.e. sem o objetivo de fazer da colônia uma simples máquina de alimentação de necessidades exteriores a ela.O insucesso do projeto jesuítico no Brasil Colônia explica por que a primeira manifestação literária brasileira -- a literatura dos catequistas, a primeira literatura feita para o Brasil -- ficou sem sucessão histórica e perdeu a consistência  de registro historiográfico perene.
        É consensual, aliás, que as manifestações literárias, ou de tipo literário, se deram no Brasil até a segunda metade  do século XVIII sob “o signo da religião e da transfiguração”-- a religião como a grande diretriz ideológica, justificativa da conquista, da catequese, da defesa contra o  (outro) estrangeiro, da própria cultura nacional que se pretendia implementar : nela se abriga toda a obra de José de Anchieta e muito dos escritos epistolares de Manuel da Nóbrega [ pela transfiguração, o “espírito culto exprimindo uma visão da alma e do mundo, em caprichoso vigor expressivo, manto rutilante a interpretar a realidade” , vieram a  poética de Alexandre de Gusmão, o romanesco de Teresa Margarida Orta, as elucubrações ensaísticas de Matias Aires, já no século XVIII].
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Ainda que  modestos, quanto a méritos artísticos, estéticos e literários, os textos compostos pelos jesuítas -- com as obras de Manuel da Nóbrega e José de Anchieta __ inauguram, no terreno propriamente literário, e não apenas documental, ‘de informação’, a história das letras no Brasil: a mais antiga página literária brasileira é o Diálogo sobre a conversão do gentio, escrito por Nóbrega em 1557 ou 58. Os escritos de Manoel da Nóbrega, por exemplo, formam um marco literário genuinamente produzido no Brasil : com a carta que noticia sua chegada ao território brasileiro, inaugura, em 1549, a literatura informativa dos jesuítas. Em suas cartas  encontra-se o início da história do povo brasileiro, evidentemente sob o ponto de vista do catequizador.
Foi com José de Anchieta que a produção dos jesuítas atingiu seu ponto máximo. Ele se destaca como o único autor do período cuja produção extrapola o caráter meramente histórico. Anchieta chegou ao país em 1553, no séquito do segundo governador-geral de colônia, Duarte da Costa ; escreveu em latim, português, espanhol e tupi, foi poeta lírico, dramaturgo, professor, epistológrafo e filólogo. É autor de poemas líricos, épicos, autos, cartas, sermões e da primeira gramática da língua tupi.
Não são poucos os historiadores da literatura que atribuem a José de Anchieta o papel de fundador da literatura luso-brasileira. Anchieta  foi a primeira grande figura de literato (não o primeiro grande escritor) do Brasil Colônia. Utilizando o português, o espanhol, o latim e o tupi --_de que fez a primeira gramática conhecida --_ compôs uma obra que percorreu vários gêneros literários: o sermão, a carta, o teatro, a poesia.A poesia,de cunho místico, embora fiel aos padrões e “medidas” dos cancioneiros medievais , expõe a fé católica ambientada no Novo Mundo -- destacando-se os poemas “Do Santíssimo Sacramento” e “A Santa Inês” , e o célebre  “Poema da Bem-Aventurada Virgem Mãe de Deus Maria (De Beata Virgine Dei Matre Maria)”, com 5786 versos, escrito na areia da praia de Ubatuba, quando  prisioneiro dos índios tamoios.
Dedicado igualmente à arte epistolar,Anchieta reflete em suas Cartas Jesuíticas -- importantes documentos informativos  --o domínio da escrita e do ofício de escrever.Sobretudo para o teatro -- impregnando seus autos  de conceitos morais e pedagógicos --_Anchieta produziu duas manifestações dramáticas fundamentais : Na Festa de São Lourenço(1583), peça trilingue(português, espanhol e tupi) em quatro atos, com dança cantada; e Auto da Pregação Universal, representado em Piratininga em 1567 -- a primeira encenação teatral realizada na  cidade e no estado de São Paulo, e  no Brasil.
Anchieta criou autos religiosos em que convivem diabos e santos, anjos e personificações alegóricas, Cristo e a Virgem, soldados e mercadores, índios e padres jesuítas. Os diabos têm nomes tupis (Saraiúva, Aimbirê, Guaixará) e surgem em cena pintados de vermelho, emplumados e tatuados, falam tupi, fumam e se embriagam, declaram-se antropófagos e assassinos, adúlteros e luteranos. Era dessa forma que o padre transformava seu teatro em instrumento de convicção, persuasão e catequese. 

sexta-feira, 8 de março de 2013

Quem tem medo da literatura feminina / feminista ?


 pelo 8 de Março; por todos os dias,sempre  !
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Preconizada por Virginia Woolf, na década de 1930 [Virginia, irônica e realista, em conferência para jovens universitárias inglesas no Giron College, estabelecia as condições mínimas para que as mulheres atravessassem a fronteira física e psíquica da criação literária, ao declarar : “tendo um quarto para si e renda própria” -- ditames abrigados no livro A Room of One’s Own (Um quarto todo seu.) ], defendida pelas feministas  européias de 1970, uma ‘escrita feminina’ ganhou corpo (e forma) na literatura .
Mulheres escritoras (ficcionais e não-ficcionais) passaram a ter – ou adquiriram, por ‘méritos próprios de qualidade e personalidade  -- voz própria, estilo próprio, linguagem própria, temática própria, longe de “simplesmente reproduzirem modelos falocêntricos, caracterizados por racionalismos e pragmatismos”  acentua a ensaísta  Luce Irigaray:

Qual seria afinal uma ‘linguagem feminina’, como se expressa  um discurso essencialmente  ‘feminino’? existe afinal  uma voz especificamente feminina ?

Apesar das (para alguns, incontornáveis) dificuldades para uma definição precisa, entendo  -- e sustento, convicto -- existir uma linguagem literária feminina com elementos, valores e vetores próprios, nitidamente percebidos na prosa ficcional, na poesia  e no teatro, e que só fazem acrescentar e enriquecer a Literatura (e a Cultura, em geral) – linguagem marcada pela subjetividade, por uma escrita mais sensorial e sensível, mais poética, lírica , uma escritura com ‘o corpo e a alma’.
Na ficção feminina, o (originariamente ditado pelos cânones românticos) amor -- condimentado pelo erotismo, por vezes intenso -- deixa de ser tema absoluto para ceder espaço a sondagens existenciais, e até ao questionamento político e filosófico. Tudo isso traduzido e materializado em experiências formais e estilísticas : fragmentação narrativa, o ritmo ‘labiríntico’ no lugar da estrutura  linear, intertextualidade, tendência a impregnar a escrita com elementos de oralidade,  foco narrativo múltiplo,  intenso fluxo-de-consciência..
 Certamente pode-se encontrar desses elementos na denominada ‘literatura masculina’– e efetivamente encontra-se : como negar serem essencialmente ‘femininas’ a linguagem literária, o estilo, a escrita de Marcel Proust, de Flaubert, de Balzac, ou muitas passagens de Tolstoi, e mesmo de Shakespeare, para citar gigantes da literatura universal – o que,de algum modo, desmistificaria esse tipo de distinção acentuada, da qual, enfatizo, não sou partidário. Gratifica-me bastante acentuar que a escrita feminina, marcante como é, ostenta suas características próprias, peculiares, plena de,digamos, ‘personalidade literária’, assim como a possui,em sua devida proporção, a ‘literatura  masculina’. 
 E no que enfatizo a concreta existência e expressão de uma literatura feminina,vis a vis com  uma ‘literatura masculina’ [sic],  longe muito longe de ratificar, conforme certas críticas de contingentes feministas, uma indesejável,digna de repúdio “divisão de sexos”, ao contrário justamente confere identidade própria e plena personalidade às linguagem,escrita e estilo praticados literariamente pela mulher. A meu juízo, valorizo-as, dignifico-as,
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uma escrita feminina brasileira, sim

Muitos constataram — e comprovaram — a influência negativa da literatura em relação à posição da mulher na sociedade, "os literatos, romancistas e poetas explorando a concuspicência, a imoralidade e a luxúria que chamam amor; e naturalmente como nas relações entre senhor e escrava só pode haver obscenidade, os homens de talento produziram montanhas de livros onde a patologia mundana do amor é rebuscada ao mais íntimo e profundo limite." Com o tempo e a evolução dos conceitos sociais, almejada uma efetiva  mudança na sociedade, tornou-se imperativo repensar a condição feminina, enxergando a mulher, não como um complemento da família, mas como importante agente de mudanças pela função que exerce na sociedade.
 No Brasil, o surgimento de mulheres escritoras ocorre principalmente a partir do século XIX, no contexto da crescente importância da imprensa e do início de movimentos em prol dos direitos das mulheres. Quando as questões relativas à emancipação feminina começaram a aparecer na imprensa, as mulheres se organizavam associativamente e passaram a reivindicar maior participação na sociedade em mudança. Ocorreram então os primeiros movimentos organizados tendo como principal objetivo a melhoria das condições de vida da mulher — desde que orientada pela ótica masculina. [afinal, na constituição da família brasileira sempre imperou o pater familias, ou seja, o poder  nas mãos do homem, responsável não só por seus escravos e agregados como também por sua mulher, filhos e netos — a família patriarcal como a célula mais importante da formação da sociedade; este poder social do homem advinha do direito consuetudinário e as próprias leis brasileiras asseguravam-lhe autoridade : os direitos civis no Brasil, basicamente, até 1890, eram uma extensão dos de Portugal, isto é, eram regidos pelas Ordenações Filipinas — o primeiro Código Civil Brasileiro só vigorou a partir de 1917. Na família monogâmica, criada para preservar o poderio econômico dentro de um mesmo grupo sangüíneo, exigia-se que a sexualidade feminina fosse rigorosamente controlada, pois era a única forma de que o homem dispunha para assegurar a paternidade e a herança familiar. ]
 O que não impediu, porem, a formação de uma linhagem de mulheres militantes dentro da literatura (como personagens ou como autoras) e da sociedade (na militância política, por meio sobretudo do veículo jornalístico) que desenvolveram trabalho emancipatório preparador das condições que propiciariam, no século XX, a implementação e solidificação de um movimento que se  poderia chamar de estética feminista.
 Na literatura brasileira, considera-se o romance Úrsula (1859), da maranhense Maria Firmina dos Reis, a primeira narrativa de autoria feminina. O romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da história. Contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da protagonista, vítima da sanha do cruel perseguidor.
 No entanto, de modo geral a  escrita praticada por mulheres esteve ausente dos anos decisivos para a formação da literatura brasileira durante o século XIX , na vigência do Romantismo – o que soa algo inusitado, porquanto justamente a mulher como leitora foi o grande,crucial, basilar elemento,primeiro pela prática de leitura no país, responsável pela existência e proliferação de escritores e da própria  literatura brasileira. Se não totalmente ausente do mercado, restrita a colaborações em periódicos de vida curta ou de público definido pela circulação no espaço doméstico (o que, de resto, significa em meados dos 1800  uma confirmação  antecessora   à  interpretação de Virgina Woolf, da década de 1930).. As primeiras manifestações de escrita feminina levadas oficial e intensamente ao público externo vieram no final do século XIX, já na ‘vigência’ do Realismo na literatura brasileira [paradoxal ? seria o Romantismo  ‘mais apropriado’ para a expressão da écriture féminine?, reflito...]
 Loas, todas as loas, portanto, para as pioneirissimas  Rita Joana de Souza, Ângela do Amaral Rangel, Barbara Heliodora, Maria Josefa Barreto, Beatriz Francisca de Assis Brandão, Maria Clemência Silveira, Delfina Benigna da Cunha, Ildefonsa Laura Cesar, Ana Euridice de Barandas, Nisia Floresta, Violante de Bivar e Velasco, Alta de Souza, Clarinda da Costa Siqueira, Joana Paula de Noronha, Ana Luisa de Azevedo Castro, Maria Firmina dos Reis, Adelia Fonseca, Maria Benedita de Oliveira Barbosa (Zaira Americana), Maria Angélica Ribeiro, Isabel Gondim, Maria do Carmo de Melo Rego, Rita Barém de Melo, Joaquina Meneses de Lacerda, Ana Ribeiro, Julia da Costa, Amália Figueiroa, Luciana de Abreu, Serafina Rosa Pontes, Adelina Vieira, Josefina Álvares de Azevedo, Carmem Dolores, Narcisa Amália, Gabriela de Andrada, Maria Benedita Bormann, Inês Sabino, Anália Franco, Delminda Silveira, Adelaide de Castro Guimarães, Honorata  Carneiro de Mendonça, Carmen Freire, Emilia Freitas, Vitalina de Camargo Queirós, Ana Facó, Francisca Izidora da Rocha, Maria Carolina Corcoroca de Souza, Ana Autran, Corina Coaraci, Luísa Leonardo, Alexandrina Couto dos Santos, Ana Aurora do Amaral Lisboa, Revocata Heliosa de Melo, Anna Alexandrina Cavalcanti de Albuquerque. Até entrarmos o século XX com Júlia Lopes de Almeida, chegar a Gilka Machado e Maria Lacerda de Moura. 

Sob o risco de não elencar aqui todas as escritoras de hoje, o que seria praticamente impossível,contemporaneamente a escrita feminina brasileira encontra  expoentes, entre outras, em: Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria Alice Barroso, Maria Helena Cardoso,Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César ,Hilda Hist, Adélia Prado, Lya Luft,Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Nilma Gonçalves Lacerda, Maria Adelaide Amaral, Luzilá Gonçalves Ferreira, Myriam Campelo. E entre as mais novas, Heloisa Seixas, Patricia Melo, Fernanda Young ; e nas novissimas, Carmen Oliveira, Adriana Lisboa, Maria Conceição Góes, Clarah Averbuck, Cíntia Moscovich , Leticia Wierzchowski. O ensaísmo abriga Flora Sussekind, Heloisa Buarque de Holanda, Leyla Perrone-Moisés, Walnice Nogueira Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Nelly Novaes Coelho, Marisa Lajolo, Marilena Chuaí, Marilene Felinto, Eliane Vasconcelos, Beatriz Resende. E outras e outras e outras, muitas outras   
   
Os homens e as mulheres

Naquele  século XIX e na primeira quadra do século XX, no entanto, não foram apenas elas que escreveram ‘sobre elas ou para elas’: quatro  escritores-homens se destacaram por voltar-se, em graus e enfoques diferentes, para as mulheres.: Joaquim Manuel de Macedo descreveu-a e tratou-a como “donzela de irrepreensíveis pendores” em especial em A Moreninha e em inúmeros contos.  José de Alencar traçou o mais completo retrato da mulher ‘urbana’ da corte, no Brasil pós-Independência, no auge do romantismo, notadamente na trilogia  Senhora, Diva e Lucíola, além de nas novelas Cinco minutos e  A viuvinha ,e nos romances   A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação.  
Há de se destacar, porém, Lima Barreto: debruçou-se como ninguém sobre a mulher ‘republicana’ : primeiro na década de 1910, ao desenvolver o “tema de Carmen” , uma série de artigos e crônicas  em jornais e revistas nas  quais a propósito de crimes ou julgamentos,  ataca os homens “que se atribuem direitos sobre a vida das mulheres”, denunciando crimes de uxoricídio, nos quais homens matavam “mulheres infiéis”— e pior eram absolvidos nos julgamentos por “legítima defesa da honra”; e ao longo de toda sua produção croniquesca em jornais e revistas tratar de questões como movimento feminino, voto feminino, direitos femininos.
A rigor, Lima Barreto , que nunca silenciou sobre seu tempo, não poderia mesmo  ficar alheio à situação da mulher na realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas transformações na sociedade. Retratou e a fez personagem em  contos e romances, escreveu sobre a mulher em artigos e crônicas, publicadas em jornais e revistas — sob um  caráter de ambigüidade,ora a criticando, por vezes atacando, ora a defendendo, muitas vezes enaltecendo : diz-se “antifeminista”, põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas defende a necessidade de instrução para a mulher ; repele o ingresso da mulher no serviço público (“... rendosos cargos para as mulheres das classes sociais mais favorecidas : e as reivindicações das operárias ?...”), mas defende o divórcio ; imbuído da moral do seu tempo, retrata a mulher pela ótica comum,  Lima destila sua ácida  ironia crítica sobre a mulher ,mas denuncia sua “absurda” situação de dependência aos homens . Longe, muito longe da falsa, equivocada acusação de  misoginia, posicionado na realidade contra o movimento feminista brasileiro — o que ele denominava “feminismo bastardo, burocrata”— não contra as mulheres,e sim como ojeriza aos signos do progresso republicano, Lima Barreto sempre dá à mulher espaço significativo em sua obra ficcional e não-ficcional : nos romances, contos, artigos e crônicas, apontamentos e notas, comenta a situação da mulher perante o casamento; a viuvez; as oportunidades educacionais e profissionais; a moral que lhe é imposta pelo duplo valor; a desigualdade de julgamento do adultério masculino e do feminino; o mundo da prostituição e o início do movimento feminista no Brasil — e sobretudo defende intransigentemente a mulher “que são “como todos nós, sujeitas, às influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores". Uma ambigüidade implícita e explícita em seus artigos não permeia o retrato da mulher elaborado em seus romances, novelas e contos, em que elas  têm sempre atitude e comportamento progressista, são superiores aos maridos (exemplos de Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara dos Anjos; Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; muitas outras em contos, etc) .
Porém, nenhum escritor brasileiro do período ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis. Ele  escrevia sobre mulheres e para mulheres. Amores e frustações femininos eram temas constantes, sempre presentes o ciúme, o adultério, a prostituição, e as personagens femininas ocupam lugar privilegiado, lugar de destaque em todos os romances e na maioria dos contos.E mais :Machado sempre escreveu para periódicos cujo público era predominantemente feminino, primeiro no Jornal das Famílias ,depois em A Estação.
Nas entrelinhas de seus contos, romances, e também de suas crônicas, Machado sempre chamou atenção para as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras: argumentava que a mulher devia receber instrução e não ficar confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à liberdade -- daí, seus temas mais constantes: o ciúme e o adultério. Machado trouxe à luz a questão da sexualidade feminina ,a exemplo de Flaubert, Balzac, Eça, e mais tarde Freud . [aliás, como Roberto Schwarz diz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois” -- nos romances, principalmente da ‘segunda fase’, Machado capta de forma aguda, a la Freud, as sutilezas do ‘discurso do desejo inconsciente’,  descreve conflitos e enfatiza o inconsciente, sua obra como o principal elemento/vetor de pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise ; a percepção acentuada do funcionamento do psiquismo humano na verdade vem desde as primeiras obras.]
Na a maioria dos romances, a mulher é o elemento forte, põe o homem dependente, é também o esteio, a base da relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, a figura masculina sendo até desnecessária; é  comum no romance machadiano, que retrata a sociedade de seu tempo, mulheres fortes, viúvas que não mais casam, como em Iaiá Garcia, Dom Casmurro, Casa Velha, Memorial de Aires. Em toda sua obra, Machado enfatizou o personagem feminino: mesmo em sua primeira fase, Livia, Guiomar, Helena, Iaiá Garcia, Lalau já dominavam; na segunda fase, as mulheres -- Marcela, Virgília, Sofia, Capitu, Fidélia, Carmo --são personagens de grande densidade psicológica
Um número surpreendente de contos são o que pode ser catalogado como  ‘estudos sobre a mulher’: “Singular ocorrência”; “Capítulo dos chapéus”; “Primas de Sapucaia!”; “Uma senhora”; “Trina e una”;  “Noite de almirante”; “A senhora do Galvão”; “Missa do galo”; “D. Paula”, encenam vários tipos femininos e situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum . Em todos, estão presentes os elementos básicos da ficção machadiana: ciúme, adultério, e prostituição.
Para muitos estudiosos, Machado era mesmo ‘feminista’ (eu, particularmente, não chego a tanto...)-- e a cada leitura de seus contos,  romances e crônicas nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo.

p.s..  para não restarem dúvidas :no que enfatizo a concreta existência e expressão de uma literatura feminina, vis a vis com  uma ‘literatura masculina’ [sic],  longe muito longe de ratificar, conforme certas críticas de contingentes assumidamente feministas, uma indesejável,digna de repúdio, “divisão de sexos”, ao contrário justamente confere identidade própria e plena personalidade às linguagem,escrita e estilo praticados literariamente pela mulher. A meu juízo – isso sim -- valorizo-as, enalteço-as, dignifico-as. [MR]