quarta-feira, 31 de março de 2010

Lima Barreto e a mulher - V


mulher brasileira

A mulher brasileira
É de uso que, nas sobremesas, se façam brindes em honra ao aniversariante, ao par que se casa, ao infante que recebeu as águas lustrais do batismo, conforme se tratar de um natalício, de um casamento ou batizado. Mas, como a sobremesa é a parte do jantar que predispõe os comensais a discussões filosóficas e morais, quase sempre, nos festins familiares, em vez de se trocarem idéias sobre a imortalidade da alma ou ó adultério, como observam os Goncourts, ao primeiro brinde se segue outro em honra à mulher, à mulher brasileira.
Todos estão vendo um homenzinho de pince-nez, testa sungada, metido numas roupas de circunstâncias, levantar-se lá do fim da mesa; e, com uma mão ao cálice, meio suspenso, e a outra na borda do móvel, pesado de pratos sujos, compoteiras de doce, guardanapos, talheres e o resto - dizer: "Peço a palavra;" e começar logo: "Minhas senhoras, meus senhores." As conversas cessam; dona Lili deixa de contar a dona Vivi a história do seu último namoro; todos se aprumam nas cadeiras; o homem tosse e entra em matéria: "A mulher, esse ente sublime ... " E vai por aí, escachoando imagens do Orador familiar, e fazendo citações de outros que nunca leu, exaltando as qualidades da mulher brasileira, quer como mãe, quer como esposa, quer como filha, quer como irmã.
A enumeração não foi completa; é que o meio não lhe permitia completá-la. É uma cena que se repete em todos os festivos ágapes familiares, às vezes mesmo nos de alto bordo.
Haverá mesmo razão para tantos gabos? Os oradores terão razão? Vale a pena examinar.
Não direi que, como mães, as nossas mulheres não mereçam esses gabos; mas isso não é propriedade exclusiva delas e todas as mulheres, desde as esquimós até às australianas, são merecedoras dele. Fora daí, o orador estará com a verdade?
Lendo há dias as Memórias, de Mme d'Épinay, tive ocasião de mais uma vez constatar a floração de mulheres superiores naquele extraordinário século XVIII francês. Não é preciso ir além dele para verificar a grande influência que a mulher francesa tem tido na marcha das idéias de sua pátria.
Basta-nos, para isso, aquele maravilhoso século, onde não só há aquelas que se citam a cada passo, como essa Mme d'Épinay, amiga de Grimm, de Diderot, protetora de Rousseau, a quem alojou na famosa "Ermitage", para sempre célebre na história das letras; e Mme du Deffant, que, se não me falha a memória, custeou a impressão do Espírito das leis. Não são unicamente essas. Há mesmo um pululamento de mulheres superiores que influem, animam, encaminham homens superiores do seu tempo. A todo o momento, nas memórias, correspondências e confissões, são apontadas; elas se misturam nas intrigas literárias, seguem os debates filosóficos.
É uma Mme de Houdetot; é uma marechala de Luxemburgo; e até, no fundo da Sabóia, na doce casa de campo de "Charmettes", há uma Mme de Warens que recebe, educa e ama um pobre rapaz maltrapilho, de quem ela faz mais tarde Jean-Jacques Rousseau.
E foi por ler Mme d'Épinay e recordar outras leituras, que me veio pensar nos calorosos elogios dos oradores de sobremesas à mulher brasileira. Onde é que se viram no Brasil essa influência, esse apoio, essa animação das mulheres aos seus homens superiores?
É raro; e todos que o foram, não tiveram com suas esposas, com suas irmãs, com suas mães essa comunhão nas idéias e nos anseios, que tanto animam, que tantas vantagens trazem ao trabalho intelectual.
Por uma questão qualquer, Diderot escreve uma carta a Rousseau que o faz sofrer; e logo este se dirige a Mme d'Épinay, dizendo: "Se eu vos pudesse ver um momento e chorar, como seria aliviado!" Onde é que se viu aqui esse amparo, esse domínio, esse ascendente de uma mulher; e, entretanto, ela não era nem sua esposa, nem sua mãe, nem sua irmã, nem mesmo sua amante!
Como que adoça, como que tira as asperezas e as brutalidades, próprias ao nosso sexo, essa influência feminina nas letras e nas artes.
Entre nós, ela não se verifica e parece que aquilo que os nossos trabalhos intelectuais têm de descompassado, de falta de progressão e harmonia, de pobreza de uma alta compreensão da vida, de revolta clara e latente, de falta de serenidade vem daí.
Não há num Raul Pompéia influência da mulher; e cito só esse exemplo que vale por legião. Se houvesse, quem sabe se as suas qualidades intrínsecas de pensador e de artista não nos poderia ter dado uma obra mais humana, mais ampla, menos atormentada, fluindo mais suavemente por entre as belezas da vida?
Como se sente bem a intimidade espiritual, perfeitamente espiritual, que há entre Balzac e a sua terna irmã, Laura Sanille, quando aquele lhe escreve, numa hora de dúvida angustiosa dos seus tenebrosos anos de aprendizagem: "Laura, Laura, meus dois únicos desejos, 'ser célebre e ser amado', serão algum dia satisfeitos?" Há disso aqui?
Se nas obras dos nossos poetas e pensadores passa uma alusão dessa ordem, sentimos que a coisa não é perfeitamente exata, e antes o poeta quer criar uma ilusão necessária do que exprimir uma convicção bem-estabelecida. Seria melhor talvez dizer que a comunhão espiritual, que a penetração de idéias não se dá; o poeta força as entradas que resistem tenazmente.
É com desespero que verifico isso, mas que se há de fazer? É preciso ser honesto, pelo menos de pensamento ...
É verdade que os homens de inteligência vivem separados do país; mas se há uma pequena minoria que os segue e acompanha, devia haver uma de mulheres que fizesse o mesmo.
Até como mães, a nossa não é assim tão digna dos elogios dos oradores inflamados. A sagacidade e agilidade de espírito fazem-lhes falta completamente para penetrar na alma dos filhos; as ternuras e os beijos são estranhos às almas de cada um. Sonho do filho não é percebido pela mãe; e ambos, separados, marcham no mundo ideal. Todas elas são como aquela de que fala Michelet: "Não se sabe o que tem esse menino." "Minha Senhora, eu sei: ele nunca foi beijado."
Basta observar a maneira de se tratarem. Em geral, há jeitos cerimoniosos, escolhas de frases, ocultações de pensamentos; o filho não se anima nunca a dizer francamente o que sofre ou o que deseja e a mãe não o provoca a dizer.
Sem sair daqui, na rua, no bonde, na barca, poderemos ver a maneira verdadeiramente familiar, íntima, sem morgue nem medo, com que as mães inglesas, francesas e portuguesas tratam os filhos e estes a elas. Não há sombra de timidez e de terror; não,há o "senhora" respeitável; é "tu", é "você".
As vantagens disso são evidentes. A criança habitua-se àquela, confidente; faz-se homem e, nas crises morais e de consciência, tem onde vazar com confiança as suas dores, diminuí-las, portanto, afastá-las muito, porque dor confessada é já meia dor e tortura menos. A alegria de viver vem e o sorumbatismo, o mazombo, a melancolia, o pessimismo e a fuga do real vão-se.
Repito: não há tenção de fazer uma mercurial desta crônica; estou a exprimir observações que julgo exatas e constato com raro desgosto. Antes, o meu maior desejo seria dizer das minhas patrícias aquilo que Bourget disse da missão de Mme Taine, junto a seu grande marido, isto é, que elas têm cercado e cercam o trabalho intelectual de seus maridos, filhos ou irmãos de uma atmosfera na qual eles se movem tão livremente como se estivessem sós, e onde não estão de fato sós.
Foi, portanto combinando a leitura de uma mulher ilustre com a recordação de um caso corriqueiro da nossa vida familiar que consegui escrever estas linhas. A associação é inesperada; mas não há do que nos surpreender com as associações de idéias.
Gazeta da Tarde 27.04.1911

O anel dos musicistas
As meninas do Instituto de Música escreveram aos jornais, lembrando a criação de um anel que as marcasse ao fim do curso ou dos cursos daquela casa sonora. A exemplo dos médicos, dos advogados, dos engenheiros, dos dentistas, dos bacharéis do Pedro lI, dos cônegos, das raparigas da Escola Normal, elas querem também um distintivo que as extreme do vulgo. É muito justo, pois se o destino da mulher é o casamento, tudo o que possa concorrer para que elas o cumpram deve merecer o nosso apoio entusiástico. Quando uma moça, doutora do Instituto, for de anel no dedo pelos bondes afora, ao fim da viagem não esperará muito que um namoro se transforme em noivado ... Ela garantirá a "zona" e o marido futuro ficará sossegado quanto às despesas da casa. O anel à mostra, isto é, o que ele rende, ficará sendo assim, às claras, uma espécie de dote, porque, de todas as profissões femininas, a que tem maiores possibilidades entre nós é a de professora de música, quando garantidas pelo Instituto do Largo da Lapa. Os motivos disto estão entrando nos olhos de todos os que residem no Rio de Janeiro e vivem sitiados por pianos ou violinos, na frente, nos fundos, nos lados, seja a casa em bairro rico ou pobre.
De tal modo é rendoso o ofício de professora de música e de seus instrumentos, no Rio, que as brigas vergonhosas que há de vez em quando no conservatório só podem ser atribuídas à ganância dos professores e acólitos na caça e disputa de discípulos. Cherchez l'argent.
A música, entre nós, é a única arte em que raramente aparece uma tentativa de criação. Entregue, como está, a moças, melhor, a mulheres, que em geral nunca em arte foram criadoras - estudam unicamente para o professorado - a arte musical, na nossa cidade, não dá nenhuma demonstração superior da nossa emoção, dos anseias e sonhos peculiares a nós. Limita-se a repetir, trilhando os caminhos batidos. Não há invento nem novidade.
As suas sacerdotisas agora querem um anel, talqualmente as senhorinhas da Escola Normal, quando acabam o seu curso secundário.
Se a medida não trouxer progressos à arte de Euterpe, entra, entretanto, na lógica da nossa sociedade. Não é possível que num país democrático uma moça que andou aos cuidados do senhor Richard, do senhor Arnaud Gouveia, do senhor Alberto Nepomuceno, que escreve óperas para exportação, possa ser confundida com qualquer rapariga aí.
Para todos os que têm um curso qualquer, não há distintivo? Como não cabe o mesmo direito às talentosas executoras do Instituto de Música?
Certamente que elas têm toda a razão, e, se dependesse do meu voto, desde já estariam usando o berloque simbólico. Seria mais um.
As pedras, querem elas que sejam de safira, porque - justificam - a música tem muita coisa com a matemática; e a safira é a pedra dos anéis de engenheiros. A moça que projetou o anel tem certamente um namorado aos cuidados dos senhores Ortiz ou Villiot, na Escola Politécnica, imagino eu. Contudo, animo-me a lembrar a ambos que tanto a engenharia dele como a música da sua deidade, no fim, quando ambos forem se servir de uma coisa e da outra, a matemática que entrar nelas pouco além irá daquela que se aprende nas escolas primárias.
Seria melhor que a menina que ideou o anel desde já estudasse as divisões da nossa moeda, a conta de juros da Caixa Econômica, para bem poupar e fazer render o que ganhar nas suas lições. E, para isto, basta o Viana, Aritmética; e pode deixar de lado o nome pomposo da matemática. Quanto ao seu futuro marido, se algum dia passar além do trânsito ou do nível, tem os handbooks que lhe suprirão as falhas na sabedoria.
A matemática, minha senhora, para a maioria dos engenheiros, é assim como o latim para um grande número de padres: eles sabem só pronunciá-la.
Não amesquinho seu noivo ou namorado, pois nunca foi do meu temperamento amesquinhar um doutor ou futuro doutor. Faço uma observação, unicamente. De passagem seja-me permitido lembrar à futurosa Cellini acadêmica que a safira, na escala da dureza, ocupa um dos primeiros lugares; e uma pedra tão dura não fica bem para emblema de uma arte tão doce e tão pouco rígida. Pense em outras, minha senhora.
Se o fito é distinguir-se, extrema r-se do vulgo feminino, há um processo seguro: é a tatuagem, que os doutores também poderiam usar, e, em certas partes dos corpos femininos, no colo, por exemplo, iria magnificamente. Além de tudo, é indelével. Ficaria a senhora doutora em música, até que, como nós todos, fosse a gentil senhorinha formada, muito comumente, "moisir parmi les ossements, sous l'herbe et les floraisons grassses", como diz Baudelaire. Procure na "Une charogne" isso.
Lanterna 25.01.1918

Quereis encontrar marido? - aprendei! ...
A Livraria Schettino, desta cidade, há tempos, editou um pequeno opúsculo de doze páginas, tipo graúdo, entrelinhado, com este soberbo título: Quereis encontrar marido? – Aprendei ! ...
É autor do livro uma senhora, dona Diana D'Alteno, que, a seguir a regra geral, nunca encontrou o seu. Digo isto porque, na quase-totalidade, todas as pessoas que se propõem a fornecer tal cousa ou outra a seus semelhantes não a possuem. Haja vista os feiticeiros, negromantes, cartomantes, adivinhos, hierofantes, que estão sempre prontos a dar fortuna aos outros, mas que, entretanto, não têm níquel, pois precisam de espórtulas e gratificações para os seus generosos serviços.
Dona Diana D' Alteno começa o seu interessante opúsculo assim, deste modo, que transcrevo tal e qual:
Gentis e amáveis moças solteiras. É a vós que dedico estes meus escritos. O motivo que me induz a traçar estas linhas é um dos mais vitais, e quiçá dos mais graves.
Depois desta invocação às suas caras leitoras, a autora entra de pronto no "argumento". Sabem qual é este argumento? Pois fale ela. Eis as suas palavras:
Permiti, pois, que vos fale disso como cousa nova.
Se trata do terrível dépeuplement!, a diminuição progressiva de nascimentos, que poderá um dia ser causa de tremendos conflitos entre as nações, aproveitando-se umas sobre as outras de maior a menor número de combatentes.

Vejam os senhores só como esta senhora está adiantada em matéria de previsão histórica e como a sua sociologia é muito obstétrica e ginecológica.
O despovoamento pode ser um dia causa de tremendos conflitos, fenômeno terrível que ela qualifica mais adiante: "Espada de DâmocIes suspensa sobre a cabeça de boa parte do gênero humano."
A senhora D' Alteno, ao acabar de fazer tão curiosa descoberta, não fica satisfeita. Parece que o seu gênio é como a atividade catequizadora de São Francisco Xavier: quer ir mais longe, mais longe. "Amplius!"
Então toma a palavra pela segunda vez e descobre a causa. Mais uma vez passo para aqui as palavras da ilustre socióloga:
Pela segunda vez, peço permissão de tomar a palavra e explicar sem ambages qual seja esse motivo: é a diminuição dos matrimônios. É o caso de dizer "a pequenas causas, grandes efeitos" e na verdade, os matrimônios se tornam cada vez mais raros e mais difíceis.
Peço licença para observar à ilustre senhora cousas simples. Antes, tenho a dizer que nada entendo dessas cousas sociais, mesmo em se tratando de casamentos. Não é atividade da minha seara intelectual, mas já foi dito que cada qual tem o direito de ter uma opinião e de dizê-la. Eu julgo que o casamento nada tem com o despovoamento. Pode haver multiplicação da humanidade sem ele, como pode haver com ele. O "crescei e multiplicai-vos" não subentende casamento algum. Há muitas espécies animais que obedecem ao preceito bíblico e prescindem de semelhante cerimônia. Por acaso entre os nossos animais domésticos que crescem e se multiplicam, apesar das pestes, das facas das cozinheiras, do choupo, etc., há pastores e sacerdotes encarregados de realizar casamentos? Não.
Estou bem certo que a autora não se zangará comigo, apesar do seu nome que, entretanto, não é também propício aos destinos do seu singular folheto. Mas ... Afirma dona Diana que "o homem (o grifo é dela) tem medo do matrimônio. Um sacro terror se apoderou dele a tal palavra".
Ainda uma vez peço licença à ilustre autora para discordar. O "homem" não tem medo do matrimônio; o "homem" o quer sempre. A culpa é da mulher, que escolhe muito. Se ela casasse com o primeiro que encontrasse, a tal história não se daria. Eu, por exemplo, atiro ao terreiro um grão de milho; se não houver um galináceo que o coma, ele germina logo. Agora, se ele quiser terra especial ou a terra quiser um grão especial, a cousa é outra. Vai ver a ilustre autora como me vai dar razão nas suas penúltimas palavras, que são estas:
Permanecei "mulher", se quereis um dia ser mãe - a "Materniidade!" é esta a maior vitória que glorifica a mulher; é esta a sua grandiosa obra.
Não falaria eu com tanto calor, mas diria a mesma cousa com simplicidade, chãmente. Vossa Excelência, porém, está no seu direito, apesar de Diana, de fazê-lo da forma que o fez.
E essas suas palavras vêm a pêlo agora quando várias senhoritas se assanham para entrar para a estrada de ferro, para o Tesouro, como funcionárias públicas.
Há nisto vários erros, uns de ordem política, outros de ordem social.
Os de ordem política consistem em permitir que essas moças se inscrevam em concurso para aspirar um cargo público, quando a lei não permite que elas o exerçam.
Não sou inimigo das mulheres, mm; quero que a lei seja respeitada, para sentir que ela me garante.
Nos países em que se há permitido que as mulheres exerçam cargos públicos, os respectivos parlamentares têm votado leis especiais nesse sentido. Aqui, não. Qualquer ministro, qualquer diretor se julga no direito de decidir sobre matéria tão delicada. É um abuso contra o qual eu já protestei e protesto.
Quando era ministro Joaquim Murtinho - da Fazenda - é preciso saber - uma moça requereu inscrever-se em concurso para o Tesouro. Sabem o que ele fez, depois de ouvir as repartições competentes? Indeferiu o pedido, por não haver lei que tal autorizasse.
Nos Telégrafos e Correios, as moças têm acesso, porque os respectivos regulamentos - autorizados pelo Congresso - permitem. Nas outras repartições, não; é abuso.
Mulher não é, no nosso direito, cidadão.
Está sempre em estado de minoridade. Por aí iria longe; por isso convém parar.
Spencer, na Introdução à Ciência Social, observa que desde que o serviço militar foi instituído na França, para todos os rapazes entre 18 e 21 anos, o que obrigou as raparigas a virem a fazer os serviços que competiam àqueles, as exigências de altura, talhe, etc., para os recrutas foram pouco a pouco diminuindo; o trabalho da mulher tinha influído na geração ...
Krafft-Ebbing diz, não sei onde, que a profissão da mulher é o casamento; por isso cumprimento dona Diana D'Anteno por ter escrito o seu interessante opúsculo - Quereis encontrar marido? - Aprendei! ...
Hoje 26.06.1919

terça-feira, 30 de março de 2010

Lima Barreto e a mulher


tema de Carmen - IV


Habeas corpus curioso

Na semana passada os jornais noticiaram um interessante julgado. Creio que é assim que os arcaizantes jurisconsultos denominavam as decisões de seus tribunais e juízes.
Trata-se de um cidadão de São Paulo que raptou uma moça com quem desejava casar-se. Consumado o casamento natural e adamítico, mesmo assim o pai, que, antes dele, havia negado consentimento para o consórcio burocrático, pretoriano ou eclesiástico, continuou na sua teima, não permitindo que o rapaz "reparasse a falta", sob a alegação de vários motivos que não vêm ao caso citar. Resolveram pessoas autorizadas pelo Estado internar a moça num asilo e o cidadão, que tinha as melhores disposições para aumentar o coeficiente de nupcialidade, foi muito juridicamente parar na cadeia, regularmente condenado, porque o seu desejo era casar-se com uma dada e determinada moçoila.
Esse fato jurídico-policial em todo o seu desenvolvimento prestar-se-ia a muitas considerações sutis sobre leis, tribunais e autoridades, se fosse tratado por outra pena que não a minha, inábil e canhestra.
Em todo o caso, porém, eu me animo a dizer alguma coisa, para sugerir a outras inteligências mais capazes que a minha, a necessidade de interessar-se por ele e comentá-lo como é merecedor.
Na primeira parte, o pai, que julgava muito mal o seu genro espontâneo, não o queria artificial, por isso o casamento não se efetuou, de acordo com a lei 142.238 A, de 30 de agosto de 1327, § 7°, letra alfa; permissão de 15 de outubro de 1447; carta régia de 18 de novembro de 1637; resolução da mesa do bem comum, de 2 de fevereiro de ln2; acórdão da Casa de Suplicação de 44 do Ramadã de 1427, da Hégira, etc., etc.
Bem. Toda a legislação romana, arábica, visigótica, portuguesa, etc., etc., dava-lhe poderes bastantes para impedir o matrimônio da filha menor. Concordo porque, a ter quem me governe, prefiro meus pais a todos os luminares do Catete, do Supremo Tribunal e do Congresso, mas o pai, que tinha esse extraordinário poder, não tinha o menor de dar destino conveniente à sua filha, tê-la em sua companhia, guiá-la para o arrependimento, como autoridade natural que era sobre a moça. Quem teria essa força senão ele? perguntarão os senhores. Deus? Não.
Sabem quem a tinha, acima do pai?
O curador de órfãos. É engraçado!
O pai pode impedir que a filha siga as inclinações do seu sexo, mas não pode tê-la sob a sua guarda e tutela. Quem pode indicar um guarda e um tutor conveniente não é ele; é um funcionário do Estado, que não conhece a moça, que nunca a viu mais gorda, não lhe sabe as qualidades, os defeitos, nem lhe adivinha a força dos sentimentos.
De acordo com a legislação dos iberos e lusitanos, dos carlovíngios e suevos, dos alanos e bizantinos, sobrepondo-se à autoridade paterna, que, no caso, me parece era pessoa perfeitamente capaz, determina que a moça seja internada numa casa de religiosas sem indagar se a menina gosta dessas coisas de missas e rezas.
O melhor, o mais lógico, era o que acontecia antigamente: os pais podiam meter as filhas, nas mesmas condições que a moça ora em causa ou em outras, no convento. A sua autoridade de pai era completa.
Hoje, com os nossos bizantinismos legais, judiciais e toda essa trapalhada de leis, códigos, portarias, acórdãos, a autoridade paterna é vacilante e incoerentemente exercida.
Uma hora, o pai pode impedir o casamento e o curador de órfãos pode anular a decisão paterna; outra hora, o pai impede como na sua primeira fase deste caso, mas logo vem o bacharel curador de órfãos, quando a paciente não era órfã, e grita tendo na mão todos os digestos de todas as legislações passadas, presentes e futuras de todas as nações do mundo:
- Você tem o direito de pôr impedimentos ao casamento da pequena, mas quem lhe indica a moradia sou eu. Você é pai para empatar o consórcio, mas não o é para dar comida e casa à filha. Quem dá o ensino não dá o pão.
É uma decisão das mais extraordinárias que se pode conceber e esperar em matéria de lógica. Os raciocínios se articulam aí tão perfeitamente para se chegar a conclusão tão fatal que, creio, nem na geometria do velho Euclides se encontrará demonstração tão rigorosamente arquitetada e perfeita.
Continuemos, porém, a estudar o caso do rapto de São Paulo.
O pai, que não queria a filha no asilo, veio afinal a dar o seu consentimento para o matrimônio.
Parecia que a causa estava resolvida; as autoridades jurídicas, porém, que até aí tinham julgado como único impedimento para se efetuar o consórcio a oposição do pai, vetaram o negócio.
Então, o "velho", a filha e o genro de fato ligaram-se e pediram habeas corpus para legalizar a união consumada dos dois últimos. Nesse ponto, começam a entrar os luminares da ciência jurídica; e o Tribunal Superior de Justiça de São Paulo, consoante um embrulho de leis enumeradas até no infinito, nega o habeas corpus, para que os pacientes realizem uma coisa que, quase sempre, os simples delegados obtêm, mais ou menos sob ameaças.
Toda essa barulhada que não quero esmiuçar mais vem mostrar que, além de inúteis, muitas dessas leis são contraditórias, umas destruindo as outras, e concorre não para simplificar a nossa vida e as nossas relações sociais, mas para complicá-las, obscurecer o que é claro e, quase sempre, dar razão a quem não a tem, mas que pode dispor de argumentadores e trapalhistas jurídicos de profissão que se fazem pagar caro.
Não é este o caso do habeas corpus de que trato; mas outros exemplos mais eloqüentes e elucidativos do que afirmo devem existir e existem por aí. É ter paciência de procurá-los.
O que se chama - "saber jurídico" - mete-me mais medo do que toda a ciência astrológica dos antigos; e se me ameaçassem de morte para estudar-lhe um pedaço que fosse, eu preferia mesmo morrer.
Quando será que os homens se hão de convencer da inutilidade e da importância de leis que só servem para complicar a sua existência e esmagar os fracos?
A. B. C. 14.02.1920
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Mais uma vez

Este recente crime da rua da Lapa traz de novo à tona essa questão do adultério da mulher e seu assassinato pelo marido.
Na nossa hipócrita sociedade, parece estabelecido como direito, e mesmo dever do marido, o perpetrá-lo.
Não se dá isto nesta ou naquela camada, mas de alto a baixo.
Eu me lembro ainda hoje que, numa tarde de vadiação, há muitos anos, fui parar com o meu amigo, já falecido Ari Toom, no necrotério, no Largo do Moura por aquela época.
Uma rapariga - nós sabíamos isso pelos jornais - creio que espanhola, de nome Combra, havia sido assassinada pelo amante e, suspeitava-se, ao mesmo tempo maquereau dela, numa casa da Rua de Santana.
O crime teve a repercussão que os jornais lhe deram e os arredores do necrotério estavam povoados da população daquelas paragens e das adjacências do Beco da Música e da rua da Misericórdia, que o Rio de Janeiro bem conhece. No interior da morgue, era a freqüência algo diferente sem deixar de ser um pouco semelhante à do exterior, e, talvez mesmo, em substância igual, mas muito bem-vestida. Isto quanto às mulheres - bem entendido!
Ari ficou mais tempo a contemplar os cadáveres. Eu saí logo. Lembro-me só do da mulher que estava vestida com um corpete e tinha só a saia de baixo. Não garanto que estivesse calçada com as chinelas, mas me parece hoje que estava. Pouco sangue e um furo bem circular no lado esquerdo, com bordas escuras, na altura do coração.
Escrevi - cadáveres - pois o amante-cáften se havia suicidado após matar a Combra - o que me havia esquecido de dizer.
Como ia contando, vim para o lado de fora e pus-me a ouvir os comentários daquelas pobres pierreuses de todas as cores, sobre o fato.
Não havia uma que tivesse compaixão da sua colega da aristocrática classe. Todas elas tinham objurgatórias terríveis, condenando-a, julgando o seu assassínio cousa bem-feita; e, se fossem homens, diziam, fariam o mesmo - tudo isto entremeado de palavras do calão obsceno próprias para injuriar uma mulher. Admirei-me e continuei a ouvir o que diziam com mais atenção. Sabem por que eram assim tão severas com a morta?
Porque a supunham casada com o matador e ser adúltera.
Documentos tão fortes como este não tenho sobre as outras camadas da sociedade ; mas, quando fui jurado e, tive por colegas os médicos da nossa terra, funcionários e doutos de mais de três contos e seiscentos mil-réis de renda anual como manda a lei sejam os juízes de fato escolhidos, verifiquei que todos pensavam da mesma forma que aquelas maltrapilhas rôdeuses do Largo do Moura.
Mesmo eu - já contei isto alhures - servi num conselho de sentença que tinha de julgar um uxoricida e o absolvi. Fui fraco, pois a minha opinião, se não era fazer-lhe comer alguns anos de cadeia, era manifestar que havia, e no meu caso completamente incapaz de qualquer conquista, um homem que lhe desaprovava a barbaridade do ato. Cedi a rogos e, até, alguns partidos dos meus colegas de sala secreta.
No caso atual, neste caso da rua da Lapa, vê-se como os defensores do criminoso querem explorar essa estúpida opinião de nosso povo que desculpa o uxoricídio quando há adultério, e parece até impor ao marido ultrajado (sic) o dever de matar a sua ex-cara-metade.
Que um outro qualquer advogado explorasse essa abusão bárbara da nossa gente, vá lá ; mas que o senhor Evaristo de Morais, cuja ilustração, cujo talento e cujo esforço na vida me causam tanta admiração, endosse, mesmo profissionalmente, semelhante doutrina é que me entristece.
O liberal, o socialista Evaristo, quase-anarquista, está me parecendo uma dessas engraçadas feministas do Brasil, gênero professora Daltro, que querem a emancipação da mulher unicamente para exercer sinecuras do governo e rendosos cargos políticos; mas que, quando se trata desse absurdo costume nosso de perdoar os maridos assassinos de suas mulheres, por isto ou aquilo, nada dizem e ficam na moita.
A meu ver, não há degradação maior para a mulher do que semelhante opinião quase geral; nada a degrada mais do que isso, penso eu. Entretanto...
Às vezes mesmo, o adultério é o que se vê e o que não se vê são outros interesses e despeitos que só uma análise mais sutil podia revelar nesses Iagos.
No crime da rua da Lapa, o criminoso, o marido, o interessado no caso, portanto, não alegou quando depôs sozinho que a sua mulher fosse adúltera; entretanto, a defesa, lemos nos jornais, está procurando "justificar" que ela o era.
O crime em si não me interessa, senão no que toca à minha piedade por ambos; mas, se tivesse de escrever um romance, e não é o caso, explicaria, ainda me louvando nos jornais, a cousa de modo talvez satisfatório.
Não quero, porém, escrever romances e estou mesmo disposto a não escrevê-los mais, se algum dia escrevi um, de acordo com os cânones da nossa crítica; por isso guardo as minhas observações e ilusões para o meu gasto e para o julgamento da nossa atroz sociedade burguesa, cujo espírito, cujos imperativos da nossa ação na vida animaram, o que parece absurdo, mas de que estou absolutamente certo - o protagonista do lamentável drama da rua da Lapa.
Afastei-me do meu objetivo, que era mostrar a grosseria, a barbaridade desse nosso costume de achar justo que o marido mate a mulher adúltera ou que a crê tal.
Toda a campanha para mostrar a iniqüidade de semelhante julgamento não será perdida; e não deixo passar vaza que não diga algumas toscas palavras, condenando-o.
Se a coisa continuar assim, em breve, de lei costumeira, passará a lei escrita e retrogradamos às usanças selvagens que queimavam e enterravam vivas as adúlteras.
Convém, entretanto, lembrar que nas velhas legislações, havia casos de adultério legal. Creio que Sólon e Licurgo os admitia ; creio mesmo ambos. Não tenho aqui o meu Plutarco. Seja, porém, como for, não digo que todos os adultérios são perdoáveis. Pior do que o adultério é o assassinato; e nós queremos criar uma espécie dele baseado na lei.
A.B.C. 1920
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Coisas jurídicas

Este negócio de assassinatos perpetrados pelos maridos, por adultério da mulher, dá lugar a muitas reflexões. A estupidez desses matadores é evidente; a sua perversidade não é menos.
Mas, os jornais, no dever de forçar a publicidade e provocar a curiosidade, trazem à tona cousas bem interessantes.
Não quero falar bobagens e quinquilharias da vida doméstica de um qualquer casal: não quero falar do caderno da venda nem das reclamações do vizinho; não quero falar do choro das crianças nem das palmadas paternas e maternas. Tudo isto é igual em todas as notícias desses casos tristes em que um bobo ou perverso de marido mata a mulher porque adulterou.
No último caso, porém, em que isso se deu, surgiu uma situação onde a bodega de lei dança uma dança macabra com a justiça e a razão. Relembro um pouco. Um sujeito qualquer que descobre a mulher em flagrante adultério. Tenta matá-la à faca; o amante se interpõe e o marido o mata. Bem. Até aí, nada de novo.
O que de novo aparece, é o código civil ou criminal ou lá que for. Qualquer de um desses famosos calhamaços diz que a essa pobre mulher que escapou de ser morta, e, se o não foi, deve-o à generosa coragem do seu amante; a essa pobre mulher o calham aço dá direito ao matador manqué de processá-la e arranjar a sua condenação a um ano de prisão celular.
Ora bolas! O que é mais grave é o adultério ou a tentativa de assassinato ? Então o tipo que me mata ou tenta matar-me porque furtei um pão à sua padaria, pode processar-me por crime de furto?
Então eu que atiro e firo o gatuno que me vai furtar as galinhas do quintal, posso processá-lo por crime de furto?
Já se viu uma coisa dessas?
Essa jurisprudência é uma coisa muito engraçada!
Careta 19.02.1921

sábado, 27 de março de 2010

Lima Barreto e a mulher


tema de Carmen - III


Os uxoricidas e a sociedade brasileira

...et je deteste l'orgueil qui veut qu'on s'honore et qu'on honore autrui, comme si quelqu'un dans Ia postérité d'Adam pouvait être trouvé digne d'honneur!
Anatole France, M. Jérôme Coignard

Entre os livros que me legou, ao morrer, o meu saudoso amigo Gastão Soares, a quem chamávamos "Chambá", quando era ele servente da Escola Politécnica, veio um muito curioso. É edição da antiga casa Laemmert ; e pelo tipo, papel e outros pequenos indícios, deve ela ser de 1840 a 1850. Tem por título Crimes espantosos e, tendo eu um único volume, o primeiro, não sei de quantos se compunha a obra.
Como diz o seu título, o volume é formado com a narração de vários e estranhos crimes ocorridos todos em França, pois é o trabalho - o que me esquecia de dizer - uma tradução da língua desse país para o português.
Em começo, eu quis desfazer-me do livro. Estava incompleta a obra; era evidentemente uma cousa de fancaria e não valia a pena figurar e ocupar lugar na minha modesta biblioteca. Pus-me, porém, a ler a tradução do senhor desembargador Henrique Veloso d'Oliveira, pois assim se chamava o tradutor, e não mais quis atirar fora a semi-secular publicação da defunta livraria Laemmert.
Narrava ela muitos crimes, alguns curiosos, inesperados e inexplicáveis, e outros de uma estupidez, de uma tal ferocidade, que me enchiam de pasmo haver homens que os cometessem.
Na categoria última, estava o assassinato de um filho pelo seu próprio pai. Um tal Gilberto Augusto de Vandègre, nobre de quatro quarteirões de nobreza, vivia, apesar da sua autêntica fidalguia, a vida de um simples camponês, ele e a família, nos arredores de Riom, Puy-de-Dôme, Auvergne.
Casado com uma mulher de extração obscura, todos os seus filhos cresceram com os gostos, afeições, hábitos e usos de humildes camponeses. Um deles, o mais velho, André, aí pelos trinta anos, muito naturalmente, veio a apaixonar-se por uma rapariga aldeã, Maria Bourdu, então criada de servir em casa de Gilberto Joannet,fermier vizinho dos Vandègres. Tratou de casar- se ; os pais, porém, puseram todos os obstáculos, já os que podiam com a sua autoridade doméstica, já os de natureza judiciária e extra judiciária. A mais encarniçada, contra a rapariga e o casamento, era a mãe; entretanto, como já lhes disse, a sua origem não era lá muito superior à de Maria Bourdu. Para encurtar razões: dias antes de realizar-se afinal o casamento, André foi morto a tiros pelo próprio pai.
Por que isso ? Embora fidalgo e nobre, a vida que o filho levava era de simples camponês, de pequeno cultivador aldeão, os seus gostos deviam ser equivalentes à vida que tinha; e, muito naturalmente, havia de afeiçoar-se por uma rapariga de seu âmbito de existência, que não podia, senão como ele, por exceção, ser nobre de nascimento. O pai mesmo já tinha dado exemplo semelhante com o seu matrimônio; mas, por que, então, se opunha e se opôs até com tão hediondo crime ao casamento do André ?
Foi por causa da honra, a Honra feudal da nobreza de antanho, que via como um crime aquela mésalliance. Naquela cabeça dura, limitada e estúpida, de nobre que se degradara em simples camponês, tinha sobrevivido a obsoleta e cruel concepção de Honra dos tempos antigos dos cavalheiros e barões.
Faltam-me elementos para afirmar que tudo o mais que caracterizou a antiga nobreza ele tivesse perdido; mas estou disposto a crer que sim.
Entretanto, o fato de seu filho nobre, unicamente pelo lado paterno, vir a casar-se com uma criada de servir, aparecia-lhe no lusco-fusco da sua fidalguia crepuscular como cousa horrenda, como uma ofensa aos seus foros de nobreza, a dissolverem-se em vulgar e plebeu camponês.
A honra, como todas as concepções que têm guiado as sociedades passadas, inspira atualmente muitos crimes ou os desculpa. Essas concepções não devem ser totalmente varridas da nossa mentalidade; há nelas muita cousa a aproveitar e as aquisições que nos trouxeram não são de desprezar; mas devem ser empregadas com precaução para nos serem úteis e nos servirem, de modo a não entrar em conflito com o nosso atual sentimento da vida. Elas devem perder alguma cousa, em face de nossas idéias contemporâneas sobre o mundo e o homem.
Pode alguém hoje desculpar ou perdoar o infame e hediondo crime que acabo de narrar, em nome da Honra? Não. Entretanto, a literatura e a crônica estão cheias deles, e embelezados, quando acontecidos nos tempos feudais.
Sabe-se bem a que torturas, cintos de casticidade, etc., etc., sofriam as mulheres dos tempos dos castelos e manoirs, quando os seus brutais maridos delas se afastavam em expedições e guerras longínquas. Tudo, em nome de quê? É de rir. Em nome da Honra. Pode-se admitir isso, atualmente?
Não há necessidade de responder...
Uma das sobrevivências nefastas dessa idéia medieval, aplicada nas relações sexuais entre o marido e a mulher, é a tácita autorização que a sociedade dá ao marido de assassinar a esposa, quando adúltera. No Brasil, então, é fatal a sua absolvição, no júri.
Eu mesmo já absolvi um destes matadores de sua própria mulher e contei isto, com o pseudônimo de "Doutor Bogóloff", na A Lanterna, em 28 de janeiro do ano passado.
Contei como o caso se deu, nas seguintes palavras que transcrevo, por me parecerem oportunas:
Dentre as muitas cousas engraçadas que me têm acontecido, uma delas é ter sido jurado em mais de uma sessão. Da venerável instituição, eu tenho notas que me animo a qualificá-las de judiciosas e, um dia, hei de publicá-las. Antes de tudo, declaro que não tenho sobre o júri a opinião dos jornalistas honestíssimos, nem tampouco a dos bacharéis pedantes. Sou de opinião que a instituição deve ser mantida, ou, por outra, voltar ao que foi. A lei, pela sua generalidade mesmo, não pode prever tais ou quais casos, os aspectos particulares de tais ou quais crimes; e só um tribunal como o júri, sem peias de praxistas, de autoridades jurídicas, de arestos, de comentadores trapalhões, etc., pode julgar com o critério muito racional e concreto da vida que nós vivemos todos os dias, desprezando o rigor abstrato da lei e os preconceitos dos juristas.
A massa dos jurados é de uma mediocridade intelectual pasmosa, mas isto não depõe contra o júri, pois nós sabemos de que força mental são a maioria dos nossos juízes togados.
A burrice nacional, sobretudo no seu quinhão parlamentar, julga que deviam ser os "formados" a compor unicamente o júri. Há nisto somente burrice, e às toneladas! Nas muitas vezes em que servi no tribunal popular, tive como companheiros de conselho 'doutores' de todos os matizes. Com raras exceções, todos eles eram excepcionalmente idiotas e os mais perfeitos eram os formados em direito.
Quase todos eles estavam no mesmo nível mental que o senhor Ramalho, oficial da Secretaria da Viação; que o senhor Sá, escriturário da Intendência; que o senhor Guedes, contramestre do Arsenal de Guerra, etc., etc.
Podem objetar que esses doutores todos exerciam cargos burocráticos. É um engano. Havia-os que ganhavam seu pão dentro das habilidades fornecidas pelo 'canudo', e eram bem tapados. Não há país algum em que, tirando-se à sorte os nomes de doze ou sete homens, dez ou cinco sejam inteligentes; e o Brasil, que tem os seus expoentes intelectuais no Aluísio de Castro, no Hélio Lobo e no Miguel Calmon, não pode fazer exceção da regra.
O júri, porém, não é negócio de inteligência. O que exige de inteligência é muito pouco, está ao alcance de qualquer. O que se exige lá é independência, coragem moral, força de sentimento da vida e firmeza de caráter; e tudo isto não há "lata doutoral" que dê. Essas considerações vêm-me ao bico da pena, ao ler que o júri, mais uma vez, absolveu um marido que matou a mulher, sob o pretexto de ser esta adúltera.
Eu julguei um crime destes e foi das primeiras vezes em que fui sorteado e aceito. O promotor era o senhor Cesário Alvim, que já é juiz de direito. O senhor Cesário Alvim fez uma acusação das mais veementes e perfeitas a que eu assisti no meu curso de jurado. O senhor Evaristo de Morais defendeu, empregando o seu processo predileto de ler autores cujos livros ele leva para o tribunal, e referir-se a documentos particulares que, da tribuna, mostra aos jurados. A mediocridade de instrução e inteligência dos juízes de fato e a sua falta de senso crítico fazem que fiquem eles impressionados com as "coisas de livro"; e o doutor Evaristo sabe bem disto e nunca deixa de recorrer ao seu processo predileto de defesa.
Mas... Eu julguei um uxoricida. Entrei no júri com reiterados pedidos de sua própria mãe que me foi procurar por toda a parte. A minha firme opinião era condenar o tal matador conjugal. Entretanto, a mãe... Durante a acusação fiquei determinado a mandá-lo para o xilindró... Entretanto, a mãe... A defesa do senhor Evaristo de Morais não me abalou... Entretanto, a mãe... Indo para a sala secreta tomar café, o desprezo que um certo Rodrigues, campeão de réu, demonstrava por mim, irritando-me, mais alicerçou a minha convicção de que devia condenar aquele estúpido marido... Entretanto, a mãe...Acabando os debates, Rodrigues queria responder os quesitos, sem proceder à votação prévia: 'Vamos acabar com isto, dizia ele: são quase seis horas e a mulher está à minha espera, para jantarmos'. Protestei e disse que não assinaria as respostas, se assim procedessem. Rodrigues ficou atônito; os outros confabularam, em voz baixa, com ele. Um veio ter a mim, indagar se eu era casado. Disse-lhe que não e ele concluiu: 'É por isso; o senhor não sabe o que são essas coisas'. Tomem nota desta... Afinal, cedi. A mãe... Absolvi o imbecil marido que lavou a sua "Honra", matando idiotamente uma pobre mulher que tinha todo o direito de não amá-lo mais, se o amou, porventura, algum dia, e amar um outro qualquer ... Eu me arrependo profundamente.
Arrependi-me e me arrependo hoje ainda; e, desde então, logo que se me oferece ocasião, tenho verberado semelhante prática, por isso que as constantes absolvições de uxoricidas dão a entender que a sociedade nacional, por um dos seus mais legítimos órgãos, a admite como normal e necessária.
Não diria a verdade se não dissesse que assim é. De alto a baixo, todos nós outorgamos esse direito de matar a mulher que prevarica, direito cruel e estúpido, ao marido infeliz.
Vão já muitos anos que eu, de calaçaria com Ari Foom, já falecido, fomos ao necrotério visitar o cadáver de uma rapariga do conhecimento daquele meu infeliz camarada, cujo maquereau, "por motivos de encontro de contas", conforme se suspeitou, a tinha assassinado e se suicidado em seguida, no interior de uma casa da rua de Santana.
O necrotério era no Largo da Batalha, e, ao redor, havia um poviléu de lavadeiras, cozinheiras, de desgraçadas raparigas na mais ínfima degradação social, etc., etc. Pois bem: dos grupos de raparigas dessa natureza, só se ouvia a condenação da rôdeuse assassinada que elas julgavam casada com o seu assassino, e isto em termos bem duros e crus, mas que eu posso pôr aqui em mais corteses: "Bem-feito! Por que ela foi enganar o marido?"
Este fato muito me surpreendeu, a ponto de tomar dele notas mais desenvolvidas que ainda tenho nos meus papéis.
Levado por esse espírito de crueldade, de inumanidade em que entram erros de uma antiga e tola concepção da nossa natureza, no júri da semana passada, quando foi julgado um uxoricida, o trabalho do promotor, o meu amigo doutor Martins Costa, consistiu na sua acusação ao réu, em tentar provar que a assassinada não era adúltera. Admiro que o doutor Martins Costa, uma inteligência lúcida, moderna, que já de há muito rompeu com esses preconceitos, da nossa farisaica sociedade, fizesse tal coisa. Não podia ele, em sã consciência, desculpar o assassinato da mulher, por ser ela adúltera. Não há lei que tal autorize e nós, hoje, os avançados, não podemos compreender que tal cousa seja consagrada com absolvições iníquas, que desculpem o assassino e animem outros.
Estamos a toda a hora mudando; não só nós, como a própria natureza. As variações do nosso eu, de segundo para segundo, são insignificantes; mas em horas, já são palpáveis; em meses, já são ponderáveis; e, em anos, são consideráveis. Não é só o nosso corpo que muda; mas também é o nosso espírito e o nosso pensamento. Que se dirá, então, no tocante às nossas inclinações sentimentais, e, sobretudo, nesta parte tão melindrosa de amor, no que se refere à mulher?
Então, quando tudo muda, tudo varia, ela não pode nem deve variar, mudar, transformar-se, uma vez que parece ser a essência da natureza inteira, de que nós também fazemos parte, a mudança?
Por economia de esforço sentimental, por hábito, pelas aquisições que a marcha da sociedade tem trazido à nossa "psique", somos levados insensivelmente à monogamia e a viver durante a vida toda com uma única mulher; mas não é geral e não o pode ser, por não ser o espontâneo da nossa organização, quer a fisiológica, quer a psicológica. Esta então é que reage poderosamente sobre a mulher para levá-la ao adultério.
Em geral, na nossa sociedade burguesa, todo o casamento é uma decepção. É, sobretudo, uma decepção para a mulher. A sua educação estreitamente familiar e viciada pelas bobagens da instrução das Dorotéias (jesuítas de saia) e outras religiosas; a estreiteza e monotonia de suas relações, numa única classe de pessoas, às vezes mesmo de uma só profissão, não dão às moças, que, comumente, se casam em verdes anos, critério seguro para julgar os seus noivos, senão os exteriores da fortuna, títulos, riqueza e um nome mais assim.
Mas, quando eles se despem, um diante do outro, quando eles consumam o ato do casamento, a mulher ganha logo um outro sentido, muda não só de corpo, ancas, seios, olhar, etc., mas de inteligência e pode julgar então, com muita penetração, o que é e vale o seu senhor para toda a vida. O menor defeito dele, devido ao sentimento da perpetuidade de sua submissão àquele homem, amplia-se muito; e ela se aborrece, sente a longa vida que ainda tem de viver, sem uma significação qualquer, sem sentido algum, sem alegria, sem prazer. O homem, quando chega a esse sem i-aniquilamento da Esperança, tem o álcool, a orgia, o deboche, para se atordoar; a mulher só tem o amor. Vai experimentar e, às vezes, é feliz.
Nós todos conhecemos desses casais irregulares que têm vivido longas vidas felizes; às vezes, porém, não é e é assassinada broncamente, sem o perdão dos parentes, e das amigas, das conhecidas, de ninguém !
Lembro aqui que, quando saí do júri a que aludi mais acima, os irmãos da vítima vieram-me agradecer o ter eu absolvido o matador de sua irmã...
Contra um ignóbil e iníquo estado de espírito dessa ordem, que tende a se perpetuar entre nós, aviltando a mulher, rebaixando-a ao estado social da barbaria medieval, de quase-escrava, sem vontade, sem direito aos seus sentimentos profundos, e tão profundos são que ela joga no satisfazê-los a vida ; degradando-a à condição de cousa, de animal doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos, com direito de vida e morte sobre ela; não lhe respeitando a consciência e a liberdade de amar a quem lhe parecer melhor, quando e onde quiser; - contra tão desgraçada situação da nossa mulher casada, edificada com a estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem as borra-botas feministas que há por aí. Elas só tratam de arranjar manhosamente empregos públicos, sem lei hábil que tal permita. É um partido de "cavação", como qualquer outro masculino.
Voltando, porém, ao último júri de uxoricídio, eu notei que os jornais pouco falaram na defesa do senhor Evaristo de Morais, a não ser para dizer que ele se alegrava de ver o réu cercado, ali, de muitos camaradas. Isto traz água no bico; mas quero crer que o júri decidiu com completa liberdade de ação.
O outro advogado, porém, teve a honra de ser resumido com mais largueza; e a sua defesa, que foi brilhante, merece por isso alguns comentários, tanto mais que, segundo me parece, não é a de advogado profissional.
Sobre a parte sentimental, que é a única forte e lógica do seu discurso, porque também há uma lógica dos sentimentos, nada posso dizer, porquanto não conheço nem de vista o seu constituinte; e, escrevendo isto aqui, não me anima nenhum sentimento de animadversão contra o pobre moço que ele defendeu.
Continuo aqui uma campanha a que me impus, de combater essa toleima espiritual e sentimental que leva um rapaz como o seu colega que era o réu, a praticar o maior, e talvez o único crime absoluto, que é o homicídio, por causa de abusões e superstições burguesas, religiosas e feudais.
O jovem advogado e oficial de Marinha - vem a pêlo falar nisso - conforme li no jornal (Correio da Manhã, de 26 de fevereiro de 1919), disse que o réu:
Levantou o seu inexprimível grito de revolta contra esse crime de adultério que não tem nenhuma circunstância atenuante, que o desculpe.
Diga-me uma cousa, senhor tenente : e o de assassinato tem? Qual o mais grave dos dois? Qual dos dois invade sacrilegamente o domínio das forças misteriosas que nos governam ? Diga-me, senhor tenente: quem tem o direito de matar?
O senhor tenente talvez ficasse um pouco embaraçado para responder-me ; eu continuo, mas toco em outros pontos. Por que acusar este ou aquele? Por que, cheio de sua enfatuação militar, chamar de reles "primo Basílio" de lugarejo a terceira personagem da tragédia, aquela que ficou nos bastidores?
O culpado não é ela, não é ele, não é estoutro. É a fatalidade da nossa carne, dos nossos ossos, do nosso sangue de homem; e foram também e, especialmente, os sonhos dela e essa necessidade de fugir do plúmbeo tédio da vida terrena, que é muito poderoso na mulher, para os paraísos artificiais, da imaginação de cada um. Continuemos, para não perder tempo!
Como diz o senhor que o assassinato foi conseqüência do "desespero que se não domina, do ato reflexo que se não contrai"? Curiosa espécie de desespero é esse que, primeiramente, faz a seu portador ir pacientemente à cidade, comprar revólver, para depois emitir ele o ato reflexo que não pode contrair, sob o império da paixão cega !
O segredo de sua defesa, onde o senhor tenente denunciou bem o ponto fraco do réu, é aquele em que indica como um dos culpados :
a sociedade corrompida que com a sua indiferença estimula o adultério e dele só tira motivos de galhofas e de irrisão para o marido.
Quase sempre é esse terror do ridículo, mais, talvez, do que as sobrevivências da Honra medieva; é o pavor pusilânime do cochicho da maledicência que leva os maridos em tais condições a matar as suas mulheres infiéis. Eles não temem sofrer na sua consciência a opressão do remorso de um homicídio; eles temem os boquejos das esquinas, das confeitarias, dos botequins.
Não me animo a comentar semelhante preferência: cada qual pensa e age, segundo o seu próprio entendimento, e de acordo com a sua lógica interna.
Eles, esses maridos, não são absolutamente passionais. Seriam passionais, se entre a concepção do crime e a sua execução a quantidade de tempo que medeasse fosse quase nenhuma, e, solicitados imperiosamente pela paixão, agissem quase instantaneamente. Tal não se dá; eles se armam e precavidamente esperam a ocasião propícia. É tomo se Otelo fosse procurar a adaga ou o espadagão, para matar Desdêmona... Todos, ou quase todos, esses crimes por adultério, bem analisados, resultam na convicção de que são perfeitamente premeditados; e no ponto relativo à individuação da pena, o jovem defensor foi infeliz.
Quanto mais bem-educado é o réu, menos direito, se assim me posso exprimir, tem de o ser por assassinato. A instrução e a educação são freios que se põem aos nossos fundamentais e maus impulsos de matar; e poucos são aqueles que as podem receber, por isso devem ser mais responsáveis os que as têm, do que os outros, órfãos desses dons inestimáveis.
Vão longas estas linhas; e eu não posso terminá-las sem confessar que tenho muita pena dessa pobre moça que teve a coragem moral de dizer ao marido que o filho a palpitar-lhe no ventre não era do esposo. "Sim", disse ela, "é dele; e só a ele é que eu amo" (Correio da Manhã, de 25-2-19).
Ainda bem que não negou a sua falta, como tantos que negam os seus crimes evidentes; é uma heroína de Ibsen. Onde está a honra? Decididamente a descendência de Adão não pode falar em semelhante senhora...
Revista Contemporânea 08.03.1919

terça-feira, 23 de março de 2010

Lima Barreto e a mulher


tema de Carmen - II


Lavar a honra, matando?
Dentre as muitas coisas engraçadas que me têm acontecido, uma delas é ter sido jurado, e mais de uma vez. Da venerável instituição, eu tenho notas que me animo qualificá-las de judiciosas, e um dia, desta ou daquela maneira, hei de publicá-las. Antes de tudo, declaro que não tenho sobre o júri a opinião dos jornalistas honestíssimos, nem tampouco a dos bacharéis pedantes. Sou de opinião que ela deve ser mantida, ou por outra, voltar ao que foi. A lei, pela sua generosidade mesmo, não pode prever tais e quais casos, os aspectos particulares de tais e quais crimes; e só um tribunal como o júri, sem peias de praxistas, de autoridades jurídicas, etc., pode julgar com o critério muito racional e concreto da vida que nós vivemos todos os dias, desprezando o rigor abstrato da lei e os preconceitos dos juristas.
A massa dos jurados é de uma mediocridade intelectual pasmosa, mas isto não depõe contra o júri, pois nós sabemos de que força mental são a maioria dos nossos juízes togados.
A burrice nacional julga que deviam ser os formados a compor unicamente o júri. Há nisso somente burrice, e às toneladas. Nas muitas vezes em que servi no tribunal popular, tive como companheiros doutores de todos os matizes. Com raras exceções, todos eles eram excepcionalmente idiotas e os mais perfeitos eram os formados em direito.
Todos eles estavam no mesmo nível mental que o senhor Ramalho, oficial da Secretaria da Viação ; que o senhor Sá, escriturário da Intendência ; que o senhor Guedes, contramestre do Arsenal de Guerra. Podem objetar que esses doutores todos exerciam cargos burocráticos. É um engano. Havia os que ganhavam o seu pão dentro das habilidades fornecidas pelo canudo e eram bem tapados.
Não há país algum em que, tirando-se à sorte os nomes de doze homens, se encontrem dez de inteligentes; e o Brasil, que tem os seus expoentes intelectuais no Aluísio de Castro e no Miguel Calmon, não pode fazer exceção à regra.
O júri porém não é negócio de inteligência. O que se exige de inteligência é muito pouco, está ao alcance de qualquer. O que se exige lá é força de sentimento e firmeza de caráter, e isto não há lata doutoral que dê. Essas considerações vêm ao bico da pena, ao ler que o júri mais uma vez absolveu um marido que matou a mulher, sob o pretexto de ser ela adúltera.
Eu julguei um crime destes e foi das primeiras vezes que fui sorteado e aceito. O promotor era o doutor Cesário Alvim, que já é juiz de direito. O senhor Cesário Alvim fez uma acusação das mais veementes e perfeitas que eu assisti no meu curso de jurado. O senhor Evaristo de Morais defendeu, empregando o seu processo predileto de autores cujos livros ele leva para o tribunal, e referir-se a documentos particulares que da tribuna mostra aos jurados. A mediocridade de instrução e inteligência dos jurados fica sempre impressionada com as coisas do livro ; e o doutor Evaristo sabe bem disto e nunca deixa de recorrer ao seu predileto processo de defesa.
Mas... Eu julguei um uxoricida. Entrei no júri com reiterados pedidos de sua própria mãe, que me foi procurar por toda a parte. A minha firme opinião era condenar o tal matador conjugal. Entretanto a mãe... Durante a acusação, fiquei determinado a mandá-lo para o xilindró... Entretanto a mãe... A defesa do doutor Evaristo de Morais não me abalou... Entretanto a mãe... Indo para a sala secreta, tomar café, o desprezo que um certo Rodrigues, campeão de réu, demonstrava por mim, mais alicerçou a minha convicção de que devia condenar aquele estúpido marido... Entretanto a mãe... Acabando os debates, Rodrigues queria lavrar a ata, sem proceder à votação dos quesitos. Protestei e disse que não a assinaria se assim procedessem. Rodrigues ficou atônito, os outros confabularam com ele. Um veio ter a mim, indagou se eu era casado, disse-lhe que não e ele concluiu: "É por isso. O senhor não sabe o que são essas coisas. Tomem nota desta..." Afinal cedi... A mãe... Absolvi o imbecil marido que lavou a sua honra matando uma pobre mulher que tinha todo o direito de não amá-lo, se o amou algum dia, e amar um outro qualquer... Eu me arrependo profundamente.
Doutor Bogóloff
Lanterna 28.01.1918

Os matadores de mulheres
Preocupações de outras ordens não me têm permitido escrever sobre coisas diárias; mas este caso de Niterói, caso do Filadelfo Rocha, fez-me voltar de novo à imprensa quotidiana.
Eu não me cansarei nunca de protestar e de acusar esses vagabundos matadores de mulheres, sobretudo, como no caso presente, quando não têm nem a coragem do seu crime.
Eu conheço este Filadelfo desde tenente. Sou funcionário da Secretaria da Guerra há quinze anos. Ele nunca passou de um tarimbeiro vulgar, feito pelo Floriano oficial. De bajulação em bajulação, foi subindo, até que, com a sua máxima bajulação ao Senhor Hermes da Fonseca, foi levado a ser comandante da polícia de Niterói.
Ele é quase analfabeto, sem nenhuma inteligência, nunca fez o mínimo esforço mental; entretanto, agora, coberto pelo opróbrio de um assassinato, insinua que o fez porque o seu rival era um simples funileiro. Mas onde foi Filadelfo encontrar superioridade suficiente para julgar-se mais do que o tal bombeiro ? Este Filadelfo ignorante, bajulador, que eu via pelos corredores do Ministério da Guerra a pegar na casaca deste ou daquele graúdo, para não comandar as suas praças, é, por acaso, alguma coisa?
Com essa tatuagem de galões, eles querem fazer das suas, matando as mulheres a torto e a direito. Eu me refiro simplesmente a semelhantes sujeitos. E digo isso, não por covardia, mas em atenção à verdade.
Por exemplo : este senhor Faceiro, que, ontem ou anteontem, matou a mulher, porque teve a franca, a franca franqueza orgulhosa de dizer que a sua gravidez era do seu amor e não dele, não me merece a mínima piedade; mas há tantos outros que eu estimo... Adiante.
A mulher não é propriedade nossa e ela está no seu pleno direito de dizer donde lhe vêm os filhos.
Mas a questão não é esta. Eu falava do Filadelfo, do pequenino Filadellfo, a quem eu queria dizer simplesmente que nem ao menos ele teve ou tem coragem do seu crime. Espécie de Mendes Tavares!
Basta.
Lanterna 18.03.1918

Como budistas...
Tenho tanto que escrever, sobre coisas tão interessantes, que, agora, ao tratar dessa notícia de polícia de São Paulo, eu me arrependo. Tinha de falar do Sol de Portugal, do José Vieira; tinha de falar desse extraordinário discurso do senhor doutor Ildefonso Albano, deputado federal.
Há tanta cousa tão interessante, num e noutro livro, que eu me reservo para dizer tudo o que de bom encontrei neles, mais tarde.
O que me absorve agora o pensamento é este caso dessa pobre moça que matou o marido em São Paulo. É essa moça que, como todas as moças, não tem experiência da vida e são levadas a julgá-la da maneira mais infame que os charlatães a receitam.
Ela pensou que seu marido fosse um homem ; ele, quando ela o conheceu direito, não passava de um caçador de dotes.
Todos nós, inclusive eu, malgré tout, estamos arriscados a casar com "moça rica"; mas de que nós não estamos ameaçados é de sermos maus para essas moças.
O que há nisto tudo é a combinação do nosso espírito muito brasileiro de acreditar que o "doutor" é tudo e a crença universal do dinheiro.
Essa moça não se casaria com esse moço, se não o visse armado de um "anel"; ela não daria seu corpo se a ambiência social não dissesse que, com a tal carta, ele valia muitas cousas.
E ele não iria procurá-la, se não estivesse armado do que a bobagem dos jornais chama "pergaminho".
Houve um mútuo engano. Ele procurou enganar a mulher com o título que o Belisário Pena diz ser científico ; ela procurou enganá-lo com aquilo com que os homens enriquecem.
Mas todos os dois se esqueceram que entre mulher e marido não há furtos. Está no Código Penal.
Entre os dois só deve haver a máxima lealdade. Todos os dois devem entrar na sociedade conjugal com a máxima boa vontade e admiração um pelo outro. O que não pode continuar, é que se faça da mulher escada para subir.
Nós temos direito de ter ambições. Eu mesmo quero morrer em Veneza, para ver se ainda lá encontro a minha grande paixão - Desdêmona. O que eu não posso compreender, é que um homem ambicioso transforme a sua mulher, o seu maior amigo, a sua própria filha, em instrumento da sua ambição.
Todos esses entes são sagrados; para todos eles, o nosso amor e a nossa piedade devem ser coisa muito pouca.
Quando a gente se quer bater, tem muitos homens por diante; e não precisa procurá-los em sua própria casa.
A vida, apesar de não poder ser uma felicidade, deve ser uma cousa heróica. E não há homem que tenha esse sentimento de heroísmo que não o deseje encontrar nas mulheres escolhidas.
A mulher não é instrumento de ambição ; a mulher é um consolo e um conforto para os nossos vícios e as nossas desgraças.
Já fui muitas vezes jurado; já sofri muito por causa disso; mas, se eu fosse escolhido para o júri de dona Julieta Melilo, eu a absolveria.
Absolvia, minha senhora, porque não gosto desses seres cheios de títulos, que não amam a mulher a quem eles deviam amor.
Como eu sou budista, o que eu quero é o esquecimento da vida; e não mais tratarei de semelhante caso.
A.B.C. 31.08.1918

sexta-feira, 19 de março de 2010

Lima Barreto e a mulher




“tema de carmen”

A lei
Este caso da parteira merece sérias reflexões que tendem a interrogar sobre a serventia da lei.
Uma senhora, separada do marido, muito naturalmente quer conservar em sua companhia a filha; e muito naturalmente também não quer viver isolada e cede, por isto ou aquilo, a uma inclinação amorosa.
O caso se complica com uma gravidez e para que a lei, baseada em uma moral que já se findou, não lhe tire a filha, procura uma conhecida, sua amiga, a fim de provocar um aborto de forma a não se comprometer.
Vê-se bem que na intromissão da "curiosa" não houve nenhuma espécie de interesse subalterno, não foi questão de dinheiro. O que houve foi simplesmente camaradagem, amizade, vontade de servir a uma amiga, de livrá-la de uma terrível situação.
Aos olhos de todos, é um ato digno, porque, mais do que o amor, a amizade se impõe.
Acontece que a sua intervenção foi desastrosa e lá vem a lei, os regulamentos, a polícia, os inquéritos, os peritos, a faculdade e berram: você é uma criminosa! Você quis impedir que nascesse mais um homem para aborrecer-se com a vida!
Berram e levam a pobre mulher para os autos, para a justiça, para a chicana, para os depoimentos, para essa via-sacra da justiça, que talvez o próprio Cristo não percorresse com resignação.
A parteira, mulher humilde, temerosa das leis, que não conhecia, amedrontada com a prisão, onde nunca esperava parar, mata-se.
Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que, para proteger uma vida provável, sacrifica duas? Sim, duas, porque a outra procurou a morte para que a lei não lhe tirasse a filha. De que vale a lei?
Correio da Noite 07.01.1915

Não as matem

Esse rapaz que, em Deodoro, quis matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher.
O caso não é único. Não há muito tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas do Estácio, matando-se em seguida. A moça com a bala na espinha veio morrer, dias após, entre sofrimentos atrozes.
Um outro, também, pelo carnaval, ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montões de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e matou-a.
Todos esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros.
Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. Não sei se se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada ; mas o certo é que estes não nos arrebatam senão o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão.
O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.
Nós já tínhamos os maridos que matavam as esposas adúlteras ; agora temos os noivos que matam as ex-noivas.
De resto, semelhantes cidadãos são idiotas. É de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura mulher venha para o tálamo conjugal com a máxima liberdade, com a melhor boa vontade, sem coação de espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes desejos; como é então que se castigam as moças que confessam não sentir mais pelos namorados amor ou coisa equivalente?
Todas as considerações que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser desprezadas.
Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação.
O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas a influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que só entre selvagens deve ter existido.
Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor. Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-Ia nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.
Deixem as mulheres amar à vontade. Não as matem, pelo amor de Deus !
Correio da Noite 27.01.1915

sábado, 13 de março de 2010

literatura feminina\feminista :temores...


ainda (e sempre) pelo 'mês da mulher'.


Quem tem medo da literatura feminina / feminista ?
Preconizada por Virginia Woolf, na década de 1930 [Virginia, irônica e realista, em conferência para jovens universitárias inglesas no Giron College, estabelecia as condições mínimas para que as mulheres atravessassem a fronteira física e psíquica da criação literária, ao declarar : “tendo um quarto para si e renda própria”__ ditames abrigados no livro A Room of One’s Own (Um quarto todo seu.) ] , defendida pelas feministas européias de 1970, uma “escrita feminina” ganhou corpo (e forma) na literatura, sim senhor __ queira-se ou não. Mulheres escritoras (ficcionais e não-ficcionais) têm voz própria, estilo próprio, linguagem própria, temática própria , longe de “simplesmente reproduzirem modelos falocêntricos, caracterizados por racionalismos e pragmatismos” como acentua a ensaísta Luce Irigaray.
A contrapartida, segundo ela, é uma “subjetividade feminina, marcada por uma escrita mais sensorial e sensível, mais poética, lírica mesmo, uma escritura com o corpo e a alma, maior liberdade de escrita”
Apesar das (para alguns, incontornáveis) dificuldades para definição precisa do que seja uma escrita feminina, eu particularmente entendo existir uma ‘literatura feminina’ com elementos, valores e vetores próprios __ que só fazem acrescentar e enriquecer a Literatura (e a Cultura, em geral). Fácil identificar entre escritoras brasileiras e estrangeiras contemporâneas uma escrita nitidamente feminina __ com suas obras carregadas de suas características específicas.
existe uma voz especificamente feminina ?
“Femininos,sim, são os textos que apresentem determinadas marcas, que percorrem o campo semântico de falta, silêncio, indizível, confessional, subjetivo, íntimo, prevalência do eu-narrador, visão interior, esgarçamento do sentido da palavra e da ordem do discurso, dilaceramento da escrita,busca da identidade, descontínuo, atópico, atemporal, extático, etc...”, sentencia a ensaista Vera Queiroz.Segundo Luiza Lobo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, em "A literatura feminina na América Latina", “(...) o cânone da literatura de autoria feminina se modificará muito se a mulher retratar vivências resultantes não de reclusão ou repressão, mas sim a partir de uma vida de sua livre escolha, com uma temática, por exemplo, que se afaste das atividades tradicionalmente consideradas ‘domésticas’ e ‘femininas’ e ainda de outros estereótipos do ‘feminino’ herdados pela história, voltando-se para outros assuntos habitualmente não associados à mulher até hoje”. Para Luiza, “o termo ‘feminino’ vem sendo associado a um ponto de vista e uma temática retrógrados, o termo ‘feminista’, de cunho político mais amplo, em geral é visto de forma reducionista, só no plano das ciências sociais. Entretanto, deveria ser aplicado a uma perspectiva de mudança no campo da literatura. A acepção de literatura ‘feminista’ vem carregada de conotações políticas e sociológicas, sendo em geral associada à luta pelo trabalho, pelo direito de agremiação, às conquistas de uma legislação igualitária ao homem no que diz respeito a direitos, deveres, trabalho, casamento, filhos etc”.
“Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos”. Na afirmação de uma personagem do romance As meninas (1975), de Lygia Fagundes Teles, parece estar a raiz do fenômeno de transformação vivenciado pela mulher desde o século passado. Qual seria afinal uma “linguagem feminina” na arte e como é um discurso essencialmente ‘feminino’? A crítica argentina Marta Traba costuma apontar como características ‘femininas’ na literatura contemporânea “a palavra fragmentada, a tendência a impregnar a palavra escrita com elementos de oralidade, o discurso voltado para ‘o sujeito que fala’, a projeção da linguagem no nível simbólico, a tendência a explicar o universo em vez de interpretá-lo, a predileção pelo detalhe”.
Nelly Novaes Coelho , autora do Dicionário crítico de escritoras brasileiras , meticuloso registro da produção literária feminina brasileira de ontem e de hoje, e de A literatura feminina no Brasil contemporâneo , alerta para o fato de que toda criação literária está condicionada à cultura na qual se encontra imersa : daí, derivam certas peculiaridades na criação literária de um e de outro, e nessa perspectiva pode-se então falar em “literatura feminina” e em “literatura masculina”.
Ao abordar a questão de haver ou não uma ’escrita feminina’ distinta da ’escrita masculina’, Nelly observa que a linha francesa, liderada por Hélène Cixous, chama a atenção para a peculiaridade de escrita feminina, a ‘écriture féminine’ — um conceito que estabelece a diferença feminina na língua e no texto, possibilitando uma maneira de se discutir os escritos que reafirmam o valor do feminino; mas tecnicamente, não se poderia falar em literatura "feminista" antes que o termo fosse cunhado, na década de 1960 — “como uma espécie de respiração, de sopro vital, de silêncios densos, algo meio mágico que diferenciaria a voz da mulher. Realmente isso existe. É realmente uma espécie de magia vocabular, inerente às grandes criações, a magia da palavra poética autêntica, mesmo quando escrita em prosa”.
Sem dúvida alguma, a literatura de autoria feminina já criou seu espaço próprio dentro do amplo universo literário mundial. Desde fins do século XIX e principalmente no século XX, a principal transformação pela qual passou a literatura de autoria feminina é a conscientização da escritora quanto a sua liberdade e autonomia e a possibilidade de trabalhar e criar sua independência financeira. Na verdade, as grandes mudanças que o século XX trouxe para a vida da mulher foram fator determinante para o surgimento e expansão de uma literatura feminina __ reflexo e manifestação dos novos papéis da mulher na sociedade e no mundo. A gestação dessa ‘nova mulher’ deu-se pelo amadurecimento crescente de sua consciência crítica, que determinou uma transformação radical da escrita realizada pela mulher : de uma literatura lírica-sentimental, de ‘contemplação emotiva’, para uma literatura ética-existencial, de ‘ação ética-passional’__ um caminho trilhado , e nitidamente percebido no meio exterior (por críticos, leitores, editores, agentes, midia, etc), na área da prosa ficcional, da poesia e do teatro.
Na nova ficção feminina, o amor __ codimentado pelo erotismo, por vezes exacerbado __deixa de ser o tema absoluto para ceder espaço a sondagens existenciais, ao ludismo e ao feérico na invenção literária, ao questionamento político e filosófico.Tudo isso traduzido e materializado em experiências formais e estilísticas : fragmentação narrativa, intertextualidade, o foco narrativo múltiplo, o intenso fluxo-de-consciência, o registro labiríntico no lugar da estrutura linear, a exploração dos mitos,do esotérico, a clara opção a pela ‘linguagem do corpo’, “a procura do sentido das coisas” __ esta talvez, a expressão-chave da escrita feminina contemporânea.
uma escrita brasileira, sim
No Brasil, o surgimento de mulheres escritoras ocorre principalmente a partir do século XIX, no contexto da crescente importância da imprensa e do início de movimentos em prol dos direitos das mulheres. Quando as questões relativas à emancipação feminina começaram a aparecer na imprensa, as mulheres se organizavam associativamente e passaram a reivindicar maior participação na sociedade em mudança. Ocorreram entao os primeiros movimentos organizados tendo como principal objetivo a melhoria das condições de vida da mulher — desde que orientada pela ótica masculina. [afinal, na constituição da família brasileira sempre imperou o pater familias, ou seja, o poder nas mãos do homem, responsável não só por seus escravos e agregados como também por sua mulher, filhos e netos — a família patriarcal como a célula mais importante da formação da sociedade; este poder social do homem advinha do direito consuetudinário e as próprias leis brasileiras asseguravam-lhe autoridade : os direitos civis no Brasil, basicamente, até 1890, eram uma extensão dos de Portugal, isto é, eram regidos pelas Ordenações Filipinas — o primeiro Código Civil Brasileiro só vigorou a partir de 1917. Na família monogâmica, criada para preservar o poderio econômico dentro de um mesmo grupo sangüíneo, exigia-se que a sexualidade feminina fosse rigorosamente controlada, pois era a única forma de que o homem dispunha para assegurar a paternidade e a herança familiar. ]
O que não impediu, porém, a formação de uma linhagem de mulheres militantes dentro da literatura (como personagens ou como autoras) e da sociedade (na militância política, por meio sobretudo do veículo jornalístico) que desenvolveram trabalho emancipatório preparador das condições que propiciariam, no século XX, a implementação e solidificação de um movimento que se poderia chamar de estética feminista. Na literatura brasileira, considera-se o romance Úrsula (1859), da maranhense Maria Firmina dos Reis, a primeira narrativa de autoria feminina. O romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da história. Contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da protagonista, vítima da sanha do cruel perseguidor.
No entanto, de modo geral a escrita praticada por mulheres esteve ausente dos anos decisivos para a formação da literatura brasileira durante o século XIX , na vigência do Romantismo . Se não totalmente ausente do mercado, restrita a colaborações em periódicos de vida curta ou de público definido pela circulação no espaço doméstico (o que, de resto, significa em meados dos 1800 uma confirmação antecessora à interpretação de Virgina Woolf, da década de 1930).As primeiras manifestações de escrita feminina levadas oficial e intensamente ao público externo vieram no final do século XIX, já na ‘vigência’ do Realismo na literatura brasileira [paradoxal ? não seria o Romantismo ‘mais apropriado’ para a expressão da écriture féminine?]
Loas, todas as loas, portanto, para as pioneirissimas Rita Joana de Souza, Ângela do Amaral Rangel, Barbara Heliodora, Maria Josefa Barreto, Beatriz Francisca de Assis Brandão, Maria Clemência Silveira, Delfina Benigna da Cunha, Ildefonsa Laura Cesar, Ana Euridice de Barandas, Nisia Floresta, Violante de Bivar e Velasco, Clarinda da Costa Siqueira, Joana Paula de Noronha, Ana Luisa de Azevedo Castro, Maria Firmina dos Reis, Adelia Fonseca, Maria Benedita de Oliveira Barbosa (Zaira Americana), Maria Angélica Ribeiro, Isabel Gondim, Maria do Carmo de Melo Rego, Rita Barém de Melo, Joaquina Meneses de Lacerda, Ana Ribeiro, Julia da Costa, Amália Figueiroa, Luciana de Abreu, Serafina Rosa Pontes, Adelina Vieira, Josefina Álvares de Azevedo, Carmem Dolores, Narcisa Amália, Gabriela de Andrada, Maria Benedita Bormann, Inês Sabino, Anália Franco, Delminda Silveira, Adelaide de Castro Guimarães, Honorata Carneiro de Mendonça, Carmen Freire, Emilia Freitas, Vitalina de Camargo Queirós, Ana Facó, Francisca Izidora da Rocha, Maria Carolina Corcoroca de Souza, Ana Autran, Corina Coaraci, Luísa Leonardo, Alexandrina Couto dos Santos, Ana Aurora do Amaral Lisboa, Revocata Heliosa de Melo, Anna Alexandrina Cavalcanti de Albuquerque.
Até entrarmos o século XX com Júlia Lopes de Almeida, chegar a Gilka Machado e Maria Lacerda de Moura.
Contemporaneamente, a escrita feminina brasileira encontra expoentes, entre outras, em: Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria Alice Barroso, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César ,Hilda Hirst, Adélia Prado, Lya Luft,Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Nilma Gonçalves Lacerda, Maria Adelaide Amaral, Luzilá Gonçalves Ferreira, Myriam Campelo. E entre as mais novas, Heloisa Seixas, Patricia Melo, Fernanda Young ; e nas novissimas, Carmen Oliveira, Adriana Lisboa, Maria Conceição Góes, Clarah Averbuck, Cíntia Moscovich , Leticia Wierzchowski.O ensaísmo abriga Flora Sussekind, Heloisa Buarque de Holanda, Leyla Perrone-Moisés, Walnice Nogueira Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Nelly Novaes Coelho, Marisa Lajolo, Marilena Chuaí, Marilene Felinto, Eliane Vasconcelos, Beatriz Resende.
os homens e as mulheres
A maioria dos escritores brasileiros do século XIX e na primeira quadra do século XX escreveu ‘sobre elas ou para elas’: quatro escritores-homens se destacaram por voltar-se, em suas obras, sob graus e enfoques diferentes, para as mulheres. Joaquim Manuel de Macedo ,por exemplo, descreveu-a e tratou-a como “donzela de irrepreensíveis pendores” em especial em A Moreninha e em inúmeros contos. José de Alencar traçou o mais completo retrato da mulher ‘urbana’ da corte, no Brasil pós-Independência, no auge do romantismo, notadamente na trilogia Senhora, Diva e Lucíola, além de nas novelas Cinco minutos e A viuvinha ,e nos romances A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação. Lima Barreto debruçou-se como ninguém sobre a mulher ‘republicana’ : primeiro na década de 1910, ao desenvolver o “tema de Carmen” , uma série de artigos e crônicas em jornais e revistas nas quais a propósito de crimes ou julgamentos, ataca os homens “que se atribuem direitos sobre a vida das mulheres”, denunciando crimes de uxoricídio, nos quais homens matavam “mulheres infiéis”— e pior eram absolvidos nos julgamentos por “legítima defesa da honra”; e ao longo de toda sua produção croniquesca em jornais e revistas tratar de questões como movimento feminino, voto feminino, direitos femininos. Em seus romances, novelas e contos, em que elas têm sempre atitude e comportamento progressista, são superiores aos maridos (exemplos de Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara dos Anjos; Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; muitas outras em contos, etc)] .
Outros autores tiveram mulheres como protagonistas de obras famosas, como Taunay (em Inocência), Bernardo Guimarães (e sua Escrava Isaura), Domingos Olímpio ( com Luzia Homem).
Porém, nenhum escritor brasileiro do período ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis. Ele escrevia sobre mulheres e para mulheres. Amores e frustações femininos eram temas constantes, sempre presentes o amor, o casamento, o ciúme, o sonho, o devanrio, a fantasia, a desilusão,o desenlace, a dúvida , a infidelidade ; suas personagens femininas ocupam lugar privilegiado, lugar de destaque em todos os romances e na maioria dos contos. Os amores e frustrações femininos eram temas constantes., tendo nas linhas e entrelinhas de seus contos , romances, e também de suas crônicas , chamado atenção para as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras : argumentava que a mulher devia receber instrução e não ficar com­pletamente confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à li­berdade. Machado trouxe à luz a questão da sexualidade feminina ,a exemplo de Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz , e mais tarde Freud ( aliás, como Roberto Schawarz sentencia, “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois”).

sexta-feira, 5 de março de 2010

Queda que Machado tem para as mulheres


pelo 8 de Março.


Desde o início de sua criação ficcional em prosa – a obra Queda que as mulheres têm para os tolos -- , Machado traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as mulheres, mormente depois do romance Iaiá Garcia, em que o poder de observação psicológica dos personagens se acentua — captando, de forma expressiva, o conceito freudiano do desejo in­consciente. Machado foi muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade : criou um estilo de literatura não apenas de observação das pessoas mas sobretudo de interpretação, expondo das pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes, um outro lado , que muitas vezes aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente.
Machado sempre foi um autor interessado em prospectar as paixões dos homens, em dissecar-lhes as intimidades, em levantar ques­tões e em torná-las públicas pela voz de seus personagens; sobretudo percebia, com clareza, o lado trágico das relações humanas. Este lado trági­co passa pelo permanente mal-entendido dos encontros humanos, de um ser humano permanentemente acossado pelo outro, num processo originado,determinado e materializado pelo ciúme e a desconfiança implícita, pela traição e pela infidelidade, de resto temas constantes na vida literária de Machado.Muito da temática e da tramática machadianas gira em torno do ciúme e do perdão – vale dizer, do binômio freudiano de ‘culpa e perdão’. Foi ele o autor brasileiro que introduziu a perspectiva crítica, fazendo da dúvida, do questionamento e da argumentação, ‘a la Freud’, uma constante em sua obra.
[1]
A essencial temática de Machado de Assis consistia em expressar as sutilezas do mecanismo psicológico no deflagrar de ações, emoções,expressões e reações no comportamento humano . Possuía uma maneira própria de ver,representar e interpretar o mundo, a começar por seu peculiar processo de criação ficcional, as elaboradas transposições temáticas,tramáticas e de linguagem criando e intertextualizando , que de resto não se ajustam às definições comuns dos gêneros literários, como por exemplo no caso a ‘indefinição’ genética de Queda que as mulheres têm para os tolos.
A literatura de Machado – nos moldes de Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz -- traz, juntamente com Freud, para o centro das discussões, a questão da sexualidade feminina. Nos romances machadianos surge uma mulher que quer poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de, algu­mas vezes, ao não poder dizer de seu desejo — a maioria das mulheres da época vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse amor, melhor, mas não era o principal,pois a questão do amor era secundária, era um luxo que muitas mulheres não tinham : Machado,fiel à ‘ideologia’ das décadas de 1850-60, assim o trata em Ressureição , em A mão e luva, mas redime o amor em Memorial de Aires, numa “recomposição com a vida” — fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita .
Nenhum escritor de seu tempo ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis — nem Joaquim Manuel de Macedo(de A Moreninha e em inúmeros contos), José de Alencar( notadamente na trilogia urbana Senhora, Diva e Lucíola, além dos contos A viuvinha, Cinco minutos, das novelas A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação), nem Taunay (em Inocência), Bernardo Guimarães (e sua Escrava Isaura), Domingos Olímpio ( com Luzia Homem), nem Lima Barreto (de suas Clara e Castorina em Clara dos Anjos , Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma , Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; etc., das instigantes crônicas em torno do tema “Não as matem!”).
Machado escrevia sobre mulheres e para mulheres : desde a pioneira Queda... , passando pelos primeiríssimos romances Ressurreição, A mão e a luva, Helena, na imensa maioria de seus contos , na excepcional novela Casa velha, chegando a Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memorial de Aires, as mulheres sâo as protagonistas, as personagens primordiais, o elemento central em torno das quais desenrola-se a trama e a narrativa. Parece mesmo sempre ter preferido escrever em publicações cujo público predominante era feminino, primeiro no Jornal das Famílias , de 1864 a 1876, em sua fase dita ‘romântica’, à qual se filiam também seus primeiros romances, e a partir de 1879 em A Estação . Sua obra, de modo geral, abriga vários tipos femininos, com histórias povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que as mulheres se defrontam na vida: assim é com Lívia de Ressurreição, Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Virgília e Marcela de Brás Cubas, Sofia de Quincas Borba, Capitolina de Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das protagonistas de inúmeros contos, notadamente em “Missa do galo”, “Capítulo dos chapéus”, “Singular ocorrência” ,”Uma senhora”, “Trina e una”, “Primas de Sapucaia!”, “Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”, “Uns braços”, “D. Paula”, que encenam situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum – podendo mesmo serem catalogado como ‘estudos sobre a mulher”, ao revelarem de forma soberba a mais aguda sensibilidade de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética, preconceito social, autoritarismo, amor e ciúme
Suas mulheres ficcionais -- orgulhosas ou tímidas, calculistas ou levianas, singelas ou complexas -- “com seus contornos roliços, seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, são criaturas feitas de capricho e de carne, sobretudo de carne, tudo instinto, sem nenhum raciocínio”.E nesse privilegiar a mulher como personagem primordial de sua ficção, desde os primeiros romances,Machado trabalhou o psicológico como nenhum outro escritor de seu tempo, preocupado com climas, ambientes, situações existenciais sutis e delicadas: as mulheres surgem como personagens de grande densidade psicológica, alimentando de forma rica e sugestiva a temática preferida do mestre brasileiro.
Na maioria dos romances, a mulher é o elemento forte, traz o homem dependente de si, ela é o esteio, a base da relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, viúvas que não mais casam, em que se percebe que a figura masculina é, por vezes, desnecessária (Machado chega a reduzir o homem a um nada, sem a mulher : em Memorial de Aires, por exemplo, D. Carmo segue a linha da mulher totalmente dedicada à famí­lia, e que firmemente controla não só o espaço doméstico, como, e prin­cipalmente, o marido; daí a famosa frase: "Aguiar sem Carmo é nada" ).
Os amores e frustrações femininos eram temas constantes, tendo nas linhas e entrelinhas de seus contos , romances, e também de suas crônicas , chamado atenção para as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras : argumentava que a mulher devia receber instrução e não ficar com­pletamente confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à li­berdade. Pretenderia Machado de Assis o matriarcado ? Assim especulam muitos dos estudiosos de sua obra, para os quais Machado era mesmo ‘feminista’ -- e a cada leitura de sua obra nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo. Importante notar, como que a reciclagem de um processo desenvolvido por longos 36 anos (desde Ressureição, em 1872), em seu último romance,sua obra conclusiva – Memorial de Aires -- a par de continuar a privilegiá-las, valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as mulheres : não mais a figura sensual impulsionada pelo desejo – como Capitu, Virgilia, Sofia, Guiomar, Valéria, Marcela -- mas a mulher proba, que pode ser amada e admirada, distante e alheia à tentação, ‘salvas do pecado’,como Fidelia e Carmo. Não mais as machadianas sedutoras,ambiciosas,impuras,dissimuladas — antes de tudo, fúteis e fugazes, a ponto de preferirem os tolos ao invés dos homens de espírito...
A aguda e profunda visão machadiana das “coisas deste mundo” o fez constatar o quanto a mulher na sociedade imperial brasileira—reclusa e dominada, doméstica e servil-- era ‘anulada’ por sua própria condição feminina : se o mundo da mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.

[1] FREUD (1980, pp. 102-03).