sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

três cariocas [2 da gema \ 1 muito especial] e o Carnaval

  "é carnaval... deixa o barco correr... seja vc. quem for,seja o que deus quiser"
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machado de assis e o carnaval                 

Bons Dias !

Ei-lo que chega... Carnaval à porta!... Diabo! aí vão palavras que dão idéia de um começo de recitativo ao piano; mas outras posteriores mostram claramente que estou falando em prosa; e se prosa quer dizer falta de dinheiro (em cartaginês, está claro) então é que falei como um Cícero.
Carnaval à porta. Já lhe ouço os guizos e tambores. Aí vêm os carros das idéias... Felizes idéias, que durante três dias andais de Carro! No resto do ano ides a pé, ao sol e à chuva, ou ficais no tinteiro, que é ainda o melhor dos abrigos. Mas lá chegam os três dias, quero dizer os dois, porque o de meio  não conta; lá vêm, e agora e a vez de alugar a berlinda, sair e passear.
Nem isso, ai de mim, amigas, nem esse gozo particular, único cronológico, marcado, combinado e acertado, me é dado saborear este ano. Não falo por causa da febre amarela; essa vai baixando. As outras febres são apenas companheiras. . . Não; não é essa a causa.
Talvez não saibam que eu tinha uma idéia e um plano. A idéia era uma cabeça de Boulanger[1], metade coroada de louros, metade forrada de lama. O plano era metê-la em um carro, e andar. E vede bem, vós que sois idéias, vede se o plano desta idéia era mau. Os que esperam do general alguma coisa, deviam aplaudir; os que não esperam nada, deviam patear; mas o provável é que aplaudissem todos, unicamente por este fato: porque era uma idéia.
Mas a falta de dinheiro (prosa, em língua púnica) não me permite pôr esta idéia na rua. Sem dinheiro, sem ânimo de o  pedir a alguém, e, com certeza, sem ânimo de o pagar, estou reduzido ao papel de espectador.
Vou para a turbamulta das ruas e das janelas; perco-me no mar dos incógnitos.
Já alguém me aconselhou que fosse vestido de tabelião. Redargüi que tabelião não traz idéia; e depois, não há diferença sensível entre o tabelião e o resto do universo. Disseram-me que, tanto há diferença, que chega a havê-la entre um tabelião e outro tabelião.
- Não leu o caso do tabelião que foi agora assassinado, não sei em que vila do interior? Foi assassinado diante de cinqüenta pessoas, de dia e na rua, sem perturbação da ordem pública. Veja se há de nunca acontecer coisa igual ao Cantanheda...
-Mas que é que fez o tabelião assassinado?
-É o que a notícia não diz, nem importa saber. Fez ou não fez aquela escritura. Casou com a sobrinha de um dissidente político. Chamou nariz de César à alta de nariz de alguma influência local. É a diferença dos tabeliães da roça e da cidade. Você passa pela rua do Rosário, e contempla a gravidade de todos os notários daqui. Cada um à sua mesa, alguns de óculos, as pessoas entrando as cadeiras rolando, as escrituras começando. .. Não falam de política; não sabem nunca da queda dos ministérios, senão à tarde, nos bondes e ouvem os partidários como os outorgantes, sem paixão, nem por um, nem por outro. Não é assim na roça.Vista-se você de tabelião da roça, com um tiro de garrucha varando-lhe as costelas.
-Mas como hei de significar o tiro?
-Isto agora é que é idéia; procure uma idéia. Há de haver uma idéia qualquer que significa um tiro. Leve à orelha uma pena, na mão uma escritura para mostrar que é tabelião; mas como é tabelião político, tem de exprimir a sua opinião política. E outra idéia Procure duas idéias, a da opinião e a do tiro.Fiquei alvoroçado, o plano era melhor que o outro, mas esbarrava sempre na falta de dinheiro para a berlinda, e agora no tempo. para arranjar as idéias. Estava nisto, quando o meu interlocutor me disse que ainda havia idéia melhor.
-Melhor?
-Vai ver: comemorar a tomada da Bastilha, antes de 14 de julho.
-Trivial.
-Vai ver se é trivial. Não se trata de reproduzir a Bastilha, o povo parisiense e o resto, não senhor. Trata-se de copiar São Fidélis.
- Copiar São Fidélis?
- O povo de São Fidélis tomou agora a cadeia, destruiu-a, sem ficar porta, nem janela, nem preso, e declarou que não recebe o subdelegado que para lá mandaram. Compreende bem, que esta reprodução de 1789, em ponto pequeno, cá pelo bairro é uma boa idéia.
-Sim, senhor, é idéia... Mas então tenho de escolher entre a morte pública do tabelião e a tomada da cadeia! Se eu empregasse as duas?
-Eram duas idéias.
- Com umas brochadas de anarquia social, mental, moral, não sei mais qual?
- Isso então é que era um cacho de idéias... Falta-lhe só a berlinda.
-Falta-me prosa, que é como os soldados de Aníbal chamavam ao dinheiro. Uba sacá prosa nanupacatu. Em português: "Falta dinheiro aos heróis de Cartago para acabar com os romanos." Ao que respondia Aníbal:
Tunga loló. Em português: Boas noites!.

                                                                                 [ crônica , 27.02.1889,Gazeta de Notícias]

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 arthur azevedo  e o carnaval
O palhaço(história triste para um dia alegre (

Como se explica que o Saraiva, um homem que tomava a sério as coisas mais cômicas da vida, e, segundo afirmavam as pessoas que o conheciam mais de perto, nunca ninguém viu rir, como se explica que o Saraiva, na terça-feira gorda de 1885, saísse de casa depois de jantar e, sem dizer nada à senhora, comprasse uma vestimenta de palhaço, uma cabeleira e uma máscara, e com tais objetos se metesse no seu escritório na rua do Hospício, de onde saiu disfarçado? Ninguém diria que escondido naquela roupa alegre, muito branca e semeada de rodinhas vermelhas, e por baixo daquela cabeleira azul, encimada por um chapeuzinho minúsculo e pontiagudo, e por trás daquela carranca jocosa, que ria de um rir comunicativo, estivesse o grave comerciante, que parecia haver nascido para vida monástica.
A esposa desse urso, d. Balbina, era, quando se casou, uma rapariga expansiva e risonha; teve, porém, que se submeter ao feitio dele: tornou-se tão séria e tão sensaborona como o Saraiva, e, sozinha em casa, sem filhos, sem amigas, porque o marido não queria visitas, aborrecia-se muito.
Aborrecia-se tanto que procurou uma distração, e encontrou-a num belo rapaz, seu vizinho, que de vez em quando pulava o muro do quintal para fazer-lhe companhia, e consolá-la daquele silêncio e daquela solidão.
Infelizmente para ela, outro vizinho, por inveja ou simplesmente por maldade, escreveu uma carta anônima ao Saraiva, de que ele tinha um sócio de cuja existência não suspeitava - e ora ai está como se explica que naquela terça-feira gorda, depois de dizer a d. Balbina que ia para o escritório, onde se demoraria até tarde da noite, fechando uma correspondência que devia partir no dia seguinte, o austero e sisudo negociante foi se vestir de palhaço para apanhar a esposa em flagrante delito.
- Eu saio, os criados saem, pensou ele; se ela tem realmente um amante, é de supor que aproveite a ocasião para metê-lo em casa...
Bem pensado, porque um quarto de hora depois de sair de casa o marido, o amante saltava o muro, e naquela terça-feira gorda, apesar de ter ficado em casa, d. Balbina divertiu-se mais que muitos foliões, nas patuscadas dos préstitos e dos bailes.
Havia já duas horas que o vizinho fazia companhia à solitária vizinha, quando a campainha do portão do jardim foi violentamente agitada. D. Balbina chegou à janela e avistou um tilburi, cujo cocheiro, mal que a viu, gritou:
- Mande cá uma pessoa, minha senhora!
Não havia um criado em casa. D. Balbina teve que ir pessoalmente abrir o portão.
- Que é? - perguntou ela.
- Minha senhora, este palhaço tomou o meu tilburi, e mandou tocar para esta casa; mas em caminho parece que teve uma apoplexia e morreu!
Efetivamente, o Saraiva, homem sangüíneo, que não pensou nas conseqüências de pôr aquela cabeleira e aquela máscara depois de jantar, tinha morrido no tílburi.
Deixo ao leitor o cuidado de pensar no espanto e na confusão que isso causou, e na tragicômica anomalia daquele negociante austero, estendido morto num canapé, e amortalhado em vestes de palhaço.
Só direi que d. Balbina, passado o período do luto, esposou o solicito vizinho que a consolava naquele silêncio e naquela solidão.
E até hoje, e lá se vão mais de vinte anos, ela não atinou com o motivo que levou o seu primeiro marido a vestir-se de palhaço... para morrer.
                                                                                                             Arthur Azevedo
[da coletânea Contos ligeiros,org. Raymundo Magalhães Junior. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1974]
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lima barreto  e o carnaval

O morcego
O  carnaval é a expressão da nossa alegria. O ruído, o barulho, o tantã espancam a tristeza que há nas nossas almas, atordoam-nos e nos enchem de prazer.
Todos nós vivemos para o carnaval. Criadas, patroas, doutores, soldados, todos pensamos o ano inteiro na folia carnavalesca.
O zabumba é que nos tira do espírito as graves preocupações da nossa árdua vida.
O pensamento do sol inclemente só é afastado pelo regougar de um qualquer “Iaiá me deixe".
Há para esse culto do carnaval sacerdotes abnegados.
O mais espontâneo, o mais desinteressado, o mais lídimo é certamente o “Morcego".
Durante o ano todo, Morcego é um grave oficial da Diretoria dos Correios, mas, ao aproximar-se o carnaval, Morcego sai de sua gravidade burocrática, atira a máscara fora e sai para a rua.
A fantasia é exuberante e vária, e manifesta-se na modinha, no vestuário, nas bengalas, nos sapatos e nos cintos.
E então ele esquece tudo: a Pátria, a família, a humanidade. Delicioso esquecimento!... Esquece e vende, dá, prodigaliza alegria durante dias seguidos.
Nas festas da passagem do ano, o herói foi o Morcego.
Passou dois dias dizendo pilhérias aqui; pagando ali; cantando acolá, sempre inédito, sempre novo, sem que as suas dependências com o Estado se manifestassem de qualquer forma.
Ele então não era mais a disciplina, a correção, a lei, o regulamento; era o coribante [2]inebriado pela alegria de viver. Evoé, Bacelar!
Essa nossa triste vida, em país tão triste, precisa desses videntes de satisfação e de prazer; e a irreverência da sua alegria, a energia e atividade que põem em realizá-la, fazem vibrar as massas panurgianas[3] dos respeitadores dos preconceitos.
Morcego é uma figura e uma instituição que protesta contra o formalismo, a convenção e as atitudes graves.
Eu o bendisse, amei-o, lembrando-me das sentenças falsamente proféticas do sanguinário positivismo do Senhor Teixeira Mendes[4].
A vida não se acabará na caserna positivista enquanto os “morcegos" tiverem alegria...
                                                        [ crônica  30.01.1915 Correio da Noite ]     



[1] General George Boulanger, político francês.
[2] Sacerdote da deusa romana Cibele, que dançava ao som de flautas, címbalos e tamborins.
[3] Aquele que segue cegamente um chefe.
[4] Raimundo Teixeira Mendes, líder do Apostolado Positivista

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

cinema e literatura -- a Eduardo Coutinho (1933-2014)

O cinema vai à literatura
(e a literatura se vale do cinema)

 o cinema, sempre    objeto  do foco, das luzes; e como a literatura, 
 sempre presente no imaginário e no  cotidiano de praticamente todas as pessoas no mundo.
elementos  mais do que suficiente  para examinar as relações entre cinema e literatura
.
Todas as ocasiões, oportunidades e motivos  são excelentes por  permitir uma reflexão sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções, confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos  contrastam- se; são  sempre  difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário -- originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, entre a página e a tela há laços  estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador  por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um  ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão --  meios que privilegiam a linha narrativa — também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, James Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto."
“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ, para ministrar uma disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV. Para ele, as relações entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a tela, apontando três outros importantes pontos de encontro : o primeiro seria os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam vários exemplos em cinematografias distintas; outro, seria o uso estrutural ou incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta indubitavelmente a ocorrência maior; e também  o encontro da literatura e do cinema poderia se dar através de referências como alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado,  Johnson critica  enfaticamente  a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser  muito comum entre os espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo. O conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se na discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no original.
Esse freqüente discurso da fidelidade baseia-se,a meu juízo, na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à idéia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme secundário -- além evidentemente do pensamento de que cinema e literatura são rivais a partir da crença na idéia de que o filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro.
Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus pontos de partida – as relações entre o cinema e a literatura são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos literários anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse modo, a narrativa cinematográfica já se encontraria latente em alguns textos narrativos literários, e  a relação logo passou a trilhar indissolúvel (sic)  mão dupla, quando literatos e dramaturgos começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em  poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada linguagem --- isto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em 1950, etc ) : e o  momento histórico de cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um de seus produtos.
Essa intrínseca,  dialógica e dinâmica relação nasce no momento em que o cinema descobre seu potencial digamos literário, ao absorver o modelo narrativo do romance do século XIX a subsidiá-lo para melhor contar histórias – malgrado podermos hoje levantar a reflexão em plena  era da imagem digital em que vivemos : o cinema  continuaria ‘preso’ a um modelo narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria literatura? .Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?
Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo da narrativa, em sua já longa história, o cinema não sofreu muitas variações – malgrado certas exceções, como experimentos ‘de vanguarda’ – e vem à mente, por aproximação etimológica, a  Nouvelle Vague” da década de 1960 , que se propunha a romper  com a lógica linearizante da estética e da narrativa fílmica de até então, inspirada num congênere da seara literária, o “nouveau roman”—ambas dialogando entre si pelas respctivas técnicas narrativas, num movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.Convém não esquecer,entretanto, que sob a égide de suas  afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já consagrados da narrativa literária – levando  Jorge Luis Borges  a  observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar  as limitações formais e “não procurando  ordenar o caos”, ao contrário, o caos tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”, p. ex., queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que os caminhos são múltiplos; e por fim  aquilo que Jean Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar, pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta e um papel.
Contudo, há de se atentar para um outro viés, uma espécie de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de publicação de  livros motivados... pelo cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração de filmes(making-of), edição ou reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos iconográficos  que remetem para os filmes realizados a partir da adaptação da obra para  o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura.  De resto, uma tendência à qual  avolumam-se questionamentos sobre até que ponto  sinaliza tanto  ‘perda de prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’ da matéria  literária, como sobretudo ‘dessacralização’ da literatura,  tênues que se tornam cada vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens culturais que circulam pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.
Das mesmas forma e diapasão e desse processo decorrente, deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX, por parte e ação do setor  editorial ,a  contrapartida à incorporação da obra literária,fosse best seller ou não – muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o relançamento de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros .Toda a literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um filme, e na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o espaço do livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações derivadas de filmes.
Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico -- e menos literário. E além  disso, mesmo que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam  lidar  com o onírico, o  sonho , e com o psicológico -- que é, sabemos,  elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles  antes e acima  de tudo pessoas do cinema.
Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O caso é que um diretor de cinema ou de tv  quando vai à literatura  leva com ele uma bagagem da linguagem  -- o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador -- e assim  comete  pecados e pecadilhos marcantes . Ao contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre -- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood, e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias  atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate -- literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme -- e vale lembrar que  para o escritor Autran Dourado “não existe livro filmado, existe filme baseado em livro” -- mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto -- relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou inferidos\induzidos, alguns elementos que responderiam a Stanley Kubrick -- para quem “tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” --  também provando o inevitável  desejo de cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, replicando a Kubrick, que  ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito’...

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Mauro Rosso 
pesquisador, ensaísta,escritor; amante do cinema.

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