sábado, 31 de janeiro de 2009

a melhor literatura,hoje : São Paulo ou Rio ?


janeiro que finda : aniversário de São Paulo, a 25 ; "aniversário' (simbólico) do Rio, a 20. para estimular reflexões e insuflar o saudável e necessário fluxo de idéias.

Não há a menor dúvida de que uma nova geração de escritores abre espaço na literatura brasileira, uma ‘geração 00’ depois de uma ‘geração 90’, ‘geração 80’, etc -- aliás, foi justamente o que se convencionou catalogar como ‘geração 90’ que permitiu vislumbrar e especular sobre o seguinte : o eixo principal da nova criação literária deslocou-se do Rio de Janeiro maciçamente para São Paulo ( e em muito menor escala, Brasília e o Sul do País).
São Paulo passou a exercer um papel que o Rio de Janeiro, por exemplo, sempre teve. No passado, por conta dos jornais e de um mercado de trabalho melhor, o Rio atraía os escritores, que lá instalados passaram a ser chamados de cariocas. Denota-se ,desde os anos 1980/90 , que o eixo principal da nova criação literária deslocou-se do Rio maciçamente para São Paulo ( e em muito menor escala, Brasília e o Sul do País), autores fluminenses, mineiros, gaúchos, paranaenses estão indo para SP, num movimento que ‘coincide’ -- melhor: determina, define e classifica -- essa nova geração literária.

Se de um lado os mais promissores, os mais potencialmente talentosos, criativos, inovadores, renovadores, estão instalados em São Paulo -- Luiz Ruffato (que é mineiro), Bernardo Carvalho, Bernardo Ajzenberg, Marçal Aquino, Fernando Bonassi, João Anzanello Carrascoza, Marcelo Mirisola, Cadão Volpato -- no Rio ficaram Rubens Figueiredo , Mauro Pinheiro, Adriana Lisboa, Nilma Gonçalves Lacerda,Carlos Trigueiro, Maria Conceição de Góes, todos de alta qualidade literária, sobejamente reconhecida . Mas entre os novos e novíssimos --- como João PauloCuenca, Juva Batella,Bianca Ramoneda, Antonia Pellegrino, Augusto Sales, Mara Coradello,Sidney Silveira -- a realidade mostra não existir, ao contrário de São Paulo, escritores de destaque(e qualidade) no Rio, exceção a João Paulo Cuenca.

Tal cenário ‘dicotômico’ reporta historica, sociologica e antropologicamente à tese de José Murilo de Carvalho , que cito no meu artigo”SP 455 anos”,distinguindo cidades ortogenéticas ---caso do Rio --- e cidades heterogenéticas --- isto é São Paulo.
Não tenho a menor dúvida de que esses conceitos de ortogênese e heterogênese de Murilo de Carvalho se aplicam, adaptadas, guardadas as devidas proporções e escalas, à literatura dos novos escritores que se faz hoje em cada uma das cidades . a de São Paulo, uma “geração 90” batizada por Nelson de Oliveira, muito mais consistente e reflexiva, revela nítida preocupação com a representação da realidade social e política do país (mesmo que incorram, uns mais do que outros, em maior ou menor grau, no lamentável pós-modernismo literário...) -- o que interpreto como uma expressão heterogenética . Na nova literatura que se faz no Rio, vemos presentes apenas questões como “subjetividades plurais, múltiplas identidades, tempo e espaço indefinidos, não lugares”, certas manifestações atrasadas, digo eu, das “aventuras do corpo”, da década 1990, de que fala Ítalo Moriconi ; quer na prosa quer no verso, tão somente expressões de relações afetivas,crises existenciais, um permanente ‘olhar o umbigo’, uma literatura menos ‘racional’, mais ligada ao onírico,ao inconsciente, a um lirismo (distantes e alienados por exemplo dos graves e pesados problemas que a cidade outrora maravilhosa vivencia...), em escritos, informa um site carioca, “feitos depois da praia, em bares da orla” -- para mim, algo claramente ortogenético... Uma frase de Murilo de Carvalho sintetizaria tudo: “a característica ortogenética do Rio fazia com que seus intelectuais tivessem grande dificuldade em compreender perfeitamente a realidade do País e da cidade”--- isso se repete hoje, a meu juízo : Refiro-me a novos escritores, à obra literária dos quais se aplicaria essa ortogênese.
Escritores como Sergio Sant’Anna, Rubem Fonseca, Sonia Coutinho, Heloisa Seixas, Maria Alice Barroso, Nelida Piñon, por exemplo,evidentemente têm uma literatura sedimentada, de altíssima qualidade, que se coloca além e acima disso...

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

São Paulo 455 anos - VI (final)


A cidade diferenciada
À renovação estética modernista,na década de 1920, alia-se no decênio seguinte o ensaio de interpretação e crítica social, que tenta recontar o processo de formação histórica do País: a procura da identidade social passa igualmente pela busca premente de uma ponte entre uma completa renovação cultural e a reforma da sociedade, uma ponte entre a modernidade e a modernização do país .
O ano de 1930 é a época de instauração do Estado Novo, que se ‘apropria’ ideológica e retoricamente do Modernismo — Getulio Vargas declarava em seu discurso de posse: “As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do Modernismo na literatura brasileira foram as mesmas que precipitaram no campo social e político a Revolução de 1930” (seguindo uma sugestão formulada por Cassiano Ricardo) — mas inicia um período de intensa fermentação política, social e cultural. É na primeira metade dessa década que nascem as primeiras tentativas de interpretação de conjunto da história, da economia e da sociedade brasileira.
No âmbito do surgimento e desdobramento do movimento modernista, e — não se tem como negar — como conseqüência direta do espírito deflagrado pela Revolução Constitucionalista de 1932, o ano de 1934 (há exatos 70 anos, portanto), também num dia 25 de janeiro, marcou a fundação da Universidade de São Paulo- USP, marco das ciências (exatas e humanas) — expresso no próprio brazão, “pela ciência, vencerás” — marco para o desenvolvimento brasileiro em todas as esferas e vetor de uma geração de pensadores inovadores nas ciências sociais no País : aos fundadores Armando Salles de Oliveira, Julio de Mesquita Filho,Fernando de Azevedo, Almeida Junior, Fonseca Teles, Raul Briguet, André Dreyfus, Vicente Ráo,Antonio Candido, Florestan Fernandes, Ruy Coelho,Cruz Costa, Lourival Gomes Machado, Eurípides Simões de Paula, Eduardo França, sucederam Sergio Buarque de Holanda, Paulo Prado, Caio Prado Junior, Fernando Henrique Cardoso , entre muitos outros— e em especial os professores recrutados no exterior, ainda em 1934, por Teodoro Ramos para organizar os cursos de Filosofia, Ciências e Letras, o núcleo central da Universidade, e que se tornaram elementos fundamentais na formação do pensamento científico brasileiro : entre outros,os franceses Roger Bastide, George Dumas,Paul -Arbusse Bastide, Pierre Deffontaine, L. Garric, Pierre Monbeig, Jean Maugue, Fernsnd Braudel, Claude Lévi-Strauss (cuja estadia no Brasil gerou a célebre obra Tristes trópicos); os italianos Giuseppe Ungaretti, Luigi Calvani, Francesco Piccolo, Vittorio de Falco: os portugueses Rabelo Gonçalves, Urbano Canuto Soares, Fidelino de Figueiredo; os alemães Ernest Breslau, Heirich Rheinboldt, Felix Rawitscher, Henrich Hauptman.
Sobretudo a prosa literária se desenvolve, ficcionalmente no romance e no conto, que retratam decadência da aristocracia rural, a formação do proletariado urbano, a luta do trabalhador, o êxodo rural, as cidades em rápida transformação — os cenários para a expansão e proliferação dos ensaios de interpretação do País, de Gilberto Freyre , Paulo Prado (Retrato do Brasil), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) ,Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo), todos lastreados pela ‘índole’ modernista em busca da síntese explicativa dos múltiplos aspectos da vida social brasileira e de seu desenvolvimento histórico.
Acima de tudo um processo de mudança cultural geral e não exclusivamente um movimento estético, em direção a uma nova reconstrução sócio-política da identidade nacional, o Modernismo “difunde-se no tempo, balizando grande parte dos sequentes debates intelectuais, espalha-se no espaço, o poderoso ímã da literatura interferindo com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil, como elemento de ligação entre a pesquisa puramente científica e a criação literária, dando, graças ao seu caráter sincrético, uma certa unidade ao panorama da nossa cultura” (Antonio Candido,Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 1985 )
Irradiante , difuso e difusor, o Modernismo modelou substancialmente a literatura brasileira no século e desdobrou-se pelas décadas seguintes em irreversível processo de amadurecimento : uma terceira fase do movimento,na busca de uma nova linguagem, que expressasse os anseios de renovação do pós-guerra, veio na denominada “geração de 1945” — as preocupações políticas, ideológicas e culturais em segundo plano, privilegiando a estética, a linguagem, a forma e o rigor do texto — depois, na Poesia Concreta— “refletindo,na forma e no conteúdo, as mudanças ocasionadas pela acelerada industrialização, captando e transmitindo a realidade urbana, a poesia lírica e intimista substituída pela ‘concretude’ das palavras em seu aspecto semântico, sonoro e visual” —da mesma forma na Poesia-Práxis —por “uma poesia dinâmica, que pode ser transformável pela interferência ou manipulação do leitor, em reação ao formalismo dos concretos, e retomando a importância do conteúdo”.
A intensificação acentuada dos traços modernistas na narrativa em prosa, caracterizada por novas formas de linguagem , ora intensa e ágil, ‘cinematográfica’ , ora densa e introspectiva, ‘filosófica’ ,e pela preponderante ambiência urbana retratando “a vivência vertiginosa nas grandes cidades”, confluiu no último decênio do século XX e no despontar deste Terceiro Milênio para o irreversível despontar de uma nova geração de escritores, que abre espaço na literatura brasileira com uma marcante característica vetorial : o deslocamento maciço do eixo principal da nova criação literária para São Paulo.
Na cidade,os novos e novíssimos ficcionistas exercem sua prosa “de estrutura desconstrutivista , subversiva da linearidade, de narrativa fragmentada, quebradiça, de temática citadina, com os elementos da urbanidade pós-moderna , as tensões sociais e os conflitos individuais, o envolvimento pela violência urbana , os impasses existenciais — fomentando uma produção literária como não é feita em nenhuma outra cidade do País.
A São Paulo heterogenética continua abrigando escritores, naturais ou imigrantes, paulistas ou radicados, que produzem uma literatura ímpar, diferenciada, atualizada com os elementos da realidade, afinada com a modernidade, determinante — hoje como ontem, e desde sempre — da própria cultura brasileira.

Os pós-modernos
pelo Modernismo formados e inspirados
Na esteira das inovações temáticas, formais e estilísticas , os ecos ainda de 1922 estenderam –se pelos sedimentadores, na prosa e no verso, de uma ficção predominantemente urbana — Orígenes Lessa ,Dinah Silveira de Queiroz, Mario Donato ,Lygia Fagundes Telles (proeminente figura da “geração de 1945”, com sua ficção intimista, reveladora da alma humana), Ruth Rocha,José Geraldo Vieira ,Hilda Hilst, Zulmira Tavares Ribeiro , Menalton Braff, João Silvério Trevisan ,Rodrigo Lacerda,Marcia Denser ,,Patricia Melo,Osman Lins , Stella Carr , Edla Van Steen , Mauro Salles, Péricles da Silva Ramos, José Paulo Paes ,Augusto Massi, Paulo Bonfim — “(...) emérita cidade de São Paulo/mãe branca, mãe indígena, mãe preta/ velai por nós !” — Alberto da Costa e Silva ,Regis Boinvicino ,Orides Fontela ,Roberto Piva ,Dora Ferreira da Silva ,Neide Archanjo — e também de ambiência rural, interiorana— Raduan Nassar — todos contemporâneos dessa pungente modernidade que nos cerca.
E neles, os cronistas da cidade : Afonso Schmidt, Flávio de Campos, Galeão Coutinho ,João Antonio, Ignácio de Loyola Brandão, Marcelo Rubens Paiva, Marco Rey, Lourenço Diaféria
Irradiaram-se na poesia-praxis de Domingos Carvalho da Silva , Mario Chamie ; no Concretismo de Haroldo de Campos ,Augusto de Campos , Decio Pignatari . A seara teatral foi aquinhoada pelas excepcionais criações de Jorge de Andrade ,Plínio Marcos , e pelos estudos e reflexões de Decio de Almeida Prado ,Sábato Magaldi , Jacob Grinsburg .
Na contemporânea São Paulo, precursora e pioneira desde sempre, floresceu o mais influente e avançado pensamento social brasileiro — o relato histórico, o ensaismo , a filosofia, executados por “pais, ‘príncipes’ e corifeus das ciências sociais”,e pelos atuais epígonos da crítica cultural : de Rodrigo Otávio, Eduardo Prado, Alfredo Pujol, Afonso de E. Taunay (autor das fundamentais São Paulo nos primeiros anos; História seiscentista da vila de São Paulo; Non Ducor,Duco- Notícias de São Paulo,1565-1820) ,Paulo Prado , Sérgio Milliet ,Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior ,Fernando Azevedo, Cândido Mota Filho, Plínio Barreto , Paulo Duarte, João de Scantimburgo, Antonio Candido
E Miguel Reale , Florestan Fernandes ,Fernando Henrique Cardoso , Paul Singer, José Arthur Giannotti, Francisco Rodrigues, Milton Santos, Aziz Ab’Saber, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi ,David Arrigucci Jr. ,Leyla Perrone-Moysés ,Walnice Nogueira Galvão , Roberto Ventura ,Marilena Chauí ,Boris Schnaidermman ,Marilena Chauí , Renato Janine Ribeiro,Boris Fausto, Dalmo Dallari, Fabio Konder Comparato .
Assiste-se hoje, de um lado, o despontar , de outro a confirmação dos talentos natos da pós-modernidade— novos e ‘novissimos’ autores, ficcionais e não-ficcionais, impregnados de uma qualidade ímpar na literatura brasileira : Bernardo Alzenberg ,Bernardo Carvalho ,José Roberto Torero ,João Anzanello Carrascoza ,Betty Milan , Marcelino Freire, Nelson de Oliveira ,Marçal Aquino , Fernando Bonassi, Marcelo Mirisola , Cadão Volpato , André Sant’Anna. E com eles, as “mulheres de hoje”, criadoras de uma escrita femininamente universal : Julieta de Godoy Ladeira ,Ida Laura ,Fulvia Carvalho Lopes ,Lucia Helena Fleury.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

São Paulo, 455 anos - V

A cidade modernista

A realização da Semana de 22 apenas reuniu e apresentou a um público bastante restrito - e escandalizado - alguns dos artistas que já vinham cultivando modernas formas de expressão, entre eles Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho e Menotti del Picchia, além de Graça Aranha, na época autor consagrado e membro da Academia Brasileira de Letras, que usou seu prestígio para apresentar os jovens modernistas. Também participaram da Semana o músico Villa-Lobos, a pintora Anita Malfatti e o escultor Victor Brecheret, entre outros.
Fica para a História o depoimento de Mário de Andrade:
"A Semana de Arte Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos dissolvia nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E vivemos uns oito anos até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história do país registra. (...) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor.".
A "destruição" tinha como objetivo, em um primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas— em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico , os poetas modernistas valorizavam a incorporação de gírias e de sintaxe irregular, e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da sociedade brasileira— e mais : a preparação de um terreno onde se pudesse reconstruir a cultura brasileira, sobre bases nacionais, a realização de uma revisão crítica da história e das tradições culturais do país.
Eram unânimes no combate às estéticas parnasiana, realista e romântica .O parnasianismo é descartado enquanto gênero literário ultrapassado por aprisionar a linguagem nos cânones rígidos da métrica e da rima. A liberdade de expressão é a bandeira de luta do movimento, que reivindica a criação de uma nova linguagem, capaz de exprimir a modernidade.Também o realismo é criticado, na medida em que incidiria sobre valores tidos como retrógrados, tais como o cientificismo — a utopia é uma dimensão do real, porque não é apenas sonho, mas também um protesto. Assim, o ideal figurativo, a extremada ênfase no realismo são considerados barreiras à criação artística : associa-se realismo a pessimismo, observando que os autores realistas dão sempre uma visão distorcida do nacional. Distorcida por sobrecarregar seus aspectos negativos, gerando sentimentos de derrota e incapacidade.
A objeção ao romantismo incide na ênfase que este dá ao sentimento, na sua tendência à tragédia e à morbidez. combate-se o romantismo argüindo a necessidade de atualização do ser nacional. No entanto, esta atualização assume um tom às vezes dramático e dilacerante quando sente-se
“(...) uma necessidade instintiva de apunhalar (...) esse quase duende (...) que, de
quando em quando, surge à tona do (seu) ser atualizado para relembrar o país
sempre intimamente sonhado da cisma e da sentimentalidade

[Menotti del Picchia, "Uma carta", Correio Paulistano, 1 julho 1922]
Na crítica ao romantismo e a todo seu corolário de valores (devaneio, escapismo,culto à natureza, boemia) esboça-se a ética do homem empreendedor, ideologia típica dos países europeus no começo do processo de industrialização. Por isso,ao mesmo tempo,exige-se uma nova consciência social capaz de refletir a complexidade do mundo moderno.
Duplo vértice histórico, a Semana de Arte Moderna de 1922 fazia o Brasil integrar-se definitivamente no contexto filosófico-estético-cultural do século XX e inserir-se nas coordenadas culturais, políticas e socioeconômicas dos novos tempos —o mundo da técnica, o mundo mecânico e mecanizado, com “a estabilização de uma consciência criadora nacional, preocupada em expressar a realidade brasileira ; a atualização intelectual com as vanguardas européias; o direito permanente de pesquisa e criação estética”. A partir de 1922 caminha o movimento modernista em busca de padrões autônomos e formas autênticas para a criação estética nacional —e não somente no âmbito artístico : da mesma forma no campo do pensamento social, os intelectuais procuravam estabelecer novos modos de se tratar e compreender a cultura e a história do Brasil, estabelecendo novas interpretações e valores para a identidade nacional e dando início à consolidação institucional do pensamento sociológico brasileiro.Gerou sobretudo um estado permanente, latente , criativo, estimulante, instigante, de inquietação intelectual, e iniciou um processo de unificação cultural sem precedentes no Brasil.
Adotando como preceitos e princípios, “a desintegração da linguagem tradicional , adoção de linguagem coloquial e liberdade de expressão; a incorporação do cotidiano e busca da expressão nacional ; a assimilação das conquistas das vanguardas e inovações técnicas como o verso livre” , os modernistas "passaram por cima das distinções entre os gêneros, injetando poesia e insólito na narrativa em prosa, abandonando as formas poéticas regulares, misturando documento e fantasia, lógica e absurdo, recorrendo ao primitivismo do folclore e ao português deformado dos imigrantes, chegando a usar como exemplo extremo contra a linguagem oficial certas ordenações sintáticas tomadas a línguas indígenas". Os autores do Modernismo procuraram no índio e no negro o primitivismo, elemento primordial da cultura brasileira que proporcionaria a reconstrução da realidade nacional, e procuraram retratar a mistura de culturas e raças existente no País. Criaram uma nova versão sobre nossa formação étnica diversa da clássica teoria da "trindade racial" composta pelo branco, o negro e o índio.A visão que escritores como Mário de Andrade, Oswald Andrade, Alcântara Machado, por exemplo, têm da presença italiana na Paulicéia é importantíssimo de ser analisado à medida que o movimento modernista propunha que se passasse a extrair temas da realidade concreta, do folclore e da cultura brasileiras, em seu sentido mais amplo. Os escritos literários, de prosa e poesia modernista, além de crônicas, cartas, apontam elementos de fusão étnico-cultural em que realidade e ficção se fundem — o humano resgatado das ruas de uma São Paulo em transformação constante para povoar as páginas de uma produção literária igualmente em processo de transformação.
E não se pode deixar de considerar uma das peças mais sutis já escritas sobre a cidade, na saudação emocionado, ‘de corpo presente’, do poeta franco-suiço Blaise Cendrars em meados da década de 1920, em contato estreito com os futuros modernistas — são lendários seus encontros, suas tertúlias intelectuais, as viagens a Minas Gerais, às cidades históricas, à Amazônia.Ele era naquele momento o poeta mais importante no contexto da arte moderna (membro do grupo de artistas associados ao circulo de Picasso, ele e Apollinaire haviam criado a poesia cubista; após a Grande Guerra ligou-se a Jean Cocteau, Fernand Léger, Darius Milhaud e aos Balés Russos de Diaghilev, empolgando a cena parisiense e o mundo da cultura). Segundo Nicolau Sevcenko, que ele tenha se apaixonado por São Paulo, para onde voltou várias vezes , “diz muito e talvez o essencial sobre o sentido histórico da cidade” — e de sua inserção, não apenas ambiental, no Modernismo brasileiro e historicamente,desde seu primórdio, na própria História e na cultura do País.
"Eu adoro esta cidade.
São Paulo é como o meu coração
Aqui nenhuma tradição
Nenhum preconceito
Nem antigo nem moderno
Só contam esse apetite furioso essa confiança absoluta
Esse otimismo essa audácia esse trabalho esse esforço
Essa especulação que faz construir dez casas por hora
De todos os estilos ridículos grotescos belos grandes pequenos
Norte e sul egípcio yankee cubista
Sem outra preocupação que a de seguir as estatísticas
Prever o futuro o conforto a utilidade a mais-valia e
Atrair uma enorme imigração
Todos os países
Todos os povos
Eu amo isso..
."

Porém, o nacionalismo, a mais marcante característica do Modernismo, iria separar ideologicamente os adeptos do movimento.Oswald de Andrade lançou, em 1924, o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, que enfatizava a criação de uma poesia baseada na revisão crítica do passado histórico e na valorização da pluralidade cultural brasileira. Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo reagiram com o movimento “Verde-Amarelismo”, que propunha uma nacionalismo mais ufanista; em 1927, o grupo se transformou na Escola da Anta, tomando como símbolos de nacionalidade o índio tupi e a anta. No ano seguinte, Oswald, Raul Bopp e Tarsila do Amaral revidam o nacionalismo xenofobista da Anta com o Manifesto Antropófago, que incorporava o comunismo, o freudianismo e o matriarcalismo, e pretendia "devorar" as influências estrangeiras, aproveitando suas inovações artísticas, mas imprimindo a identidade cultural brasileira à arte e à literatura.
Há de se enfatizar o interesse dos intelectuais, escritores e artistas do Modernismo pela psicanálise e pelas teorias então insurgentes de Freud : ao longo da década de 1920 os modernistas exploram as teses freudianas nos principais textos e revistas do movimento, e em muitos de seus textos de ficção (além de Mana Maria,por exemplo,o romance Salomé, de Menotti del Piccha , é nitidamente inspirado de Estudos sobre a histeria,de Bleuer e Freud ; os conceitos de pulsão, consciente e subconsciente, e sexualidade aparecem em Paulicéia desvairada, em Amar, verbo intransitivo e em Macunaíma , de Mário de Andrade; de Oswald de Andrade —leitor “compulsivo”, segundo ele, de Totem e tabu e de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud —encontram-se referências à doutrina freudiana não só na Revista de Antropofagia mas também nos manifestos "Pau Brasil" e "Antropófago",e em Um homem sem profissão e em Memórias sentimentais de João Miramar; e a primeira tradução brasileira de um texto de Freud. "Cinco lições de Psicanalise", feita pelo psiquiatra mineiro chamado Hilario Pimentel, apareceu em A Revista, editada por Carlos Drummond de Andrade no final da década de 1930).Segundo os estudiosos, nada mais coerente pois os modernistas “estavam todos voltados para as vanguardas européias", e a Semana de 22 vingou rapidamente porque “da mesma maneira que as idéias de Freud , era libertadora e correspondeu a um espírito daquele período". no começo da década de 1920, observa Nicolau Sevcenko , “os intelectuais paulistas parecem divididos entre o desejo de modernidade e a crença no progresso e no futuro de um lado e, o medo, a angustia e a incerteza de outro, daí a enorme curiosidade sobre as teorias de Freud e sobre temas como sexualidade, agressividade, misticismo, feminismo , tratados à luz da psicologia social e da psicanálise” .
Escusados os elementos de cunho claramente ideológicos, o confronto entre as duas correntes se dá no plano estético-artístico em torno de concepções como “cosmopolitismo x regionalismo”, entre outros aspectos.Contrapõem-se , por exemplo, o esforço de Mário de Andrade para superar a concepção geográfica do espaço em Macunaína(1928) à “geografização da realidade” presente em Martim Cererê(1926), de Cassiano Ricardo , em que “a epopéia bandeirante realiza a ‘paulistanização’ do Brasil”. Para os verde-amarelos, São Paulo se apresenta como o cerne da nacionalidade brasileira, justamente pela sua configuração geográfica, foi São Paulo que deu início ao processo nacionalizador, “cabe a São Paulo, portanto, coordenar todas as vozes regionais, assegurando a comunhão brasileira”. São Paulo corporificaria a própria idéia de nação.
Deflagrada a efervescência de 1922, pode-se afirmar que a verdadeira ‘revolução’ modernista se deu mesmo em 1924 , ano do rompimento de Graça Aranha com a Academia Brasileira de Letras, ano do “Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, anos de dois textos fundamentais de Mario de Andrade : A escrava que não é Isaura — a ‘teoria’ do modernismo compendiada — e seu livro mais ousado, em termos formais, Losango caqui.
Adiante, o ano de 1928 representou uma ‘encruzilhada’ decisiva : revelou-se uma certa impotência da corrente antropofágica para promover a grande transformação implícita em seus princípios no que se propunha a fazer, enquanto o Verde-amarelismo prenunciou e ativou as divisões políticas que viriam na década de 1930. Foi em 1928 que se deu a publicação de Macunaíma, máxima obra literária do movimento, excepcional romance-retrato do Brasil de grande miscigenação cultural — as tradições culturais indígenas dos primórdios ao lado da modernidade europeizada dos centros urbanos brasileiros da época — e a publicação de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, inaugurando o ensaio de cunho ao mesmo tempo histórico e sociológico que abriria caminho para o grande ciclo de “interpretações do Brasil”.

Os modernos
Durante o Modernismo
Artífices e dinamizadores da maior revolução cultural perpretada no País, a partir da Semana de Arte Moderna, em São Paulo e de São Paulo paulistas de nascimento ou radicados irradiaram sua arte para todo o Brasil — a começar por Mario de Andrade.
E com ele ,Oswald de Andrade, Menotti del Picchia ,Cassiano Ricardo ,Raul Bopp , Ian de Almeida Prado ,Ronald de Carvalho, Plínio Salgado, Patrícia Galvão (a Pagu)— que nos moldes pioneiros da cidade, criou um “romance operário”, Parque industrial.
E ao lado— mas não à margem — da explosão renovadora, a prosa e o verso de Ribeiro Couto, de Guilherme de Almeida, de Guilherme Figueiredo ; a contemporaneidade de Amadeu de Queiroz, Enéas Ferraz, Orígenes Lessa, Paulo Emilio Salles Gomes (notório ensaísta e articulista, mas também ficcionista em Três mulheres de três p), Ibiapaba Martins, João Machado, Albertino Moreira, Hernani Donato,Ondina Ferreira .

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

São Paulo,455 anos - IV

A cidade modernizada
Nos primeiros anos do século XX, quando novas correntes artísticas começaram a circular pela Europa, a maior parte do mundo ocidental encontrava-se em meio a transformações sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e culturais que alteraram radicalmente a forma de viver e de sentir o mundo. Invenções revolucionárias como o rádio, o telefone, o automóvel e o cinema passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, cada vez mais urbanizadas. A industrialização modificara a economia das potências, e os lucros acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados garantiam tamanha sensação de conforto, segurança e otimismo em relação ao futuro, que o período ficou conhecido como belle époque — uma época de efervescência artística sem precedentes. Mas no extremo oposto,para as classes trabalhadoras o tempo era de lutas por melhores condições de vida, e no plano internacional um conjunto de fatores econômicos e políticos levaram à Primeira Guerra Mundial, em 1914. O Brasil também vivia período de grandes mudanças, inclusive com a urbanização e a adoção de novas tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário das grandes cidades, e que pareciam alterar a percepção do mundo. O intenso crescimento urbano e industrial ,acelerado desde o começo do século, e a chegada em massa de imigrantes, principalmente italianos, muitos dos quais haviam vivido a experiência da luta de classes em seus países, propiciando inclusive a difusão de idéias anarquistas e socialistas, fizeram com que o proletariado crescesse e se organizasse : nas primeiras décadas do século XX ocorreram várias greves em São Paulo, em 1917, 1918, 1919 e 1920 , a maior delas em 1917 - mesmo ano da Revolução Russa. E nos anos seguintes viriam radicais transformações políticas, com acontecimentos decisivos para a vida nacional, como as revoltas deflagradas pelo movimento tenentista( julho de 1922 no Rio de Janeiro; julho de 1924 em São Paulo),a Coluna Prestes, a fundação do Partido Comunista, a derrocada da República Velha, das oligarquias rurais e da "política café-com-leite", o início da Era Vargas, a histórica Revolução Constitucionalista de 1932 em que “São Paulo levantou-se em armas contra o Governo Provisório e em defesa da Constituição”.
É nesse contexto de crises e incertezas que surgiram as correntes de vanguarda (do francês avant-garde, "o que marcha à frente"), entre elas o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo — que influenciaram diretamente o Modernismo no Brasil. De acordo com Afrânio Coutinho, "todos esses ‘ismos’ que povoaram a cena literária ocidental de 1910 a 1930 foram “reações contra o esgotamento e o cansaço ante o peso da tradição literária ocidental. Eram janelas que se abriam para o futuro, preocupação que absorvia os espíritos. Eram atitudes violentas de destruição e negação do passado, que consideravam morto e inútil, tentativas de regresso à inocência primitiva ou infantil. Eram glorificações da técnica e do mundo mecânico, fonte única de dinamismo. Eram a libertação de todos os freios e formas tradicionais”.No Brasil da década de 1910, onde o Parnasianismo e o Simbolismo ainda norteavam as criações poéticas, mas já mostravam sinais de esgotamento, as vanguardas européias foram recebidas com entusiasmo por escritores que procuravam renovar as formas de expressão artística.
O Modernismo representa efetivamente um esforço de reajustamento da cultura às condições sociais e ideológicas, em processo de mudança desde o fim da Monarquia. Sua ideologia estético-cultural tinha como essência o resgate de valores genuínos do passado e sua simbiose com um futuro embalado pelas tecnologias do progresso. Rompia com tendências, refutando a corrente literária estabelecida, que continuava a fluir, e retomando temas renegados pelas equivocadas aspirações de modernidade no período imediatamente seqüente à instalação da República. E São Paulo —anteriormente cenário de uma reforma urbana ainda mais radical do que a executada no Rio de Janeiro —como o berço da renovação modernista mais do que outra capital aproximava a metrópole brasileira às suas congêneres européias, que serviam de modelo aos intelectuais,empenhados em transformar as capitais em centros cosmopolitas, moldados na produção cultural do Velho Mundo.
São Paulo esteve presente na principal mudança política do País no século XIX: implantada a República, o primeiro presidente civil, sucedendo em 1894 ao marechal Deodoro da Fonseca, foi o paulista Prudente de Morais,formado pela histórica Faculdade de Direito. Aliás, bastante intensa e marcante foi a militância republicana paulista, lastreada como em nenhum outro grupo , nos liberalismo clássico : Prudente de Moraes “e todo seu círculo político-administrativo eram imbuídos do intento de forjar um Estado-nação moderno no Brasil, eficiente diante dos novos cenários mundiais”.
Por todos os motivos e fatores, São Paulo passa a ser o símbolo da modernidade e brasilidade:"Em nenhum ponto da nossa pátria ainda encontramos reunidas tantas possibilidades, tantos fatores para a elaboração de uma grande nacionalidade. É em São Paulo que está se formando a grande intuição, o grande conceito de pátria", assevera Menotti Del Picchia. No cosmopolitismo da cidade os intelectuais paulistas entrevêem o novo Brasil que se anuncia. Centro industrial, berço do movimento modernista, São Paulo corporifica o espírito do progresso e da modernidade.E por essa época já era bastante sedimentada uma certa visão ideológica de que para ‘ser autenticamente brasileiro é preciso ser paulista’ . No comentário ao livro de Guilherme de Almeida ,Raça,elogiando a obra pelo alto sentido nacionalista, Sérgio Milliet declara que "Guilherme é profundamente brasileiro. Digo mais paulista." [Mário de Andrade, em carta dirigida a Sérgio, o advertiria contra o sentido simbólico, heróico e grandiloqüente atribuído à palavra paulista.]
A aristocracia enriquecida com o café e com a industrialização patrocinava obras e eventos artísticos — como iria fazer em 1922 com a Semana de Arte Moderna, considerada o marco inicial do movimento; na cidade surge a moderna indústria editorial brasileira, com o aprimoramento técnico de tipografias e o empreendimento de Monteiro Lobato que, entre 1918 e 1925, à frente de sua editora, revolucionou a produção e a difusão de livros no país — o início de uma nova fase no sistema literário brasileiro.E antes de 1922 os artistas participantes da Semana já produziam obras influenciadas pelas novas correntes européias, como a publicação, em 1917, de diversos livros de poemas em que jovens autores buscavam uma nova linguagem, ainda não bem realizada : Nós, de Guilherme de Almeida; Juca Mulato, de Menotti del Picchia; Há uma gota de sangue em cada poema, de Mário de Andrade — e a célebre exposição de Anita Malfatti, em 1917, duramente criticada por Monteiro Lobato no famoso artigo “Paranóia ou mistificação ?”
Os pré-modernos
Antes do Modernismo
Pioneira como sempre , a cidade onde nascera em 1887 o regionalismo literário,com Ezequiel Freire, teve o fomento decisivo em Valdomiro Silveira , cujos contos publicados em jornal,ainda em 1891, são anteriores a Pelo sertão, do mineiro Afonso Arinos, de 1898 (considerado equivocadamente o marco inicial ); e mais adiante, com Paulo Setubal inaugurando o romance histórico brasileiro em A Marquesa dos Santos. A Paulicéia, ainda não batizada de “desvairada”, teve no pré-modernismo as figuras importantes de Martins Fontes ,Rubens Borba de Moraes ,Leo Vaz , Hilário Tácito, e de Monteiro Lobato — pioneiro, inovador e renovador, revolucionário e precursor , na melhor tradição da cidade.
E um artista do mais elevado quilate, consagrado universalmente nas artes plásticas, que praticou, os primeiros deles ainda na terra natal de Brodósqui, seus “escritos” — assim as denominava : Candido Portinari (1903- 1962 ) criou poemas como
O menino e o povoado [O circo]
(...)
Sentia-me feliz quando chegava um circo.
Vinha de terras estranhas.
Todo o meu pensamento se ocupava dele.
O palhaço, montando um burro velho, fazia
Reclame com a meninada acompanhando.
Eu assistia ao espetáculo e apaixonava-me pelas
Acrobatas de dez a quinze anos. Fazia
Planos para fugir com elas. Nunca lhes falei.
Por elas tudo em mim palpitava.
Minha fantasia.
Voltando à vida real, entristecia-me. Não era eu
Um príncipe? Nada disso. Roupas baratas,
Pobreza... Até as flores lá de casa pareciam
Murchas e sem perfume. Só nos achávamos
Bem rondando o circo. Quando partia para outra
Localidade, eu sentia tanta tristeza, chegava ao desespero,
Chorava silenciosamente; desolado ia ver o trem
Passar na direção onde estavam as acrobatas.
Talvez pensassem em mim
O trem seria meu emissário.
Nos encontraríamos mais
Tarde... O tempo deixava pequena lembrança
Até a chegada de outro circo...
(...)

O menino e o povoado [Não tínhamos nenhum brinquedo]
(...)
Não tínhamos nenhum brinquedo
Comprado. Fabricamos
Nossos papagaios, piões,
Diabolô.
A noite de mãos livres e
pés ligeiros era: pique, barra-
manteiga, cruzado.
Certas noites de céu estrelado
E lua, ficávamos deitados na
Grama da igreja de olhos presos
Por fios luminosos vindos do céu
era jogo de
Encantamento. No silêncio podíamos
Perceber o menor ruído
Hora do deslocamento dos
Pequenos lumes... Onde andam
Aqueles meninos, e aquele
Céu luminoso e de festa?
Os medos desapareciam
Sem nada dizer nos recolhíamos
Tranquilos...
(...)
________________________
fragmentos de Poemas de Cândido Portinari: o menino e o povoado, aparições, a revolta, uma prece, org. de Manuel Bandeira ; ed. José Olympio, Rio de Janeiro,1964.

Monteiro Lobato
Entre o nascimento em Taubaté, em 1882, e a morte em São Paulo, em 1948, Monteiro Lobato teve uma das mais intensas, diversificadas , criativas — e exemplares, para a História — vidas de um brasileiro de qualquer época. Um ser plural: articulista, jornalista, tradutor, editor e escritor de obras memoráveis, pioneiro e inovador, precursor da literatura infantil brasileira, revolucionário na indústria editorial, foi um intelectual empenhado na reflexão e discussão das questões — políticas, ideológicas, sociais, culturais, educacionais — de seu tempo.
Polemista por excelência, desde o inaugural artigo "Velha Praga", publicado em O Estado de S. Paulo em 1917 — um protesto contundente contra as constantes queimadas no campo, criando um dos personagens-símbolo da literatura brasileira, o Jeca Tatu (que deu origem a seu primeiro livro, um marco da contística nacional : Urupês , de 1918) — Lobato,sempre preocupado com o desenvolvimento social e mental do povo, foi ávido divulgador da ciência e do progresso . De militância nacionalista , em seus livros e fora deles, nunca deixou de pronunciar-se sobre os temas relevantes de seu tempo: educação, cidadania, ética , questão agrária, violência. Também no campo educacional Lobato, como em outros terrenos, foi um pioneiro. O histórico livro A menina do narizinho arrebitado, que deu origem a toda ficção infanto-juvenil dele e da própria literatura brasileira, foi publicada em São Paulo em 1920, exatamente no ano em que se debatia no País as reformas educacionais : explorando o imaginário infantil, atiçou valores de cidadania, solidariedade,lealdade, afeto e patriotismo, induzindo e instigando a reflexão e o espírito crítico dos jovens leitores— a literatura infantil como elemento fundamental de identidade cultural. A par de tosas suas outras atividades, Lobato dedicou aos jovens o melhor de sua criação, em 22 livros absolutamente irresistíveis e incomparáveis, formadores de gerações e gerações de leitores.
Seu acervo literário impressiona pela qualidade e pela diversidade: Urupês , Cidades mortas , Negrinha (contos) ; O presidente negro ou O choque das raças (romance); Idéias de Jeca Tatu, A onda verde , Mundo da Lua , O macaco que se fez homem , Mr. Slang e o Brasil , Ferro , América , Na antevéspera , O escândalo do petróleo , A barca de Gleyre , Problema vital, Miscelânea (ensaios e polêmica); A menina do narizinho arrebitado , Nas reinações de Narizinho , Viagem ao céu e O Saci , Caçadas de Pedrinho e Hans Staden, História do Mundo para crianças , Memórias da Emília e Peter Pan , Emília no país da Gramática e Aritmética da Emília , Geografia de Dona Benta, Serões de Dona Benta e Histórias das invenções , D. Quixote para as crianças , O poço do Visconde , Histórias de Tia Nastácia , O Pica-pau Amarelo e Reforma da Natureza, O Minotauro , Fábulas e Os Doze trabalhos de Hércules (Literatura Infantil).

sábado, 17 de janeiro de 2009

São Paulo,455 anos - III


A cidade mutante
Em São Paulo, talvez mais do que em qualquer. outra cidade brasileira na época, manifestou-se a tese de Antonio Candido segundo quem “não se pode, nem deve delimitar obras e autores pelo critério estrito do nascimento”, mas sim de acordo com “o critério mais certo e plausível da participação na vida social e cultural de uma localidade ou região e de participação e integração de valores comuns, construindo obras em torno deles, agindo em função de estímulos recíprocos, estabelecendo intercâmbios, para chegar a uma ‘comunicação’”. A cidade , por suas características próprias, marcou e foi sensivelmente marcada pelos que nela viveram e vivem, em grau e modo mais forte que as de seus lugares de origem. Por uma razão ou outra, a cidade logo atraiu — ainda como estudantes— muitos daqueles que mais tarde se tornariam intelectuais e autores proeminentes no cenário literário-cultural brasileiro.
Em 1845, com a fundação da Sociedade Epicuréia, consolida-se um processo de produção literária estudantil, embora de qualidade reduzida mas que viria a receber um influxo importante com a estadia de Castro Alves, em 1868 — foi em evento da Faculdade de Direito que declamou pela primeira vez o antológico poema “Navio negreiro”__ quem incutiu um teor social ao tipo de obra, sobretudo poética, que se fazia então.
Por essa época, o ‘corpo acadêmico’ já constitui um grupo social diferenciado da comunidade paulistana, a boemia e a literatura como manifestações mais características de um segmento com consciência grupal própria. Simultaneamente, outras agremiações vão surgindo, em alta efervescência literária e cultural : Ensaio Filosófico (1850), Ateneu Paulistano (1852), Associação Culto à Ciência (1857), Instituto Acadêmico (1858), Clube Literário (1859).Algumas delas tiveram seu periódico, como a Revista mensal do Ensaio Filosófico Paulistano , o Ensaios literários do Ateneu Paulistano, jornais como Acaiaba, O Guaianá, A Academia, Íris.
Artistas criadores e ao mesmo tempo críticos, nas revistas e jornais , são os estudantes, entre os naturais da cidade e os migrantes e radicados, autores de denúncias e protestos contra a corrupção, a hipocrisia, as injustiças da sociedade . O ‘satanismo’ então constituiu a manifestação mais típica desse tipo de poeta-crítico-estudante singular e proeminente no meio literário-cultural da São Paulo de meados do século XIX —— o satanismo como expressão de uma ideologia de “revolta espiritual, de negação de valores triviais, de intenso egocentrismo” , ingrediente de uma certa atmosfera de desvario que passa a permear a vida acadêmica da cidade . Por meio da obra ainda incipiente de Álvares de Azevedo , com sua típica tonalidade de melancolia, humor negro, sarcasmo, gosto da morte, é difundido por todo o País e atrai Fagundes Varela, Raimundo Corrêa, Couto Magalhães.
Na década de 1880 São Paulo acolhe também um grupo de jovens inflamados pelo verbo eloqüente de José Bonifácio o moço , uma geração empenhada numa luta em prol das idéias liberalistas e republicanas : Joaquim Nabuco, Afonso Pena, Rodrigues Alves .
As duas primeira décadas do século XX assistem o despontar de outra forma de pionerismo: o denominado “regionalismo consciente”— a explorar o rico filão do folclore paulista — tendo seu precursor em Valdomiro Silveira(na esteira aberta por Ezequiel Freire), que publicava seus contos desde 1891, e em seguida Monteiro Lobato, ficcionista que nunca se furtou a tratar (e denunciar) de questões como as condições de miséria em que vivia o caipira, os problemas do petróleo, a siderurgia, a edição e comércio de livros. Com o Modernismo —do qual Lobato, Leo Vaz, Hilário Tácito, Rodrigues de Abreu, Afonso Schmidt, Paulo Setúbal, Orígenes Lessa se colocaram à margem — o eixo literário nacional iria deslocar-se concretamente para São Paulo.
O desenrolar e desdobrar de percursos literários que culminariam no século XX com o Modernismo foi coincidente e conseqüente de um vigoroso processo de evolução econômica, social e urbana da cidade, e há de obrigatoriamente levar em conta determinados ‘símbolos’ da época : o modus literário que passou a ser atuante deve necessariamente ser visto e analisado a partir do desenho dos cenários e ambientes em que veio a se desenrolar , que são representações significativas da própria literatura brasileira na passagem do século XIX para o século XX.
O declínio do Império coincidiu com a ascensão das classes médias citadinas por força do processo da gradativa metamorfose de uma sociedade rural para urbana.Em sua luta pela aquisição de status, segmentos da classe média passaram a prestigiar valores essencialmente burgueses, como o saber e agilidade intelectual__ até porque já era uma tradição, no mundo, a valorização de virtudes intelectuais , o escritor passando a ser objeto de grande consideração social e uma atividade cobiçada por muitos filhos da classe média.
A valorização da inteligência__ a par de possibilitar uma “profissionalização da literatura”
[1] --fez com que o escritor absorvesse valores aristocráticos, desprovidos de visão crítica do real — com raríssimas exceções— e veio a comprometer, na imensa maioria dos autores , a vitalidade do estilo, em troca do emprego de linguagem, digamos, ‘ornamental’.
No caso particular de São Paulo — então com cerca de 240 mil habitantes na passagem do século XIX para XX, em radical mudança de perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes, passa a ser executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu, eivada de academicismo art-nouveau.
Expressa-se sobretudo um certo aristocratismo intelectual, que agrada em cheio àquela burguesia ascendente : cristaliza-se pois um padrão estético-literário-cultural definido pela elite social, retirados do contingente inicial dos estudantes os valores e parâmetros da produção literária. Constitui-se, numa sociedade de classes, uma literatura ‘classista’, elitista, convencional, integrada aos padrões de refinamento da classe dominante.Acentuam-se então os teores de sentimentalismo, romantismo e nacionalismo — em oposição ao ‘satanismo’ característico da décadas de 1840/50, caracterizado em Álvares de Azevedo — privilegiando a ‘pureza’ da língua, a escrita correta, o ‘apuro’, a limpidez, a sonoridade, a ‘riqueza do vocabulário’. A literatura como degrau de ascensão social incorporou-se à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas classes dominantes.Contrária a essa vertente — personificada pelos “corifeus da bela escrita”, precipuamente, no Rio de Janeiro, Coelho Neto, Olavo Bilac, os membros da chamada “geração boêmia” ; em São Paulo, Francisca Julia, Vicente de Carvalho ,Julio Ribeiro, Silvio de Almeida — poucas vozes (ou melhor escritas ) se colocaram : notadamente Lima Barreto ,no Rio de Janeiro, e Alcântara Machado, em São Paulo (há de se considerar também Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, em especial Juó Bananére, e anos depois João Antonio) — que adotaram e assumiram temática, ambientação, personagens, trama, linguagem e estilo eminentemente populares e ‘anti-aristocráticas’.
A incorporação efetiva da literatura à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas classes dominantes foi primordial para a consecução do Modernismo de 1922 , que iria promover profunda renovação literária e cultural e exercer forte e incontrolável influência no meio cultural, social e político de todo o País . Até porque expressaram um esforço para retirar à literatura o caráter de classe— dado pela elite social e cultural pós –1890 — transformando-a em bem comum a todos.Como o Romantismo, o Modernismo é de todas as correntes literárias brasileiras a que adquiriu tonalidades especificamente paulistanas. Antonio Candido sentencia que “se em São Paulo não tivesse havido os escritores do período clássico, do Naturalismo, do Parnasianismo, do Simbolismo, a literatura brasileira teria perdido um ou outro bom autor, mas nada de irremediável. Se tal acontecesse no Romantismo e no Modernismo, o Brasil ficaria mutilado de algumas de suas mais altas realizações artísticas, de obras culminantes como Macário e Macunaíma, por exemplo. Dois momentos paulistanos, dois momentos em que a cidade se projeta sobre o País”.
E a eclosão do decisivo Modernismo, na segunda década do século XX, veio concretamente corroborar um processo de precursoridade, inovação e renovação que sempre caracterizaram a cidade.

Os migrantes, radicados , pioneiros
que são,
José de Alencar
Bernardo Guimarães
Aureliano Lessa
José Bonifácio de Andrada e Silva
Luiz Gama
José Vieira Couto de Magalhães
Fagundes Varela
Júlio Ribeiro
Castro Alves
Inglês de Sousa
Ezequiel Freire
Teófilo Dias
Raimundo Correia
Euclides da Cunha
Olavo Bilac
[1] Olavo Bilac , em palestra proferida em 1907, em São Paulo, sentenciou : “Há quarenta anos, não havia propriamente homens de letras no Brasil: havia estadistas, parlamentares, professores, diplomatas, homens de sociedade ou homens ricos, que de quando em quando invadiam por momentos o bairro literário (...) Que fizemos nós? Fizemos isso : transformamos o que era então um passatempo, um divertimento, naquilo que é hoje uma profissão, um culto, um sacerdócio(...)Tomamos o lugar que nos era devido no seio da sociedade”.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

São Paulo, 455 anos - II


A cidade pioneira
A par da própria fundação da Vila São Paulo de Piratininga, a existência literária da cidade teve na instalação da Companhia de Jesus e no movimento de catequese seu impulso original , por meio de obras de caráter ‘semiliterário’, destinadas precipuamente a desígnios pedagógicos e ecumênicos. O conjunto dos primeiros textos escritos no Brasil, produzidos no período imediatamente posterior à chegada dos portugueses, em 1500, até o ano de 1601, é conhecido como "literatura de informação", "textos de informação" ou "primeiras manifestações literárias" __ termo escolhido para se referir a essa produção do período formativo, anterior à constituição de uma literatura brasileira. São obras de reconhecimento e valorização da terra escritas por jesuítas, viajantes estrangeiros e colonizadores portugueses encarregados de enviar relatos sobre a nova terra ao rei de Portugal. Se hoje existe uma visão crítica do que significou o ‘descobrimento’ do Brasil e o decorrente processo civilizatório , não se pode negar que os textos produzidos naquela época são o melhor testemunho não apenas dos eventos que deram origem ao que se tornaria o Estado brasileiro, mas que principalmente revelam o pensamento político e religioso que estava na base de todo o colonialismo.
Nessa fase em que a literatura colabora para a consolidação da conquista do território e do domínio português, o mesmo interesse "desbravador" une leigos e religiosos nos primeiros registros escritos sobre a nova terra, chamada Terra de Vera Cruz, Santa Cruz, dos Canibais, do Pau-Brasil, entre vários outros nomes.Ao lado de cronistas e viajantes __Pero Vaz de Caminha, Pero de Magalhães de Gandavo , Gabriel Soares de Sousa,Ambrósio Fernandes Brandão, além das narrativas de viajantes franceses e alemães, como de Jean de Léry e Hans Staden __os jesuítas foram os autores mais assíduos da época. Chegados ao Brasil em 1549,chefiados pelo padre Manuel da Nóbrega, imbuídos da missão de catequizar o indígena, desempenharam papel crucial no início da organização da vida administrativa, econômica, política, militar, espiritual e social durante os primeiros anos da colonização.
“Os documentos jesuíticos não são apenas história do Brasil: são essenciais à ética brasileira.” (Afrânio Peixoto,in “Introdução" a Cartas do Brasil, de Manuel da Nóbrega)
A maior significação da obra dos jesuítas no Brasil reside na heróica tentativa, nos séculos XVI e XVII, de contestar o tipo de sociedade em vias de formar-se, substituindo-a por um modelo teocrático de civilização, sem escravos, nativos ou importados. Os jesuítas__ em sua dupla atividade na Colônia: de magistério e de catequese(o índio como a matéria-prima de uma nova sociedade)__ tinham um projeto para o Brasil__ i.e. sem o objetivo de fazer da colônia uma simples máquina de alimentação de necessidades exteriores a ela.O insucesso do projeto jesuítico no Brasil Colônia explica por que a primeira manifestação literária brasileira __ a literatura dos catequistas, a primeira literatura feita para o Brasil __ ficou sem sucessão histórica e perdeu a consistência de registro historiográfico perene.
É consensual ,aliás, que as manifestações literárias, ou de tipo literário, se deram no Brasil até a segunda metade do século XVIII sob “o signo da religião e da transfiguração”—— a religião como a grande diretriz ideológica, justificativa da conquista, da catequese, da defesa contra o (outro) estrangeiro, da própria cultura nacional que se pretendia implementar : nela se abriga toda a obra de José de Anchieta e muito dos escritos epistolares de Manuel da Nóbrega ; pela transfiguração, o “espírito culto exprimindo uma visão da alma e do mundo, em caprichoso vigor expressivo, manto rutilante a interpretar a realidade” , vieram a poética de Alexandre de Gusmão, o romanesco de Teresa Margarida Orta, as elucubrações ensaísticas de Matias Aires, já no século XVIII.
A rigor, a literatura de São Paulo passa a existir tal como “sistema orgânico articulado, de escritores, obras e leitores, reciprocamente atuantes na formação de uma tradição literária” , somente após a Independência (da mesma forma, aliás, que toda a literatura brasileira) e em especial depois da Faculdade de Direito — embora já nos primeiros tempos se manifestassem alguns elementos incipientes ; mas aquela concepção de literatura como forma de ‘integração, reciprocidade de estímulos e intercâmbio’ esboça-se claramente nas relações da produção de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, Frei Gaspar de Madre Deus e Claudio Manuel da Costa — os dois primeiros viventes em São Paulo,este em Ouro Preto,Minas Gerais, mas ‘aproximados’ na Academia Brasílica dos Renascidos, núcleo e nicho de uma consciência literária comum : os três foram os primeiros a dar expressão intelectual a um certo sentimento ‘localista’ dos naturais de São Paulo, materializada essa expressão intelectual comum na Nobiliarquia paulista, de Taques, nas Memórias para a história da capitania de São Vicente, de Frei Gaspar, no poema épico “Vila Rica”, de Claudio Manuel da Costa.
O século XIX, por sua vez, marca a primeira clivagem consistente de expressão literária.O retrato da História exibe, por exemplo, a importância capital da Academia de Direito, criada em 1828 (posteriormente denominada Faculdade) na convivência acadêmica que propiciou a formação de agrupamentos de estudantes, com idéias estéticas, manifestações literárias e expressões próprias — deflagrando um processo vigoroso de efervescência intelectual que passou a agitar intensamente a pequena cidade de então,intensificado por volta de 1830, em torno da Revista da Sociedade Filomática,que viria a desempenhar papel decisivo na literatura em São Paulo: constituíram, a revista e seus membros, o primeiro movimento literário de vulto não apenas em relação à cidade mas ao próprio País .E foi essa comunidade estudantil que iria receber em seu meio jovens impregnados de igual fervor , imbuídos do “entusiasmo da construção literária” — que foi a mola propulsora do Romantismo — como José de Alencar, Olavo Bilac, José Bonifácio o moço, Teófilo Dias, Aureliano Lessa, Raimundo Corrêa, Coelho Neto, vindos do Rio de Janeiro , de Minas Gerais, de outros lugares ,para cursar a faculdade.
Ainda que se reconheça as limitações quantitativa e qualitativa da produção desses estudantes, não há como negar que estabeleceram a literatura como atividade presente na comunidade paulistana. Deu-se por ela a primeira manifestação de uma vertente poética considerada “o início da escola brasileira” : o indianismo, desenvolvido na obra de Gonçalves Dias, mas praticado pioneiramente no poema “Nênia”, de Firmino Rodrigues Silva, composto entre as arcádias da Academia de Direito. E exercido ainda de forma pioneira em 1844, três anos antes do Primeiros cantos , de Gonçalves Dias, em “Cântico do tupi”, “Imprecação do índio” e “Prisioneiro índio”, do Barão de Paranapiacaba. Evidencia-se pois que quando Dias dominou o meio literário brasileiro, a poesia indianista ——base da obra do maranhense —— já existia e era praticada em São Paulo. Nada mais condizente com a realidade o fato de nela ter se manifestado as primeiras expressões do indianismo — pois a presença de índios, os tupiniquins, era acentuada na cidade: eram eles trabalhadores braçais, operários de construção, transportadores, agricultores ; e até meados do século XIX falava-se tupi tanto quanto o português.

Os fundadores, nativos, precursores
são eles,
José de Anchieta; Manuel da Nóbrega
Alexandre de Gusmão
Matias Ayres
Tereza Margarida da Silva e Orta
Pedro Taques de Almeida Paes Leme
Frei Gaspar da Madre de Deus
José Bonifácio de Andrade e Silva
Adolfo de Varnhagen
Firmino Rodrigues da Silva
Álvares de Azevedo
Paulo Eiró
Venceslau Queiroz
Vicente de Carvalho
Batista Cepelos
Francisca Julia
Amadeu Amaral
Sylvio Floreal
Juó Bananère
Rodrigues de Abreu
Alcântara Machado

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

SÃO PAULO, 455 anos


um 2009 que marca o centenário de morte de Euclides da Cunha, os 170 anos de nascimento de Machado de Assis,os 100 anos da publicação em livro do romance Recordações do escrivão Isaias Caminha, de Lima Barreto, os 120 anos da República inicia-se com o 4550. aniversário da fundação de São Paulo, cidade genuina e essencialmente literária como poucas do Brasil. essência


A São Paulo heterogenética
Há uma história da literatura que se projeta na cidade de São Paulo; e há uma história da cidade de São Paulo que se projeta na literatura
Antonio Candido.

São Paulo, desde seus primórdios, sempre foi pólo fundamental da literatura brasileira.E a aura do pioneirismo a acompanha até hoje — e não surpreende pois que em São Paulo tenha nascido e se manifestado um dos momentos fundamentais da história cultural brasileira , o Modernismo.
A par de outros elementos cruciais, o processo histórico de pujança, política, econômica, cultural, de São Paulo tem sua origem na tese formulada pelo historiador e ensaísta José Murilo de Carvalho, a distinguir cidades ortogenéticas __ caso do Rio do Janeiro, por exemplo __ e cidades heterogenéticas __ São Paulo como o maior exemplo —e que veio a marcar o tipo de intelectual e modo de produção cultural gerados pelas duas cidades .A ortogenética é caracterizada pela função política e administrativa, com grande peso do governo e do poder público, cidade de consumidores e não de produtores , baseada no comércio e na escravidão . A proclamação da República teria reforçado ainda mais essa função política do Rio de Janeiro, com mais intensa ainda presença do poder público, fazendo com que grande parte da intelectualidade se vinculasse de alguma forma à burocracia pública, em geral como funcionários do governo federal : e se tal fato não “introduzia necessariamente uma perspectiva governista na obra desses autores”, frisa Carvalho, “certamente constituía limitação à sua liberdade de criação”. De outro lado, a quase obrigação que se impunha ao Rio de passar a imagem civilizada do país fazia com que seus intelectuais tivessem grande dificuldade em compreender perfeitamente a realidade do País e da cidade — daí as contradições e bloqueios que se interpunham no caminho da criatividade dos intelectuais, a cidade não conseguindo produzir uma cultura moderna/modernista. Diferente de São Paulo.
A cidade heterogenética, que São Paulo exemplifica, estava fora do centro do poder político, caracterizada como cidade de produtores, com maior liberdade de criação, maior iniciativa cultural, com predomínio da atividade econômica e comercial e não política e administrativa — somado ao fato de que nunca teve grande presença escrava Em contrapartida, a intelectualidade paulista era muito menos vinculada ao Estado, e era na verdade patrocinada pela própria oligarquia local__ muitos dos intelectuais eram aliás eles mesmos membros da oligarquia. A independência em relação ao Estado lhes dava maior liberdade de criação Além disso, havia maior homogeneidade social entre a intelectualidade paulista, e isso propiciou a São Paulo maior possibilidade do que o Rio de Janeiro de desenvolver um projeto cultural ,mais consistente e ‘autônomo’ : na Paulicéia, houve “melhor condição de um trabalho intelectual em cima da realidade social concreta”.
A cidade , já natural e sequencialmente pioneira em diversas manifestações literárias — desde os jesuítas, fundadores de um colégio no Campos de Piratininga, rezada a missa de inauguração em 25 de janeiro de 1554; a elevação à categoria de Vila São Paulo de Piratininga deu-se em 1560) : não se pode esquecer que o "Diálogo sobre a conversão do gentio", de Manuel da Nóbrega, é o primeirissimo documento literário do Brasil, e o Auto da Pregação Universal, de José de Anchieta, a primeira peça encenatória)— o foi também , por exemplo, na precursora expressão poética do ‘indianismo’ no poema “Nênia” de Firmino Rodrigues Silva ; nela se deram ainda as realizações literárias iniciais de autores não paulistanos como o cearense José de Alencar, o baiano Castro Alves ,o maranhense Raimundo Corrêa ; nela o fluminense radicado Ezequiel Freire escreveu os primeiros contos de temática rural-sertaneja da literatura brasileira, depois fomentados pelo paulista Valdomiro Silveira; nela o paraense Inglês de Souza, ainda estudante , escreveu e publicou o romance que inaugurou o Naturalismo literário ; nela ocorreu o primeiro movimento literário de vulto não apenas em relação à cidade mas ao próprio País,em torno da Revista da Sociedade Filomática,em 1830,constituída na então recém-criada Academia de Direito — a primeira manifestação de brasilidade literária por sua consciência de fins e coesão de esforços renovadores: nela ocorreu a maior revolução cultural da história brasileira, o “destruidor-criador” Modernismo,irradiante e difusor de um processo de renovação e inovação por todo o século XX; nela, a São Paulo desde sempre heterogenética, assim definida pelo historiador José Murilo de Carvalho, está o que de melhor e mais criativo, afinado com a modernidade, se produz hoje na literatura brasileira.


quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

reflexão final


para encerrar este machadiano 2008, e iniciar o machadiano 2009 (170 anos de nascimento) -- como se todos os anos não o fossem, ou deveriam ser -- um verdadeiro corolário :


"sim, considerei a vida,remontei os anos,vim por eles abaixo, remirei o espetáculo do mundo, o visto e o contado, cotejei tantas coisas diversas,evoquei tantas imagens complicadas, combinei a memória com a história,e disse comigo :

'-- certamente,este mundo é um baile de casacas alugadas'."

Machado de Assis