quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O cinema vai à literatura (e a literatura se vale do cinema)


Abrem-se as cortinas e projeta-se na tela mais uma festa de entrega do Oscar. Excelente oportunidade para examinar as relações entre cinema e literatura.

Eventos como a entrega do Oscar -- e de resto, festivais regularmente realizados em distintas cidades,temáticas e enfoques, o Festival de Cannes , de Berlim, de Veneza, etc -- são excelentes por permitirem uma reflexão sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções, confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos contrastam- se; são sempre difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário -- originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, entre a página e a tela há laços estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão -- meios que privilegiam a linha narrativa — também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, , James Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto."
“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ em parceria com o Globo Universidade para ministrar uma disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV. Para ele, as relações entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a tela, apontando três outros importantes pontos de encontro. O primeiro seria os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam os exemplos : agora mesmo Clint Eastwood confirma seu projeto de uma biografia fílmica de Mark Twain ;outro, seria o uso estrutural ou incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta indubitavelmente a ocorrência maior, de que Stanley Kubrick, p. ex.,é um dos maiores artífices ; e também o encontro da literatura e do cinema poderia se dar através de referências como alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado, Johnson critica enfaticamente a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser muito comum entre os espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. “A questão da adaptação como um problema só ocorre em determinadas circunstâncias, não ocorre, por exemplo, quando a obra literária não é conhecida” . A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo. O conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se na discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no original.
Esse freqüente discurso da fidelidade,diz o professor, “carrega insinuações de um pudor vitoriano e se baseia na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à idéia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme secundário -- além evidentemente do “pensamento dicotonômico de que cinema e literatura são rivais a partir da crença na idéia de que o filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro”.A dicotomia,portanto,não existiria, porquanto “a linguagem escrita sempre esteve no cinema, desde os filmes mudos com as cartelas que continham as falas e pensamentos dos personagens, não sendo uma arte melhor nem pior que a outra”, conclui Johnson.
Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus pontos de partida – haja vista, sabemos, o quanto os já à época denominados “filmes de arte” (essencialmente franceses) do início do século XX procuravam se legitimar como obras sérias e eruditas a partir de textos clássicos e intérpretes teatrais. As relações entre o cinema e a literatura são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos literários anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse modo, a narrativa cinematográfica já se encontrava latente em alguns textos narrativos literários e o surgimento do cinema no final do século XIX foi apenas a “descoberta da tecnologia que permitiu concretizar o modo narrativo que enfatiza a visualização perceptiva da imagem de uma cena”, sentencia Jorge Urrutia em “El cine filológico”( in Discursos, n. 11-12.Coimbra: Coimbra: Universidade, 1998).
E desde então, a relação logo passou a trilhar indissolúvel (sic) mão dupla, quando literatos e dramaturgos começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada linguagem --- ísto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em 1950, etc ) : e o momento histórico de cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um de seus produtos.
Essa intrínseca, dialógica e dinâmica relação nasce no momento em que o cinema descobre seu potencial digamos literário , ao absorver o modelo narrativo do romance do século XIX a subsidiá-lo para melhor contar histórias – malgrado podermos hoje levantar a reflexão em plena era da imagem digital em que vivemos : o cinema continuaria ‘preso’ a um modelo narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria literatura? Em 2003, o (excepcional) cineasta inglês Peter Greenaway disse, numa entrevista, que “a maior parte do cinema feito hoje é uma ilustração de romances do século XIX” .Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?
O certo é que naquele tempo era “a arte dos novos tempos, arte de e para as massas”, com o nascimento de um novo olhar sobre um novo homem nascido na virada de um século para outro, um novo homem que precisava de uma nova forma de expressão – e nada como a sedução da imagem para tal. O escritor e cineasta africano Ousmane Sembene declarou que, quando a palavra não atingia seu público, ele usava o cinema para enviar sua mensagem. O cinema, para ele, não é um meio em si, mas um veículo, como o livro. Não importa o suporte, mas a mensagem. E assim, a forma é sacrificada pelo conteúdo. A clareza é uma das regras básicas para a sedução no cinema, o que fere as regras da própria sedução, que é cheia de desvios, sombras e não-ditos. Talvez Sembene não seja o melhor exemplo, pois seu cinema, apesar de ser usado como suporte, não faz parte do grande sistema, daquilo que se convencionou chamar “cinema industrial”. Mas, o que nos interessa aqui é ver um escritor, que é também cineasta, dizer que o que produz são idéias e não importa o meio em que elas chegarão ao seu público -- desde que possam ser compreendidas.
Em muitos casos, o cinema não é um suporte apenas, mas é a própria mensagem do realizador, e nenhum outro suporte poderia substituí-lo.
Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo da narrativa, em sua já longa história, o cinema não sofreu muitas variações – malgrado certas exceções, como experimentos ‘de vanguarda’ – e vem à mente, por aproximação etimológica, a “Nouvelle Vague” da década de 1960 , que se propunha a romper com a lógica linearizante da estética e da narrativa fílmica de até então, inspirada num congênere da seara literária, o “nouveau roman”—ambas dialogando entre si pelas respctivas técnicas narrativas, num movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.
Convém não esquecer,entretanto, que sob a égide de suas afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já consagrados da narrativa literária – levando Jorge Luis Borges a observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar as limitações formais e “não procurando ordenar o caos”, ao contrário, o caos tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”,p. ex., queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que os caminhos são múltiplos; e por fim aquilo que Jean Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar, pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta e um papel.
Contudo, há de se atentar para um outro viés ,uma espécie de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de publicação de livros motivados... pelo cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração de filmes(making-of), edição ou reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos iconográficos que remetem para os filmes realizados a partir da adaptação da obra para o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura. De resto, uma tendência à qual avolumam-se questionamentos sobre até que ponto sinaliza tanto ‘perda de prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’ da matéria literária, como sobretudo ‘dessacralização’ da literatura, tênues que se tornam cada vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens culturais que circulam pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.
Na década de 60 do século passado, McLuhan chamava a atenção para o fenômeno de interpenetração entre diferentes mídias, destacando que, para a indústria cinematográfica hollywoodiana, um best seller era como um “jorro de petróleo ou indício de ouro”, isto é, os banqueiros de Hollywood farejavam, neste tipo de livro, grandes lucros para o cinema, uma garantia de sucesso de bilheteria. Além de já ter sido aprovado pelo gosto popular, o best seller ainda emprestaria ao meio cinematográfico a “superioridade do meio livresco”. É dessa época e desse processo a intensificação da arregimentação de escritores norte-americanos – dos melhores e mais significativos de suas gerações – não só como ‘fornecedores e alimentadores’ da produção cinematográfica hollywoodiana mas também como roteiristas ‘intensivos’.
Das mesmas forma e diapasão e desse processo decorrente, deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX,por parte e ação do setor editorial ,a contrapartida à incorporação da obra literária,fosse best seller ou não – muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o relançamento de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros .
Neste particular, a relação entre texto literário e roteiro é assinalada pelo escritor argentino Ricardo Piglia , ao afirmar que a novela do século XIX está hoje no cinema e “quem quiser narrar como Balzac ou Zola deve fazer cinema”, acrescentando, que “quem quer narrar como Dumas deve escrever roteiros”. Para ele, o roteirista seria uma espécie de versão moderna do escritor de folhetins, porque escreve por encomenda e por dinheiro e a toda velocidade uma história para um público bem preciso que está encarnado no produtor ou no diretor, ou nos dois. A observação de Piglia, referindo-se à transferência da narrativa de ficção do suporte impresso do jornal, na forma de folhetim, para as telas, faz lembrar o fenômeno, iniciado na década de 1940 nos EUA, do incremento dos escritores roteiristas, que se “alugam para sonhar” ,reportando-nos ao título “Me alugo para sonhar” de um conto de Gabriel García Márquez, de 1992.
Toda a literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um filme, e na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o espaço do livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações derivadas de filmes.
No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto --relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou inferidos\induzidos, alguns elementos como : a) uma obra literária de grande repercussão é meio caminho andado para gerar um filme de grande repercussão – e alguns cineastas, Kubrick p.ex.sobressaía-se nisso, são exímios em realizar filmes-evento, inscritos na agenda cultural de seu tempo; b) mas ´por vezes os componentes de um grande romance podem ser impróprios para a realização de um filme baseado nele – a corroborar a sentença de Kubrick “livro é livro, filme é filme”.
No viés contrário, também se dá a influência do cinema sobre a literatura. Henry Miller, talvez ironicamente, chega a saudar a substituição da literatura pelo cinema: “O cinema é o mais livre de todos os meios de comunicação, pode-se realizar maravilhas com ele. De fato, eu iria saudar o dia em que os filmes substituíssem a literatura, quando não houvesse mais necessidade de ler”(in Os Escritores- 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1989).Mas tanto ele quanto nós todos sabemos,a par da integração mútua, da ‘independência’ entre ambas e que jamais uma poderá substituir a outra.
Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico -- e menos literário. E além disso, mesmo que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam lidar com o onírico, o sonho , e com o psicológico -- que é, sabemos, elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles antes e acima de tudo pessoas do cinema.
Quase sempre nesses exercícios literários de cineastas e realizadores cinematográficos ocorre que
· a narrativa se faz em quadros, planos (longos , médios, curtos) e fotogramas , como num filme -- e qual angulações e diferentes tomadas, utilizam mudanças de foco narrativo ( de resto, recurso também comum e genericamente usado na literatura)
· a narração geralmente corre veloz, fatos se dão e são relatados quase que a galope , denota-se certo açodamento : só que no cinema a ação é rápida e a passagem de tempo ‘invisível’ para o espectador -- mas não o é para um leitor; nos escritos de cineastas, de uma seqüência chega-se a outra sem intermediações, nem explicações , contando com a imaginação do leitor
· na maioria dos casos,os personagens são desenhados superficialmente, sem o esmero e detalhamento descritivo comum à literatura -- mas como no cinema, um retratar rápido e sumário (já que o espectador vê) como se o leitor os estivesse vendo em imagem, numa tela de cinema ou de tv, e não delineando-os na imaginação; os personagens são moldados, agem e comportam-se como atores, que são vistos na tela, prontos, sem necessitar de muita elaboração
· assim também com as situações, fatos e com a própria ação : mesmo as reflexões e indagações que por exemplo um narrador faça, a respeito da natureza e do comportamento de personagens,
· como que a analisá-los, aparecem como que anotações geralmente feitas em meio ou à margem do texto de roteiro cinematográfico.

Ora, em literatura tudo há de ser elaborado de acordo com os métodos próprios e intrínsecos à escrita ficcional. Na maioria das vezes, o texto literário de gente do cinema carece, em sua construção, de uma ‘personalidade’ própria, ficando a meio-caminho entre o cinematográfico e o literário : entre altos e baixos, persegue uma certa ilusão de fusão de formas, meios e linguagens.“O romance , na verdade, sempre foi uma forma literária propensa ao diálogo com outras linguagens”, ensina o professor Flávio Carneiro, da UERJ, autor de Da matriz ao beco e depois, e o cruzamento da literatura com outras formas artísticas tomou um novo rumo, na década de 1980 , com a produção de obras que “ incorporam ao universo romanesco a linguagem do cinema, da televisão”.
Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O caso é que um diretor de cinema ou de tv quando vai à literatura leva com ele uma bagagem da linguagem -- o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador -- e assim comete pecados e pecadilhos marcantes ( veja-se por exemplo Patrícia Melo, que de roteirista de tv impõe em seus livros uma narrativa toda cinematográfica, e ainda recebe elogios orquestrados da mídia... ). Ao contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre -- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood ,e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate -- literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme (e vale lembrar que para Autran Dourado “não existe livro filmado, existe filme baseado em livro” ), mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
Desejariam cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, responder a Stanley Kubrick -- para quem “ tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” -- provando que ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito?’...