segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

história triste para um dia alegre,avisa o Autor


o título acima é o subtítulo que Arthur Azevedo apôs no conto -- per se, exemplo lapidar da ficção azevedina, em que o cômico se une ao trágico, sob os panos de fundo ,comuns ao conto e ao teatro, da vida conjugal,relações afetivas, infidelidades, a cidade do Rio de Janeiro


O palhaço
Como se explica que o Saraiva, um homem que tomava a sério as coisas mais cômicas da vida, e, segundo afirmavam as pessoas que o conheciam mais de perto, nunca ninguém viu rir, como se explica que o Saraiva, na terça-feira gorda de 1885, saísse de casa depois de jantar e, sem dizer nada à senhora, comprasse uma vestimenta de palhaço, uma cabeleira e uma máscara, e com tais objetos se metesse no seu escritório na rua do Hospício, de onde saiu disfarçado? Ninguém diria que escondido naquela roupa alegre, muito branca e semeada de rodinhas vermelhas, e por baixo daquela cabeleira azul, encimada por um chapeuzinho minúsculo e pontiagudo, e por trás daquela carranca jocosa, que ria de um rir comunicativo, estivesse o grave comerciante, que parecia haver nascido para vida monástica.
A esposa desse urso, D. Balbina, era, quando se casou, uma rapariga expansiva e risonha; teve, porém, que se submeter ao feitio dele: tornou-se tão séria e tão sensaborona como o Saraiva, e, sozinha em casa, sem filhos, sem amigas, porque o marido não queria visitas, aborrecia-se muito.
Aborrecia-se tanto que procurou uma distração, e encontrou-a num belo rapaz, seu vizinho, que de vez em quando pulava o muro do quintal para fazer-lhe companhia, e consolá-la daquele silêncio e daquela solidão.
Infelizmente para ela, outro vizinho, por inveja ou simplesmente por maldade, escreveu uma carta anônima ao Saraiva, de que ele tinha um sócio de cuja existência não suspeitava - e ora ai está como se explica que naquela terça-feira gorda, depois de dizer a D. Balbina que ia para o escritório, onde se demoraria até tarde da noite, fechando uma correspondência que devia partir no dia seguinte, o austero e sisudo negociante foi se vestir de palhaço para apanhar a esposa em flagrante delito.
- Eu saio, os criados saem, pensou ele; se ela tem realmente um amante, é de supor que aproveite a ocasião para metê-lo em casa...
Bem pensado, porque um quarto de hora depois de sair de casa o marido, o amante saltava o muro, e naquela terça-feira gorda, apesar de ter ficado em casa, D. Balbina divertiu-se mais que muitos foliões, nas patuscadas dos préstitos e dos bailes.
Havia já duas horas que o vizinho fazia companhia à solitária vizinha, quando a campainha do portão do jardim foi violentamente agitada. D. Balbina chegou à janela e avistou um tilburi, cujo cocheiro, mal que a viu, gritou:
- Mande cá uma pessoa, minha senhora!
Não havia um criado em casa. D. Balbina teve que ir pessoalmente abrir o portão.
- Que é? - perguntou ela.
- Minha senhora, este palhaço tomou o meu tilburi, e mandou tocar para esta casa; mas em caminho parece que teve uma apoplexia e morreu!
Efetivamente, o Saraiva, homem sangüíneo, que não pensou nas conseqüências de pôr aquela cabeleira e aquela máscara depois de jantar, tinha morrido no tilburi.
Deixo ao leitor o cuidado de pensar no espanto e na confusão que isso causou, e na tragicômica anomalia daquele negociante austero, estendido morto num canapé, e amortalhado em vestes de palhaço.
Só direi que D. Balbina, passado o período do luto, esposou o solicito vizinho que a consolava naquele silêncio e naquela solidão.
E até hoje, e lá se vão mais de vinte anos, ela não atinou com o motivo que levou o seu primeiro marido a vestir-se de palhaço... para morrer.
-- in Contos ligeiros (org. R. Magalhães Junior,Cultrix, 1962)



sábado, 21 de fevereiro de 2009

A literatura vai ao cinema (e vice-versa)


independentemente de festas,festivais e premiações com o Oscar hollywoodiano, o cinema sempre é objeto do foco, das luzes , sempre presente no imaginário e no real cotidiano de praticamente todas as pessoas no mundo. Excelente oportunidade para examinar as relações entre cinema e literatura--- uma dicotomia que sempre existiu : o relacionamento, muitas vezes complexo, mas intenso,entre a escrita e a ‘sétima arte’

Eventos como a ‘festa’ do Oscar , e de resto como os festivais regularmente realizados em distintas cidades,temáticas e enfoques, são excelentes por permitir uma reflexão sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções, confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos contrastam- se; são sempre difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário -- originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, porém,entre a página e a tela há laços estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão — meios que privilegiam a linha narrativa — também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que , principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, William Faulkner, James Age e Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto."

Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico -- e menos literário. E além disso,mesmo que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam lidar com o onírico, o sonho , e com o psicológico -- que é, sabemos, elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles antes e acima de tudo pessoas do cinema.
Quase sempre nesses exercícios literários
· a narrativa se faz em quadros, planos (longos , médios, curtos) e fotogramas , como num filme -- e qual angulações e diferentes tomadas, utilizam mudanças de foco narrativo [ de resto, recurso também comum e genericamente usado na literatura)
· a narração geralmente corre veloz, fatos se dão e são relatados quase que a galope , denota-se certo açodamento : só que no cinema a ação é rápida e a passagem de tempo ‘invisível’ para o espectador -- mas não o é para um leitor; nos escritos de cineastas, de uma seqüência chega-se a outra sem intermediações, nem explicações , contando com a imaginação do leitor
· na maioria dos casos,os personagens são desenhados superficialmente, sem o esmero e detalhamento descritivo comum à literatura -- mas como no cinema, um retratar rápido e sumário (já que o espectador vê) como se o leitor os estivesse vendo em imagem, numa tela de cinema ou de tv, e não delineando-os na imaginação; os personagens são moldados, agem e comportam-se como atores, que são vistos na tela, prontos, sem necessitar de muita elaboração
· assim também com as situações, fatos e com a própria ação : mesmo as reflexões e indagações que por exemplo um narrador faça, a respeito da natureza e do comportamento de personagens,
· como que a analisá-los, aparecem como que anotações geralmente feitas em meio ou à margem do texto de roteiro cinematográfico.
Ora, em literatura tudo há de ser elaborado de acordo com os métodos próprios e intrínsecos à escrita ficcional. Na maioria das vezes, o texto literário de gente do cinema carece, em sua construção, de uma ‘personalidade’ própria, ficando a meio-caminho entre o cinematográfico e o literário : entre altos e baixos, persegue uma certa ilusão de fusão de formas, meios e linguagens.
“O romance , na verdade, sempre foi uma forma literária propensa ao diálogo com outras linguagens”,
ensina o professor Flávio Carneiro, da UERJ, autor de Da matriz ao beco e depois , e o cruzamento da literatura com outras formas artísticas tomou um novo rumo, na década de 1980 , com a produção de obras que “ incorporam ao universo romanesco a linguagem do cinema, da televisão”.
Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação : as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O caso é que um diretor de cinema ou de tv quando vai à literatura leva com ele uma bagagem da linguagem -- o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador -- e assim comete pecados e pecadilhos marcantes . Ao contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre -- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores : caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood ,e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate -- literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas “, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme (e vale lembrar que para Autran Dourado “ não existe livro filmado, existe filme baseado em livro” ), mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
Desejariam cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, responder a Stanley Kubrick -- para quem “ tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” -- provando que ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito?’...

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

ainda por um São Paulo x Rio - X


[O futebol , os literatos e duas cidades - final]

De qualquer modo, em sua avassaladora assimilação generalizada, o futebol, posteriormente, encontrou expressiva receptividade em escritos de Sergio Milliet, de Sergio Buarque de Holanda, Paulo Emilio Salles Gomes, Anatol Rosenfeld – que auto-exilado no Brasil , em fins da década de 1930,escreveu “O futebol no Brasil”, publicado originalmente em alemão no Anuário do Instituto Hans Staden ,em 1956, explicando ao público germânico que em terras brasileiras, (...) “dar pontapés numa bola era um ato de emancipação”.(...); acolhida em muitos contos de João Antonio, Ignácio de Loyolla Brandão; sólidas interpretações sociológicas em Décio de Almeida Prado, Nicolau Sevcenko, Waldenir Caldas, José Sérgio Leite Lopes, Francisco Costa, Luiz Henrique de Toledo , Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes — dispuseram-se a buscar uma compreensão do futebol e construíram uma percepção do esporte como uma ágil e poderosa forma de expressão do caráter nacional.
Prossegue o futebol -- e prosseguirá será ad eternum-- sempre provocando prazer e dor, polêmicas e alegrias ,brigas, tumultos, conflitos, prazer,tristeza, paixões e ódios — nos campos, nos estádios, nos gramados, nas arquibancadas,nos terrenos baldios, nas várzeas, nos corações e mentes de todo o País.

ainda por um São Paulo x Rio - IX

O modernismo pareceu à primeira vista lidar com certa cautela e muitas reservas, casos de Mario de Andrade e Oswald de Andrade – quando não, com explícita antipatia, como foi o caso de Graciliano Ramos – diante do crescente e contagiante processo de popularização de um esporte de origem e teor eminentemente europeus. Mas a tradução e a decodificação sofrida pelo futebol ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, metamorfoseando-se de esporte elitista estrangeiro em esporte nacional-popular, possibilitou aos escritores modernistas da segunda fase uma paulatina alteração no enfoque do fenômeno, ainda que não de uma maneira unânime e consensual . A relação dos esportes com a identidade da nação tornara-se decisiva, acionando a idéia de “uma unidade nacional que tinha a seleção brasileira como uma das instâncias principais de representação simbólica”, coincidindo com um projeto de configuração do “Estado-nação” de Getulio Vargas E em consonância com a noção de antropofagia desenvolvida por Oswald de Andrade em seu manifesto de 1928, Gilberto Freyre identificou no futebol um exemplo indubitável da capacidade do brasileiro de transplantar, de assimilar e de reinterpretar os inúmeros produtos que historicamente vinham importados e impingidos da Europa.

ainda por um São Paulo x Rio - VIII

Em contrapartida, o futebol recebia interpretações distintas ao longo do tempo: caso, por exemplo, do escritor e jornalista Antônio de Godói,a princípio interessado pelo esporte, em artigo de 22 de dezembro de 1920 já considera o futebol moda que haveria de passar , uma coisa “brutal, perigosa, intolerável",concluindo que “esse esporte devia ser repelido como nocivo à integridade física da geração que despontava”.
Caso também de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que ao futebol dardejaram , de início, crítica e repúdio. Mario de imediato o viu como “uma moda fútil entre tantas que aportam da Europa” em Paulicéia desvairada, “uma praga” em Macunaíma, e não deixou de realçar a violência e o teor elitista do futebol “permeado de expressões estrangeiras” - a la Lima Barreto - em algumas crônicas, “subproduto de importação, a adoção de mais um artigo de luxo , com sua linguagem integralmente inglesa e seu vestuário britânico desconhecido , provindo de uma matriz européia transplantada por uma elite anglófila e francófila, ávida por novidades e exotismos, típico da dependência cultural brasileira” ; porém, em 1939 acentuava a transformação verificada em torno do futebol, o processo de apropriação pela identidade da nação chegando a adquirir um caráter antropofágico onde se afirmava “a capacidade brasileira de deglutição, bem como de assimilação das influências estrangeiras e de sua transformação em expressões genuinamente nacionais”. Oswald de Andrade, por sua vez, referiu-se com uma certa simpatia --mais irônica -- nos versos de “E a Europa curvou-se ante o Brasil”, de 1925, e em “Bungalow das rosas e dos pontapés”, sarcástico poema sobre a violência do futebol ; embora sempre combatesse o futebol, como veículo de “alienação”, mais tarde iria referir-se, num artigo de jornal, como “um fenômeno da modernidade de fundamento religioso, ao lado dos festivais de cinema e da política” ; e ligou-se a Mario Filho e a Candido Portinari justamente por causa do futebol...Relevante observar especificamente o ‘relacionamento’ dos intelectuais modernistas com o futebol, recebido de modo diametralmente oposto na primeira, na segunda e na terceira fase (assim Afrânio Coutinho caracteriza o ciclo modernista): o fenômeno futebolístico no Brasil dos anos de 1920 passando muito ao largo das preocupações missionárias dos primeiros, depois, já na década de 1930, o futebol interpretado sob a questão da representatividade nacional , uma forma de se chegar às suas concepções sobre a brasilidade; e no decênio seguinte, entrando em cena os regionalistas oriundos do Nordeste —Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge de Lima, Olívio Montenegro, a maioria já radicada no Rio de Janeiro — a interpretação modernista colocando o futebol também no terreno da cultura popular, retomando o projeto de construção de símbolos nacionais,que a música popular e o folclore já haviam tornado possíveis e que, naquele momento, por meio de uma ‘brasilidade esportiva’, o futebol também facultava.

ainda por um São Paulo x Rio - VII

Os intelectuais entram em campo
Embora em 1904 o futebol ainda fosse desconhecido para a ampla maioria dos brasileiros, o grande interesse popular que atraía em São Paulo levou até mesmo Monteiro Lobato, então acadêmico de direito, a se referir a ele numa carta a Godofredo Rangel, em 11de julho: "(...) o último gol do Paulistano provocou a maior tempestade de aplausos jamais conhecida em São Paulo(...)"..E do mesmo Lobato, um discurso fervoroso em 1905 após assistir a jogos entre paulistanos e ingleses: Apesar disso, o futebol ainda estava longe de suscitar grandes paixões que extrapolassem o âmbito esportivo. Intelectuais e escritores -- caso de Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, Hilário Tácito-- apenas esparsa e timidamente o registravam em seus escritos: quando muito, admitiam e exaltavam a plasticidade do jogo, a elasticidade das jogadas, a empolgação dos que praticam e assistem as partidas . Mas já pelo final da década de 1910 e início de 1920, dava-se a dedicação documental-historiográfica de Antonio Figueiredo e Leopoldo Santana , um marcante envolvimento de Menotti Del Picchia --registrando-o em poemas, documentando-o no roteiro do primeiro filme do cinema brasileiro sobre futebol, “Campeão de futebol”, que homenageava Friedenreich, valorizando-o na frase “o Corinthians é um fenômeno sociológico a ser estudado em profundidade” -- referências de Cassiano Ricardo, a simpatia de Raul Bopp -- em artigo sobre o “élan magnético” que o atraía para o futebol -- e sobretudo o ‘fervor’ de Alcântara Machado -- não só pelo famoso conto “Corinthians (2) vs. Palestra(1)”,mas por uma relação direta com a difusão dos esportes no Brasil, fundador da primeira Liga Atlética Acadêmica do Brasil, “uma entidade poliesportiva devotada à propaganda, à prática e ao apoio de todas as formas de cultura física, vista como chave para se entrar na vida moderna propriamente dita”-- o completo envolvimento de Francisco Rebolo --artista plástico e jogador de futebol , e um dos pioneiros na luta pela incorporação do negro no futebol brasileiro -- a motivação de Candido Portinari – nas duas famosas séries de trabalhos “Futebol em Brodósqui” -- dos artistas Rodolfo Chambelland , André Lhote , Antônio Gomide.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ainda por um São Paulo x Rio - VI

[O futebol , os literatos e duas cidades ]Mas, de acordo com interpretações históricas, um dos proeminentes vetores da popularização do jogo de futebol teria sido resultado direto da intervenção dos patrões, das autoridades, do Poder Público — no Rio, como contraposição à capoeira, já prática proibida ; em São Paulo, como antídoto contra as greves : a emergência e fortalecimento do movimento operário por volta de 1917 ‘revelou’ ao governo e aos empresários que a cidade precisava de “um esporte de massas”(sic); os operários seriam então ‘mandados a jogar futebol’, para o que os patrões “deveriam construir grounds”. O futebol constituiria assim um eficiente instrumento ‘disciplinador’ utilizado e patrocinado pelos industriais “para ordenar os trabalhadores e dinamizar a produção”, “um ensinamento de disciplina e de harmonia” — o esporte sendo muito mais uma imposição ou uma ‘dádiva’, muito menos prazer e desejo e iniciativa de quem o praticava.
Ao mesmo tempo, em São Paulo os campos de futebol se tornaram importante elemento na caracterização das vilas operárias, que eram consideradas “espaços de ordenação”: o futebol ajudava a manter o operário “em ordem e disciplina, livre do caos e da desordem” e proporcionava aos trabalhadores “o relaxamento necessário para depois produzirem mais e melhor...”.
Um mais abrangente pano de fundo histórico registra que, pela necessidade de um re-ordenamento geral de todo o contexto social, o futebol passou a ser catalogado como parte do processo modernizador e o desenvolvimento de práticas esportivas considerado uma forma de atenuar as tensões políticas. Nacionalismo e autoritarismo constituíam-se em eixos fundamentais tanto na prática política quanto na obra de vários intelectuais brasileiros. Para estes, a República até então não havia sido capaz de forjar uma verdadeira nação, já que, entre outros motivos, os particularismos regionais ainda eram dominantes. Assim, para os setores que exerciam o domínio político no país, uma tarefa urgente se impunha : construir a nação brasileira – e para tal, o futebol, com sua extraordinária adesão popular, foi sem dúvida um excepcional instrumento.

ainda por um São Paulo x Rio - V

[O futebol , os literatos e duas cidades ]São sugeridas duas hipóteses para tentar explicar a razão pela qual São Paulo — que já contava desde o início com um espaço específico, o velódromo da Consolação — antecede o Rio de Janeiro na adoção do futebol .primeiro, o Rio já possuía um esporte de relativa popularidade, o remo, que o futebol somente conseguiu destronar por volta de 1910; segundo, por causa da índole de modernidade paulistana , embrião da metrópole frenética que naquele momento possuía melhores condições para assimilar inovações, e dentre elas o futebol .São Paulo foi a primeira cidade a atrair grandes multidões aos campos: o futebol, como prática popular de entretenimento, insere-se na própria formação da classe operária paulistana.

ainda por um São Paulo x Rio - IV

[O futebol , os literatos e duas cidades ]
Ainda em 1902 deu-se a fundação do Clube Atlético Paulistano ; e em 1904 apareceu a Associação Atlética das Palmeiras — que até 1915 foi constituída por doutorandos, engenheiros e futuros advogados. Isso porque o futebol era a coqueluche da mocidade estudiosa de São Paulo, no início do século : quase que se limitava aos estudantes naquele tempo, quase todos filhos de famílias abastadas ; a verdadeira diversão domingueira da alta sociedade paulistana, não se compreendia então um acadêmico de direito sem ser integrante de um dos clubes já existentes. A classe dominava abertamente no Paulistano, Palmeiras, Mackenzie e Internacional : muitos rapazes, grandes craques do início do século, foram e são homens públicos, cientistas, diplomatas, jurisconsultos e engenheiros famosos -- tornaram-se os ídolos máximos desse geração Rubens Sales e Arthur Friedenreich, este considerado o primeiro craque do futebol brasileiro ( e autor do primeiro gol da seleção nacional, em 1914).Em 1920 o futebol já dominava a cidade inteira e Palestra Itália, Paulistano e Corinthians formavam o “trio de ferro” dividindo entre si a preferência quase geral. Memorável entre todos os fatos esportivos foi a excursão do Paulistano à Europa em 1925—que propiciou o poema “E a Europa curvou-se ante o Brasil” de Oswald de Andrade.

ainda por um São Paulo x Rio - III

[O futebol , os literatos e duas cidades ]
Nenhuma cidade brasileira como São Paulo apresenta tamanha precocidade na introdução do futebol: já no final do século XIX era praticado em clubes, empresas (de capital inglês) e escolas ; a primeira partida de futebol realizada no Brasil, dentro das regras oficialmente estabelecidas na Inglaterra em 1863, aconteceu na Várzea do Carmo, entre as equipes inglesas São Paulo Railway e The São Paulo Gaz, em 14 de abril de 1895 (jogo ganho pela primeira por 4 x 2); em 1896, o velódromo da família Prado, na Consolação, foi reformado para abrigar partidas de futebol e o primeiro clube de futebol formado essencialmente por brasileiros foi o Mackenzie College, criado em 1898; em 1899 são fundados primeiro o S.C. Internacional, e quinze dias depois o S.C. Germânia; em 1900, pode-se dizer, nasceu a verdadeira organização do futebol paulistano quando chegou, de volta de seus estudos na Suíça, o jovem Antonio Casimiro da Costa, que começou a lutar para a constituição de uma Liga dos clubes já existentes, e pela organização de um campeonato – que aconteceu ( o primeiro do País) em 1902 . Neste mesmo ano surgiram os primeiros campos de várzea, que logo se espalharam pelos bairros operários; já em 1908/1910 a várzea paulistana congregava vários e concorridos campeonatos, de forma que São Paulo não é apenas pioneira nacional no futebol "oficial", mas também (e sobretudo) no "futebol popular". E é na cidade que, não por acaso, surge em 1910 aquele que, dentre os grandes clubes do futebol brasileiro, foi o primeiro a se formar a partir de uma base popular : o Sport Clube Corinthians Paulista.

ainda por um São Paulo x Rio - III

[O futebol , os literatos e duas cidades]
...e em São Paulo
Na esteira e na órbita do pioneirismo que sempre caracterizou a cidade — pioneirismo manifesto intensa e explicitamente, por exemplo, na literatura e nas artes [cf. Mauro Rosso: São Paulo, a cidade literária, ed. Expressão e Cultura, 2004] — São Paulo foi “o berço do futebol no Brasil”, a primeira cidade a organizá-lo e praticá-lo em campos oficiais, pelas ruas e pelos terrenos baldios.Principalmente por causa dos imigrantes europeus,sobretudo ingleses,que contribuíram—como o fizeram também no Rio de Janeiro — para a disseminação dos esportes em geral e para fundação de clubes esportivos, a princípio de cricket (e depois, de futebol).
Foi um paulistano de berço que introduziu o futebol no Brasil: Charles Miller, descendente de ingleses e escoceses, nascido no Brás, aos 9 anos seguiu para a Inglaterra com a finalidade de estudar , e lá, aprendeu - e bem - a jogar futebol. No ano de 1894, retornando de seus estudos na Inglaterra, trouxe na bagagem uma bola de futebol e começou então a catequizar seus companheiros de trabalho e de críquete - altos funcionários da Companhia de Gás, do Banco de Londres e Ferrovia São Paulo Railway, fundando em 1888 o primeiro clube de futebol do Brasil, o São Paulo Athletic, clube que congregava os britânicos residentes em São Paulo.

ainda por um São Paulo x Rio - II

Esses entusiastas do futebol teriam, porém, de enfrentar, do outro lado, a veemente e intransigente oposição de ninguém menos que Lima Barreto, que logo passou a fazer do futebol um de seus temas prediletos nas páginas da imprensa carioca. Com espaço e reconhecimento já assegurados nos círculos literários -- três romances e uma infinidade de crônicas publicados -- Lima inaugurou seus ataques em 15 de agosto de 1918 no artigo “Sobre o Foot-ball” no jornal Brás Cubas:
(...) Diabo! A cousa é assim tão séria ? Pois um divertimento é capaz de inspirar um período tão gravemente apaixonado a um escritor ?
(...) Reatei a leitura, dizendo cá com os meus botões : isto é exceção, pois não acredito que um jogo de bola e sobretudo jogado com os pés, seja capaz de inspirar paixões e ódios. Mas, não senhor ! A cousa era a sério e o narrador da partida, mais adiante, já falava em armas...
Não conheço os antecedentes da questão; não quero mesmo conhecê-los; mas não vá acontecer que simples disputas de um inocente divertimento causem tamanhas desinteligências entre as partes que venham a envolver os neutros ou mesmo os indiferentes, como eu, que sou carioca, mas não entendo nada de foot-ball.“
(...)
Lima Barreto atentava, desde o princípio, para a força social do jogo : longe de ser um mero passatempo sem sentido, era capaz de inspirar “paixões e ódios” — e o futebol adquiria para ele uma seriedade ímpar, que o obrigaria como ‘crítico de costumes’ a dedicar-se profundamente ao novo fenômeno. Transformando-se no paladino do combate ao jogo de bola, Lima elegeria justamente Coelho Neto como o principal adversário. Iniciou-se então um acirrado confronto pelas páginas da imprensa , logo depois de mais um empolgante discurso de Neto, por ocasião da inauguração da piscina do Fluminense em 1919 — discurso que para Lima parecia um verdadeiro pecado, manifestado na crônica “Histrião ou literato”, na Revista Contemporânea, de 15 de fevereiro de 1919, em que :acusava Coelho Neto de fazer “somente brindes de sobremesa para satisfação dos ricaços”, e sustentava que a simpatia de Neto pelo futebol seria mero oportunismo, um meio de agradar às ricas famílias , vindo de “um homem que não entende sequer a alma de uma criada negra”. A partir daí, Lima aumentaria nos meses seguintes a quantidade e intensidade dos ataques, passando no entanto a valer-se de fina ironia , como nos artigos “Uma partida de foot-ball”,
Das coisas elegantes que as elegâncias cariocas podem fornecer ao observador imparcial, na há nenhuma tão interessante como uma partida de futebol. É um espetáculo da maior delicadeza em que a alta e a baixa sociedade cariocas revelam a sua cultura e educação (...)
(...) O que há, porém, de mais interessante nessas festanças esportivas, é o final. Sendo um divertimento ou passatempo, elas acabam sempre em rolo e barulho.Por tal preço, não vale a pena a gente divertir-se.É o que me parece
.”
e “Vantagens do foot-ball”
Não tenho dúvida alguma em trazer para as colunas desta revista a convicção em que estou, de que o jogo de futebol é um divertimento sadio, inócuo e por demais vantajoso para a boa saúde dos jogadores respectivos. (...)
Não querendo eu passar como retrógrado e atrasado e no intuito de também defendê-lo, tenha tido a paciência de colecionar nos cotidianos as notícias mais edificantes sobre as excelentes vantagens do divertimento de dar pontapés em uma bola. Publicarei por partes esse arquivo precioso; hoje, entretanto, dou algumas amostras do que tenho colhido nos jornais, para encanto e satisfação das gentilíssimas “torcedoras” .No Jornal do Commercio, de 12 de dezembro do ano passado, encontrei esta pequena novidade, sob o título “Futebol desastrado”. Ei-la:
O menino Antonio, de 12 anos de idade, filho Manoel Ferreira, morador à Rua Schy, nº 35, quando jogava futebol no terreno de uma escola pública do largo de Madureira, fraturou a perna direita. Antonio foi medicado em uma farmácia.
etc., etc.
Meses antes, esse mesmo jornal, isto é, a 7 de julho, dava outra notícia que me vejo obrigado a transcrever aqui. Leiamo-la sobre a epígrafe “A paixão do futebol”:
O menino Waldemar Capelli, de 15 anos, filho de Taseo Capelli, morador em Vila Aliança, nas Laranjeiras, passou a tarde de ontem a jogar futebol, num campo perto de casa. Interrompeu o divertimento às seis horas, para jantar às pressas e voltar ao mesmo exercício. Quando o reencetou , foi acometido de um ataque e a Assistência Pública foi chamada para socorrê-lo.Esta chegou tarde, entretanto, porque Waldemar estava morto.
etc., etc.
Não ficam aí as demonstrações inequívocas das vantagens de tão delicado jogo. Todas as segundas-feiras, quem tiver paciência, pode procurar muitas outras no noticiário dos jornais.(...)
escritos para Careta, respectivamente de 19 de junho e 4 de outubro de 1919.
A cruzada do irascível combatente
Dos artigos, agressivos ou irônicos, de Lima Barreto surge a imagem de um jogo brutal e sem sentido, totalmente diferente do elemento de regeneração social preconizado por Coelho Neto, para desespero da imprensa carioca, quase toda ela empenhada em prestigiar o futebol — com raríssimas exceções como, por exemplo, a do jornalista e escritor Carlos Sussekind de Mendonça, que incorporou-se à luta de Lima Barreto contra o futebol, que ele considerava entre outros aspectos “micróbio de corrupção e imbecilidade”, “estrangeirismo estéril e inútil” ; propunha sobretudo combater , de todas as formas, a “nefasta defesa do futebol” feita por intelectuais e escritores,rejeitando, inclusive, qualquer teoria de que “o esporte possa manter alguma relação com a razão e o intelecto”, e denunciar as “verdadeiras atrocidades,até dentro dos próprios clubs” promovidas pelo futebol : como Lima Barreto, enfatizava o “blefe de regeneração social” contido no futebol e os malefícios “físicos, sanitários,sociais e culturais” de sua disseminação “que só pode ser bocado de feitiçaria” em campos “onde se apinham centenas de ociosos assistindo inertes, a transpirar, os vinte e dois heróis de maxambona ou caixa pregos” .Em 1921, então editor do jornal A Época, do Rio de Janeiro, Sussekind de Mendonça teve seu livro O sport está deseducando a mocidade brasileira publicado (Empresa Brasil Editorial, Rio de Janeiro),com o subtítulo “dedicado a Lima Barreto”, hoje obra raríssima .Lima Barreto viria a publicamente agradecer e fazer comentários ao livro de Sussekind no artigo “Como resposta”,em Careta, a 8 de abril de 1922.
As aludidas “verdadeiras atrocidades promovidas pelo futebol”, eram denunciadas por Lima Barreto — como na crônica intitulada “Divertimento?”, publicada na revista Careta em 04 de dezembro de 1920, em que mais uma vez destacava os inúmeros conflitos e constantes brigas ocorridos nos campos, com tumultos e batalhas entre torcidas diferentes, registradas nos jornais diários a cada segunda-feira, culminando com o tiroteio num jogo entre o Metropolitano e o São Paulo e Rio em 18 de dezembro de 1920 — como atestados de que, mais do que casos isolados, seriam “o fim próprio e natural do jogo”, como sustenta no artigo “Uma conferência esportiva”, em Careta de 1 de janeiro de 1921.
Por trás da crítica estava muito mais do que uma questão literária ou mera contestação do papel de redenção social que Coelho Neto atribuía ao futebol: Lima via nele um fator de degeneração da cultura e da política nacionais, pois patrocinava uma injusta e gritante diferenciação social e regional, como declarou em entrevista ao Rio-Jornal em 13 de março de 1919 :“ – Está aí, uma grande desvantagem social do nosso foot-ball. Nos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do ponta-pé propaga sua separação e o governo o subvenciona.“
Lima criticava os “favores e favorezinhos” que os clubes de futebol recebiam do governo para “criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros, e longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, separa-as”: segundo ele, os clubes de futebol seriam “portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc”. Isso porque os defensores do futebol, Coelho Neto à frente, sustentavam ser “um sport que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo” (jornal Sports, de 6 de agosto de 1915 ) e reclamavam “que alguns jogadores não tinham o nível social de há uns anos atrás” (Jornal do Brasil, de 3 de maio de 1920).
Porém, não eram apenas econômicas e sociais as distinções combatidas por Lima Barreto, mas também raciais,vedando aos negros participação nos grandes clubes de futebol: em 1921 quando o próprio presidente Epitácio Pessoa proibiu jogadores “de cor” de fazerem parte do selecionado que ia à Argentina disputar um campeonato, Lima foi duro nas críticas , publicando no mesmo dia 1 de outubro de 1921 dois artigos — “O meu conselho” e “Bendito foot-ball” — no jornal A . B. C., onde afirma que “quando não havia foot-ball, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer parte”, e apontando o caráter nocivo do futebol para o país :“ É o fardo do homem branco : surrar os negros, a fim de trabalharem para ele. O foot-ball não é assim : não surra, mas humilha, não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam.”
Vendo nos sócios dos grandes clubes os herdeiros dos antigos senhores de escravos, Lima enxerga no futebol “uma das formas de continuação da dominação exercida durante décadas pelo regime escravista, onde se troca a violência pela humilhação de quem paga impostos para sustentar, com subvenções oficiais, um jogo ao qual não tem acesso”, como “um poderoso instrumento de domínio utilizado por uma raça que se julga eleita por Deus graças às suas habilidades nos pés; como a escravidão, sua única finalidade é criar uma separação idiota entre os brasileiros, perpetuando as desigualdades e continuando um passado de diferenciação e segregação” (artigo “O nosso esporte”, no l A . B. C., de 26 de agosto de 1922 ).
Direta ou indiretamente, não há dúvida de que os literatos como Coelho Neto e Lima Barreto e suas polêmicas alimentavam um processo que anos depois faria do futebol, como o é hoje , uma verdadeira instituição nacional. A dinâmica da transformação do jogo em fenômeno nacional — com suas implicações sociológicas, políticas e culturais — não foi devidamente compreendida por Lima Barreto, que indignado com o fato de “indivíduos que não davam para nada” serem transformados em verdadeiros “heróis nacionais”, refutava a lógica que fazia desses “pobres esforçados, que nada fazem para o benefício comum, injustas ‘glórias do Brasil’” – no último artigo escrito antes de morrer ( “O herói”, para Careta de 18 de novembro de 1922 ).
A realidade incontestável é que o futebol continuou – e continua -- ao longo do tempo, sua meteórica ascensão e disseminação entre todas as camadas e estratos, como ‘força esportiva’, ‘força social’, ‘força cultural’. Seguiu sua trajetória eletrizando todas as camadas sociais e sensibilizando escritores, artistas e intelectuais — de Graciliano Ramos, que o repudiava ("Futebol não pega, tenho certeza; estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho", em 1919), a Orígenes Lessa ,Fernando Sabino, que o inseriram em contos ; de Gilberto Freyre ,um entusiasta de primeira linha, que incluiu o futebol em muitos de seus escritos, a Mario Filho – autor do memorável O negro no futebol brasileiro – e chegando ao auge da paixão futebolística ‘a serviço’ da literatura, nela integralmente enfronhada e estigmatizada, em José Lins do Rego e Nelson Rodrigues.

ainda por um São Paulo x Rio - I


fizeram-se aqui considerações comparativas acerca das diferenças de literaturas[sic] praticadas em São Paulo e no Rio. não como provocações, mas ainda como reflexões , faz-se agora a bola rolar num terreno bem conhecido de todos."esporte das multidões",paixão nacional", o futebol acaba de abrir sua temporada pelos campos brasileiros certamente fadado a provocar as mais deslavadas emoções e os mais acirrados confrontos. também classificado como "uma caixinha de surpresas", nada mais decorrente que se abra também a Caixa de Pandora para refletir sobre as relações entre futebol e intelectuais -- que as houveram,e muito, pois a ele os intelectuais dedicaram páginas e estudos. volta-se aqui ao âmbito interativo\comparativo (...) de São Paulo- Rio .

O futebol , os literatos e duas cidades

no Rio de Janeiro...

O futebol, todos sabemos , surgiu no limiar do século XX no Rio de Janeiro como “uma grande novidade”, mas por ser esporte de origem inglesa logo cairia no gosto das rodas elegantes da cidade ( que na época cultivavam quase que exclusivamente o remo ) — e de imediato, por suas próprias características , despertaria paixões acirradas, não apenas entre torcedores e admiradores dos clubes então formados ( Payssandu Cricket Club, Fluminense Foot-Ball Club, The Bangu Athletic Club, etc ).
Justamente por ter vindo da “Old Albion” (assim era chamada a Inglaterra, ‘na intimidade’, pelas elites), em seus primeiros anos na cidade o futebol teve um caráter restrito, praticado preponderantemente por jovens ricos e bem-nascidos — mas já no final da década de 1910 alcançava uma popularidade nunca vista . João do Rio foi o primeiro cronista a detectar a importância do jogo para a cidade, assinando com o pseudônimo de José Antonio José (um de seus ‘disfarces’ jornalísticos: com esse nome, escreveu,p.ex., Memórias de um rato de hotel) uma crônica intitulada “Pall Mall Rio – Foot-ball” em O Paiz de 4 de setembro de 1916, onde vaticinava :“Tenho assistido a meetings colossais em diversos países, mergulhei no povo de diversos países, nessas grandes festas da saúde, da força e do ar. Mas absolutamente nunca eu vi o fogo , o entusiasmo, a ebriez da multidão assim.”(...)

[continua]