segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
Os sertões: contemporâneo da posteridade
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“Só as
obras bem escritas hão de passar à posteridade" :palavras lapidares escritas por um naturalista, o conde de
Buffon (mais conhecido por uma frase que se tornou famosa :’le style c'est l'homme même’), ao tomar
posse na Academia Francesa, em 1753.
Os sertões estão fadados à posteridade. A
obra-prima de Euclides da Cunha, completa 106 anos celebrada por muitos,
muitissimos motivos __ em especial por sua espantosa atualidade
Já se
falou e escreveu __ vai-se falar e escrever sempre, ao que parece __ de sua
linguagem difícil : o que não o impediu de ser o primeiro best-seller da
história editorial brasileira , com três edições sucessivas no lançamento, a 2
de dezembro de 1902, (ou seja, cinco anos após o fim de Canudos), pela editora
Laemmert, e de ser consensualmente considerado “o livro do Brasil”, “a obra
número 1” .
É bom lembrar que o “livro vingador” __ assim ele mesmo, Euclides da Cunha, o
batizou, ao lançá-lo __ teve sua primeira edição (custeada com recursos
próprios do autor) de 2 mil exemplares, rapidamente esgotados.
O que
mais dizer de um livro que conta com mais de 30 edições em português, traduzida
em 3 idiomas, em mais de 60 países__ em
muitos deles foram feitas traduções
sucessivas, em tentativa de contínuo aprimoramento. Mas, por outro lado, é
equivocado pensar que sobre Os sertões
tudo já foi dito, lido,ouvido e escrito : muito há o que comentar, muito o que
refletir, muito até mesmo o que de críticas e ressalvas ouvir e ler, muito o
que debater e meditar.
O que fez ,e faz, Os
sertões tão célebre?
A consagração de Euclides e de sua obra se de um lado
foi, à primeira vista, um fato relâmpago e inesperado __ um anônimo engenheiro
e pouco conhecido jornalista ter se transformado no mais celebrado escritor do país, na época __ de outro está
sedimentado por dois fatores básicos: 1) a aceitação de alguns conceitos –chave
de Os sertões relacionava-se com um
longo trabalho de imposição de novas idéias e concepções e de novos valores que
vinham sendo gestados no país há pelo menos 30 anos __ o cientificismo da
‘geração 1870’ ;
2) a consagração-relâmpago foi impulsionada por alguns dos críticos literários
mais importantes do país, José Verissimo, Araripe Juniorr e depois Silvio
Romero__ além de Roquette-Pinto. Todos enalteceram , insistindo em signos de
raridade na obra, mostrando o quanto texto, tessitura, forma, estrutura e
conteúdo escapavam do comum, do
conhecido.__ e os ensaios críticos que vieram em sequência, ao longo dos anos(e
até hoje), enfatizam esse caráter de descobertas de verdades fundamentais para
o destino do país, como “a tese dos dois Brasis”, a necessidade de olhar para o
interior, para “o Brasil real”. O consenso era de que Os sertões não podia ser comparado a nenhum outro livro: era “uma
bíblia permanentemente aberta para interpretações, vindas de diversas áreas :
literatura, história, geografia, geologia, política,biografia,matemática,
engenharia”.Tanto Verissimo como Araripe sublinhavam a idéia de totalidade
encontrada no livro, resultado da soma da arte com a ciência, do épico com o
trágico e da emoção com a razão. Euclides produzira uma obra científica, uma
obra histórica, mantendo “a continuidade da emoção, sempre crescente, sempre
variada, que sopra rija, de princípio a fim, no transcurso de 634 páginas, um
livro fascinante, resultado de um conjunto de qualidades artísticas e de preparo
científico”. Eis aí uma das vertentes do aspecto ‘ fundador’ da obra, tão
mencionado pelos críticos literários ao longo do tempo.
Na
consagração de Os sertões,
menciona-se o aspecto “fundador” da obra. Em que consiste essa fundação ? por
inovar , por renovar, por revolucionar....
por tornar-se enfim um clássico, em meio a elementos histórico-político-sociológicos e
literário-culturais específicos de um período de fortes mudanças no país__ não
apenas pela substituição da monarquia pela república, que seria aliás
interpretado como um dos motivadores da ‘rebelião de Canudos’.
Euclides da Cunha, embora Os sertões fosse o seu primeiro livro, já havia atingido um alto
estágio de amadurecimento, revelando nessa obra um perfeito domínio da língua e
uma clara consciência da sua arte : o crítico
Wilson Martins, por exemplo, reconhece que todos os elementos que formam
o estilo euclidiano , e que em qualquer outro escritor” poderiam resultar em
desastre”, salvam-se graças ao “poder transfigurador do grande artista da
palavra que nele preexistia”. O crítico
e ensaísta Alfredo Bosi sustenta que pode-se ler a obra principal de Euclides
aproximando-a da prosa do seu tempo: naturalista no espírito, acadêmica no
estilo”.Bosi argumenta ainda que Euclides não se teria tornado um dos nomes
centrais da cultura brasileira pelo determinismo estreito das idéias nem pelo
rebuscado da linguagem : Euclides
implementou “uma consistência nova em nossas letras: o estatuto da contradição,
expressa no livro em forma de opostos inconciliáveis”. Contradição e jogo de
opostos, dicotomia tese/antítese que de resto constituem a essência mesma de
toda a obra euclidiana __ os ‘contrastes e confrontos’(que deram título, aliás,
a uma delas)
A questão de originalidade e autenticidade de Os sertões em última análise nada mais
seria do que reflexo da personalidade de Euclides. Se o estilo é natural e
original, “ele escreve o que vem de dentro, como sente”, nas palavras de José
Verissimo, diferencia-se do escritor guiado apenas por sua subjetividade, pois
examina a realidade exterior com as lentes da ciência, procurando o
distanciamento __ outra das características apontadas pelos críticos: o
ecletismo,o jogo de oposições, de tese e antítese( na melhor acepção da
filosofia‘hegeliana’),de ‘contrastes e confrontos’,
presente da primeira obra a todos os escritos posteriorede Euclides , em que
trata de “assuntos mais opostos, psicologia, socialismo, religião, política,
envoltos em problemas de história, pátria, imigração, povoamento, indústria,
engenharia”, como chamou a atenção Araripe Junior.
Desse modo, independentemente da perda de sua vitalidade
conceitual, a permanência e a atualidade de Os
sertões se devem à veemência de sua denúncia, à sua pertinência histórica e
à sua excelência literária, o que o sustenta como um marco fundamental da
cultura brasileira. Por todas suas implicações, significações, interpretações e
nuances, um livro enfim que veio afirmar
novos valores e novos temas de literatura e ciência, obra com a rara qualidade
de possibilitar aproximação plural e múltiplas leituras __ entre elas uma
reinterpretação do Brasil, renovado com a descoberta dos sertões.
A atualidade e modernidade de Os sertões __ mais: sua ‘eternidade’ __ está em ser entendido como
verdadeiro fenômeno cultural, inserido no cenário de constituição e
transformação do pensamento social sobre o Brasil. “Euclides da Cunha é o
intelectual brasileiro que mais se interessou em conhecer mesmo o Brasil por dentro”, vaticina o crítico e ensaísta
Luiz Costa Lima. ”Os sertões deixou
um retrato, um cenário que não pode nunca ser esquecido”, completa.
Euclides
da Cunha mostra-se sempre um intelectual preocupado em "pensar" o
Brasil dentro de um momento histórico
e complexo processo de formação de uma sociedade que
fosse capaz de integrar os diversos grupos humanos (litoral e sertão) na
definição da identidade nacional. Com toda justiça passou a ser reverenciado
como o primeiro autor a escrever um ‘clássico’ no Brasil, uma obra de peso,
científica, densa, consistente, vigorosa, que até então só podia ser encontrada
em autores e livros estrangeiros. E ter um ‘clássico nacional’ adquiria valor
especial : igualava-nos às nações civilizadas do mundo moderno da época.
A criação de Os
sertões faz parte do rol dos ‘grandes momentos’ da história do Brasil, e
não é por acaso que tenha atravessado um século como obra mater, ‘bíblia da nacionalidade’
e seja fadado à posteridade.
No lastro da posteridade, porque Os sertões, simbiose entre
jornalismo,literatura,história, ensaismo, ciência, geografia, sociologia,
antropologia, geologia, é obra de
múltiplos atributos primordiais: factualidade, perenidade, atualidade.
Factualidade, por ser antes de tudo de uma obra
jornalística (mas tão grandiosa que abriga outras características), livro de um
jornalista, “o maior feito jornalístico das letras brasileiras ou o maior feito
literário do jornalismo brasileiro”, ao retratar um dos episódios mais
marcantes da história republicana, registrar o conflito “elite x povo”, “sertão
x litoral”, “monarquia x república”, e sobretudo expor condições e situações
sociais e culturais de contingentes populacionais, obra que é “uma epifania de brasilidade, uma
fala do Brasil”.
Perenidade,
em sendo um cânone literário, por constituir-se uma das obras fundadoras da
nacionalidade, “a mais representativa da cultura brasileira de todas as
épocas”, capaz de expressar importantes dilemas nacionais que extrapolam a
própria narrativa da tragédia de Canudos; obra incluída entre os textos
fundadores, fontes da historiografia
literária : Euclides, ao lado de Manuel Bonfim e Gilberto Freyre, como um dos
pioneiros grandes intérpretes do Brasil ; um dos textos básicos de “história e
construção do pensamento brasileiro” , um acervo formado por obras de Gonçalves
de Magalhães, Francisco Varnhagen, Marquês de Maricá, Joaquim Norberto de Souza
e Silva , José do Patrocínio. Perenidade, ainda, por ser inovadora de uma
literatura-denúncia;
Atualidade por “chamar a atenção para os excluídos”,
denunciar uma questão social, expor mazelas e injustiças, a miséria, a fome,
registrar “tendências conflituosas da sociedade brasileira”, enfocar “um Brasil
injusto e dividido”, anotar a religiosidade, a crendice, o misticismo e o messianismo __ algo sempre latente no cenário
político brasileiro (a eterna expectativa pelo ‘pai da Pátria’, pelo ‘salvador
da Pátria’).
Sobretudo,
a atualidade da obra deve-se à
inquietação que seu caráter de denúncia
provoca, um livro que oferece a oportunidade de ,a partir de Canudos,
ter uma visão clara de questões de origens sociais.
Os sertões diz muito de um drama da
história brasileira, e também de dramas dos tempos atuais.
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
Machado de Assis e a “consciência negra” -- pelo 20 novembro
- para dirimir todos os equívocos acerca de
uma suposta,absurda ‘alienação’ à
questão da negritude
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Machado de Assis nunca deixou de
exprimir seu mais absoluto horror à escravatura – fosse como funcionário da Diretoria da Agricultura do
Ministério da Agricultura (órgão que tratava da política de terras e da
aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871), na qual emitiu centenas de pareceres e réplicas no
sentido de fazer cumprir a Lei e o preceito de liberdade para os filhos de
escravos nascidos , fosse em muitos artigos e crônicas e,em especial, em
romances e contos. Exatamente ao contrário da equivocada e distorcida
interpretação --que, como toda interpretação, é uma ‘leitura’,sujeita pois a
melhor avaliação e até mesmo contestação --difundida ao longo dos anos,no
sentido de não ter ele se integrado à causa abolicionista (sic) nem ter inserido o
negro, ou a negritude,ou a condição do negro, em seus escritos, nem ter nenhum
‘herói negro’ entre os protagonistas de sua ficção, como se isso fornecesse
convincente e taxativo certificado de consciência política , como se fosse
elemento imprescindível na construção de romances e contos de qualidade. Os
detratores teimam em julgar o homem com base nos raramente compreendidos e
assimilados artifícios do ficcionista e do cronista – ainda mais quando este
utiliza ad nauseam os recursos da
sutileza, do subterfúgio, da dissimulação.
Além de tudo, não se queira exigir de
Machado uma postura – a mesma, p.ex., de
abolicionistas (muitos deles seus amigos) , de outra verve e atitude –
de militância ativa, discursiva, panfletária : nada disso fazia parte de sua
natureza,e discrição aliás foi o que sempre ostentou na vida e na própria
escrita literária.
Machado fez da escravatura objeto
crítico – por vezes desenhada pelas ‘entrelinhas’, por vezes direta, nada
oblíqua ou dissimulada -- de crônicas,
de poemas, de peças teatrais, de contos,
além de torná-la pano de fundo de alguns
romances, tanto os primeiros como aqueles pós-1880. Já é mais do que
tempo de obrigatória releitura da equivocadissima omissão machadiana em relação
à escravidão e às relações inter-raciais no Brasil do século XIX , de seu
absurdamente propalado “aburguesamento”
e de “denegação das origens” em sua
obra.
A tese da ‘alienação’ machadiana
desmorona ao se examinar o naipe de cinco contundentes contos em que a “iníqua
escravidão” é exibida criticamente, nas linhas e entrelinhas, com todos seus
horrores; é solapada ao se ler,por exemplo, 17 crônicas(em 1864, 1865,1876,1877,1878,1883,1885,1887,1888,1893,
1897); perde vigor ao se deparar com os
poemas “Sabina”(1875) e “13 de maio”(1888) , ou ao conhecer a crítica teatral à
peça “Mãe”(1860), de José de Alencar, e o texto “O teatro de José de
Alencar”(1866); além das referências,citações,comentários e verdadeiros libelos
expostos na novela Casa Velha(1885) e nos
romances Ressurreição (1872),Helena(176),Iaiá Garcia(1878),Memórias
póstumas de Brás Cubas(1881), Quincas
Borba(1891),Dom Casmurro(1899) –
observando-se o quanto o processo histórico que resultou da lei de 1871, assim
como suas conseqüências,
encontra-se no cerne da concepção
desses seis romances -- Esaú e Jacó(1904) e no derradeiro Memorial de Aires(1908) – com a
encenação da decadência e extinção da própria escravocracia, personalizada no
Barão de Santa-Pia,sob uma narrativa revestida de contundente historicidade e ,
como o condizente grand finale da obra de um portentoso escritor, finalizada pela
mensagem ressaltando o papel político da literatura como guardiã dos fatos
passados e da memória coletiva de um país
A crônica, até mesmo por sua própria
natureza de dirigir-se diretamente ao
público-leitor, na verdade foi a seara onde Machado melhor e mais clara e
veementemente expressou sua implacável
crítica ao escravagismo Em algumas delas, escritas com sua peculiar ironia
ácida e cortante , evidencia-se a crítica machadiana à hipocrisia política,
manifesta naqueles parlamentares que
intitulavam-se abolicionistas mas votavam sempre a favor dos senhores – o que
exibe,sob outro viés, a inquestionável atualidade de Machado [neste particular,
aliás, convém saber – como ressalta o historiador José Murilo de Carvalho, in D. Pedro II,2007 – que os políticos de
todos os partidos ,até mesmo os liberais e os republicanos, não se opunham à escravidão].
Na verdade, e sob o espectro mais
geral, Machado foi um crítico contundente da sociedade e das instituições
brasileiras, e escreveu muito sobre política, e até mesmo sobre economia. Tinha,sim
senhor, opiniões políticas — era um
monarquista liberal, não apoiava a República -- e é possível observar a política brasileira
de sua época através de seu olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio) sentencia que
pode -se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra de Machado : tanto na ficção quanto na
não-ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e
textos , utilizando uma série de elementos políticos -- escravidão, liberdade,
golpe de Estado, censura,aparelho policial, autocracia
absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua escritura literária, de uma crítica da ideologia brasileira e de uma
teoria política avançada, a qual no
campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos especialistas.
Há de se enfatizar ainda que, a par de outros aspectos, uma das grandes
preocupações de Machado, uma espécie de linha-mestra, fulcro e fio condutor
de sua produção não-ficcional
centrava-se na questão da identidade
nacional — preocupação expressa claramente nos
ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura” (ainda em
1858), “Instinto de nacionalidade”(de
1873) e “Nova geração”(1879) e na essência de seus artigos e crônicas.
Em outro viés, justamente os recursos da ficção literária, sempre propícia
a esse fim, foram os instrumentos que lhe permitiram expressar com nitidez seu
total e visceral repúdio ao sistema escravocrata do Brasil do século XIX. Por
meio de alguns de seus contos, é possível observar as relações
inter-raciais de sua época através do olhar literário, abordando as tensas relações,inclusive as de ordem
afetiva e sexual, entre os membros da família patriarcal típica do século XIX e
seus criados negros e abrigando trama,ambiência, personagens e ‘ideologia’
inerentes à questão escravagista.
Importante notar que se o tema é pouco,
ou apenas ‘tangencialmente’ e superficialmente tratado nas obras do período
pré-Abolição, depois adquire tamanho vigor temático, tramático, narrativo e de
linguagem , que induzem a considerar uma espécie de ‘desforra’ de Machado quanto a uma questão que não pudera até então
abordar como merecia, e como ele almejava. Com efeito, no período pós-1888, vale
dizer já implementada a Abolição, as
coisas podiam ser ditas mais clara e contundentemente, e a tal,
Machado – com sua plena consciência histórica,política e ideológica --
não se furtou.
Ficção e realidade, ficção e história, ficção e sociedade brasileira
constituem fulcros sempre presentes na obra machadiana. Em boa parte de sua ficção e da não-ficção Machado oferece
ao leitor uma interpretação satírica, por vezes alegórica, desnudando mitos e certezas, aparências e
disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu
olhar ,por vezes direto e transparente,por vezes machadianamente oblíquo e
dissimulado, feito testemunho
incomparável sobre a vida política e
institucional brasileira do século XIX.
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
A República e os literatos
O mês de novembro registra duas efemérides dignas de registro – no dia 15, a instalação da
República, fato de fundamental importância política, institucional e social na
história brasileira, em 1889 ; e no dia 1º.,em 1922, a morte de Lima
Barreto, um dos maiores escritores que o País já teve em seu cenário cultural.
Dois acontecimentos extremamente significativos, separados por 33 anos,
mas irremediavelmente entrelaçados e integrados – até porque Lima Barreto, ao
contrário dos intelectuais da época, foi o mais veemente e intransigente
crítico do novo regime e da pretensa ‘modernização’ anunciada.
Cento e vinte e quatro anos de República
e 91 anos sem Lima Barreto depois, ambos os eventos propiciam estimulantes reflexões,
não apenas sobre a política e a literatura brasileiras mas em especial sobre
a própria institucionalidade do País.
A República, os intelectuais , o jornalismo e a literatura militante de Lima
Barreto
Embora não tenha produzido correntes
ideológicas próprias ou novas concepções estéticas, a geração de intelectuais
solidamente arraigada nas teorias cientificistas de 1870 e no espírito progressista da época parecia
estar com a República, apoiada pela maçonaria, pelo positivismo e pelas
correntes que se julgavam “desassombradas de preconceitos”: as idéias circulavam então mais livremente, num ambiente que Evaristo de
Moraes [Da Monarquia para a República ; s.ed., Rio de Janeiro, 1936 ] qualificou de
“porre ideológico”, um verdadeiro
mosaico no qual era predominante o liberalismo - manifestando-se
especialmente entre os republicanos ‘históricos’ como Benjamin Constant, José
do Patrocínio, Silva Jardim, Lopes Trovão, Alberto Sales, Joaquim Serra – mas
que abrigava alguma voga de anarquismo em Elisio de Carvalho (até escrever o Five
o’clock), Curvelo de Mendonça,Fabio Luz, Afonso Schmidt, simpatias
explícitas ao socialismo em
Martins Fontes, Olavo Bilac, e até anti-racismo declarado em Alberto Torres e
Manuel Bonfim.
Sob os princípios genéricos do liberalismo, o grupo intelectual definira
a tarefa que lhes cabia: contribuir e propugnar por uma ampla, profunda ação
conjunta para construir a nação — no campo da produção intelectual intensificaram estudos da realidade
brasileira (as obras de Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel
Bonfim,Oliveira Vianna são documentos exemplares) e se empenharam no ‘criar um
saber próprio sobre o Brasil’( enfatizava José Veríssimo em “Um estudioso
pernambucano”, artigo na revista Kosmos,n.1,Rio de Janeiro,1907) — e
remodelar e fortalecer o Estado (o que
obviamente punha em confrontação a ambigüidade de sua ideologia baseada no
liberalismo....).
Já no dia 15 de novembro de 1889 os
intelectuais registraram sua total adesão : numeroso grupo de
republicanos,junto com gente da rua, tendo à frente José do Patrocínio,Aníbal
Falcão, João Clapp,Campos da Paz, Olavo
Bilac, Luis Murat e Pardal Mallet -- estes três pela primeira vez movidos à
ação política concreta-- dirigiu-se à sede da Câmara, aos gritos de viva à
República, e redigiram moção de apoio aos chefes da insurreição militar nestes
termos : “Os abaixo assinados,órgãos espontâneos do povo do Rio de Janeiro,
representam o governo provisório,instituído após gloriosa revolução que ipso
facto extinguiu a monarquia no Brasil,a necessidade urgente da proclamação da
República.
Excelentíssimos srs.
representantes supremos das classes militares do Brasil, marechal Deodoro da
Fonseca,chefe de divisão Wandenkolk e tenente-coronel dr. Benjamin Constant.
O povo do Rio de Janeiro,
reunido em massa no edifício da Câmara Municipal, tem a honra de comunicar-vos
que, por meio de diversos órgãos espontaneamente surgidos e pelo seu
representante legal, proclamou como nova
forma de governo nacional a República.
Esperam os abaixo assinados,representantes
do povo do Rio de Janeiro, que o patriótico governo provisório sancione o ato
pelo qual,instituindo a República, se pretende satisfazer a íntima aspiração do
povo brasileiro. Viva a República Brasileira ! Vivam o Exército e a Armada
nacionais ! Viva o povo do Brasil !”
O entusiasmo adesista dos intelectuais
era generalizado; em outro manifesto, dirigido ao Governo Provisório instalado
a 16 de novembro, assinado por alguns homens de letras em 22 de novembro : “O povo, e quando dizemos povo
referimo-nos àquela grande parte da nação que os aristocratas de todos os
tempos chamaram desdenhosamente o terceiro e quarto estado, donde, reparai bem,
em sua maioria saiu sempre o nosso glorioso Exército; os homens de letras, e
quando dizemos os homens de letras referimo-nos a todos aqueles que tomando a
si os encargos intelectuais da pátria foram, no curso de quatro séculos, os
fatores mais enérgicos e mais
desinteressados de nosso progresso; plebe e pensadores, sempre estas duas
forças caminharam aqui unidas !... Agora mesmo no fato extraordinário que é o
espanto da Europa e o júbilo da América na proclamação da República,as duas
grandes forças lá estão ungidas uma a outra... A era das grandes lutas da
política responsável abriu-se definitivamente para os brasileiros... A pátria
abriu as largas asas em direitura à região constelada do progresso; a
literatura vai desprender também o vôo para acompanhá-la de perto. Ao futuro !
ao futuro,modeladores de povos,construtores de nações ! [cf. Silvio Romero,Novos
estudos de literatura contemporâneas
; s.ed., Rio de Janeiro, 1898 ].
No clamor pela ampliação da atuação do
Estado sobre a sociedade aliavam-se a homens públicos, políticos, jornalistas,
até mesmo cafeicultores e industriais,e a esse grupo juntar-se-ia os grupos
militares defensores e sequiosos de maior participação na política—
o que mais tarde não causaria surpresas quando do progressivo e
acentuado fortalecimento dos governos
republicanos a partir de Floriano Peixoto.
As reformas que preconizavam, no
entanto, perderam-se no processo político republicano. Na consolidação do novo
regime ,que se deu por meio de um
processo caótico e dramático, malograram-se seus esforços
cientificistas,reformadores, inovadores na criação daquele ‘saber sobre o
Brasil’. Cedo, muito cedo, já nos primeiros anos do século XX desiludiam-se : “Está tudo mudado: Abolição, República...
Como isso mudou ! Então, de uns tempos para cá parece que essa gente está
doida”, vaticina Isaias Caminha , sob a pena de Lima Barreto. José Veríssimo, no artigo“Vida
literária” (revista Kosmos, n. 7,1904), descreve: “Todos se presumiam
e diziam republicanos,na crença ingênua de que a República, para eles palavra
mágica que bastava à solução de problemas de cuja dificuldade e complexidade
não desconfiavam sequer, não fosse na prática perfeitamente compatível com
todos os males da organização social, cuja injustiça os revoltava”. Ainda
em outubro de 1890, antes do primeiro aniversário do15 de novembro,
desencantava-se Silva Jardim, lamentando em carta a Rangel Pestana: “Comunico-lhe
que parto para a Europa, a demorar-me o tempo preciso a que esta País atravesse
o período revolucionário de ditadura tirânica e de anarquia...” . “Esta não é a República de meus sonhos”.
lamentou-se Lopes Trovão, um dos próceres do movimento republicano. “Foi para isso então que fizeram a República
?”, protestou Farias Brito.
No campo político,os intelectuais até que mantiveram-se passivos diante da “ditadura
tirânica” e aceitaram as coligações de Deodoro da Fonseca com as forças mais
conservadoras do Brasil agrário, mas as
esperanças esfacelaram-se diante da índole e prática repressoras do governo
Floriano Peixoto , quando e alguns dos
antigos entusiastas da República tiveram de fugir do Rio de Janeiro para evitar
a prisão, como Olavo Bilac e Guimarães Passos.
Passado o momento inicial de
esperança, desfeito o caminho almejado da democratização do País prometida em
comícios, conferências públicas ,na imprensa radical, consolidada a vitória da
ideologia reforçadora do poder oligárquico, derrotados ,desapontaram-se as
elites, desapontaram-se os trabalhadores e o povo, desapontaram-se os intelectuais , que desistiram da política
militante e se concentraram na literatura,aceitando postos ,mesmo decorativos,
na burocracia especialmente no Itamaraty de Rio Branco, que atraíra em torno de
si -- eficiente Rui Barbosa nesse trabalho de
‘cooptação’ -- o grupo de intelectuais, representantes da intelligentsia
do novo regime , constituindo o que à época se auto-denominaram “República
dos Conselheiros”.
Difícil de
manter uma convivência pacífica entre a República política e a ‘Republica das
letras’, agravado pela crescente insatisfação popular com o novo regime,
exposta em agitações de rua,episódios violentos, revoltas e movimentos de
protesto – e mais ainda com os novos costumes e práticas de desenfreada
especulação financeira, a busca de
enriquecimento a qualquer custo,o advento de um capitalismo predatório levando
ao Encilhamento, a escandalizar Taunay que via “uma degradação da alma
nacional”[ Visconde de Taunay, O Encilhamento ; editora Itatiaia, Belo
Horizonte, 1971] e decepcionar republicanos ardorosos como Raul
Pompéia ( “A república discute-se
consubstanciada no Banco da República” ).A par do afastamento repressor
promovido pelo poder, viram-se compelidos a submeter sua produção literária ao
“valor do mercado” — (...) neste século de danação social, em que o Dinheiro
logrou a tiara de pontífice ubíquo, para reinar discricionariamente sobre todas
as coisas..”, registrava Augusto dos Anjos em palestra pública.
Mas paradoxalmente foi o processo de
arrivismo bursátil e de especulação mercantil -- gerando incremento de vultosos recursos , provocando
a modernização da cidade, urdindo o que se denominou Regeneração, construindo a
imagem de “uma sociedade ilustre e elevada” -- que propiciou aos intelectuais malogrados uma espécie de atavio
: passaram a ser vistos pela sociedade como ‘símbolos de ilustração’,
‘expoentes da cultura’, propiciando, entre outros aspectos, o desenvolvimento
do ‘novo jornalismo’, ao qual os literatos se entregaram de corpo e alma . A
adesão maciça dos escritores ao jornalismo, exercendo inevitavelmente efeitos
negativos sobre a criação artística—falou-se em “vazio de idéias”—obrigou-os a
uma redefinição de suas posições intelectuais e uma clivagem em seu universo social. Deflagrava-se com todas as
letras e tintas a belle époque cultural, com o conseqüente processo de
banalização e neutralização da força cultural da literatura, o intelectual
descaracterizado e ‘dissolvido’ em meio a sociedade, as facilidades da nova
vida social tendentes a extinguir o engajamento dos intelectuais que haviam
feito a República. O novo espírito “agitado e trêfego” que tomou conta da
cidade produziu “o recolhimento dos autores em estéticas e poéticas evasivas”,
no entender de José Veríssimo, os intelectuais irreversivelmente assimilados
pela nova sociedade construída pela República abrindo espaços para a
mercantilização e banalização da própria literatura – vista agora como “o
sorriso da sociedade” de que falava Afrânio Peixoto ... [“A literatura é o
sorriso da sociedade. Quando ela é feliz, a sociedade, o espírito se lhe
compraz nas artes e, na arte literária, com ficção e com poesias, as mais
graciosas expressões da imaginação(...)”,in. Panorama da literatura
brasileira ; Companhia Editora Nacional,
São Paulo, 1940].
Entrou-se de cheio no espírito
mundano da belle époque, atingindo seu auge na primeira década do século,
cuja literatura típica ,porém, era estéril em termos nacionais, ainda que seu
modelo cosmopolita europeu se coadunasse com a própria fachada da época: era
uma literatura articulada com o modo de vida das elites urbanas
europeizadas,fomentador do consumo, do excesso,da sensualidade,do
aristocratismo; de extrema superficialidade e caráter preciosístico , uma
coligação de alta sociedade e alta cultura.(nesse aspecto,Lima Barreto tinha a
chave para entender e interpretar o Rio de 1900 : o bovarismo , que apontava para as fantasias centrais que
compunham o significado dessa época).
O certo é que a decepção com a
República e o ‘espírito’ inerente ao novo século, “o século da modernização e
do progresso”, trouxeram novas formas e modos de o escritor se relacionar com a
literatura, sob um processo algo ‘compulsório’ de aburguesamento e ‘mundanismo’,
acarretando, por uma razão ou outra , a necessidade de adesão quase maciça dos
literatos ao jornalismo — que se constituiu
no fenômeno cultural mais marcante dos primeiros tempos do século XX. O significativo desenvolvimento dos meios
técnicos da imprensa, iniciado na verdade em meados do século XIX, permitiu o
crescimento e melhoria qualitativa dos jornais e o nascimento de muitas
revistas ilustradas , ambos incluindo matérias literárias.
Por essa época, tanto os jornais como
as revistas buscaram mais intensa e concretamente atingir a classe média urbana
que então ia se formando e consolidando com o advento da República. Jornais e
revistas, além do compromisso de informar e divertir, estavam engajadas num
movimento de ‘democratização’ cultural: periódicos como Gazeta de Notícias,
Diário do Rio de Janeiro,O Paiz, Diário Mercantil ,Correio
da Manhã, Jornal do Commercio,Jornal do Brasil, Rio-Jornal,
A.B.C. e as revistas O Malho , Revista da Semana, Kosmos, A Renascença , FonFon! ,Revista
Contemporânea (essas duas caracterizadas como “simbolistas”), Careta
, Ilustração Brasileira, A Cigarra, Revista do Brasil,
Dom Quixote, Paratodos, O Cruzeiro, incluíam muita matéria
cultural, como reportagens sobre exposições de artes plásticas, crítica
literária, música, contos, crônicas, poesia, teatro e cinema . Quase todas as
revistas não conseguiram sobreviver por muito tempo e ter vida longa — exceção
apenas a FonFon! e a Careta, que chegaram , não
ininterruptamente, até à década de 1950.A maioria dos jornais e revistas (tanto
do Rio de Janeiro quanto de São Paulo) acolhia , e pagava , colaboração literária , o que
propiciou a escritores e literatos terem publicados seus trabalhos e ter uma
fonte de recursos — para muitos, a única — e um chamado “second métier”
condigno . Vale registrar que a imprensa propiciou a mudança para a metrópole
de muitos intelectuais que não logravam
realizar-se literariamente em suas cidades e regiões de origem.
A rigor, quer no âmbito do jornalismo
quer mormente da literatura, os
escritores, sob pena de caírem em ostracismo cultural e profissional e
financeiro tiveram de em maior ou menor grau se submeter à preferência ou gosto
dos leitores da época : a necessidade de se expressaram no mesmo diapasão da
cidade contagiada pelos anseios de modernização e marcada pela ânsia do
enriquecimento rápido fizeram-no adotar estilo, linguagem , forma e conteúdo
mais superficiais e mesmo descartáveis, “adequados ao gosto do consumidor
pequeno-burguês formado pela República”.
No lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática
predominante , destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, estava
Lima Barreto – por essa época já respeitado como articulista e cronista e
reconhecido como excepcional escritor mercê dos elogiados romances publicados Recordações do escrivão Isaias Caminha(1909)
e Triste fim de Policarpo Quaresma
(1915)—que rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho
jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional,
“instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa
civilização”. Sustentavaele que fazia “uma
literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época
(...), por oposição às letras que,
limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da
idealização da natureza” [Impressões de leitura, 1953].
Lima Barreto impôs — com sua escrita
simples, direta e objetiva , que feria o convencionalismo literário da época,
impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc — os prenúncios do Modernismo logo depois rompante na cultura brasileira [vale notar
que Lima Barreto morreu no mesmo ano de 1922, em que eclodiu o movimento],
cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica
da escrita barretiana. Na
contrapartida ao aristocratismo da escrita de então, aos nefelibatas da
linguagem, tinha-se em
Lima Barreto um registro da
língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente
nacional(que inclusive prenunciava a linguagem modernista da década de 20) -- uma linguagem
bastante próxima da oralidade, pela qual foi muito criticado por seus
pares e intelectuais da época. Mas não só por essa linguagem mas também pelos
temas de que ele trata e pelo modo como os trata Pode-se
ir além porque muitos problemas de Brasil que ele pensa naquela época,
que ele critica, e que ele, enfim, desenvolve como reflexão, permanecem
absolutamente atuais.{meu e-book Lima
Barreto e Educação -- in Nuvem de Livros -- mostra o quanto antecipou em
seus escritos e críticas questões ainda
hoje persistentes na seara educacional].
Marginalizado por suas origens e
condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à modernização’, Lima
Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira que lhe foi
contemporânea. Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de militância
literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos intelectuais,
contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma literatura só de
deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma verdadeira missão.
Tanto nos romances e contos como
nas crônicas e artigos, Lima Barreto
exerceu sempre uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão
social e a hipocrisia política — tal como se revelaram na implementação da República
. A opção por uma literatura militante determinou o caráter marginal (e
‘revolucionário’, para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da
sociedade, da política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do
público, penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas
nada o fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da
República. A “esperança” mencionada por
Lima Barreto na entrevista de 1916 alimentava-se na verdade da recusa
impassível em transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do
escritor, por via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses
políticos, econômicos, sociais e culturais da República. Nada porém o fez
submeter-se a esses valores.
terça-feira, 12 de novembro de 2013
para os que agora postulam a UNICAMP (cujo vestibular ora se realiza)-- mas para todos os vestibulandos e universitários
em torno de Capitu e o
exercício machadiano da dúvida.
Machado
sempre cultivou a dúvida como instrumento de reflexão, e evitava o maniqueísmo
de personagens por não aflorar os questionamentos.. Uma das expressões de sua
evolução literária foi a narração. O narrador machadiano muda. Existem as
expressões cunhadas no estudo machadiano do narrador confiável e do narrador
não-confiável; o narrador não-confiável se sobressaindo a partir da segunda
fase, iniciada em 1880. Esse tipo de narrador é quem coloca dúvidas sobre as
coisas. Nesse particular, costuma-se conferir importância desmesurada àquela
grande questão do romance Dom Casmurro: Capitu traiu ou não traiu?
– o que é absolutamente descartável e desprezível. E aqui peço licença para
abrir um longo parênteses e me estender nesse assunto, que é importante para
caracterizar um elemento fundamental , um dos fulcros capitais de toda a ficção
machadiana . A tola discussão se Capitu traiu ou não traiu é o que menos -- na
verdade,nada – importa :Machado faz de Dom
Casmurro -- a meu juízo, a maior obra da literatura brasileira, anos-luz
acima de qualquer outra, comparável às maiores obras-primas da literatura
universal -- um transcendental exercício da dúvida, um ensaio sobre a dúvida,
que de resto permeia toda sua ficção : evoca-se,nesse romance, o 'shakespearianismo' [sic : neologismo
meu...] do ciúme e traição a la Otelo \Desdêmona, mas o que existe mesmo, assim entendo,é
uma conotação 'hamletiana', vale dizer o 'ser ou não ser', que seria traduzido,
sob a égide do exercício machadiano da dúvida,pelo 'traiu ou não traiu'
inerente a Capitu -- aliás, a mais complexa e bem construída protagonista
feminina da literatura brasileira , a suma da mulher machadiana criada e
fomentada em toda sua ficção . Nesse ‘teor hamletiano’ reside toda a ficção
machadiana, mormente na seara contística : é o 'fez\nãofez',''disse\não disse',
' saiu\não saiu', 'roubou\não roubou', 'recaiu\não recaiu' (caso do primoroso
conto "Singular ocorrência"), e por aí vai. E o narrador é o agente
dessas dúvidas .Examinado, ou lido, pela ótica, ou na órbita do ciúme
--'oteliano': e Shakespeare foi a maior
influência sobre Machado, suas referência e citação prediletas, mil vezes
referenciado em contos e crônicas -- Capitu é julgada infiel pelo narrador
Bentinho, um ciumento nato e hereditário,doentio,e dissimulado -- e aqui entra
outra grande influência de Machado : Freud , pois fomenta a pseudo-traição de
Capitu como processo de transferência de sua atração pela mulher de
Escobar. Bentinho é o narrador da história . e aqui chegamos ao
âmago da coisa, no âmbito da análise literária, que creio 'mata' a questão : o
narrador-em –primeira- pessoa machadiano, mormente pós-1880 é um narrador
não-confiável, que de resto Machado adotou em muitos dos textos ficcionais
desse período -- justo os mais importantes e impactantes -- ao contrário do
narrador confiável de antes, que se expressa pelo chamado narrador-em
terceira-pessoa (embora Machado tenha também criado um ‘falso’ narrador-em-terceira-pessoa,
mas isso faz parte de outra digressão) . Se o narrador de Dom Casmurro fosse este, distanciado e isento tanto quanto possível, haveria campo para se
cogitar de Capitu infiel, adúltera , mas não : sendo em primeira-pessoa, nada a
declarar, ou melhor nada a discutir. Dom
Casmurro surgiu cerca de 3 ou 4 anos depois de Madame Bovary, de Flaubert, e de O primo Basilio, de Eça de Queiroz, dois 'parentes' sanguíneos
,literariamente, do romance de Machado, mas neles o narrador –em- terceira-pessoa
não deixa dúvidas quanto à infidelidade de Ema Bovary e de Luisa , que são
personagens 'chapados',definidos, mulheres praticantes nitidamente da
infidelidade --não cabe aqui discutir quais os motivos que as levaram, ainda
que saibamos ter sido o abandono por parte dos maridos ou a insatisfação com o
casamento, etc : aliás, a infidelidade que Machado insinua em suas
protagonistas, ao longo de sua ficção, é exatamente motivada ou gerada por esse
comportamento dos homens, vide como exemplo emblemático disso o conto "Uma
partida',neste livro que ora publico. Capitu não, não é nada 'chapada', é
primorosamente construída como figura literária , sua grandeza ficcional é
comparável á de Ana Karenina, e por aí vai.
Machado
ao longo de sua ficção levantava ,incentivava, insuflava e cultuava todas essas
dúvidas,praticava quase que permanentemente esse exercício, e as colocava no leitor. Então, ao mesmo
tempo em que Machado
moldava ,e mutava, sua trama e seus
protagonistas, também moldava e mutava narradores e, conseqüentemente,
leitores. Esse culto ao questionamento passou para o leitor, que começou a
ler,ou pelo menos deveria ler – o que é mais do válido para o leitor de hoje,
também -- as histórias de Machado de forma
diferente. E nisso está plenamente demonstrada a genialidade de um autor : na
evolução literária de Machado, alteram-se formas e ritmos narrativos
(condimentados de ironia e humor,adquirem um tom mais coloquial e de certa
forma intimista), transformam-se protagonistas, transmutam-se narradores e
leitores. Mutações e transformações, dos protagonistas , que se manifestam
também em transmutação do narrador e da
voz narrativa e a criação de um ‘novo’
leitor, o leitor- modelo em contraponto ao leitor-empírico. Machado construiu
em seu texto ,e por meio dele, um novo “leitor-modelo” — definido este
conforme a conceituação de “leitor-modelo’ e “leitor-empírico” de Umberto Eco.
Machado formou seus leitores recorrendo a estratégias
temáticas,tramáticas,narrativas,estilísticas que ,como poucos, tinha e sabia
usar -- entre essas estratégias ,as digressões,fragmentações
narrativas,retardamentos de fatos anunciados ou prometidos ao leitor,
metamorfoses de vozes narrativas, de forma e de linguagem .Machado
descondicionou o leitor empírico do leitor-modelo, como ninguém na literatura
brasileira, 'desconstruiu' essa relação,
embora via de regra seja ela utilizada para que o leitor chegue aonde o autor
deseja. Contudo, não satisfeito,na
esteira desse 'dissídio' fez o leitor(o empírico) oscilar em
"grave"-- que espera algo mais do que um 'simples texto', ou um 'puro
romance', ou uma 'obra correta',um leitor que deseja reflexões de caráter mais
realista-- e "frívolo"-- que espera impactos e emoções no texto ou na
obra,um leitor de tipo romântico ; ora
graves ora frívolos, esses leitores são por assim dizer 'transportados' para
dentro dos romances e para a maioria dos contos pós-1880 : na obra machadiana, o leitor empírico é o
‘frívolo’, e ‘grave’ é o leitor-modelo.
Até o final da década de 1870, os
romances e contos , atendiam ao leitor empírico\frívolo , como aliás não poderia deixar de ser, condicionado e formado no âmbito do
Romantismo e seus valores ; ao passo que
o grave mantinha-se em ‘surdina’.
As metamorfose ao longo do tempo, a partir da década de 1860, deram-se
concomitantes : na medida da evolução literária machadiana,o leitor
empírico\frívolo vai ‘cedendo espaço’ ao leitor-modelo (inclusive um
novo,criado por Machado)\grave, ao mesmo tempo em Machado 'camufla'
as diferenças existentes entre
injunções ficcionais e reais ,incentiva o leitor a acreditar no fictício,ou
embuste\artimanha, e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando
um narrador de pouca,ou nenhuma, confiabilidade, uma espécie de 'narrador
volúvel' que habita e conduz muitos de seus contos. E o leitor situa-se como um
‘espelho’ desse narrador.No fim , ainda que sob o controle do autor, ou do
narrador cabe ao leitor,quase que
exclusivamente, o acesso a unidade
dentro da imensa e complexa obra ficcional de Machado – que nisso parece
contrariar Nietzsche\Zaratustra : “Alguém
que conhece o leitor, nada fará por ele...”
Vale
lembrar que desde seu primeiro livro publicado,em 1861 , Queda que as mulheres têm para os tolos – que título instigante,
provocador ! – Machado fomenta o enigma,o mistério, o disfarce,o subterfúgio:
porque persiste a dúvida histórica de ser uma tradução ou uma criação original
dele – de que não tenho a MENOR DÚVIDA que seja(criação) : vejam a propósito minha edição crítica sobre
esse livro. Cá entre nós e para nós, a versão de ser criação original é muito
mais,digamos,’charmosa’, muito mais – não há dúvida alguma — ao estilo e
espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado -- a par de outras igualmente grandiosas, a mais
espetacular característica/conotação de toda obra de Machado. Ele sempre
cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva
obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou
não’,‘fez ou não fez’— e é esse teor ‘hamletiano’, a ligá-lo e
referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores
admirações e citação constante .Dele, Machado assimilou e incorporou à sua obra ficcional a temática do ciúme,
aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ –
presente e atuante em romances como Ressureição, A mão e a luva, sobretudo em Dom
Casmurro , e em inúmeros contos : binômio que remete a
Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...— os elementos e
conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina,
estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a
psicanálise, desde as primeiras obras,
mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de
maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25
anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de
Édipo’”.
O
certo é que Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução
é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é , primeiro, sua
própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua
indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração
para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada
por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressureição (1872), e finalmente na opera-mater,
a grandiosa Dom Casmurro.(1899) . Queda que as mulheres
têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe
serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia,
de seu primeiro romance, e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora..
Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” -- traduzida ou não por
Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da
incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve
fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num
dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
as provas do Enem [fornecidos pelo InfoEnem]
até 04.11, o Ministério da Educação não disponibilizou para download os arquivos das provas do Enem 2013 para os milhões de candidatos que prestaram as provas nos dias 26 e 27 de outubro.
então, cedido pelo InfoEnem a este blog (incluido por este entre os 10 melhores de literatura brasileira)
disponibilizo aqui as provas (em pdf) para os estudantes -- e interessados
sábado, 26 de outubro de 2013
Aos que vão ao ENEM (IV)
Lima Barreto, contista,cronista,romancista : essencialmente um pensador
Em essência, Lima Barreto sempre tratou mais
de política do que qualquer outro tema. Ninguém como ele, em seu tempo,
escreveu tanto sobre o tema e, por extensão, sobre questões sociais. Sua ‘literatura militante’,
assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra: sua visão
crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da
luta social; nos jornais e revistas investiu contra todos os signos do poder,
nos textos ficcionais denunciou as profundas injustiças da sociedade
brasileira.
Toda a obra barretiana desenvolve-se a
partir e em torno de um tema nuclear: o
poder e seus efeitos discricionários — o poder
visto e descrito por ele como “o
variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior
da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis,
tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as
possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa
inserção social”. Tinha a visão verticalizada, analisando desde as
estruturas políticas como o governo e as ideologias, e as instituições
culturais como a imprensa e a ciência, até os modelos determinantes do comportamento
coletivo e do relacionamento cotidiano. Lima Barreto era, acima de tudo, um
anti-patrimonialista.
Crítico implacável da pretensa modernidade que
se queria implementar com a República, avesso a todas as formas de assimilação
de valores estrangeiros (no bojo, p. ex. de sua resistência ao futebol, ao
cinema e à cultura importada ), defensor ,por vezes intransigente, de uma
brasilidade que sustentava devia permear a “autêntica língua nacional”, foi no
entanto opositor ativo do nacionalismo
ufanista surgido no final do séc. XIX e início do XX,a começar por questionar as imagens errôneas que o Brasil
fazia de si mesmo, levando ad absurdum os clichês e mitos nacionalistas e os
desmascarando um a um.(no romance Triste
fim de Policarpo Quaresma parodia implicitamente
o opúsculo patrioteiro de Afonso Celso, filho de seu protetor, intitulado Por que me ufano do meu país (1901),
livro muito popular no começo do século XX, que deu origem ao termo ufanismo e
foi traduzido para diversas línguas na época, inclusive o alemão. Lima Barreto inclusive alertava para
o que denominava “um dos mitos mais
perigosos,o do patriotismo : no fundo, os patriotas grandiloqüentes de plantão
não passam de traidores da pátria, pois a usam para a sua própria autopromoção
e enriquecimento (...), a sociedade
de classes e o Estado a
instrumentalizarem o patriotismo e o nacionalismo em favor do interesse das
elites.”. Na contrapartida, procurou esboçar um patriotismo social, com
consciência histórica e respeito pela cidadania, ancorado na cultura própria,
resistente ao cosmopolitismo e de reconhecimento da mestiçagem – étnica,social
e cultural --no Brasil.
Para
ele, a nova sociedade ,caracterizada
pelo binômio cosmopolitismo, inspirador das ações da elite do país , e
bovarismo[1],
“atitude mistificatória de o homem se
conceber outro que não é, entre o que é e o que acredita ser”, era um
sistema que premiava o egoísmo, o banal, a decadência dos costumes, o
preconceito, lastreada nos valores máximos da elite – a fruição do conforto
material, os privilégios, a superioridade, gerando discriminação e
sectarismo. “A nossa República se
transformou no domínio de um feroz sindicato de argentários cúpidos, com os
quais só se pode lutar com armas na mão. Deles saem todas as autoridades, deles
são os grandes jornais, deles saem as graças e os privilégios; e sobre a Nação
eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que
lhes convém” [2]
Desde
os primeiros anos do século XX apenas
Lima Barreto (Euclides da Cunha morrera em 1909) mantinha , entre os
escritores, uma postura participativa – de natureza crítica -- nas coisas da
política , uma vez que os demais literatos se afastaram do envolvimento e da militância a que se
entregaram ainda durante as campanhas abolicionista e republicana, nas últimas
décadas do século XIX e início do século XX : frustrados a expectativa e o
entusiasmo iniciais despertados pela República , os intelectuais desistiram da
participação política ativa, militante, que muitos tiveram no advento do novo regime
e passaram a se concentrar na literatura e em parte no jornalismo
‘croniquesco’, dedicando-se a produzir
uma literatura de linguagem empolada, o
‘clássico’ calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de
arabescos estilísticos — uma literatura
impregnada de vocábulos garimpados do virtuosismo lingüístico e
verborrágico,expressão da frivolidade dominante. Uma literatura como “o sorriso
da sociedade” de que falava Afrânio Peixoto e contra a qual Lima Barreto lutava
com denodo.
No
lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante ,
destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, Lima Barreto por
essa época já era respeitado como articulista e cronista e reconhecido como
excepcional escritor mercê dos elogiados romances publicados Recordações do escrivão Isaias Caminha(1909)
e Triste fim de Policarpo Quaresma
(1915)—que rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho
jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional,
“instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa
civilização”. Sustentava ele que fazia “uma
literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época
(...), por oposição às letras que,
limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da
idealização da natureza”.
Assim,
na contrapartida ao aristocratismo da escrita de então, aos nefelibatas da
linguagem, tinha-se em
Lima Barreto um registro da
língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente
nacional que prenunciava a linguagem
modernista. Contrariamente à maioria de
seus contemporâneos, Lima Barreto
conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de
contribuir para a felicidade de um povo ,de uma nação, da humanidade” Em sua
concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com objetivo concreto e
definido, como sentencia em entrevista a A Época,18.02.1916 : “(...)não
desejamos mais uma literatura contemplativa, cheia de ênfase e arrebiques
,falsa e sem finalidade, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura
plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos,
manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos
que os adoravam; digamos não a uma
literatura puramente contemplativa, estilizante sem cogitações outras
que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses
embotados pelo dinheiro, de amplo emprego por pretensos intelectuais,bacharéis
e políticos” (...) “a obra
de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Este é meu escopo.
Vim para a literatura com todo o desinteresse e toda coragem. As letras são o
fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar:
glória!”
Dono
de obra ficcional e não-ficcional com vigoroso fulcro ideológico, Lima Barreto
buscava na politização da literatura um sentido sobretudo ético.Na única
conferência literária que faria, mas não o fez — “O destino da Literatura”
[publicada na Revista Souza Cruz,Rio de Janeiro, 1921 , em cujo número
também apareceu trecho do romance O cemitério dos vivos ], em Rio Preto , São Paulo, em
fevereiro de 1921 — foi explícito :“A Beleza não está na forma, no encanto
plástico, na proporção e harmonia das partes, como querem os helenizantes de
última hora . A importância da obra literária que se quer bela
sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, deve
residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse
humano(...) E o destino da literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar
esse grande ideal de fraternidade e de justiça entre os homens para que ela
cumpra ainda uma vez sua missão quase divina. Mais do que qualquer outra
atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a
que me dediquei e com quem me casei; mais do que ela, nenhum outro qualquer
meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio,
teve, tem e terá um grande destino em nossa triste humanidade.”
Marginalizado
por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à
modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade
brasileira que lhe foi contemporânea. Seu projeto era um projeto para uma vida
inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os
falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra
uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma
verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais
de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado
pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso
destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de
nossa conduta na vida” [Bagatelas ; Empresa de Romances Populares,
Rio de Janeiro,1923].
Tanto nos romances e contos como nas crônicas
e artigos, Lima Barreto exerceu sempre
uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia
política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por
uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’,
para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da sociedade, da
política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público,
penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas nada o
fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da República. A “esperança” mencionada por Lima
Barreto na entrevista de 1916 alimentava-se na verdade da recusa impassível em
transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por
via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos,
econômicos, sociais e culturais da República. Nada porém o fez submeter-se a
esses valores.
[1] bovarismo, conceito cunhado pelo filósofo francês Jules de Gaultier em
sua obra Le Bovarysme, em 1892, advindo de Gustave Flaubert e sua Madame
Bovary, seja em relação à figura do artista ‘sonhador irresponsável’ seja a
um comportamento artificial simbolizando
um falseamento da vida,um desejo irreal de fuga – o abismo que se abre entre as duas escalas, a
da realidade e a do imaginário, conferindo-lhe
uma dimensão ao mesmo tempo trágica e irônica ; o termo é especialmente
empregado também com o sentido da alienação intelectual que precede a
construção de uma identidade cultural própria. Lima Barreto -- para quem o
bovarismo era uma atitude mistificatória típica da nova elite, extremamente
prejudicial para o país, “o poder partilhado no homem de se conceber
outro que não é, o afastamento entre o indivíduo real e o imaginário,entre o
que é e o que acredita ser” -- aplicou esse conceito tanto literariamente –
no romance Triste fim de Policarpo Quaresma e nos contos “A biblioteca”, “Lívia” e “Na
janela” aparece como a própria essência
dos textos – quanto socialmente : segundo ele, a República estava toda imersa
em atitudes bovaristas e ,pior, os
próprios intelectuais, teoricamente dotados de maior capacidade e lucidez
críticas, mergulharam desde o início numa militância ufanista,destemperada, de
otimismo ingênuo ; e esse ufanismo bovarista era uma forma terrível de se
alienarem dos graves problemas do país.
[2] “Sobre a carestia”, in O
Debate, 15.09.1917.
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