sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

ano novo,sempre


Machado de Assis e o ano novo [de 1865-- que pode ser o de 2011, e todos...]


Volto com o novo ano - não direi tão loução como ele, nem ainda tão celebrado - mas seguramente tão cheio de promessas que espero cumprir, se, todavia, não intervier alguma razão de estado.

Os leitores sabem, mais ou menos, o que é uma razão de estado para o folhetim. A preguiça é um dom em que saímos aos deuses.

O ano que alvorece é sempre recebido entre palmas e beijos, ao passo que o ano que descamba na eternidade vai acompanhado de invectivas e maldições. Se isto não fosse uma regra absoluta, era legítima a exceção que se fizesse para a ocasião presente, em que se despede de nós o mais férreo, o mais infausto, o mais negro de todos os anos.

Se eu não receasse fazer uma revista do ano, em vez de uma revista da semana, percorria aqui os principais acontecimentos e desastres do finado ano de 1864. Foi esse o ano dos fenômenos de toda a casta, tanto naturais, como políticos, como financeiros; foi o ano que produziu as revoluções astronômicas, as crises comerciais e as patacoadas e empalmações políticas - em ambos os mundos, e quase em todos os meses.

Veja-se, pois, se o ano de 1865 não deve ser um ano singularmente celebrado, o alvo de todos os olhos, o objeto de todas as esperanças.

Ele é, por assim dizer, o arco da aliança, que se desenha no horizonte assombreado, como uma promessa de paz e de concórdia.

Manterá ele as promessas que faz? corresponderá à confiança que inspira? Ai triste! !a resposta é negativa: todas as palmas do dia da Circuncisão se converterão em vaias no dia de S. Silvestre. É a repetição do mesmo programa, o programa dos abissínios.
Mas tal é a singular disposição do espírito humano que, só quando se for embora êste ano em que se puseram tantas esperanças, é que se lembrará de que no ano então amaldiçoado houve para ele um momento de felicidade verdadeira - ou a satisfação de uma ambição política - ou a realização de uma ilusão literária - ou uma hora de amor, de solitário andar por entre a gente - ou o sucesso de uma boa operação econômica.

Temos saudade de todos os anos, mas é só quando eles se acham já mergulhados em um passado mais ou menos remoto - porque o homem corre a vida entre dois horizontes --o passado e o futuro - a saudade e a esperança - a esperança e a saudade, diz um poeta, têm um horizonte idêntico : l' éloignement.

Quando 1865 não corresponder às aspirações de cada um, e quando todos se lembrarem desse momento de felicidade de 1864, então cada qual repetirá as suas maldições contra 1865, e sentirá, mas de modo diferente, as suas decepções: o político e o financeiro correm o risco de procurar na boca da pistola a solução da dificuldade, e o esquecimento da derrota; o poeta e o amante espalharão algumas saudades sobre a campa dos seus amores e das suas ilusões. Pobre poeta! pobre amante! pobre político! pobre financeiro!

Folgo de crer que entre os meus leitores nenhum haverá que tenha ocasião de assistir a tais catástrofes; a todos desejo que o ano que começa seja mais feliz do que o ano que acaba, ou tão feliz, se ele foi feliz para alguns.
(...)
M.A.
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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Natal: 2 contos e um soneto


Conto de Natal
Arthur Azevedo
I
Das janelas da sala de jantar dos barões de Santa Bárbara, nas Laranjeiras, vi-se o interior da miserável casinha onde morava o Alexandre, pobre –diabo desempregado e enfermo, vivendo de expedientes confessáveis,carregando a vida com um esforço quase sobre-humano.
Fosse ele sozinho e tudo iria pelo melhor ; mas era casado, e lhe nascera um filhinho nas proximidades daquele Natal de 1871. Vir ao mundo uma criança, pelo Natal numa casa sem pão nem conforto, é uma dessas ironias da sorte, que só se tolerara à força de filosofia. O Alexandre era filósofo.
Os barões de Santa Bárbara, que possuíam grandes cabedais,desejavam ter filhos e não os tinham. É sempre assim. A baronesa, das janelas da sala de jantar, olhava com inveja para a mulher do Alexandre. A mulher do Alexandre era pobre,paupérrima, quase indigente, mas tinha o prazer e o orgulho de amamentar um filho !
Na véspera daquele Natal de 1871, os barões de Santa Bárbara,enquanto esperavam o almoço, debruçaram-se à janela e viram no interior de um quarto, na casinha do Alexandre, o recém-nascido deitado numa caixa de batatas, envolvido em trapos.
O barão , que não era insensível às misérias do próximo, encheu-se de piedade,tanto mais que, pela coincidência do dia em que o acaso lhe deparava tão lastimoso espetáculo, parecia-lhe o próprio Menino Jesus que ali estava deitado naqueles trapos, mas um Menino Jesus desprezado pelos Reis Magos e pastores, um Menino Jesus com alfazema,talvez, mas sem incenso nem mirra.
Sabia o barão que a baronesa era muito egoísta : não gostava de praticar o bem nem mesmo por ostentação ; foi, por isso, com certo receio que lhe propôs enviarem algum socorro aos vizinhos pobres ; quanto mais não fosse, umas roupinhas para o bebê.
- Estás doido ! respondeu ela. Nunca mais nos largariam a porta !
- Mas não era preciso que soubessem de onde partia o benefício ; a nossa esmola seria anônima ...
- Qual ! deixa-te dessas idéias ! Eles precisam, é certo, mas há quem precise ainda mais e não seria justo socorrer somente a estes ,quando não podemos acudir aos outros ! Por que esse exclusivismo ? E depois, tu sabes lá que espécie de gente é essa ? Tu sabes se empregaríamos bem a nossa caridade ? Deixa-te dessas idéias, homem de Deus, e vamos almoçar, que a maionese está na mesa.
Comeram ambos o almoço triste dos esposos que pensam diversamente um do outro, sem filhos que atenuem o que possa ter de inconveniente e dolorosa a divergência de sentimentos e impressões.
Inteligente e sensato, o barão não contrariava a baronesa,embora no íntimo lhe detestasse o caráter, e não perdoasse tanto egoísmo numa criatura que lhe trouxera, quando se casou com ele, apenas a roupa do corpo e o próprio corpo. Fazia-lhe todas as vontades.
Foi assim que comprara aquele título ridículo de barão de Santa Bárbara, nome da fazenda onde ele nascera, e era propriedade sua, na Província do Rio.
Todos o tinham em conta de um marido dominado pela mulher, quando o que o dominava era apenas o desejo de viver com ela em aparente harmonia, sem dar aos criados nem aos vizinhos,nem a si mesmo o espetáculo mofino de um casal desunido.
O barão saiu logo depois do almoço e foi a carro para o seu escritório da rua de São Bento.
Como a lembrança do pobre pequenino ,deitado no caixão de batatas, o perseguisse com a insistência de um remorso, ele chamou em particular um empregado de confiança, incumbiu-o de comprar um berço, um enxoval completo de recém-nascido, peças de morim e de chita, latas de leite condensado, vidros de geléia, garrafas de vinho do Porto, etc, e mandar tudo, e mais algum dinheiro,à casa do Alexandre, sem que ninguém soubesse nem suspeitasse a proveniência desse presente.
O empregado cumpriu irrepreensivelmente as ordens do patrão, e foi com uma surpresa, manifestada por frases impertinentes, que a baronesa viu, à tardinha, o caixão de batatas substituído por um berço de vime e os andrajos por boa roupa.
- Vês ? disse ela ao barão. Faríamos asneira se lhes mandássemos alguma coisa: não lhes falta nada !
Pouco tempo depois, a família do Alexandre mudou de residência, e os barões de Santa Bárbara nunca mais tiveram notícia dela.
II

Passaram-se muitos anos ,que correram prósperos para o barão, grande plantador de café ; mas a lei de 13 de Maio surpreendeu-o, como a tantos outros agricultores imprevidentes, e a sua fortuna sofreu grandes reveses.
Depois de proclamada a República, ele atirou-se às especulações da Bolsa ; ficou milionário durante a nevrose do Encilhamento, e não adivinhou a catástrofe. Quando esta veio, encontrou os seus milhões representados em ações de bancos e companhias que não valiam mais nada, e cuja liquidação foi a ruína completa. Nada,absolutamente nada lhe deixaram !...
Nesse doloroso transe, o infeliz titular não ouviu da esposa uma única palavra de consolação ou de esperança que o animasse ; pelo contrário : a baronesa desfazia-se em exprobações e invetivas, e isto concorreu, naturalmente, para desesperá-lo.
O mísero tinha resolvido suicidar-se, quando uma congestão pulmonar o livrou de cometer esse pecado.
Morto o barão, a baronesa, sexagenária e enferma, ficou reduzida à miséria. Os amigos e parentes do marido tinham já se evaporado há muito tempo, e nenhum simpatizava com ela.
A desgraçada ia ser posta na rua por um senhorio implacável, e, para não morrer de fome, estava resolvida a pedir que a mandassem para um asilo, quando foi procurada por um belo rapaz de vinte e cinco anos,pouco mais ou menos, que lhe disse :
- Sra. baronesa, conheço v.ex., estou ao corrente de todas as desgraças que lhe sucederam, venho pedir-lhe que aceite um lugar em nossa casa.
- Mas quem é o senhor ?
- Sou aquela criança que, na véspera do Natal, em 1871, nas Laranjeiras, dormia num caixão de batatas, e a quem v. ex. socorreu,mandando-lhe um berço,roupinhas e leite. Bem vê v.ex. que não faço mais do que pagar uma dívida de gratidão.
- Mas não me lembro... não fui eu que...
- O empregado que se encarregou de fazer com que essa delicada esmola chegasse ao seu destino, não foi tão discreto como lhe recomendaram. Ele disse a meu pai,confidencialmente, que a esmola era do falecido sr.barão, mas minha mãe acudiu logo : - Não ! a lembrança é da baronesa ! Só as mulheres são capazes destes melindres do coração !
A baronesa não confirmou nem desmentiu.
- Há vinte e cinco anos, continuou o rapaz, o nome de v. ex. é repetido naquela casa como o de uma santa ! Venha, sra. baronesa ! Meu paí é morto, mas eu ganho o suficiente para sustentar duas mães...
Uma hora depois, a baronesa de Santa Bárbara estava muito bem alojada na casa dos seus protetores.
___________
Milagre do Natal
Lima Barreto

O bairro do Andaraí é muito triste e muito úmido. As montanhas que enfeitam a nossa cidade, aí tomam maior altura e ainda conservam a densa vegetação que as devia adornar com mais força em tempos idos. O tom p1úmbeo das árvores como que enegrece o horizonte e torna triste o arrabalde.
Nas vertentes dessas mesmas montanhas, quando dão para o mar, este quebra a monotonia
do quadro e o sol se espadana mais livremente, obtendo as cousas humanas, minúsculas e mesquinhas, uma garridice e uma alegria que não estão nelas, mas que sê percebem nelas. As tacanhas casas de Botafogo se nos afigura assim; as bombásticas "vilas" de Copacabana, também; mas, no Andaraí, tudo fica esmagado pela alta montanha e sua sombria vegetação.
Era numa rua desse bairro que morava Feliciano Campossolo Nunes, chefe de secção do Tesouro Nacional, ou antes e melhor: subdiretor. A casa era própria e tinha na cimalha este dístico pretensioso: "Vila Sebastiana". O gosto da fachada, as proporções da casa não precisam ser descritas: todos conhecem um e as outras. Na frente, havia um jardinzinho que se estendia para a esquerda, oitenta centímetros a um metro, além da fachada. Era o vão que correspondia à varanda lateral, quase a correr todo o prédio.
Campossolo era um homem grave, ventrudo, calvo, de mãos polpudas e dedos curtos. Não largava a pasta de marroquim em que trazia para a casa os papéis da repartição com o fito de não lê -los; e também o guarda-chuva de castão de ouro e forro de seda.Pesado e de pernas curtas, era com grande dificuldade que ele vencia os dois degraus dos "Minas Gerais" da Light, atrapalhado com semelhantes cangalhas: a pasta e o guarda chuva de " ouro".
Usava chapéu de coco e cavanhaque.
Morava ali com sua mulher mais a filha solteira e única, a Mariazinha.A mulher, Dona Sebastiana, que batizara a vila e com cujo dinheiro a fizeram, era mais alta do que ele e não tinha nenhum relevo de fisionomia, senão um artificial, um aposto. Consistia num pequeno pince-nez de aros de ouro, preso, por detrás da orelha, com trancelim de seda. Não nascera
com ele, mas era como se tivesse nascido, pois jamais alguém havia visto Dona Sebastiana sem aquele adendo, acavalado no nariz. fosse de dia, fosse de noite. Ela, quando queria olhar alguém ou alguma cousa com jeito e perfeição, erguia bem a cabeça e toda Dona Sebastiana tomava um entono de magistrado severo.
Era baiana, como o marido, e a Única queixa que tinha do Rio cifrava-se em não haver aqui
bons temperos para as moquecas, carurus e outras comidas da Bahia, que ela sabia preparar com perfeição, auxiliada pela preta Inácia, que, com eles. viera do Salvador, quando o marido foi transferido para São Sebastião. Se se oferecia portador, mandava-os buscar; e. quando, aqui chegavam e ela preparava uma boa moqueca, esquecia -se de tudo, até que estará muito longe da sua querida cidade de Tomé de Sousa.
Sua filha, a Mariazinha, não era assim e até se esquecera que por lá nascera: cariocara-se inteiramente. Era uma moça de vinte anos, fina de talhe, poucas carnes, mais alta que o pai,
entestando com a mãe, bonita e vulgar. O seu traço de beleza eram os seus olhos de topázio com estilhas negras. Nela, não havia nem invento, nem novidade como - as outras.
Eram estes os habitantes da "Vila Sebastiana" , além de um molecote que nunca era o mesmo. De dous em dous meses, por isso ou por aquilo, era substituído por outro, mais claro ou mais escuro, conforme a sorte calhava.
Em certos domingos, o Senhor Campossolo convidava alguns dos seus subordinados a irem almoçar ou jantar com eles. Não era um qualquer. Ele os escolhia com acerto e sabedoria. Tinha uma filha solteira e não podia pôr dentro de casa um qualquer, mesmo que fosse empregado de fazenda. Aos que mais constantemente convidava, eram os terceiros escriturários Fortunato Guaicuru e Simplício Fontes, os seus braços direitos na secção. Aquele era bacharel em Direito e espécie de seu secretário e consultor em assuntos difíceis; e o último chefe do protocolo da sua secção, cargo de extrema responsabilidade, para que não houvesse extravio de processos e se acoimasse a sua subdiretoria de relaxada e desidiosa. Eram eles dous os seus mais constantes comensais, nos seus bons domingos de efusões familiares. Demais, ele tinha uma filha a casar e era bom que...
Os senhores devem ter verificado que os pais sempre procuram casar as filhas na classe que
pertencem: os negociantes com negociantes ou caixeiros; os militares com outros militares; os médicos com outros médicos e assim por diante. Não é de estranhar, portanto, que o chefe Campossolo quisesse casar sua filha com um funcionário público que fosse da sua repartição e até da sua própria secção.
Guaicuru era de Mato Grosso. Tinha um tipo acentuadamente índio. Malares salientes, face
curta, mento largo e duro, bigodes de cerdas de javali, testa fugidia e as pernas um tanto arqueadas. Nomeado para a alfândega de Corumbá, transferira-se para a delegacia fiscal de Goiás. Aí, passou três ou quatro anos, formando-se, na respectiva faculdade de Direito, porque não há cidade do Brasil, capital ou não, em que não haja uma. Obtido o título, passou-se para a Casa da Moeda e,desta repartição, para o Tesouro. Nunca se esquecia de trazer o anel de rubi, à mostra. Era um rapaz forte, de ombros largos e direitos; ao contrário de Simplício que era franzino, peito pouco saliente, pálido, com uns doces e grandes olhos negros e de uma timidez de donzela.Era carioca e obtivera o seu lugar direitinho, quase sem pistolão e sem nenhuma intromissão de políticos na sua nomeação.
Mais ilustrado, não direi; mas muito mais instruído que Guaicuru, a audácia deste o superava, não no coração de Mariazinha, mas no interesse que tinha a mãe desta no casamento da filha. Na mesa, todas as atenções tinha Dona Sebastiana pelo hipotético bacharel:
- Porque não advoga? perguntou Dona Sebastiana, rindo, com seu quádruplo olhar altaneiro, da filha ao caboclo que, na sua frente e a seu mando, se sentavam juntos.
- Minha senhora, não tenho tempo...
- Como não tem tempo? O Felicianinho consentiria - não é Felicianinho? Campossolo fazia solenemente :
- Como não, estou sempre disposto a auxiliar a progressividade dos colegas.
Simplício, à esquerda de Dona Sebastiana, olhava distraído para a fruteira e nada dizia. Guaicuru, que não queria dizer que a verdadeira . razão estava em não ser a tal faculdade "reconhecida", negaceava:
- Os colegas podiam reclamar.
Dona Sebastiana acudia com vivacidade :
- Qual o que . O senhor reclamava, Senhor Simplício?
Ao ouvir o seu nome, o pobre rapaz tirava os olhos da fruteira e perguntava com espanto:
- O que, Dona Sebastiana ?
- O senhor reclamaria se Felicianinho consentisse que o Guaicuru saísse, para ir advogar?
- Não.
E voltava a olhar a fruteira, encontrando-se rapidamente com os olhos de topázio de Mariazinha. Campossolo continuava a comer e Dona Sebastiana insistia:
- Eu, se fosse o senhor ia advogar.
- Não posso. Não é só a repartição que me toma o tempo. Trabalho em um livro de grandes proporções.

Todos se espantaram. Mariazinha olhou Guaicuru; Dona Sebastiana levantou mais a cabeça
com pince-nez e tudo; Simplício que, agora, contemplava esse quadro célebre nas salas burguesas,representando uma ave, dependurada pelas pernas e faz pendant com a ceia do Senhor - Simplício,dizia, cravou resolutamente o olhar sobre o colega, e Campossolo perguntou:
- Sobre o que trata?
- Direito administrativo brasileiro.
Campossolo observou:
- Deve ser uma obra de peso.
- Espero.
Simplício continuava espantado, quase estúpido a olhar Guaicuru. Percebendo isto, o matogrossense apressou-se:
- Você vai ver o plano. Quer ouvi-lo ?
Todos, menos Mariazinha, responderam, quase a um tempo só:
- Quero.
O bacharel de Goiás endireitou o busto curto na cadeira e começou:
- Vou entroncar o nosso Direito administrativo no antigo Direito administrativo português.
Há muita gente que pensa que no antigo regime não havia um Direito administrativo. Havia. Vou estudar o mecanismo do Estado nessa época, no que toca a Portugal. V ou ver as funções dos ministros e dos seus subordinados, por intermédio de letra-morta dos alvarás, portarias, cartas régias e mostrarei então como a engrenagem do Estado funcionava; depois, verei como esse curioso Direito público se transformou, ao influxo de concepções liberais; e, como ele transportado para aqui com Dom João VI, se adaptou ao nosso meio, modificando-se aqui ainda, sob o influxo das idéias da Revolução.
Simplício, ouvindo-o falar assim dizia com os seus botões: "Quem teria ensinado isto a ele?"
Guaicuru, porém, continuava:
- Não será uma seca enumeração de datas e de transcrição de alvarás, portarias, etc. Será uma cousa inédita. Será coisa viva.
Por aí, parou e Campossolo com toda a gravidade disse:
- V ai ser uma obra de peso.
- Já tenho editor!
- Quem é? perguntou o Simplício.
- É o Jacinto. Você sabe que vou lá todo o dia, procurar livros a respeito.
- Sei; é a livraria dos advogados, disse Simplício sem querer sorrir.
- Quando pretende publicar a sua obra, doutor? perguntou Dona Sebastiana.
- Queria publicar antes do Natal. porque as promoções serão feitas antes do Natal, mas...
- Então há mesmo promoções antes do Natal, Felicianinho ?
O marido respondeu:
- Creio que sim. O gabinete já pediu as propostas e eu já dei as minhas ao diretor.
- Devias ter-me dito, ralhou-lhe a mulher.
- Essas coisas não se dizem às nossas mulheres; são segredos de Estado, sentenciou Campossolo.
O jantar foi. acabando triste, com essa história de promoções para o Natal.
Dona Sebastiana quis ainda animar a conversa, dirigindo-se ao marido:
- Não queria que me dissesses os nomes, mas pode acontecer que seja o promovido o doutor Fortunato ou... O "Seu" Simplício, e eu estaria prevenida para a uma "festinha".Foi pior. A tristeza tornou-se mais densa e quase calados tomaram café.Levantaram-se todos com o semblante anuviado, exceto a boa Mariazinha, que procurava dar corda à conversa. Na sala de visitas, Simplício ainda pôde olhar mais duas vezes furtivamente os olhos topazinos de Mariazinha, que tinha um sossegado sorriso a banhar-lhe a face toda; e se foi.
O colega Fortunato ficou, mas tudo estava tão morno e triste que, em breve, se foi também
Guaicuru.
No bonde, Simplício pensava unicamente em duas coisas: no Natal próximo e no "Direito"
de Guaicuru. Quando pensava nesta .' perguntava de si para si: "Quem lhe ensinou aquilo tudo?
Guaicuru é absolutamente ignorante" Quando pensava naquilo, implorava: "Ah! Se Nosso Senhor Jesus Cristo quisesse..."
Vieram afinal as promoções. Simplício foi promovido porque era muito mais antigo na classe que Guaicuru. O Ministro não atendera a pistolões nem a títulos de Goiás. Ninguém foi preterido; mas Guaicuru que tinha em gestação a obra de um outro, ficou furioso sem nada dizer.
Dona Sebastiana deu uma consoada à moda do Norte. Na hora da ceia, Guaicuru, como de
hábito, ia sentar-se ao lado de Mariazinha, quando Dona Sebastiana, com pince-nez e cabeça, tudo muito bem erguido, chamou-o:
- Sente-se aqui a meu lado, doutor, aí vai sentar-se o "Seu" Simplício.
Casaram-se dentro de um ano; e, até hoje, depois de um lustro de casados ainda teimam.
Ele diz:
- Foi Nosso Senhor Jesus Cristo que nos casou.
Ela obtempera:
- Foi a promoção.
Fosse uma coisa ou outra, ou ambas, o certo é que se casaram. É um fato. A obra de
Guaicuru, porém, é que até hoje não saiu...
Careta, 24-12-1921.
[* o último Natal (e dezembro) de Lima : morreria em 1º. nov 1922]
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Soneto de Natal
Machado de Assis

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca.
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"