segunda-feira, 28 de julho de 2008

As raízes da consciência brasileira


O mês de julho foi feito para comemorar ; e poucas vezes pode-se dizer enfaticamente “comemora-se” : o verbo exato, preciso, definitivo para caracterizar o fato :o centenário de nascimento de um dos maiores intelectuais (para muitos, o maior) que o Brasl já conheceu.

O historiador, ensaista, crítico literário e escritor Sérgio Buarque de Holanda nasceu em São Paulo a 11 de julho de 1902 ; morreu em 1982.
Reconhecido internacionalmente, é autor de dois grandes clássicos da historiografia e sociologia brasileiras: Raízes do Brasil e Visão do Paraíso -- mas escreveu outras sete obras de peso .
Da mesma forma que Raízes do Brasil, publicado em 1936, é considerado um clássico , o principal prefácio à obra, escrito por Antonio Candido em 1967, também o é.
Candido considera Raízes do Brasil um dos três livros fundamentais para se entender o país. Os outros são Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr. Esta opinião é compartilhada pela maior parte dos historiadores até hoje.
O que diferencia Raízes do Brasil de outras obras é sua preocupação com o futuro, sua intenção transformadora, contendo uma proposta política que aspira a superação do passado brasileiro, de nossa herança ibérica; nesse sentido, segundo Candido, ela foi revolucionária. Mas revolucionária sobretudo por conter propostas para que o Brasil atingisse um desenvolvimento democrático.
Na obra de Sérgio Buarque de Holanda já estão presentes vários aspectos retomados em estudos posteriores sobre o processo de modernização do Brasil.
Uma das questões mais presentes no pensamento político brasileiro do século XX é a que diz respeito à dificuldade em atingir a plena modernização do país. Por que é tão difícil chegarmos a ela?
Para Holanda somente o advento da racionalidade poderia trazer um desenvolvimento democrático moderno, cujo modelo é a racionalidade legal e burocrática de Max Weber. Concluiu que nossas raízes ibéricas, aventureiras , instáveis, e os elementos do passado privatista não favoreciam a implantação de normas democráticas e a formação do indivíduo.
Seria necessário, portanto, acabar com essa ética da sociabilidade privada, cujos valores eram, para ele, não-racionais. Somente uma separação do público e do privado levaria a uma queda do personalismo e ao aumento da racionalidade.
O objetivo de Holanda era bastante claro: a vitória da doutrina democrática. A questão passava a ser então: por quais meios atingi-la?
Holanda afirmava, por exemplo,que o isolamento entre as elites e o resto do país deu-se pelo fato de as classes mais baixas jamais terem tido oportunidades favoráveis para crescerem "mentalmente”. Observava também que o aparelhamento político brasileiro "se empenha em desarmar todas as expressões menos harmônicas de nossa sociedade, em negar toda espontaneidade nacional".
Restaria alguma esperança para Sergio? Ele sustentava que "apesar de tudo, não seria justo afiançar-se, sem apelo, nossa incompatibilidade absoluta com os ideais democráticos", pois haveria uma possibilidade de articulação entre nossa cordialidade e as construções dogmáticas da democracia liberal. Por “cordialidade” (no célebre conceito sobre o brasileiro como “um homem cordial”) entende-se emotivo, passional, “que funciona por emoção” __ “cordialidade” não significando ‘ amistosidade’, ‘simpatia’, ou mesmo ‘subserviência”, ‘passividade’,etc.
Holanda defendia que a concretização da doutrina democrática só seria efetivamente possível quando tenha sido vencida a antítese liberalismo-caudilhismo. Em suma, seria necessário “ superar as raízes”.
Haveria, portanto, um sentido claro do rumo que a história deve tomar, cuja síntese seria a democracia. O uso do termo "irrevogável" reforça essa idéia. E essa visão é oposta à de Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala, na qual já está presente a idéia de uma civilização brasileira existente e consolidada.
Mas a vitória da democracia, se tivesse que passar pelos caminhos da política, ou seja, pela via da superação racional, da articulação entre nossa cordialidade e as construções dogmáticas da democracia liberal, seria necessariamente lenta. Holanda observava que a tradição brasileira nunca deixou funcionar os verdadeiros partidos de oposição, representativos de interesses ou de ideologias.
De onde viria então a força necessária para vencer a resistência e acabar com a velha ordem colonial e patriarcal? Como absorver o racionalismo de uma forma que fosse "colada" à vida social e não imposta superficialmente, sem alterar as estruturas sociais?
Holanda, ele mesmo, vaticinava : "Com a simples cordialidade não se criam os bons princípios. É necessário algum elemento normativo sólido, inato na alma do povo ; o Estado entre nós não precisa e não deve ser despótico __ o despotismo condiz mal com a doçura de nosso gênio __ mas necessita de pujança e compostura, de grandeza e solicitude" .
Eis um dos aspectos porque Antonio Candido considera Raízes do Brasil uma obra revolucionária : sua proposta política aspira a superação do passado brasileiro.
Ao final, Sérgio Buarque de Holanda concluía que as formas superiores da sociedade devem emergir continuamente das necessidades específicas dessa sociedade e jamais de escolhas caprichosas, mas há um demônio pérfido e pretensioso que se ocupa em obscurecer aos olhos dos brasileiros essa verdade singela.
Além de considerar que os princípios do liberalismo no Brasil eram uma inútil e onerosa superfetação, para ele o isolamento entre as elites e o resto do país ocorria por culpa das próprias elites, que jamais deram oportunidades para que as classes mais baixas crescessem "mentalmente" .
Na obra de Sérgio já estão presentes vários pontos que foram retomados em estudos posteriores: o liberalismo distante de nossas essências mais íntimas, a política separada da vida social, a dificuldade da formação de uma esfera pública, o papel das elites como obstáculo à formação deste espaço público, a falta de vida política como empecilho à modernização, a cordialidade como reforço da esfera privada.
Existe alguma dúvida, prezado leitor, de que Sérgio Buarque de Holanda, um homem de seu tempo, tenha registrado em toda sua obra conceitos e fatos da mais perfeita atualidade? Existe algo mais aplicável e propício à nossa realidade de hoje __ de agora e das últimas seis décadas ?







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domingo, 6 de julho de 2008

eu e a Flip 2008


Um dos grandes lances deste último dia foi a mesa-redonda “Papéis avulsos”, com Ana Maria Machado, Luiz Fernando Carvalho, Sergio Paulo Rouanet ,com mediação de Lilia Schwarcz : uma primorosa homenagem a Machado de Assis : Luiz Fernando Carvalho, responsável por algumas das mais premiadas adaptações da literatura brasileira para o cinema e televisão, falou sobre os desafios de transformar o romance Dom Casmurro na minissérie “Capitu”; a premiadíssima Ana Maria Machado discorreu sobre suas relações intelectuais com Machado e como ele “moldou” a escrita dela; Rouanet, emérito machadiano, Rouanet desvendou meandros da edição com a correspondência de Machado que prepara .

Shandiano e menipéico

minha colher aqui (com trecho de ensaio escrito em 2007 ) vem a propósito do temo cunhado por Rouanet – “shandismo” – que caracteriza,junto com a sátira menipéia, os vetores básicos ,e explicam, a histórica inflexão machadiana,na década de 1880, dentro do processo de sua evolução literária.
(...) Existe uma expressão , hoje comum e consensual no meio da machadologia (e da machadofilia), que define uma forma literária, que vindo de Sterne, de Maistre, Garret e Diderot,adquire em Machado sua substância mais consistente,simbiótica e conclusiva, inclusive dando a essa forma literária seus contornos e conteúdo definitivos -- e realizando algo absolutamente sui generis em toda a prática, ou teoria, literária , qual seja de um lado induzir a interpretação de seu Memórias póstumas de Brás Cubas sob os vetores desses elementos definidores dessa forma literária formulados por ele,de outro, em movimento retroativo,que se aplicasse esses elementos também na interpretação das obras que lhe serviram de modelo ( Vida e opiniões de Tristan Shandy, o cavalheiro; Viagem em torno do meu quarto; Viagens da minha terra : Jacques, o fatalista), um caso único na história literária de uma obra e um autor posterior influenciar obras e autores anteriores, algo como o influenciado influenciando quem o influenciou. Essa forma literária, sedimentada por Machado e subsidiante da compreensão crítica dos autores seus modelos, é a forma shandiana, caracterizada por a ) atuação intensa e imprescindível do narrador, mais do que nunca e mais do que em outro tipo de narrativa uma persona do autor; b) fragmentação,temporal e espacial, da narrativa,esta extremamente não-linear,dotada de circularidade ; c)digressividade ,seja extratextual seja intratextual ; d) alta rotatividade de pontos de vista narrativos e acentuada volubilidade no tratamento dado ao leitor, ora arrogante e presunçoso ora gentil e deferente.
À forma shandiana estão associadas – não de modo genérico e onipresente , porquanto válido em algumas obras e autores, em outros não – a sátira menipéia e a tradição luciânica, originadas de uma tradição grega, dos diálogos socráticos, que mesclam temas especificamente filosóficos com assuntos de retórica e dialética, eivados de hilaridade, comicidade e ironia: na duplicidade sério-cômico,abriga o popular, o erudito, o burlesco, tornando-se p. ex. um dos elementos basilares da carnavalização conceituada por Mikhail Bakhtin . Na obra machadiana a partir da década de 1880 denota-se a presença marcante de manifestações da sátira menipéia, como a paródia, o subterfúgio ,a profanação, o disfarce e, em especial, a ‘desconstrução’ de formas literárias .
A forma shandiana e o 'shandismo' foram o instrumental de que Machado se valeu para promover e concretizar o grande salto literário de sua obra, no final da década de 1870/início de 1880 -- com a plena consciência de que tinha de mudar tematica,tramatica e estilisticamente, subvertendo e solapando o Realismo literário então vigente e criando uma linguagem ,ficcional e não-ficcional diferenciada - mescla do humor e da seriedade, da galhofa e da crítica social e política, do riso e do tédio
.(...)

eu e a Flip 2008

E para encerrar, reporto-me ao próprio blog da Flip , que enfatiza
Arte e PolíticaJulho 6, 2008 by festaliteraria
Em 1924, o filho de Richard Wagner, Siegfried, mandou fazer uma pequena bandeira e a colocou sobre a entrada do teatro de Bayreuth. Nela, estava escrito: “Hier gilt’s der Kunst!” Ou seja: “Aqui só vale a arte!”
A FLIP 2008 abriu com Roberto Schwarz transformando Dom Casmurro num romance de luta de classes. No dia seguinte, Elizabeth Roudinesco foi obrigada a responder por que havia usado Osama Bin Laden como exemplo de perversidade e não o “terrorismo de Estado”. Ontem foi a vez de Luis Fernando Veríssimo que, diante de um dos maiores dramaturgos contemporâneos, tentou levar o assunto da dramaturgia para a ideologia…
Talvez uma pequena bandeira pudesse tremular sobre a Tenda dos Autores: “Aqui só vale a arte!”


ao que reporto-me ao próprio Machado : "de todas as coisas humanas, a única que tem o seu fim em si mesmo é a Arte".
E a política ? indagareis. aproveito então para meter minha colher em um de meus temas machadianos prediletos , que está em ensaio que publiquei. Aqui um trecho:
Machado e a política : nada oblíquo, nada dissimulado
(...) Machado de Assis foi soberbo cronista que fez da crônica muito mais do que um registro pontual do cotidiano, transformando-a em um verdadeiro gênero literário .E não se diga que , ao contrário do levianamente disseminado, tivesse ele se postado alheio a seu tempo, alienado das questões de ordem institucional,política,econômica e social: Machado tratou da política brasileira do século XIX (e, para surpresa de alguns, sobre economia) em muitas de suas criações ficcionais e não-ficcionais -- nos contos, por exemplo, está retratada a história do 2º. Reinado e mais de seis centenas de crônicas no período 1860-1900, publicadas na imprensa, mostram como o notável escritor,cronista,autor e criador debruçou-se com seu olhar acurado,lúcido,irônico, satírico – sempre claro, nítido e direto, poucas vezes obliquo, dissimulado, sutil – sobre as mazelas provocadas e advindas dos tempos novos da República,da qual diga-se não foi entusiasta, ao contrário um crítico contumaz: passaram pelo crivo machadiano, sempre aguçado e satírico, trocas de ministros, quedas de gabinetes, substituições de autoridades, falcatruas parlamentares, fraudes e cambalachos eleitorais, corrupção,e sobretudo a extinção da escravidão e o fim da monarquia(que ele respeitava e admirava).Tudo registrado ,comentado e por vezes acidamente criticado por sua aguçadissima visão. Ao olhar machadiano nada escapou dos fatos e assuntos de qualquer natureza de seu tempo — uma época,do advento do Romantismo ao Realismo literário,do Segundo Reinado à Abolição,queda do Império e implantação da República, sob todos os aspectos de grande ebulição,tumultuada e marcante para a história brasileira
Machado, como ninguém, anteviu que a própria evolução da sociedade nacional e o processo transformador que o País atravessava .Foi crítico ‘sofrido e perplexo’ da República – “(...)eu peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano porque esse seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou(...)”, escreveu ---fazendo-o sentir-se especialmente na década de 1890 desalentado, tedioso,desgostoso. Tanto foi seu desalento que nesse biênio sua produção não-ficcional paralisou-se -- na verdade, um interregno que vinha desde 1889, quando se deu a primeira das duas únicas interrupções na produção contínua para a Gazeta de Notícias entre 1883 e 1900, explicável ,de um lado, pela elaboração, em fase final, do romance Quincas Borba, publicado em fascículos na revista A Estação entre 1888 e 1890 e em livro em 1891, obra à qual Machado dedicou muitos anos e muito esforço de criação e execução (é este seu romance de maior complexidade e textura tramática e dramatúrgica), sobrevindo mesmo um processo de crise criativa,em Machado, no decorrer de sua gestação , e, de outro lado , por uma razão de ordem política aliada à natureza de Machado, extremamente cauteloso diante de um período conturbado, de alta tensão, com golpes e contragolpes de Estado (o “golpe da bolsa” de Deodoro da Fonseca em 3 novembro 1891, e a substituição de Deodoro por Floriano Peixoto em 23 novembro desse ano ) , além de seu estado da mais completa desilusão com os rumos da República . A segunda interrupção deu-se entre 1897 e 1900, quando já se denotava no conjunto das crônicas machadianas (da série “A Semana”) claros sinais de um amargor, mais do que o desalento de antes , focando-se preponderantemente nas endêmicas manifestações de um cenário de corrupção, cenário esse aos olhos e na pena de Machado inerente ao próprio regime republicano e seus projetos ‘modernizadores’.Esse tom amargo afeta até mesmo a regularidade de publicação , ímpar em sua antecessora “Bons Dias!”, regularidade que começa a falhar e cessa por completo ainda no ano de 1897 , quando a última crônica é datada de 28 de fevereiro e só retomada nas duas únicas crônicas de 1900 , a 4 e 11 de novembro : causas, motivos e explicações podem ser procurados, dificilmente encontrados de modo claro, embora , há de se observar e atentar, se mantivesse ele ativo na criação ficcional,haja visto ser esse o período de construção de nada menos que Dom Casmurro .
As crônicas de Machado que tratam de política formam um elenco bastante expressivo de sua produção não-ficcional: são nada menos que 233 textos, dos quais 1 em O Paraíba,1858; 1 em A Marmota ,1860; 53 no Diário do Rio de Janeiro 1861-68 ; 7 em Imprensa Acadêmica 1863-64; 8 em A Semana Ilustrada 1869-76 ; 8 em Ilustração Brasileira 1877-78; 9 em O Cruzeiro ,1878; 145 na Gazeta de Notícias 1883-1900 ; 1 no volume Páginas recolhidas (1899).
A abordagem machadiana sobre política não se restringiu à crônica. Deu-se até na poesia – como,p.ex. os satíricos e menipéicos ‘versiprosa’ da “Gazeta de Holanda” e nos versos densos,entre outros, de “Os arlequins”,”Polônia”, “A cólera do Império”- e em especial no teatro, em peças como “Desencanto”,“Quase ministro” e “Os deuses de casaca”.
O contos, por sua vez, constituíram um cenário privilegiado para Machado lançar seu olhar crítico sobre temas políticos, justamente pelo uso dos recursos da ficção literária, sempre propícia a esse fim – ainda mais com o instrumental do subterfúgio e da sutileza machadiano : o conto, aliás, seria per se o gênero mais condizente como o gênio do autor, que usa à exaustão a ironia, o humor, a alegoria, focalizando aspectos e detalhes triviais mas lançando ao mesmo tempo luzes surpreendentes sobre assuntos importantes.Dos 218 contos por ele criados, entre 1858 (ano de publicação de “Três tesouros perdidos”, em A Marmota) a 1907 (data de “O escrivão Coimbra”, no Almanaque Brasileiro Garnier), exatos 10 por cento têm, em maior ou menor grau, temática política , numa íntima relação com a realidade brasileira do momento e lídimo retrato da sociedade de seu tempo. Além do mais, foi no conto que Machado realizou o “laboratório”, por assim dizer, do processo evolutivo de sua obra, culminante com aquela referida inflexão no final da década de 1870 – e justamente no decênio 1878-88 manifesta-se a mais profícua, criativa e espetacular produção contística machadiana, quer em termos quantitativos – são nada menos que 80 nesses 10 anos – quer em termos qualitativos – nesta safra estão insofismavelmente os melhores contos, inclusive alguns mais contundentes e reveladores (caso de “O machete”, de 1878; caso de todos incluídos na excepcional coletânea Papéis avulsos, de 1882; caso do sutil “Singular ocorrência”,1883, do antológico “Um homem célebre”,1888, do’filosófico’ “O lapso”,1883, do essencial “Evolução”,1884, do instigante “A causa secreta”,1885, do maravilhoso “Capítulo dos chapéus”,1883 ; do contundente “Conto de escola”,1884—estória sobre crianças e o mundo dos adultos, mas sobretudo um drama político que trata da Maioridade de Pedro II, vista como um golpe de Estado’); e em “A parasita azul” ,de 1872,p.ex., dramatiza os impasses e contradições do nacionalismo, em “O espelho”, 1882 , a discute a própria questão da identidade nacional.
Na seara romanesca, senão a temática política propriamente dita, a referência, o comentário, a alusão à política e a políticos, e sobretudo o registro e retrato da sociedade brasileira quer do Segundo Reinado quer da nascente República e as relações políticas,ideológicas,econômicas entre as categorias sociais , estão presentes do inicial Ressureição ao derradeiro Memorial de Aires, de Helena a Casa velha ( a obra de maior sutileza temática de toda a ficção machadiana), de Iaiá Garcia a Dom Casmurro, de Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba (cuja densidade e complexidade dramatúrgica não tem igual,em Machado) a Esaú e Jacó(este, o romance mais explicitamente político de Machado)
Ficção e realidade, ficção e história, ficção e sociedade brasileira constituem fulcros sempre presentes na obra machadiana.Em boa parte de sua ficção e da não-ficção Machado oferece ao leitor uma interpretação satírica, por vezes alegórica, da história dos primeiros anos da Independência, das diversas fases do 2º Reinado e da eclosão da República, desnundando mitos e certezas, aparências e disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu olhar ,no caso direto e transparente, feito testemunho incomparável sobre a vida política e institucional brasileira do século XIX.

eu e a Flip


Na sexta-feira, ora ora meu amigo e parceiro Gustavo Franco, emérito economista e homem público, tratou de “Machado de Assis e a economia” – tema do livro que organizamos juntos, em 2007 : fruto de minhas pesquisas sobre as crônicas machadianas (que geram também aquela antologia sobre política, para o Senado Federal),levei a Gustavo os textos que Machado escreveu na imprensa sobre finanças e daí veio o livro.
O oblíquo olhar na economia
Aqui ,mais do que nunca --pois também fiz o livro -- meto minha colher :
(...)Machado de Assis,sim senhor, tratou de fatos e assuntos da economia e das finanças , como nenhum outro escritor em sua época. Muitos de seus escritos no período 1892-96, publicados na Gazeta de Notícias [um dos principais jornais da capital nessa ocasião, ao lado do Jornal do Commercio, O Paiz, Jornal do Brasil,Diário de Notícias,A Cidade do Rio,Rio-News ] mostram como o notável escritor,cronista,autor e criador debruçou-se com seu olhar acurado,lúcido,crítico,irônico, satírico – por vezes claro, nítido e direto, por vezes obliquo, dissimulado, sutil – sobre as mazelas provocadas e advindas, nos tempos novos da República, de uma ciranda financeira e sua plêiade de emissões, crédito luxuriante, jogatina, falências em cadeia . Não sem antes, ainda no tempo imperial,ter passado pelo machadiano crivo, aguçado e satírico, quebras de bancos – a “quebra do Souto”,alusão à falência da Casa (bancária) A . F. Souto & Cia, em 1864 -- o “estouro” da bolsa de valores em 1867 , a crise financeira inerente à guerra do Paraguai (1865-70), os problemas da conjuntura econômica envolvendo companhias,bancos e entidades.
As crônicas machadianas referentes à economia trazem uma espécie de tese sobre o Brasil : examinadas em conjunto, formam um enredo de sátira ativa ao nítido capitalismo de Estado que vicejava no país, em que tudo emanava do governo , fosse imperial como até 1889, fosse republicano . Machado percebe nitidamente o quanto o capitalismo brasileiro da época era "uma idéia fora lugar", uma máscara sobre uma economia composta de concessões e privilégios todos emanados do Estado .Não é outro o sentido, por exemplo, da postura crítica,no caso notavelmente cética, com relação ao acionista – personagem central de uma alegoria sobre a atividade empresarial no Brasil do final do século XIX : o acionista machadiano não é similar ao de nossos dias, tampouco se preocupa com as boas práticas de governança corporativa ; para ele, não vale a pena participar de assembléias ou interessar-se pelos destinos da empresa , não há por que se envolver com rituais societários, se tudo a rigor era decidido pelo poder público. Tem plena consciência de que o Estado mandava tanto na economia e no país que qualquer outra forma de pensar o capitalismo brasileiro seria mero fingimento.
As crônicas de Machado que tratam de finanças e economia formam um elenco bastante significativo de sua produção não-ficcional : são 79 textos escritas sob o clamor crítico-satírico do olhar machadiano feito testemunho incomparável sobre a história brasileira nas quatro últimas décadas do século XIX
.(...)


Os acasos na vida e na literatura
No sábado, uma das atrações mais concorridas foi o encontro entre o brasileiro João Gilberto Noll -- autor de "Acenos e Afagos", recém-lançado -- e a cineasta argentina Lucrecia Martel -- diretora de "La Mujer Sin Cabeza", exibido no Festival de Cannes em maio e exibido sábado na Casa de Cultura de Paraty – ambos falando sobre o modo como desenvolvem seus trabalhos, na literatura e no cinema. Para Noll, “a vida, no fim das contas, é um festival de acasos", e completou o discurso dizendo que o objetivo da literatura é "mostrar o que está arredio, evidenciar o que está fora do nosso convívio social, aquilo que não se pode dizer sob pena de ser internado em um hospício".
A propósito, devo eu dizer que (e aí está minha colher):
(...) Desnecessário e dispensável explicar a importância do leitor para que se produza um texto,ou uma obra -- a Literatura ,como "sistema orgânico" conforme a concepção formulada por mestre Antonio Candido,só existe e se faz se a um autor\emissor houver a derradeira instância do leitor\receptor,travando-se um diálogo e estabelecendo interatividade . Ou,segundo a linguagem da Teoria Literária ,desenvolvendo-se, ou a se desenvolver, idealmente a conexão narrador-narratário. Sim, porque há leitores e leitores. existe o leitor empírico,aquele que de fato está lendo o texto ou a obra , que não é necessariamente aquele a quem o texto ou a obra se endereça, aquele que o autor tem em mente ao escrever .Umberto Eco,em Seis passeios pelos bosques da ficção, afirma que todo texto "é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho", daí existindo um leitor pressuposto para o texto ou a obra, e adota o termo leitor-modelo, um leitor com determinada soma de informações,conhecimentos,crenças e expectativas que passa a participar da construção e da tecelagem do texto ou da obra . Ao leitor-modelo umbertiano integra-se ,como agente simétrico, o autor-modelo --- a voz anônima que conta a história,mas não se confunde com o narrador,nem com o autor.
O que quero dizer com tudo isso ? conclamar e reunir leitores empíricos,leitores-modelo e autores-modelo.e dizer que vc. também é autor destas linhas
.(...)
E vou mais além – para tocar num tema também objeto de conversas informais por aqui,nas tendas,nas ruas,nas praças, no ar :
(...) se vc. não consegue se concentrar muito tempo numa leitura , se quando entra na internet,p. ex., abre várias telas ao mesmo tempo e muda a direção de sua atenção freqüentemente , e isso lhe preocupa\angustia : não se desespere...O fato de estar divagando entre diferentes universos não é necessariamente algo ruim. Para o escritor argentino e professor de literatura de Princeton, Ricardo Piglia, trata-se apenas de um novo momento da "experiência da leitura", ou melhor uma retomada de um conceito anterior : o leitor que assume a interrupção como parte da narrativa já foi antecipado por seu conterrâneo Macedonio Fernández , com o conceito de "lector salteado" -um leitor intermitente, que pula de um assunto para outro ou se dispersa facilmente. Que é um retrato do leitor atual, não mais aquele que se encontra isolado, concentrado e lutando contra a interrupção, mas que entra e sai do texto, se move, interage com o que está ao redor, vai de um livro a outro ou a outros textos mais rápidos que lhe surgem pela internet,um leitor que assume a interrupção como parte da narrativa. É o leitor contemporâneo,que vasculha a internet por links para textos que ampliem seu universo de leitura, ou que possam conferir a quem lê significados mais amplos, que transcendam o texto
.(...)

sexta-feira, 4 de julho de 2008

eu e a Flip 2008


no segundo dia da Flip , em pauta a defesa da igualdade de gêneros, a rejeição da existência uma literatura feminina e os tabus do sexo na mesa "Sexo, mentiras e videotape", com as escritoras Inês Pedrosa, Zoë Heller e Cíntia Moscovich .oportuno para a questão que insinuo :


Quem tem medo da literatura feminina ?


Preconizada por Virginia Woolf, na década de 1930 [ no livro A Room of One’s Own (Um quarto todo seu) ] , defendida pelas feministas européias de 1970, uma “escrita feminina” ganhou corpo (e forma) na literatura, sim senhor __ queira-se ou não. Mulheres escritoras (ficcionais e não-ficcionais) têm voz própria, estilo próprio, linguagem própria, temática própria , Apesar das (para alguns, incontornáveis) dificuldades para definição precisa do que seja uma escrita feminina, eu particularmente entendo existir uma ‘literatura feminina’ com elementos, valores e vetores próprios __ que só fazem acrescentar e enriquecer a Literatura (e a Cultura, em geral). Fácil identificar entre escritoras brasileiras e estrangeiras contemporâneas uma escrita nitidamente feminina __ com suas obras carregadas de características específicas.Sem dúvida alguma, a literatura de autoria feminina já criou seu espaço próprio dentro do amplo universo literário mundial.
Na verdade, as grandes mudanças que o século XX trouxe para a vida da mulher foram fator determinante para o surgimento e expansão de uma literatura feminina __ reflexo e manifestação dos novos papéis da mulher na sociedade e no mundo. A gestação dessa ‘nova mulher’ deu-se pelo amadurecimento crescente de sua consciência crítica, que determinou uma transformação radical da escrita realizada pela mulher : de uma literatura lírica-sentimental, de ‘contemplação emotiva’, para uma literatura ética-existencial, de ‘ação ética-passional’__ um caminho trilhado , e nitidamente percebido no meio exterior (por críticos, leitores, editores, agentes, midia, etc), na área da prosa ficcional, da poesia e do teatro.Na nova ficção feminina, o amor __ codimentado pelo erotismo, por vezes exacerbado __deixa de ser o tema absoluto para ceder espaço a sondagens existenciais, ao ludismo e ao feérico na invenção literária, ao questionamento político e filosófico.
Tudo isso traduzido e materializado em experiências formais e estilísticas : fragmentação narrativa, intertextualidade, o foco narrativo múltiplo, o intenso fluxo-de-consciência, o registro labiríntico no lugar da estrutura linear, a exploração dos mitos,do esotérico, a clara opção a pela ‘linguagem do corpo’, “a procura do sentido das coisas” __ esta talvez, a expressão-chave da escrita feminina contemporânea.No Brasil, o surgimento de mulheres escritoras ocorre principalmente a partir do século XIX, no contexto da crescente importância da imprensa e do início de movimentos em prol dos direitos das mulheres.Na literatura brasileira, considera-se o romance Úrsula (1859), da maranhense Maria Firmina dos Reis, a primeira narrativa de autoria feminina. O romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da história:contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da protagonista.
Naquele século XIX e na primeira quadra do século XX, no entanto, não foram apenas elas que escreveram ‘sobre elas ou para elas’: quatro escritores-homens se destacaram por voltar-se, em graus e enfoques diferentes, para as mulheres.: Joaquim Manuel de Macedo descreveu-a e tratou-a como “donzela de irrepreensíveis pendores” em especial em A Moreninha e em inúmeros contos. José de Alencar traçou o mais completo retrato da mulher ‘urbana’ da corte, no Brasil pós-Independência, no auge do romantismo, notadamente na trilogia Senhora, Diva e Lucíola, além de nas novelas Cinco minutos e A viuvinha ,e nos romances A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação. Lima Barreto debruçou-se sobre a mulher ‘republicana’ , logo na década de 1910, ao desenvolver o “tema de Carmen” , uma série de artigos e crônicas em jornais e revistas nas quais a propósito de crimes ou julgamentos, ataca os homens “que se atribuem direitos sobre a vida das mulheres”, denunciando crimes de uxoricídio.
Porém, nenhum escritor brasileiro do período ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis. Ele escrevia sobre mulheres e para mulheres. Amores e frustações femininos eram temas constantes, sempre presentes o ciúme, o adultério, a prostituição, e as personagens femininas ocupam lugar privilegiado, lugar de destaque em todos os romances e na maioria dos contos.Nas entrelinhas de seus contos , romances, e também de suas crônicas, Machado sempre chamou atenção para as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras: a mulher devia receber instrução e não ficar confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à liberdade__ daí, seus temas mais constantes: o ciúme e o adultério. Machado trouxe à luz a questão da sexualidade feminina ,a exemplo de Flaubert, Balzac,Eça e ...Freud.
nos romances, principalmente da ‘segunda fase’, Machado capta de forma aguda, a la Freud, as sutilezas do ‘discurso do desejo inconsciente’, descreve conflitos e enfatiza o inconsciente, sua obra como o principal elemento/vetor de pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise ; a percepção acentuada do funcionamento do psiquismo humano na verdade vem desde as primeiras obras.]Na maioria dos romances, a mulher é o elemento forte, põe o homem dependente, é também o esteio, a base da relação.Um número surpreendente de contos são o que pode ser catalogado como ‘estudos sobre a mulher’: “Queda que as mulheres têm para os tolos”; “Singular ocorrência”; “Capítulo dos chapéus”; “Primas de Sapucaia !”; “Uma senhora”; “Trina e una”; “Noite de almirante”; “A senhora do Galvão”; “Missa do galo”; “D. Paula”.Para muitos estudiosos, Machado era mesmo ‘feminista’ __ e a cada leitura de sua obra nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo.Erigido como categoria literária.

quinta-feira, 3 de julho de 2008


A Flip 2008 se abre com a conferência do emérito crítico e ensaísta Roberto Schwarz ,um dos mais destacados intérprete da obra de Machado de Assis , sobre Dom Casmurro .Oportuno,muito oportuno para certas ilações machadianas.


O elo freudiano em Machado ,do primeiro livro à a obra-mater
Desde seu primeiro livro publicado,em 1861 , Queda que as mulheres têm para os tolos – que título instigante, provocador ! – Machado fomenta o enigma,o mistério, o disfarce,o subterfúgio: porque persiste a dúvida histórica de ser uma tradução ou uma criação original de Machado – que não tenho a MENOR DÚVIDA que é (criação).vejam a propósito minha edição crítica sobre esse livro. Cá entre nós e para nós, a versão de ser criação original é muito mais,digamos,’charmosa’, muito mais – não há dúvida alguma — ao estilo e espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado — a par de outras igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado. Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’— e é esse teor ‘hamletiano’, a ligá-lo e referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores admirações e citação constante .Dele, Machado assimilou e incorporou à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ – presente e atuante em romances como Ressureição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos : binômio que remete a Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer…— os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise, desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’

eu e a Flip 2008

Em Dom Casmurro a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês : Machado embebeu-se nas lições shakespeareanas e delas impregnou seu romance mais lido e estudado , conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo, e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose, inclusive, Machado como que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigente no âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX — proposta por especialista, “a ficção vista como nova fonte de teorização para a tradução”, a tradução aparecendo como fio condutor e meio operandi , quer tendo sido feita realmente em Queda que as mulheres têm para os tolos , quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro, e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida literária de Machado.Um elo a ligar ‘primeiras obras’ — a pioneira publicada, o exercício teatral inicial, o romance precursor — com aquela que é a síntese, corolário, consolidação. Elo que se alonga mais , visto por outros aspectos e ângulos: vai a Esaú e Jacó e atinge o corolário final em Memorial de Aires. Nos dois derradeiros trabalhos, Machado opta por um expediente ficcional — dentre os vários que utiliza ao longo de sua obra – atribuindo a um morto a autoria desses romances, deslocando-se para uma condição ambígua de editor e crítico de si mesmo, fingindo abrir mão da autoria de seu texto –- ambiguidade gerada e conduzida pelo mesmíssimo vetor que o fez, nos primórdios, assumir a também condição ambígua de ‘tradutor’ em Queda… e da mesma forma abrir mão da autoria de seu texto.