terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Natal


de Arthur Azevedo : Conto de Natal [um dos textos até então inéditos em livro,apenas publicado no periódico da época, incluido (com outros seis contos nessa situação ) em minha obra Contos de Arthur Azevedo: os "efêmeros" e inéditos, 2009]




sexta-feira, 11 de dezembro de 2009


a propósito da conferência da ONU sobre as mudanças climáticas ,em Copenhague ,convém saber que uclides da Cunha -- sim, ele -- foi dos primeiros pensadores brasisleiros a se preocupar com a ecologia : pode mesmo ser considerado o primeiro ecologista do País.


a ecopolítica em Euclides
De olhar voltado prioritariamente para o interior do país , Euclides da Cunha foi rigorosamente o primeiro intelectual brasileiro a cultivar e externar preocupações com o meio ambiente, inclusive fazendo da ecologia um tema político, de propostas de ação política. Como não poderia mesmo deixar de ser , face à sua formação consolidada, é sob o prisma e lentes do positivismo que registra,observa e critica os embates entre uma civilização, sempre improvisada, com a natureza do país : críticas essencialmente liberais, que essencialmente lançavam as bases, inéditas no país , avançadas ao extremo em seu tempo e antecipadoras dos conceito e elementos do desenvolvimento sustentável , na permanente preocupação euclidiana no conciliar progresso com a preservação ambiental.
Ainda com 18 anos,lavrava um protesto em seu primeiro trabalho no jornal O Democrata de 4 abril 1884 –pequeno jornal dos alunos do colégio Aquino,onde estudava desde 1883, no qual inclusive foi aluno de Benjamin Constant,professor de matemática,que iria em 1886 reencontrar na Escola Militar e nele insuflar os ardores republicanos ; no artigo, externando o interesse e apreço pela natureza que estaria presente em toda sua obra,ao lado de descrever em viagem de bonde para o colégio as maravilhas do cenário natural que descortinava,as matas e florestas da cidade do Rio de Janeiro, criticava o progresso representado pela estrada de ferro que degradava a natureza
“(...)Ah ! Tachem-me muito embora de antiprogressista e anticivilizador, mas clamarei sempre e sempre: - o progresso envelhece a natureza, cada linha do trem de ferro é uma ruga e longe não vem o tempo em que ela, sem seiva, minada, morrerá! E a humanidade, não será dos céus que há de partir o grande "Basta" (botem b grande) que ponha fim a essa comédia lacrimosa(...)Tudo isto me revolta ,me revolta vendo a cidade dominar a floresta,a sarjeta dominar a flor!”
Escritor avançado para o Brasil dos 1890\ 1900, fortalecido pelo espírito científico,enriquecido pela cultura sociológica,esmerado pela especialização geográfica e geológica, Euclides viu os sertões com um olhar mais amplo,abrangente e profundo que o de um geógrafo puro, mais do que de um simples geólogo, muito mais que de qualquer antropólogo.Desenha,disseca e ‘interpreta’ – pioneiramente –o cenário dos sertões, descrevendo com rigorosa exatidão as formação, estrutura e nuances geológicas e climáticas da região– a “terra ignota” ; a partir daí, compõe sua reflexão sobre a seca , a incapacidade geral do país em resolver o problema – evocando exemplos bem-sucedidos de soluções corretoras dos efeitos das secas adotada por povos(“a exploração científica da terra,coisa vulgaríssima hoje em todos os países, é uma preliminar obrigatória do nosso progresso”) e em diversos escritos propõe soluções técnicas, como a irrigação, para a questão no Brasil : se é capaz de criar desertos, o homem poderia também extingui-los – e a utilização política da seca que tem servido para “a retórica de congressos e conferências,para projetos mirabolantes,para justificar uma burocracia voraz, perfeitamente digna de salvar o Nordeste nas esquinas da Avenida [assim] O Brasil não resolve seu grande problema,que não é apenas administrativo porque é igualmente moral,social e político”.
Depois, nos textos “Fazedores de Desertos”, publicado originalmente em 1901,em O Estado de S. Paulo , e “Entre as Ruínas”, em O Paiz,1904 -- cuja primeira versão, sob o título “Viajando” , é de 1903, em O Estado de S. Paulo – suas críticas não se dirigem particularmente a ninguém , muito menos a um governo,e sim ‘credita’ ao próprio avanço humano o efeito maléfico na vegetação, nos recursos hídricos, nos solos, no clima e por extensão,segundo ele,na própria civilização , provocado pelas queimadas provocadas por uma agricultura ainda com métodos herdados do período colonial (clamor que Monteiro Lobato também expressaria anos mais tarde,quase que com as mesmas palavras e discurso). Como na maioria de seus textos sobre o tema, Euclides confronta riquezas passadas e farturas naturais com uma realidade arruinada -- “temos sido um agente geológico nefasto e um elemento de antagonismo terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia” – explica,algo didaticamente, o processo de agricultura itinerante que ia tornando a terra cada vez mais desabrigada e pobre,e evoca a história ao atribuir a devastação florestal,como um ciclo desde os primórdios, ao indígena brasileiro , continuada pelo colonizador,feito um “terrível fazedor de desertos”, fosse o garimpeiro, “atacando a terra nas explorações mineiras a céu aberto, esterilizando-a com o lastro das grupiaras,retalhando-a a pontaços de aluvião” ou lavrador,“eliminando, a partir do mau ensinamento aborígene [a queimada] as grandes extensões de matas e florestas e aviltando o clima”, tornados ambos herdeiros de um modelo nefasto de uso da terra, agravando-o a ponto de esterilizar sua fertilidade e tornar a paisagem uma ruína só, de natureza e de pessoas,inclusive desencadeando fenômenos climáticos e geológicos na formação de desertos e do regime das secas – as quais dissecaria como ninguém ao dedicar-se ao sertão..
Euclides contestava um modelo “peculiar e oportunista” de desenvolvimento,então incipiente com a implementação da República, que “povoa despovoando”, “não multiplica as energias nacionais, desloca-as”, fazendo “ avançamentos que não são um progresso” , indo “ao acaso, nesse seguir o sulco das derribadas, deixando atrás um espantalho de civilização tacanha nas cidades decaídas circundadas de fazendas velhas”. Sob todos os aspectos e ângulos, o engenheiro social transformava-se e assume o engenheiro ecológico
À “exploração científica da terra(...)preliminar obrigatória do nosso progresso”, Euclides preconizava acoplar uma ação técnica de engenharia para o saneamento geológico de terras,extinção de desertos, reordenação de grandes áreas e conformações geográficas, prospecção e inventário de recursos e riquezas naturais. E mais : sustentava a urgência de implementação de um grande projeto de integração viária , substituindo as vias naturais,caminhos rústicos,picadas, estradas estéreis , e em decorrência de povoamento e ocupação , entre as regiões norte,sul e a Amazônia – sobre a qual lançou um olhar pioneiro e absolutamente atual, diga-se de passagem.aliás, a Amazônia tornada rota e destino de fuga dos sertanejos assolados pela seca.
Ninguém antes de Euclides dedicou-se com tanta ênfase, profundidade e esforço – inclusive vivenciando graves vicissitudes – e em especial pioneirismo,à Amazônia.Foi o primeiro dos literatos brasileiros a expressar o efetivo intento de conhecê-la in loco e entre todos a,de um lado, retratar e revelar,dramaticamente, aquele “paraíso perdido” (um livro intitulado “Amazônia,um paraíso perdido” era um dos projetos mais acalentados por Euclides,que não chegou a realizá-lo ),de outro despertar,em textos ‘reivindicantes, vingadores’, o conhecimento e a discussão dos gritantes problemas que afligiam(afligem) a região – segundo ele um outro Brasil,aliás um novo Brasil . Suas conclusões de ordem sociológica e antropológica são consideradas revolucionárias para a época,e absolutamente atuais com relação à Amazônia – sob a indestrutível consciência euclidiana , de malefícios justamente provocados pelo homem na ocupação desordenada,ambiciosa e destruidora da região.
Sob o escopo de seu projeto de integração nacional, a Amazônia com a exuberância de seus espaços e riquezas naturais ainda inexplorada, seria o destino inevitável dos contingentes saídos de outras regiões por adversidades climáticas,geológicas,geográficas e especialmente sociais e econômicas,constituindo-se na “ mais dilatada diretriz de expansão de nosso território”, para seus olhos embevecidos o “deslumbrante palco onde mais cedo ou mais tarde se há de concentrar a civilização do globo” – daí vindo a ser um dia objeto de cobiça estrangeira, vítima do expansionismo e ambições territoriais das potências mundiais(“a expansão imperialista das grandes potências é um fato de crescimento... e a conquista dos povos é uma simples variante da conquista de mercados”), o que exigia, sustentava Euclides, imediata e eficaz ação por parte das autoridades e do Poder Público para completas defesa e integração da Amazônia .Em suma, atestado da atualidade de muitas de suas reflexões, prevendo o debate que iria surgir no mundo mais tarde, pleiteava uma civilização brasileira que confrontasse os interesse globais, pois temia que “a Amazônia, mais cedo ou mais tarde se destacará do Brasil, como se destaca um mundo de uma nebulosa”.
Na Amazônia, por Euclides, a ecopolítica recebe novas lentes : o olhar euclidiano sobre a região e seu ‘destino no Brasil e no mundo’ envereda e lança as primeiras luzes para a geopolítica,rigorosamente nos moldes,diga-se, dos mais atuais e importantes debates .

[excerto de meu livro Escritos de Euclides da Cunha : política,ecopolítica,etnopolítica – edPUC-Rio\Loyola]


quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

o extraordinário Paula Brito


não se pode,em hipótese alguma, deixar -se de enfatizar, neste 2 dezembro, o bicentenário de nascimento de um dos homens mais extraordinários do Brasil do século XIX ; mais : da própria história cultural do País.

Francisco de Paula Brito, "o primeiro editor digno deste nome que houve entre nós", em citação de Machado de Assis, exerceu papel fundamental no desenvolvimento da carreira literária de Machado – bem como de muitos outros escritores, em meados do século XIX. Inaugurou, na verdade, uma vertente histórica e uma linhagem de editores ou casas editoriais que se constituíram em ponto de encontro da elite cultural e de incentivo à produção literária (assim o foram , por exemplo, a paulistana Casa Garraux, de Anatole Louis Garraux, na década de 1870, a Livraria de B.L. Garnier, na década de 1860/70, a Livraria Francisco Alves, no final do século XIX, a Livraria José Olympio Editora na década de 1930).
Em 1854, aos 22 anos, Machado de Assis já rabiscara os primeiros versos e lia avidamente os poemas e romances-folhetins nos poucos jornais existentes na época.; e sonhava em enviar suas produções.Até que a 6 de janeiro de 1855 teve publicado em A Marmota Fluminense, de Paula Brito seu poema “A palmeira” , e seis dias depois o poema “Ela”; e na livraria, ponto de encontro dos jovens escritores da época, Machado foi também acolhido, por iniciativa do próprio Paula Brito. Figura extraordinária, esse impressor, editor,jornalista,autor e o maior incentivador da literatura brasileira naquela época. Até 1864 Machado colaborou com a revista de Paula Brito, publicando poesias no mais arrebatado estilo romântico de então, mas também trabalhos em prosa: “O passado,o presente e o futuro da literatura”, que marca sua estréia no ensaio crítico , em 1858, o conto “Bagatela” – que abriga dúvidas, quanto a tratar-se de uma tradução ou criação machadiana [vide meu livro Contos de Machado de Assis:relicários e raisonnés,2008] --- em 1859,nos folhetins de10 e 13 de maio,3 e 14 de junho,26 e 30 de agosto.Por esse tempo, teve ainda a amizade e acolhida de Manuel Antonio de Almeida, diretor da Imprensa Nacional onde Machado consegue o lugar de tipógrafo de 1856 a 1858., ano em que incorpora-se de vez ao grupo de A Marmota (o jornal passou a ter esta denominação a partir de 1857) e da Sociedade Petalógica, “sociedade lítero-humorística” fundada por Paula Brito – cuja loja era um verdadeiro cenáculo, um “ponto de encontro neutro,onde os conflitos partidários rendiam-se em favor das letras e das artes” frequenta­da pelas figuras de maior relevo daquele tempo, reunindo todo o movimento romântico de 1840-60, dos poetas Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Araújo Porto-Alegre e Laurindo Rabelo a romancistas como Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antonio de Almeida , Teixeira e Souza, dos compositores Francisco Manuel da Silva ao ator João Caetano, além da presença de personalidades como os ministros José da Silva Paranhos (barão do Rio Branco), Eusébio de Queiroz, o senador Francisco Otaviano, líderes da sociedade como Antonio Maciel Monteiro, os jornalistas Joaquim de Saldanha Marinho e Firmino Rodrigues. Até que em 1861, já escrevendo no Diário do Rio de Janeiro (de 1860 a 1867 publica em A Marmota, em abril-maio "Queda que as mulheres têm para os tolos" -- este,como se sabe, exemplo bem-acabado,malgrado as constatações de Jean-Michel Massa, dos 'mistérios' machadianos ,ao abrigar elementos de reflexão quanto a tratar-se de uma tradução ou criação machadiana [vide meu ensaio,2006] ; e no ano seguinte tem editado em livro,por Paula Brito, duas de suas primeiras peças teatrais “O caminho da porta” e “O protocolo”, encenadas em 1862 no Ateneu Dramático.
O fato de Paula Brito ter se tornado o livreiro preferido pela elite intelectual do Rio de Janeiro, bem como o principal editor da época -- sucedendo o ‘lendário’ impressor francês, estabelecido no Rio de Janeiro desde 1824, Pierre René Plancher -- exemplifica suas capacidade,energia,determinação e habilidade reconhecidas e incentivadas até a década de 1840 por Pedro I ,consolidada na admiração de Pedro II por seu empenho em estimular os escritores brasileiros. O próprio imperador foi o principal acionista da nova Imperial Typographia Dous de Dezembro, inaugurada neste dia de 1850, data do aniversário do imperador e de Paula Brito – e onde Machado foi trabalhar a partir de 1858 como revisor de provas e caixeiro. As publicações de Paula Brito, ao contrário do comum na época, que eram concentradas em administração, política e informações práticas para os homens de negócios, dirigiam- se muito mais para o “leitor comum” , fruto das marcantes mudanças ocorridas no Brasil entre a Independência e a maioridade de Pedro II, notoriamente os progressos sociais, no que tange à publicação de livros, advindos da valorização da condição da mulher , criando um público leitor feminino, ávido por literatura romanesca, influenciada pelos franceses,suficientemente numeroso para alterar as características do mercado.
O volume de publicações de Paula Brito dirigidas às mulheres, iniciado ainda em 1832 com a pioneira revista feminina A Mulher do Simplício, ou A Fluminense Exaltada ---- não se estranhe o título do jornal, pois era comum na época : em 1834 publicava-se O Tupinambá Pregoeiro e A Mutuca Picante ,como em 1822.,p. ex., existira O Periquito da Serra dos Órgãos e Malagute-- ,sucedida de 1849 a 1864 por A Marmota Fluminense,evidencia o quanto o editor era consciente da existência – e força --desse novo público leitor feminino. Paula Brito lançou ao todo 372 publicações , das quais 214 foram edições literárias ficcionais, 100 delas “dramas”, 43 libretos de ópera, 47 de traduções do italiano e do francês, e 24 edições de originais brasileiros. A literatura brasileira então era bastante incipiente, praticamente não existia (pelo menos como “sistema literário orgânico”, conforme a conceituação de Antonio Candido) — apesar das produções de Gonçalves Magalhães, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Teixeira e Souza, Gonçalves Dias, Araújo Porto-Alegre, Casimiro de Abreu : Paula Brito foi o primeiro editor a incentivá-la, o primeiro a publicar trabalhos de literatos brasileiros como ‘empreendimento de risco’ e não mediante pagamento por parte do autor, como se praticava na época. Pela primeira vez, um romancista ou um poeta brasileiro era publicado em livro e pago por isso. É de Paula Brito por exemplo a publicação do primeiríssimo romance brasileiro, O filho do pescador, de Teixeira e Souza, em 1843 ( um ano antes do equivocadamente considerado pioneiro A Moreninha, de Macedo); os Últimos cantos, de Gonçalves Dias,em 1851, a primeira peça essencialmente brasileira, “Antonio José,ou o poeta e a Inquisição” e A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães em 1857, além de comédias de Martins Pena e poemas de Casimiro e Abreu.

Mas não apenas na seara literária,ou editorial, Paula Brito foi notável : muito antes do próprio aparecimento e recrudescimento do movimento abolicionista, foi ele um ativo militante da causa, veemente crítico da escravidão e defensor da igualdade racial – até mesmo criando e editando, desde 1833,o jornal O homem de cor,pela primeira vez dando espaço ao negro e a questões raciais na imprensa brasileira.

Justamente nesse ano de 1857 tiveram início as dificuldades financeiras de Paula Brito, impossibilitado de remunerar os acionistas investidores nos 6% prometidos, e deu-se a liquidação da Imperial Typographia Dous de Dezembro, tornando-se simplesmente Typographia de Paula Brito. Continuou a publicar livros, mas a produção caiu para 11 títulos em 1857, 10 em 1858 e 1859, embora aumentasse para 15 em 1860 e em 1861, ano de publicação de Queda.... e da morte de Paula Brito(como também o trágico naufrágio que matou de Manuel Antonio de Almeida).

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Euclides, o filme


no próximo dia 24 novembro, 17 hs, a cerimônia de encerramento oficial da Exposição "Euclides Um Brasileiro", na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, contará também com a exibição do filme A paz é dourada, de Noilton Nunes , sobre Euclides e o lançamento do projeto "Caravanas Euclidianas" que levará a exposição , o filme e palestras [serei um dos palestrantes,como estudioso euclidiano e autor do livro Escritos de Euclides da Cunha:política,ecopolítica,etnopolítica] e oficinas audiovisuais para estudantes e professores por todo o estado do Rio de Janeiro ,e depois para outros estados, durante todo ano letivo de 2010 -- um projeto do MEC coordenado pela UniRio .
não deixem de conhecer esse filme. eis o escrevi sobre ele :

A certa altura de A paz é dourada , o ator Breno Moroni dirige-se a uma platéia, declarando que o “o filme fez-se de partes, de colagens [sic], como uma colcha de retalhos”. As palavras de Moroni e a cena em si -– o ator num depoimento que se dá ‘fora’ do fluxo dramatúrgico, do filme, que refere-se ao filme, mas não faz parte de sua narrativa básica,central,não integra seu fulcro narrativo, o próprio processo de sua realização incorporado ao filme tornando-se um dos fios condutores da narrativa, aparecendo como um elemento do (conhecido) “making of”, comum hoje em material cinematográfico, o que revela também um dos aspectos igualmente importantes do filme : sua modernidade enquanto linguagem e estilo . Modernidade e atualidade de A paz é dourada também no que absorve a tendência,ou prática,ou forma comum no cinema dos últimos tempos no Brasil – exemplos marcantes são os filmes de Eduardo Coutinho, Lucia Murat, Sandra Kogut, por exemplo -- com a inserção de elementos documentários em filmes de ficção, e vice-versa. Só que neste filme o documentário faz ficção , não como ilustração complementar mas como uma representação artística que dá continuidade ao enredo dramatúrgico propriamente dito.Documentário – ficção – documentário - ficção : os quadros e seqüências se integram e interagem e exprimem a forma e o modo como A paz é dourada se desenrola na tela, como se mostra aos olhos do espectador em termos de estrutura e forma, de ritmo, de montagem,sobretudo de dinâmica. Dinâmica – eis um elemento-chave ,termo ou atributo a caracterizar taxativamente a realização cinematográfica – instigante, provocadora, moderna, reflexiva – de Noilton Nunes . Dinâmico, ágil, fluente, intenso, moderno, o filme desenvolve-se e desdobra-se, integra-se e interage-se ,em quadros,planos e seqüências,até mesmo em filmes e subfilmes, filmes dentro do filme, em duas escalas ou níveis básicos,. -- uma dentro do próprio fluxo fílmico – a ficção e a não-ficção : a representação dramática de Euclides, sua vida, sua pessoa, a infância,a juventude, a militância republicana, o trabalho, as profissões de engenheiro e jornalista, as viagens, o pensamento, a obra ; via a vis com o documentário sobre o pano de fundo histórico, os fatos e figuras da época, os locais e cenários, as citações de trechos de seus escritos -- outra, paralela (mas convergente) ao fluxo fílmico principal, de que a cena do depoimento de Breno Moroni é exemplo, de que fazem parte cenas de “teste de elenco”, palavras e discursos de membros da Academia Brasileira de Letras e de intelectuais, comentários e interpretações entre o tempo de Euclides e o Brasil contemporâneo, a reportagem e denúncia sobre o despejo da equipe e equipamentos do estúdio montado em armazém do porto do Rio.Ambas as escalas,ou linhas narrativas, a agilizar o conjunto fílmico, a ilustrá-lo,a torná-lo irresistivelmente atraente a todo e qualquer tipo de espectador, que acompanha o filme como quem “lê” (o que só o cinema possibilita) ao mesmo tempo diversas histórias , a “leitura” de uma se dirigindo,ou desviando, para outra antes de terminar a da anterior, num mosaico de construção cinematográfica – obra do talento do realizador – em que o diapasão de dinâmica-reflexão se propõe a um diálogo, uma interlocução com o espectador,como de resto toda obra de arte deve perseguir.

Dupla escala que também se manifesta em duas balizas,por assim dizer, da feitura do filme : concebido no ano do centenário de nascimento de Euclides (1966),informa Noilton, A paz é dourada deu – se à luz,ou veio à tela, no ano do centenário de morte do escritor (2009). Magnífica e rara integração : um filme que se propõe a tratar da existência de uma personalidade tem sua ‘vida’ balizada por dois marcos da própria vida do focalizado. Mas o filme não se esgota aí. Especificamente no foco sobre a trajetória de Euclides , os dois níveis narrativos transmutam-se em três , pois exibem olhares,ou facetas pouco divulgadas ,retratadas(ao que se sabe nunca filmadas) e estudadas de Euclides : o quanto de seu pioneirismo ,no Brasil, quanto a questões políticas,ecológicas e étnicas. Pioneirismo euclidiano ao qual se integra e equipara o pioneirismo do próprio filme , primeiro a mostrar na tela essas vertentes do pensamento e da obra do escritor. Ao Euclides político,ecopolítico e etnopolítico , prenunciador e antecipador de muitos conceitos nessas searas, incorpora-se e acopla-se o filme também político,ecopolítico e etnopolítico de Noilton Nunes,da mesma forma pioneiro nesse retrato. Colagens e ‘retalhos’, representação e documentário, ficção fílmica e não-ficção fílmica, fulcro principal e ‘making of’, filme e subfilmes, cor e p&b, passado e presente, dinâmica e reflexão,modernidade e pioneirismo –- todos os elementos convergem e se intertextualizam, todo o filme se constrói ,se desdobra e se integra na exibição do perfil de um grande intelectual, empenhado na reflexão sobre o Brasil de seu tempo, ao mesmo tempo pioneiro e precursor no trato de questões absolutamente atuais . Que A paz é dourada capta,representa e reproduz, nas justas medida e dimensão -- e com esse Euclides interage reflexivamente quanto ao País em que vivemos e desejamos.


quarta-feira, 11 de novembro de 2009

a República e os literatos



como os literatos da época se relacionaram com a então nascente República -- resta saber se mais de um século depois ainda provoca reações entre a intelectualidade .

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Jesus aliado a Judas

Lula declara em entrevista que no Brasil mesmo Jesus precisaria se aliar a Judas para governar. noves fora o linguajar sempre esdrúxulo para um presidente, é verdade : a política brasileira sempre teve vocação conciliadora e se fez à base de concessões.
Euclides da Cunha já denunciava isso há mais de 100 anos.
Na apreciação da obra e da atuação intelectual de Euclides, e seu olhar sobre a questão social em simbiose com a política, é preciso ter em vista e compreender tanto o padrão de organização social e de domínio vigente no país. Sobressai em Euclides a reflexão e indagação acerca da viabilidade de a sociedade brasileira ser ou não capaz de gerar mudanças substanciais. Em torno dessa questão, construiu profunda reflexão, buscando no processo histórico os fundamentos da constituição de um tipo de configuração política que contivesse todos os elementos para as transformações sociais substantivas. Uma de suas maiores indagações reportavam-se a deduzir serem as dificuldades, os impedimentos, as impossibilidades oriundas dos homens ou das instituições? – e respondia : dos dois – porquanto a cultura política prevalecente no país se incumbia de internalizar em cada indivíduo os vícios de um modo de agir que levava à perpetuação das dificuldades políticas brasileiras. Mas atribuía também ao sistema representativo que vigorava no país, a responsabilidade pela contínua decadência política que se instaurou no século XIX e XX.
Euclides foi o primeiro de todos e seu tempo(assim como para o meio ambiente e sua correlação com a política, assim como para a Amazônia) a enxergar e denunciar a prática das conciliações – estagnadoras, tidas por ele não como construtoras do entendimento e do consenso mas como expressão de um conflito latente na própria ordem política e social brasileira. Euclides afirmava e reafirmava o caráter vicioso da prática conciliadora – e se atentarmos o quanto toda a vida política brasileira,no decorrer dos anos, se constituiu através da conciliação, constataremos a plena atualidade de Euclides também nessa seara.

[trecho de Escritos de Euclides da Cunha:política,ecopolítica,etnopolítica. Mauro Rosso, edPUC-Rio\Loyola, 2009]

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Machado, Freud, as mulheres

Os 70 anos de morte de Sigmund Freud constituem esplêndida oportunidade de tecer considerações e reflexões sobre ... Machado de Assis.
https://docs.google.com/Doc?docid=0AUkA_jvJviUlZGMyMnRwNGRfNzZnMnNuYno1Zg&hl=pt_BR

terça-feira, 4 de agosto de 2009

os muitos Euclides da Cunha,pensador do Brasil


Estamos no que se estabeleceu ser “o ano Euclides da Cunha”, pelo fato de registrar o centenário de sua morte, a 15 de agosto de 1909 – mas a exemplo do que deve ser da mesma forma oficializado para os grandes nomes da literatura brasileira ‘todo ano é ano de Euclides da Cunha’. No mínimo, como justa reverência a um dos maiores intelectuais do País, um excepcional pensador a merecer olhar ,estudo e difusão mais acurados e mais abrangentes, porquanto poucos como ele,em seu tempo, dedicaram-se tanto à reflexão e interpretação do Brasil ,inclusive sob diversas lentes – da literária à política ,da artística à sociológica – em algumas delas manifestando-se um verdadeiro pioneiro,anunciador,prenunciador e antecipador de muitas questões hoje existentes e debatidas.


Euclides da Cunha : político,ecopolítico,etnopolítico

Euclides da Cunha -- não um, mas muitos e múltiplos Euclides da Cunha : matemático,politécnico,engenheiro, geólogo e geógrafo autodidata e prático; positivista,cientificista,evolucionista - socialista ; jornalista,articulista,ensaísta, escritor, poeta – sobretudo pensador e intelectual; na obra, a literatura,a ciência,a história,a filosofia, e ainda a geografia,a geologia,a botânica, a engenharia, a técnica ; propugnador do primado da ciência e das “elites dotadas”- mas empenhado nas questões sociais; ardoroso republicano, desapontado,desiludido, cáustico crítico depois; Euclides dos primeiros tempos,Euclides de Canudos,Euclides de São José do Rio Pardo\Vale do Paraíba,Euclides da Amazônia; Euclides político,Euclides ecopolítico,Euclides etnopolítico,Euclides geopolítico.Acima de tudo, um brasileiro de primeiríssima linha na história cultural, política, social – até mesmo ideológica -- do País.
Construiu uma obra eclética em conteúdo, temática e variedade genética, e brilhante em forma,estilo e escrita , aliando a excelência de sua linguagem ,seu vocabulário apurado, sua sintaxe precisa ,à ‘riqueza’ da observação,compreensão e perfeita interpretação dos elementos sociais e da condição humana do brasileiro,seus dramas e vicissitudes,aspirações e necessidades : a par das questões políticas, a questão social inscreve-se no pensamento euclidiano como um dos componentes, ou constituintes, mais intensos e atuantes.
Uma ‘existência múltipla’,digamos assim, que tem política e filosoficamente suas origem e base no binômio positivismo (então ideologia prevalente sobretudo nas camadas sociais mais elevadas e entre a intelectualidade) -cientificismo (emprestado do ‘darwinismo social’, buscando encontrar leis de organização da sociedade brasileira )– cultuado a partir da Escola Militar e praticado na sua crença devota na República -- e detém seus corolário e conclusão no socialismo – sob um processo de geração de outros níveis de consciência -- ecopolítica e etnopolítica - a partir de Canudos e em seguida de São José do Rio Pardo\Vale do Paraíba e da Amazônia , três basilares vetores, ou vivências, de inflexão em sua vida intelectual e profissional. Na trajetória, um primeiro Euclides ardoroso,doutrinário, propagandista, devotado à República e crente no futuro; depois, desiludido, desalentado, cético com o regime e os políticos ; em seguida, estarrecido com o que testemunhara em Canudos e profundamente reflexivo e revisionista ; por fim, ao mesmo tempo extasiado e preocupado com a Amazônia, “um paraíso perdido”, “deslumbrante palco onde mais cedo ou mais tarde se há de concentrar a civilização do globo”. Em todos eles um Euclides lúcido,consciente, empenhado em formular rumos e destinos para o País, um Euclides pioneiro e precursor no trato de questões absolutamente atuais.
a política em Euclides
A política desde cedo exerceu irresistível atração em Euclides , sua biografia e sua bibliografia se confundem com a própria história social e política brasileira do final do século XIX e início do século XX. Como ser político, preocupava-se e envolvia-se com tudo – não apenas a ordem institucional, o regime político, mas com o homem brasileiro, o habitante do litoral ,do interior,do sertão e da Amazônia, com o povo , com a história e geografia brasileiras e sul-americanas, com o Brasil como nação, com a nacionalidade (cuja definição exata constituía, a seu ver, “nossa missão”).Euclides tratou de política sob as mais variadas formas e expressões ,entre artigos publicados originalmente em jornais ( A Província de S. Paulo - origem de O Estado de S. Paulo,onde publicou a maioria de seus artigos - Democracia, O Paiz, Jornal do Commercio,Revista Brasileira, O Rio Pardo,Kosmos,Revista Americana), textos e ensaios integrados às coletâneas Contrastes e confrontos(1907), À margem da história(1909), Peru vs. Bolívia(1907) e até na poesia – haja vista os poemas dedicados a Danton,Marat,Robespierre e Saint-Just, líderes jacobinos da Revolução Francesa -- bem como em conferências , como “Castro Alves e seu tempo”(1907), em cartas a amigos e correligionários, nas marcantes correspondências com o sogro Sólon Ribeiro, e especificamente quando de sua vivência (1898-1901) em São José do Rio Pardo , no programa do jornal O Proletário(1899) e o manifesto trabalhista de 1º. de maio de 1899 .
O propagandismo republicano que engendrou e praticou --pelo menos até a metade da década de 1890 - era para Euclides antes e acima de tudo propagandismo científico, irrevogavelmente convicto da superioridade da ciência sobre todas as demais formas do saber. Propugnava pelos ideais de uma sociedade humanitária, justa,democrática, moderna e civilizada – seu projeto de “Pátria humana”,como resultado possível e desejável do progresso material e científico engendrado no século XIX, a intensificar-se no século XX -- conjugando o industrialismo com a edificação de uma sociedade progressista e justa , convictamente entusiasta do “curso irresistível do movimento industrial”,para ele a lídima consumação do liberalismo econômico,indissoluvelmente acoplado ao liberalismo social que sustentava com tanta ênfase.
Havia em Euclides essencialmente uma espécie de romantismo libertário, combustível de sua crença política na República—acima mesmo de interesses pessoais --ou no republicanismo , como o único meio de o Brasil vir a ser uma Nação desenvolvida e moderna e o único modelo de organização política e social verdadeiramente democrático por eliminar privilégios e permitir ascensões e inclusões sociais .A posterior desilusão com a República foi muito mais e antes de tudo o desalento com o fracasso do ideário de liberalismo social e a certeza da não-consecução do projeto político-ideológico-científico. Talvez na sensibilização anos depois, com as teses socialistas visse nelas o suporte ideológico -- não propriamente o socialismo per se -- que propiciasse a realização daquele ideário humanitário e de justiça social. .
Passou da militância pela República à descrença com os rumos do novo regime , o distanciamento gradativamente se revelando na seqüência de artigos -- nos quais criticava de forma aguda quer o militarismo dos primeiros governos, quer o liberalismo artificial de uma Constituição que as elites civis violentavam por meio de fraudes e manipulações eleitorais : o Estado, ‘tomado’ e manipulado ostensivamente pelas oligarquias políticas e econômicas, o arrivismo financeiro desenfreado pelos especuladores, o empresariado e cafeicultores valendo-se acintosamente dos recursos públicos, deputados e senadores valendo-se da distribuição de cargos e sinecuras para familiares,amigos,protegidos e cabos eleitorais -- em diversas cartas,a primeira ao pai , em junho de 1890 -- expressando sua avaliação de que o país estava entrando em um "desmoralizado regime da especulação,em que se pensava em tudo, menos na Pátria"(muito de seu desalento vinha também do Encilhamento e sua “orgia especulativa ,e a ambição fiduciária dos sequiosos das rendas de novos cargos”) – depois ao sogro,major (à época) Sólon Ribeiro, em 1895 – dizendo que “a situação é justamente de espertos,daí o grande desânimo que me atinge.(...) Às vezes creio que a nossa Republica atravessa os piores dias” , lamentando “esse descalabro assustador, ante essa tristíssima ruinaria de ideais longamente acalentados (...), a República agora paraíso dos medíocres, nela o triunfo das mediocridades e preferência dos atributos inferiores." O que mais o inconformava era o desvirtuamento dos ideais republicanos – ao fundo e na essência, não custa reiterar, a frustração no que tange às proposições inerentes ao liberalismo social.
O idealismo republicano , diluído ao longo dos anos subseqüentes , veio a radicalizar-se na elaboração de Os sertões.Na essência, as críticas traziam implícita a revisão de algumas de suas próprias posições políticas, marcadas originariamente pela adesão a um conjunto de crenças científicas e filosóficas materializadas no movimento republicano, mas que foram paulatinamente, a par dos desmandos praticados no novo regime, se incorporando a um processo de conhecimento e consciência inerentes a sua vivência em Canudos – testemunha ocular e física dos cenários de miséria,opressão, violência, injustiça social -- e depois em São José do Rio Pardo, quando e onde entrou em contato com um movimento ideológico – de resto já grassando em partes do mundo e entre muitos intelectuais brasileiros -- então emergente na cidade.
Não pode deixar de se considerar, dentro do espectro ideológico euclidiano, a questão do socialismo, assumido explicitamente a partir de 1899 – mas convém saber que já por volta de 1894 entregara-se com fervor aos estudos brasileiros e interesse pelas ideologias renovadoras que já encontravam eco no Brasil republicano,entre políticos,intelectuais e literatos. Euclides efetivamente se achegou ao grupo socialista de São José do Rio Pardo – é certo,por exemplo,que elaborou junto com o amigo Francisco Escobar o programa de O Proletário ,órgão do “Clube Internacional Os Filhos do Trabalho”,bem como o expressivo manifesto trabalhista de 1º. de maio de 1899 -- mas não há provas efetivas e concretas de ter sido propriamente um militante ativo.Por outro lado, há de se ter em vista que mensagens ou discursos de teor socialista estão explicitamente presente nos artigos por ele publicados em 1º. de maio de 1892 e 1º. de maio de 1904 – este, intitulado “Um velho problema” -- ambos em O Estado de S. Paulo.
a ecopolítica em Euclides
De olhar voltado prioritariamente para o interior do país , Euclides da Cunha foi rigorosamente o primeiro intelectual brasileiro a cultivar e externar preocupações com o meio ambiente, inclusive fazendo da ecologia um tema político, um item de propostas de ação política, em que registra,observa e critica os embates entre uma civilização, para ele ainda improvisada, com a natureza do país , lançando as bases, inéditas no país , avançadas ao extremo em seu tempo e antecipadoras dos conceito e elementos do desenvolvimento sustentável , na permanente preocupação euclidiana no conciliar progresso com a preservação ambiental.
Ainda com 18 anos,lavrava um protesto em seu primeiro trabalho no jornal O Democrata de 4 abril 1884 –pequeno jornal dos alunos do colégio Aquino,onde estudava desde 1883, no qual inclusive foi aluno de Benjamin Constant,professor de matemática,que iria em 1886 reencontrar na Escola Militar e nele insuflar os ardores republicanos ; no artigo, externando o interesse e apreço pela natureza que estaria presente em toda sua obra,ao lado de descrever em viagem de bonde para o colégio as maravilhas do cenário natural que descortinava,as matas e florestas da cidade do Rio de Janeiro, criticava o progresso representado pela estrada de ferro que degradava a natureza : “(...)Ah ! Tachem-me muito embora de antiprogressista e anticivilizador, mas clamarei sempre e sempre: - o progresso envelhece a natureza, cada linha do trem de ferro é uma ruga e longe não vem o tempo em que ela, sem seiva, minada, morrerá! E a humanidade, não será dos céus que há de partir o grande "Basta" (botem b grande) que ponha fim a essa comédia lacrimosa(...)Tudo isto me revolta ,me revolta vendo a cidade dominar a floresta,a sarjeta dominar a flor”.
Os sertões eram vistos por Euclides com um olhar mais amplo,abrangente e profundo que o de um geógrafo puro, mais do que de um simples geólogo, muito mais que de qualquer antropólogo : desenha,disseca e ‘interpreta’ o cenário dos sertões, descrevendo com rigorosa exatidão as formação, estrutura e nuances geológicas e climáticas da região – a “terra ignota” – e a partir daí, compõe sua reflexão sobre a seca , a incapacidade geral do país em resolver o problema – de um lado, evocando exemplos bem-sucedidos de soluções corretoras dos efeitos das secas adotada por outros países (“a exploração científica da terra,coisa vulgaríssima hoje em todos os países, é uma preliminar obrigatória do nosso progresso”) ; em diversos escritos propõe soluções técnicas, dessa ordem, para a questão no Brasil : se é capaz de criar desertos, o homem poderia também extingui-los – de outro, denunciando a utilização política da seca que tem servido para “a retórica de congressos e conferências,para projetos mirabolantes,para justificar uma burocracia voraz, perfeitamente digna de salvar o Nordeste nas esquinas da Avenida [assim] O Brasil não resolve seu grande problema,que não é apenas administrativo porque é igualmente moral,social e político”.
Depois, nos textos “Fazedores de Desertos”, publicado originalmente em 1901,em O Estado de S. Paulo, e “Entre as Ruínas”, em O Paiz,1904 ( cuja primeira versão, sob o título “Viajando” , é de 1903, em O Estado de S. Paulo– ‘credita’ ao próprio avanço humano o efeito maléfico na vegetação, nos recursos hídricos, nos solos, no clima, provocado pelas queimadas numa agricultura ainda com métodos herdados do período colonial . Como na maioria de seus textos sobre o tema, Euclides confronta riquezas passadas e farturas naturais com uma realidade arruinada -- “temos sido um agente geológico nefasto e um elemento de antagonismo terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia” – explica,algo didaticamente, o processo de agricultura itinerante que ia tornando a terra cada vez mais desabrigada e pobre,e evoca a história ao atribuir a devastação florestal,como um ciclo desde os primórdios, ao indígena brasileiro , continuada pelo colonizador,feito um “terrível fazedor de desertos”, fosse o garimpeiro, “atacando a terra nas explorações mineiras a céu aberto, esterilizando-a com o lastro das grupiaras,retalhando-a a pontaços de aluvião” ou lavrador,“eliminando, a partir do mau ensinamento aborígene [a queimada] as grandes extensões de matas e florestas e aviltando o clima”, tornados ambos herdeiros de um modelo nefasto de uso da terra, agravando-o a ponto de esterilizar sua fertilidade e tornar a paisagem uma ruína só, de natureza e de pessoas,inclusive desencadeando fenômenos climáticos e geológicos na formação de desertos e do regime das secas – as quais dissecaria como ninguém ao dedicar-se ao sertão.Euclides contestava um modelo “peculiar e oportunista” de desenvolvimento, que “povoa despovoando”, “não multiplica as energias nacionais, desloca-as”, fazendo “ avançamentos que não são um progresso, indoao acaso, nesse seguir o sulco das derribadas, deixando atrás um espantalho de civilização tacanha nas cidades decaídas circundadas de fazendas velhas”.
Ninguém antes de Euclides dedicou-se com tanta ênfase, profundidade e , em especial , pioneirismo,à Amazônia : foi o primeiro dos literatos brasileiros a conhecê-la in loco e a retratar ,dramaticamente, aquele “paraíso perdido” e despertar,em textos ‘reivindicantes, vingadores’, o conhecimento e a discussão dos gritantes problemas que afligiam(afligem) a região – segundo ele um outro Brasil,aliás um novo Brasil .Sob o escopo de seu projeto de integração nacional, a Amazônia seria o destino inevitável dos contingentes saídos de outras regiões por adversidades climáticas,geológicas,geográficas e especialmente sociais e econômicas,constituindo-se na “mais dilatada diretriz de expansão de nosso território”, e para seus olhos embevecidos o “deslumbrante palco onde mais cedo ou mais tarde se há de concentrar a civilização do globo” – daí vindo a ser um dia objeto de cobiça estrangeira, vítima do expansionismo e ambições territoriais das potências mundiais (“a expansão imperialista das grandes potências é um fato de crescimento... e a conquista dos povos é uma simples variante da conquista de mercados”), o que exigia, sustentava Euclides, imediata e eficaz ação por parte das autoridades e do Poder Público para completas defesa e integração da região.Na Amazônia, por Euclides, a ecopolítica recebe novas lentes : o olhar euclidiano sobre a região e seu ‘destino no Brasil e no mundo’ envereda e lança as primeiras luzes para a geopolítica,rigorosamente nos moldes,diga-se, dos mais atuais e importantes debates .
a etnopolítica em Euclides
A etnia brasileira foi um dos temas que mais mobilizaram Euclides para a formulação de reflexões sobre a nacionalidade, per se um tópico já excepcionalmente preponderante em seu arcabouço intelectual .No capítulo “O homem”,de Os sertões, por exemplo, expôs analiticamente as origens do homem americano, a formação social do sertanejo,e em especial os “malefícios da mestiçagem”: numa espécie de teoria étnica fatalista , admitia a história brasileira ter sido construída por meio do choque entre etnias e culturas condenadas ao desaparecimento -- rigorosamente de acordo, diga-se, com as teorias do sociólogo austríaco Ludwig Gumplowicz ( que,sabemos, foi um dos pilares filosóficos ,ao lado de Spencer, do pensamento evolucionista de Euclides) e sua teoria de a História guiada pelo conflito entre raças a resultar,conforme as ‘leis’ do evolucionismo, no esmagamento inevitável dos fracos pelos fortes.
Ao mesmo tempo em que reitera a falta de “integridade étnica” do brasileiro,
Euclides não julgava possível um único tipo étnico no Brasil -- “não temos unidade de raça,não a termos nunca; até porque nenhum país a tem igualmente, por toda parte os cruzamentos sucessivos impediram a conservação do tipo primitivo” – posteriormente, sob o revisionismo pungente que elaborou, passou a ter o sertanejo, segundo ele, um tipo étnico-social diferenciado , como o único elemento de esperança de constituir no Brasil uma população homogênea , porquanto “as vicissitudes históricas o libertaram,na fase delicadíssima de sua formação,das exigências desproporcionais de uma cultura de empréstimo”.
Neste particular, Euclides obedecia à crença na inferioridade dos não-brancos -- mas com uma nuance : enaltecia o sertanejo que detinha vantagens sobre o mulato litorâneo por força de seu isolamento que propiciara evolução racial e cultural mais estável – “o sertanejo é antes de tudo um forte, não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. Observa Euclides que “ao invés da inversão extravagante, que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento - nos sertões, a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de evoluir, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos, porque é a sol ida base física do desenvolvimento moral ulterior."
O sertanejo,no desenho literário-antropológico que construiu, era o resultado da convergência e interação , formando uma ‘sub-raça superior’ (sic) , entre a bravura indígena e a ousadia dos bandeirantes paulistas ,com seu “destino histórico de assaltar o deserto (...)cruzados destemerosos a desencadear a atividade arroteadora e valorizadora dos espaços interiores do território,integrando-os (...)”Na verdade, Euclides edificou a imagem do homem do sertão como um ser autêntico, enraizado na terra, dotado de cultura e evolução próprias e autônomas , capaz inclusive de criar o brasileiro do futuro – como “rocha viva da nacionalidade”.
A rigor, as concepções e considerações étnicas de Euclides acoplam-se, interagem e se intertextualizam com seus conceitos de civilização e o “movimento civilizador” que preconizava – ou processo civilizatório para o qual a República teria sido um decisivo passo. Desde seus primeiros textos,com efeito, o termo e o conceito de “civilização” aparecem uma força histórica e como uma lei natural, até porque inerentes ao ideário positivista e evolucionista, a civilização como o modelo de desenvolvimento para a humanidade. : “a civilização é o corolário mais próximo da atividade humana sobre o mundo; (...) o seu curso, como está, é fatal, inexorável” . Via-a como instrumento de luta intelectual pela construção de uma identidade nacional, que se queria livre de fórmulas invasoras: “Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.”
nos muitos Euclides, um só
O certo é que permeando e perpassando todas as fases e estágios de sua vida e todas as linhas e entrelinhas de seus escritos,depoimentos e palavras , mais do que matemático,engenheiro,geólogo,geógrafo,historiador,jornalista,articulista,
ensaísta, em especial, um pioneiro no que tange a questões ligadas à ecopolítica, e à etnopolítica no Brasil , prevalece o Euclides pensador ,um intelectual empenhado,permanentemente, na reflexão e formulação de propostas para fazer do Brasil uma nação moderna e afinada com a civilização.

domingo, 19 de julho de 2009

salve o 19 de julho !


julho, 19 : dia do futebol .e como dele trataram literatos.

O futebol , os literatos e duas cidades
no Rio de Janeiro...
O futebol, todos sabemos, surgiu no limiar do século XX no Rio de Janeiro como “uma grande novidade”, mas por ser esporte de origem inglesa logo cairia no gosto das rodas elegantes da cidade ( que na época cultivavam quase que exclusivamente o remo ) — e de imediato, por suas próprias características , despertaria paixões acirradas, não apenas entre torcedores e admiradores dos clubes então formados ( Payssandu Cricket Club, Fluminense Foot-Ball Club, The Bangu Athletic Club, etc ).Justamente por ter vindo da “Old Albion” (assim era chamada a Inglaterra, ‘ na intimidade’, pelas elites ) , em seus primeiros anos na cidade o futebol teve um caráter restrito, praticado preponderantemente por jovens ricos e bem-nascidos — mas já no final da década de 1910 alcançava uma popularidade nunca vista. João do Rio foi o primeiro cronista a detectar a importância do jogo para a cidade , assinando com o pseudônimo de José Antonio José (um de seus ‘disfarces’ jornalísticos : com esse nome, escreveu por exemplo Memórias de um rato de hotel) uma crônica intitulada “Pall Mall Rio – Foot-ball” em O Paiz de 4 de setembro de 1916, onde vaticinava :“Tenho assistido a meetings colossais em diversos países, mergulhei no povo de diversos países, nessas grandes festas da saúde, da força e do ar. Mas absolutamente nunca eu vi o fogo , o entusiasmo, a ebriez da multidão assim”.
Na esteira de João do Rio, impressionados com a avassaladora popularidade do futebol, os intelectuais , e notadamente os escritores, se entregaram à tentação e ao desafio de interpretá-lo — e dentre eles um logo se notabilizou como o maior dos adeptos, o mais vibrante entusiasta do novo esporte, tornando-se em pouco tempo grande ideólogo do jogo, mergulhando obstinadamente na defesa apaixonada das vantagens de sua dissiminação : Coelho Neto. A atração que o futebol logo exerceu sobre ele manifestou-se já em seu romance Esfinge, publicado em 1908 por Lello & Irmãos, do Porto, em que o personagem James Marian, um inglês hóspede da pensão de miss Barkley, tinha o hábito de “aos domingos, sair cedo com seu material de tênis e com roupa para o foot-ball”. E o futebol passaria a ser, a partir daí, tema omnipresente não só nas crônicas e discursos mas também -- e principalmente -- na vida pessoal de Coelho Neto.
Sócio do Fluminense, entregou-se cada vez mais à paixão -- pelo esporte e pelo clube. Tanta que, em sua casa , assegura Humberto de Campos em Diário secreto , vol. I (edições O Cruzeiro, 1954) ,falava-se à mesa “muito de esporte e pouco de literatura” ; tamanha paixão que chegava a assistir , no mesmo dia, quatro jogos diferentes do Fluminense, pois tinha filhos jogando em cada uma das categorias que o clube disputava ; tamanha, que o levou a liderar a primeira invasão de campo do futebol carioca, inconformado com o juiz que marcara um pênalti a favor do Flamengo num movimentado Fla-Flu no campo da rua Paissandu, e que acabou provocando a anulação do jogo .
Tamanha paixão que em 1915 escreveu a letra do primeiro hino do Fluminense [ “O Fluminense é um crisol / onde apuramos a energia / ao pleno ar, ao claro sol / lutando em justas de alegria / o nosso esforço se congraça / em torno do ideal viril / de avigorar a nossa raça / do nosso Brasil ...]­­­­ ,onde fica evidente e bem mais nítida a campanha que ele começava a mover a favor do futebol , verdadeira fonte de energia a ser colocada a serviço do ideal nobre de regeneração da raça brasileira, “um meio de criar uma ‘nova raça’ contra uma malfadada herança cultural”. Vale observar que literatos outros, como Afrânio Peixoto -- para quem o futebol estaria “reformando, senão refazendo o caráter do Brasil ” (em “A educação nacional”, no livro Poeira de estrada, ed. Francisco Alves, 1918) -- Olavo Bilac,contagiados pelo entusiasmo e a vibração dos escritos de Coelho Neto, também entregaram-se à difusão desses ideais de culto ao corpo e defesa acalorada do esporte como ‘fator de regeneração racial’ .
No futebol, Coelho Neto via “enormes vantagens sociais” ­­, ajudando a criar uma sociedade na qual os homens , qual os esportistas, fossem adestrados pelo exercício físico, criando um tempo de paz e de harmonia e abrindo o peito para valores nobres de confraternização e integração social”. E os jogadores do Fluminense, para ele, assumiam a feição de verdadeiros missionários de uma causa nobre : propagando os princípios da disciplina e da solidariedade, os atletas dariam ao país grande exemplo, ajudando a consolidar o potencial transformador do futebol .Gerando harmonia e solidariedade entre os homens, controlando seus impulsos e moldando seus corpos e suas mentes na construção de um ideal de pátria, o futebol seria a força propulsora de uma nação forte e vigorosa e os jogadores representantes dessa nova nação que se erguia dos campos.
Mas teriam de enfrentar, do outro lado , a acirrada oposição de ninguém menos do que Lima Barreto, de pronto alinhada entre “os tantos inimigos que pela imprensa o combatem” e que logo passou a fazer do futebol um de seus temas prediletos nas páginas da imprensa carioca. Com espaço e reconhecimento já assegurados nos círculos literários , com três romances e uma infinidade de crônicas, Lima inaugurou seus ataques em 15 de agosto de 1918 no artigo “Sobre o Foot-ball” no jornal Brás Cubas :
Diabo ! A cousa é assim tão séria ? Pois um divertimento é capaz de inspirar um período tão gravemente apaixonado a um escritor ?
(...) Reatei a leitura, dizendo cá com os meus botões : isto é exceção, pois não acredito que um jogo de bola e sobretudo jogado com os pés, seja capaz de inspirar paixões e ódios. Mas , não senhor ! A cousa era a sério e o narrador da partida, mais adiante, já falava em armas ...
Não conheço os antecedentes da questão ; não quero mesmo conhecê-los ; mas não vá acontecer que simples disputas de um inocente divertimento causem tamanhas desinteligências entre as partes que venham a envolver os neutros ou mesmo os indiferentes, como eu, que sou carioca, mas não entendo nada de foot-ball."

Lima atentava , desde o princípio, para a força social do jogo : longe de ser um mero passatempo sem sentido, era capaz de inspirar “paixões e ódios” — e o futebol adquiria para ele uma seriedade ímpar, que o obrigaria como ‘crítico de costumes’ a dedicar-se profundamente ao novo fenômeno. Transformando-se no paladino do combate ao jogo de bola, Lima elegeria justamente Coelho Neto como o principal adversário . Iniciou-se então um acirrado confronto pelas páginas da imprensa carioca , logo depois de mais um empolgante discurso de Neto, por ocasião da inauguração da piscina do Fluminense em 1919 — discurso que para Lima parecia um verdadeiro pecado, manifestado na crônica “Histrião ou literato” , na Revista Contemporânea, de 15 de fevereiro de 1919 :
O senhor Neto esqueceu-se da dignidade do seu nome, da grandeza da sua missão de homem de letras, para ir discursar em semelhante futilidade..
Os literatos, os grandes, sempre souberam morrer de fome, mas não rebaixaram a sua arte para simples prazer dos ricos. Os que sabiam alguma coisa de letras e tal faziam, eram os histriões; e estes nunca se sentaram nas sociedades sábias
. “
Lima Barreto acusava Coelho Neto de fazer “somente brindes de sobremesa para satisfação dos ricaços “, e sustentava que a simpatia de Neto pelo futebol seria mero oportunismo, um meio de agradar às ricas famílias , vindo de “um homem que não entende sequer a alma de uma criada negra”. A partir daí, Lima aumentaria nos meses seguintes a quantidade e intensidade dos ataques, passando no entanto a por vezes valer-se de fina ironia , como nos artigos “Vantagens do foot-ball” e “ Uma partida de foot-ball”, escritos para a revista Careta, respectivamente de 19 de junho de 1919 e 4 de outubro de 1919. Dos artigos , agressivos ou irônicos, de Lima Barreto surge a imagem de um jogo brutal e sem sentido, totalmente diferente do elemento de regeneração social preconizado por Coelho Neto , para desespero da imprensa carioca, quase toda ela empenhada em prestigiar o futebol — com raríssimas exceções como, por exemplo, a do jornalista e escritor Carlos Sussekind de Mendonça, que incorporou-se à luta de Lima Barreto contra o futebol, que ele considerava entre outros aspectos “micróbio de corrupção e imbecilidade”, “estrangeirismo estéril e inútil”. Propunha sobretudo combater , de todas as formas, a “nefasta defesa do futebol” feita por intelectuais e escritores — rejeitando, inclusive, qualquer teoria de que “o esporte possa manter alguma relação com a razão e o intelecto” — e denunciar as “verdadeiras atrocidades,até dentro dos próprios clubs” promovidas pelo futebol : como Lima Barreto, enfatizava o “blefe de regeneração social” contido no futebol e os malefícios “físicos, sanitários,sociais e culturais” de sua disseminação “que só pode ser bocado de feitiçaria” em campos “onde se apinham centenas de ociosos assistindo inertes, a transpirar, os vinte e dois heróis de maxambona ou caixa pregos” .Em 1921, então editor do jornal A Época, do Rio de Janeiro, Sussekind de Mendonça teve seu livro O sport está deseducando a mocidade brasileira publicado (Empresa Brasil Editorial, Rio de Janeiro),com o subtítulo “dedicado a Lima Barreto”, hoje obra raríssima.Lima Barreto viria a publicamente agradecer e fazer comentários ao livro de Sussekind no artigo“Como resposta”,em Careta, a 8 de abril de 1922.
Ainda em 1919, crescente sua oposição ao futebol , Lima Barreto passa a contar com a solidariedade de outros adversários do jogo :junto com ele, o dr. Mário de Lima Valverde — quem, cerca de dois meses antes ,discorrera para Lima sobre os malefícios à saúde provocados pela prática de futebol — o jornalista Antonio Noronha Santos e o “homem de letras” Coelho Cavalcanti resolvem criar, em março de 1919, uma “Liga Contra o Futebol”, cuja constituição é discretamente anunciada em pequena nota na edição do Rio-Jornal de 12 de março.
As aludidas “verdadeiras atrocidades promovidas pelo futebol”, eram denunciadas por Lima Barreto — como na crônica intitulada “Divertimento?”, publicada na revista Careta em 04 de dezembro de 1920,em que destacava os inúmeros conflitos e constantes brigas ocorridos nos campos, com tumultos e batalhas entre torcidas diferentes, registradas nos jornais diários a cada segunda-feira, culminando com o tiroteio num jogo entre o Metropolitano e o São Paulo e Rio em 18 de dezembro de 1920 — como atestados de que, mais do que casos isolados, seriam “ o fim próprio e natural do jogo”, como sustenta no artigo “Uma conferência esportiva”, na revista Careta de 1 de janeiro de 1921.
Por trás da contestação estava muito mais do que uma questão literária ou mera contestação do papel de redenção social que Coelho Neto atribuía ao futebol : Lima via nele um fator de degeneração da cultura e da política nacional, pois patrocinava uma injusta e gritante diferenciação social e regional, como declarou em entrevista ao Rio-Jornal em 13 de março de 1919 :“ – Está aí, uma grande desvantagem social do nosso foot-ball. Nos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do ponta-pé propaga sua separação e o governo o subvenciona ."
Lima criticava os “favores e favorezinhos “ que os clubes de futebol recebiam do governo para “criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros , e longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, separa-as” : segundo ele, os clubes de futebol seriam “portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc “. Isso porque os defensores do futebol, ainda Coelho Neto à frente, sustentavam ser “um sport que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo “ (jornal Sports, de 6 de agosto de 1915 ) e reclamavam “que alguns jogadores não tinham o nível social de há uns anos atrás” (Jornal do Brasil, de 3 de maio de 1920).
Porém, não eram apenas econômicas e sociais as distinções combatidas por Lima Barreto , mas também raciais, vedando aos negros participação nos grandes clubes de futebol : em 1921 quando o próprio presidente Epitácio Pessoa proíbe jogadores negros de fazerem parte do selecionado que ia à Argentina disputar um campeonato, Lima foi duro nas críticas , publicando no mesmo dia 1 de outubro de 1921 dois artigos — “O meu conselho” e “Bendito foot-ball” — no jornal A . B. C., onde afirma que “quando não havia foot-ball, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer parte” e aponta o caráter nocivo do futebol para o país.“ É o fardo do homem branco : surrar os negros, a fim de trabalharem para ele. O foot-ball não é assim : não surra, mas humilha, não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam .”
Vendo nos sócios dos grandes clubes os herdeiros dos antigos senhores de escravos, Lima enxerga no futebol “uma das formas de continuação da dominação exercida durante décadas pelo regime escravista, onde se troca a violência pela humilhação de quem paga impostos para sustentar, com subvenções oficiais, um jogo ao qual não tem acesso”, o futebol aparece nos textos de Lima Barreto como “ um poderoso instrumento de domínio utilizado por uma raça que se julga eleita por Deus graças às suas habilidades nos pés ; como a escravidão, sua única finalidade é criar uma separação idiota entre os brasileiros, perpetuando as desigualdades e continuando um passado de diferenciação e segregação” (artigo “O nosso esporte”, publicado no jornal A . B. C., de 26 de agosto de 1922 ).
Direta ou indiretamente, não há dúvida de que os literatos como Coelho Neto e Lima Barreto e suas polêmicas alimentavam um processo que anos depois faria do futebol , como o é hoje , uma verdadeira instituição nacional. A dinâmica da transformação do jogo em fenômeno nacional — com suas implicações sociológicas, políticas e culturais — no entanto, foi muito menos compreendida por Coelho Neto do que por Lima Barreto, que indignado com o fato de “indivíduos que não davam para nada “ serem transformados em verdadeiros “heróis nacionais”, refutava no último artigo escrito antes de morrer ( “O herói”, para a revista Careta de 18 de novembro de 1922 ) a lógica que fazia desses “pobres esforçados, que nada fazem para o benefício comum, injustas ‘glórias do Brasil’”.
A realidade incontestável é que o futebol continuou – e continua -- ao longo do tempo, sua meteórica ascensão e disseminação entre todas as camadas e estratos, como ‘força esportiva’, ‘força social’, ‘força cultural’. Seguiu sua trajetória eletrizando todas as camadas sociais e sensibilizando escritores, artistas e intelectuais — de Graciliano Ramos, que o repudiava ("Futebol não pega, tenho certeza; estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho", em 1919), a Orígenes Lessa ,Fernando Sabino, que o inseriram em contos ; de Gilberto Freyre ,um entusiasta de primeira linha, que incluiu o futebol em muitos de seus escritos, a Mario Filho – autor do memorável O negro no futebol brasileiro – e chegando ao auge da paixão futebolística ‘a serviço’ da literatura, nela integralmente enfronhada e estigmatizada, em José Lins do Rego e Nelson Rodrigues.
... e em São Paulo
Na esteira e na órbita do pioneirismo que sempre caracterizou a cidade ,São Paulo foi ‘o berço do futebol no Brasil”, a primeira cidade a organizá-lo e disseminá-lo em campos oficiais, pelas ruas e pelos terrenos baldios.Principalmente por causa dos imigrantes europeus,sobretudo ingleses,que — também no Rio de Janeiro — contribuíram para a disseminação dos esportes em geral e para fundação de clubes esportivos, a princípio de cricket (e depois, de futebol).
Foi um paulistano de berço que introduziu o futebol no Brasil: Charles Miller, descendente de ingleses e escoceses , nascido no Brás, aos 9 anos seguiu para a Inglaterra com a finalidade de estudar , e lá, aprendeu - e bem - a jogar futebol. No ano de 1894, retornando de seus estudos na Inglaterra, trouxe na bagagem uma bola de futebol e começou então a catequizar seus companheiros de trabalho e de críquete - altos funcionários da Companhia de Gás, do Banco de Londres e Ferrovia São Paulo Railway, fundando em 1888 o primeiro clube de futebol do Brasil, o São Paulo Athletic, clube que congregava os britânicos residentes em São Paulo.
Nenhuma cidade brasileira como São Paulo apresenta tamanha precocidade na introdução do futebol : já no final do século XIX era praticado em clubes, empresas (de capital inglês) e escolas; em 1896, por exemplo, o velódromo da família Prado, na Consolação, foi reformado para abrigar partidas de futebol ; em 1902 a cidade organiza o primeiro campeonato de futebol do país — a primeira partida de futebol realizada no Brasil, dentro das regras oficialmente estabelecidas na Inglaterra em 1863, aconteceu na Várzea do Carmo, entre as equipes inglesas São Paulo Railway e The São Paulo Gaz, em 14 de abril de 1895 (jogo ganho pela primeira por 4 x 2); e o primeiro clube de futebol formado essencialmente por brasileiros foi o Mackenzie College, criado em 1898.
Em 1899 são fundados primeiro o S.C. Internacional, e quinze dias depois o S.C. Germânia. Em 1900, pode-se dizer, nasceu a verdadeira organização do futebol paulistano quando chegou, de volta de seus estudos na Suíça, o jovem Antonio Casimiro da Costa, que começou a lutar para a constituição de uma Liga dos clubes já existentes, e pela organização de um campeonato . Neste mesmo ano deu-se a fundação do Clube Atlético Paulistano ; e em 1904 apareceu a Associação Atlética das Palmeiras — que até 1915 foi constituída por doutorandos, engenheiros e futuros advogados. Isso porque o futebol era o coqueluche da mocidade estudiosa de São Paulo, no início do século : quase que se limitava aos estudantes naquele tempo, quase todos filhos de famílias abastadas ; a verdadeira diversão domingueira da alta sociedade paulistana, não se compreendia então um acadêmico de direito sem ser integrante de um dos clubes já existentes. A classe dominava abertamente no Paulistano, Palmeiras, Mackenzie e Internacional : muitos rapazes, grandes craques do início do século, foram e são homens públicos, cientistas, diplomatas, jurisconsultos e engenheiros famosos. [ Tornaram-se os ídolos máximos desse geração Rubens Sales e Arthur Friedenreich, este considerado o primeiro craque do futebol brasileiro ( e autor do primeiro gol da seleção nacional, em 1914).Em 1920 o futebol já dominava a cidade inteira e Palestra Itália, Paulistano e Corinthians formavam o “trio de ferro” dividindo entre si a preferência quase geral.Memorável entre todos os fatos esportivos, foi a excursão do Paulistano à Europa em 1925—que propiciou o poema “E a Europa curvou-se ante o Brasil “ de Oswald de Andrade ].
Estudiosos sugerem duas hipóteses para tentar explicar a razão pela qual São Paulo — que já contavamdesde o início com um espaço específico, o velódromo da Consolação — antecede o Rio de Janeiro na adoção do futebol : primeiro, o Rio já possuía um esporte de relativa popularidade, o remo, que o futebol somente conseguiu destronar por volta de 1910; segundo, por causa da índole de modernidade paulistana embrião da metrópole frenética que naquele momento melhores condições possuía para assimilar inovações, e dentre elas o futebol. E São Paulo foi a primeira cidade a atrair grandes multidões aos campos,o futebol, como prática popular de entretenimento, se insere na própria formação da classe operária paulistana, como elemento de sua cultura : certamente, o grande número de imigrantes e operários contribuiu para a rápida popularização do futebol em São Paulo.
Mas, de acordo com interpretações históricas, um dos proeminentes vetores da popularização do jogo de futebol, tanto no Rio como em São Paulo, teria sido resultado direto da intervenção dos patrões, das autoridades, do Poder Público — no Rio, como contraposição à capoeira, já prática proibida; em São Paulo, como antídoto contra as greves : a emergência e fortalecimento do movimento operário por volta de 1917 ‘revelou’ ao governo e aos empresários que a cidade precisava de “um esporte de massas”(sic); os operários seriam então ‘mandados a jogar futebol’, para o que os patrões “deveriam construir grounds”. O futebol seria assim um eficiente instrumento ‘disciplinador’ utilizado e patrocinado pelos industriais “para ordenar os trabalhadores e dinamizar a produção”, “um ensinamento de disciplina e de harmonia” — o esporte sendo muito mais uma imposição ou uma ‘dádiva’, muito menos prazer e desejo e iniciativa de quem o praticava.
Ao mesmo tempo, em São Paulo os campos de futebol se constituíram em importante elemento na caracterização das vilas operárias , que eram “espaços de ordenação”: o futebol ajudava a manter o operário num “espaço de ordem e disciplina, livre do caos e da desordem” e proporcionava aos trabalhadores “o relaxamento necessário para depois produzirem mais e melhor...”.
Em São Paulo, o Poder Público isentava os campos de impostos, os industriais construíam grounds — e a polícia deixava de reprimir os “rachas” em terrenos baldios : já era bastante difundida e rotineira a prática do jogo nas várzeas e terrenos baldios.
Naquele ano de 1902 em que os paulistas organizam o primeiro campeonato de futebol no Brasil surgiram os primeiros campos de várzea, que logo se espalham pelos bairros operário; já em 1908/1910 a várzea paulistana congregava vários e concorridos campeonatos, de forma que São Paulo não é apenas pioneira nacional no futebol "oficial", mas também (e sobretudo) no "futebol popular".
E é na cidade que, não por acaso, surge em 1910 aquele que, dentre os grandes clubes do futebol brasileiro, foi o primeiro a se formar a partir de uma base popular: o Sport Clube Corinthians Paulista .
Um mais abrangente pano de fundo histórico registra que, pela a necessidade de um reordenamento geral de todo o contexto social, o futebol passou a ser considerado como parte do processo modernizador e o desenvolvimento de práticas esportivas considerado uma forma de atenuar as tensões políticas.Caracterizado já nas décadas de 1930/40 como um fenômeno popular e de massa, o futebol,assim como as atividades esportivas em geral, já era visto pelas elites governantes como um componente fundamental a ser atingido numa “cruzada disciplinadora”, correspondendo a um movimento cultural e político mais amplo, envolvendo tanto os interesses de disciplina social do Estado quanto a produção de uma identidade nacional (expressa e reforçada, por exemplo, pela participação da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de 1938 ).
Nacionalismo e autoritarismo constituíam-se em eixos fundamentais tanto na prática política quanto na obra de vários intelectuais brasileiros. Para estes, a República até então não havia sido capaz de forjar uma verdadeira nação, já que, entre outros motivos, os particularismos regionais ainda eram dominantes. Assim, para os setores que exerciam o domínio político no país, uma tarefa urgente se impunha: construir a nação brasileira. Para tal, o futebol, com sua extraordinária adesão popular, foi sem dúvida um excepcional instrumento [Nesse particular, por exemplo, a construção de estádios de futebol passou a constituir prioridade para sua disseminação e arregimentação de massas populares : em abril de 1940 foi aberto ao público,em São Paulo, o Estádio Municipal do Pacaembu, “de linhas tão imponentes quanto harmoniosas , maravilhosa obra coletiva que encarna plenamente a modernidade paulistana”, com o qual nasceu uma das principais tradições políticas do futebol brasileiro: a construção generalizada de estádios com recursos públicos ] .
Os intelectuais entram em campo
Embora por volta de 1905 o futebol ainda fosse desconhecido para a ampla maioria dos brasileiros, em São Paulo já atraía grande interesse popular — tanto que até Monteiro Lobato, então acadêmico de direito, que numa carta a Godofredo Rangel, em 11.07.1904,escrevia : "(...)E cá estou de novo em São Paulo, mas ainda atribulado. Mudei-me para um quarto de frente na rua Araújo 26, com um lampião de rua bem junto à minha janela. Tenho luz de graça. E defronte há uma vizinha janeleira que já piscou. Em vez de namorá-la, meti-me no futebol - "Palmeiras". Joguei vários dias seguidos e fiquei mais derreado que com as léguas do sertão. Estou cheio de pisaduras e dodóis. Isto deve ser o que na "Vida Intensa" o Th. Roosevelt quer. O futebol empolgou-me de alma e corpo; escrevo crônicas de futebol e jogo. Diz o Tito que é mania - e diz-lhe o Raul: "Jacques, tu es un âne". Seja como fôr, asseguro-te que o futebol apaixona e contunde".O mesmo Lobato de um discurso fervoroso em 1905 após assistir a jogos entre paulistanos e ingleses: "(...) Essa luta tinha para a população de São Paulo um significado moral dez vezes maior do que a eleição para um presidente do Estado (...) O último goal do Paulistano provocou a maior tempestade de aplausos jamais conhecida em São Paulo (...) É desta espécie de homens que precisamos. Menos doutores, menos parasitas, menos bajuladores, e mais struggle-for-life. Mais homens, mais nervos, mais corpúsculos vermelhos, para que um Camilo Castelo Branco não possa repetir que ele tem sangue corrompido nas veias e farinha de mandioca nos ossos".
Apesar disso, não conseguia suscitar grandes paixões que extrapolassem o âmbito esportivo Intelectuais e escritores -- caso de Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, Hilário Tácito --apenas esparsa e timidamente o registravam em seus escritos : quando muito admitiam e exaltavam a plasticidade do jogo, a elasticidade das jogadas, a empolgação dos que praticam e assistem as partidas . Mais tarde, já pelo final da década de 1910 e início de 1920 — no Rio de Janeiro ,o futebol visto como instrumento de ‘modernização pretendida pela República’, com as adesões entusiasmadas de Coelho Neto, Olavo Bilac e Afrânio Peixoto ,e a oposição ferrenha de Lima Barreto — em São Paulo dava-se a dedicação documental-historiográfica de Antonio Figueiredo e Leopoldo Santana , um relativo envolvimento de Menotti Del Picchia (registrando-o em poemas, no roteiro do primeiro filme do cinema brasileiro sobre futebol, “Campeão de futebol” homenageando Friedenreich, na frase “o Corinthians é um fenômeno sociológico a ser estudado em profundidade”) referências de Cassiano Ricardo, a simpatia de Raul Bopp (em artigo sobre o “élan magnético” que o atraía para o futebol), e sobretudo o ‘fervor’ de Alcântara Machado (não só pelo famoso conto “Corinthians (2) vs. Palestra(1)”,mas por uma relação direta com a difusão dos esportes no Brasil, fundador da primeira Liga Atlética Acadêmica do Brasil, “uma entidade poliesportiva devotada à propaganda, à prática e ao apoio de todas as formas de cultura física, vista como chave para se entrar na vida moderna propriamente dita”),o completo envolvimento de Francisco Rebolo (artista plástico e jogador de futebol , e um dos pioneiros na luta pela incorporação do negro no futebol brasileiro), a motivação de Candido Portinari ( em duas séries de trabalhos “Futebol em Brodósqui”), dos artistas Rodolfo Chambelland , André Lhote , Antônio Gomide . Tudo, no entanto, sem aquela empolgação --até mesmo de cunho filosófico e ideológico, como no Rio de Janeiro — que a cidade de São Paulo, pioneira na introdução do futebol no Brasil, na fundação dos clubes especificamente de futebol , na prática generalizada e popular do futebol,merecia.
Inclusive recebendo, por outro lado , de Mário de Andrade e Oswald de Andrade crítica e repúdio (mas em ambos amenizando-se ao longo do tempo, muito mais em Oswald do que em Mário, sem nunca alcançar o engajamento empolgado...) . Mario o via como “uma moda fútil entre tantas que aportam da Europa” em Paulicéia desvairada, “uma praga” em Macunaíma, não deixa de realçar a violência e o teor elitista do futebol “permeado de expressões estrangeiras” - a la Lima Barreto- em algumas crônicas, embora em 1939 acentue a transformação verificada em torno do futebol, o processo de apropriação pela identidade da nação chegando a adquirir um caráter antropofágico onde se afirmava a capacidade brasileira de deglutição, bem como de assimilação das influências estrangeiras e de sua transformação em expressões genuinamente nacionais. Oswald referiu-se com uma certa simpatia (mais irônica) nos versos do poema “E a Europa curvou-se ante o Brasil”, em que refere-se à excursão do Paulistano à Europa,em 1925, e em “Bungalow das rosas e dos pontapés”, sarcástico sobre a violência do futebol; embora sempre combatesse o futebol, como veículo de “alienação”, mais tarde iria referir-se, num artigo de jornal, como “um fenômeno da modernidade de fundamento religioso, ao lado dos festivais de cinema e da política” ; e ligou-se a Mario Filho e a Candido Portinari justamente por causa do futebol...
Também o escritor e jornalista paulista, Antônio de Godói, a princípio interessado pelo futebol — em 17 agosto de 1918, no Correio Paulistano, com o pseudônimo de Egas Muniz, na seção “Naipe de Paus”, comentando um jogo realizado em São Paulo, saudara “oxalá que o entusiasmo desses moços não se esmoreça, que continue com o mesmo fervor, constituindo assim núcleos para o desenvolvimento da nossa mocidade tão indispensável para a nossa vida” — em artigo de 22 de dezembro de 1920 já considera o futebol moda que haveria de passar , uma coisa “brutal, perigosa, intolerável”, não merecendo outro qualificativo semelhante exercício “em que a inteligente moderação e o irônico predomínio do espírito” desapareciam para dar lugar a “uma simples exibição de força muscular, a um delírio de corridas, de encontrões, de pontapés e de tombos”. Em nome do bom gosto, continuava, “esse esporte devia ser repelido como nocivo à integridade física da geração que despontava”.
O futebol ,posteriormente, encontrou acolhida em muitos contos de João Antonio, Ignácio de Loyolla Brandão ; ‘receptividade’ em escritos de Sergio Milliet, de Sergio Buarque de Holanda, Paulo Emilio Salles Gomes. Sobretudo em Anatol Rosenfeld, ‘o irrequieto escritor’ que em fins da década de 1930 auto-exilou-se no Brasil devido às perseguições sofridas na Alemanha hitlerista e aqui deu continuidade a sua vasta produção intelectual, escrevendo contos, poesias e crônicas, além de opinar sobre arte, sobre o pensamento europeu, sobre teatro, imprensa, rádio, filosofia, política ,antropologia — e sobre o futebol : no texto “O futebol no Brasil”, publicado originalmente em alemão no Anuário do Instituto Hans Staden em 1956, comenta sua introdução no país, preocupou-se em analisar os elementos sócio-econômicos do futebol, da ascensão das massas aos componentes típicos dos jogos de bola - o torcedor, o ídolo, o clube, explicando ao público germânico que em terras brasileiras, (...) entre os negros, mulatos e brancos pobres, havia um grande número de jogadores de primeira classe, seja porque os ajudava o talento natural, seja porque a ´sucção de subida´ e o remoinho das chances do futebol os envolvia e canalizava, seja porque eles não eram estudantes de medicina ou direito e freqüentemente não tinham uma profissão, podiam lançar toda a sua paixão no jogo; em suma, porque levavam o jogo a sério e ´não tinham nada a perder´. (...) Dar pontapés numa bola era um ato de emancipação(...)”.
Intelectuais paulistanos , paulistas e migrantes/radicados — como Décio de Almeida Prado, Nicolau Sevcenko, Waldenir Caldas, José Sérgio Leite Lopes, Francisco Costa, Luiz Henrique de Toledo , Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes — que se dispuseram a buscar uma compreensão do futebol construíram “uma percepção do esporte como uma ágil e poderosa forma de expressão do caráter nacional; uma codificação positivista da estrutura social brasileira: o indivíduo, valendo-se de características muito peculiares, sobressairia-se a quaisquer empecilhos à sua sobrevivência e/ou ao relacionamento social, e assim alcançaria o sucesso e aceitação coletiva”.
futebol e modernistas
Relevante é observar especificamente o ‘relacionamento’ dos intelectuais modernistas com o futebol , recebido de modo diametralmente oposto na primeira, na segunda e na terceira fase (assim Afrânio Coutinho caracterizava o ciclo modernista) : o fenômeno futebolístico no Brasil dos anos de 1920 passando muito ao largo das preocupações missionárias dos primeiros, o esporte visto como “subproduto de importação, a adoção de mais um artigo de luxo , com sua linguagem integralmente inglesa e seu vestuário britânico desconhecido , provindo de uma matriz européia transplantada por uma elite anglófila e francófila, ávida por novidades e exotismos, típico da dependência cultural brasileira”; depois, já na década de 1930, o futebol interpretado sob a questão da representatividade nacional , uma forma de se chegar às suas concepções sobre a brasilidade; e no decênio seguinte , entrando em cena os regionalistas oriundos do Nordeste —Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge de Lima, Olívio Montenegro, a maioria já radicada no Rio de Janeiro — a interpretação modernista colocando o futebol também no terreno da cultura popular, retomando o projeto modernista de construção de símbolos nacionais,que a música popular e o folclore já haviam tornado possíveis e que, naquele momento, por meio de uma ‘brasilidade esportiva’, o futebol também facultava.
O modernismo pareceu à primeira vista lidar com certa cautela e muitas reservas, casos de Mario de Andrade e Oswald de Andrade – quando não, com explícita antipatia, como foi o caso de Graciliano Ramos – diante do crescente e contagiante processo de popularização de um esporte de origem e teor eminentemente europeus. Mas a tradução e a decodificação sofrida pelo futebol ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, metamorfoseando-se de esporte elitista estrangeiro em esporte nacional-popular, possibilitou aos escritores modernistas da segunda fase uma paulatina alteração no enfoque do fenômeno, ainda que não de uma maneira unânime e consensual.
Como mencionado, a relação dos esportes com a identidade da nação tornara-se decisiva , acionando a idéia de “uma unidade nacional que tinha a seleção brasileira como uma das instâncias principais de representação simbólica”, coincidindo com um projeto de configuração do Estado-nação de Getulio Vargas E em consonância com a noção de antropofagia desenvolvida por Oswald de Andrade em seu manifesto de 1928, Gilberto Freyre identificou no futebol um exemplo indubitável da capacidade do brasileiro de transplantar, de assimilar e de reinterpretar os inúmeros produtos que historicamente vinham importados e impingidos da Europa.
Impõe-se, de resto, a especulação reflexiva sobre duas instâncias do mesmo núcleo de questão: primeira, por que o futebol em São Paulo, a cidade natal do introdutor do futebol no Brasil, a cidade onde fundou-se o primeiro clube de futebol do País, onde realizou-se o primeiro campeonato organizado de futebol, a cidade berço do ‘futebol de rua, de terreno baldio’ , a cidade que produziu o primeiro “craque”do futebol brasileiro, não teve já em seus primórdios ,por parte de seus intelectuais ,a mesma acolhida entusiástica como, por exemplo, a de um Coelho Neto, Olavo Bilac, Afrânio Peixoto no Rio de Janeiro? E depois, como avaliar o comportamento dos modernistas — da “primeira, segunda e terceira fases” (cf. Afrânio Coutinho) — com relação ao futebol ? entende-se que os modernistas da primeira fase tenham visto no futebol, em seu início de implantação no Brasil, um elemento elitista, “burguês e estrangeirista, alheado dos aspectos considerados essenciais e originais da cultura brasileira” — mas por que, depois da avassaladora popularização do futebol, transformado a partir da década de 1930 (o ano de 1938 como taxativo ponto de inflexão) em ‘símbolo de identidade nacional’, não se engajaram em sua aceitação, com o entusiasmo esperado, como elemento essencialmente ligado a seus ideais de nacionalidade , ou pelo menos não o encararam devidamente como um instrumento para chegar às suas concepções sobre a brasilidade ,a exemplo do que tinham feito ao acolher, por exemplo, o folclore e a música popular ; o futebol tinha tudo para cair nas graças também dos modernistas da primeira fase (mais além dos registros de Alcântara, Menotti, Bopp,Cassiano) lado a lado com os da segunda fase (os do nordeste) e da terceira fase , e mesmo dos ‘pós-modernistas’ — mas deu-se apenas na simpatia de ordem plástico-estética de Mario de Andrade e na contestação de cunho ideológico de Oswald de Andrade... Oswald de Andrade ainda combatia a popularidade do futebol no Brasil, sob o tema da “alienação”, o “futebol como ópio do povo”, já levantado por Lima Barreto e Graciliano Ramos, elegendo para este confronto de idéias José Lins do Rego (reprisando o espírito de polêmica de Lima Barreto x Coelho Neto).
Prossegue o futebol -- e prosseguirá será ad eternum-- sempre provocando prazer e dor, polêmicas e alegrias,brigas, tumultos, conflitos, prazer,tristeza, paixões e ódios — nos campos, nos estádios, nos gramados, nas arquibancadas,nos terrenos baldios, nas várzeas, nos corações e mentes de todo o País.
__________
* a primeira parte deste texto integra a obra do autor “Lima Barreto e o futebol : um Fla-Flu das Letras com Coelho Neto” – a publicar(s.ed.) – e a segunda parte insere-se no projeto de livro “Futebol, a cidade e os intelectuais de São Paulo”.












quarta-feira, 13 de maio de 2009

“nasci no 13 de maio ,por isso sou assim ,negro e marginalizado(...)”


a bem da justiça e da riqueza cultural de um país que se pretende civilizado, o Brasil não deve deixar de comemorar o nascimento, em 13 de maio,dia , de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos – que não chegou a ser um virtuose, mas produziu pelo menos três dos maiores romances da literatura nacional , um número significativo de pequenas obras-primas do conto e um conjunto excepcional de crônicas que representam um retrato da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil como nenhum outro construiu em seu tempo; além de memoráveis obras de sátira.

São de Afonso Henriques de Lima Barreto (13.05.1881/01.11.1922) os três romances ímpares – Recordações do escrivão Isaias Caminha (1909)-- no ano presente, centenário de sua publicação em livro -- Triste fim de Policarpo Quaresma (1911), Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá (1919); saíram de sua pena muitas obras-primas contísticas-- como “O homem que sabia javanês”, “A nova Califórnia”, “A sombra do Romariz”, “O moleque”, “O número da sepultura”, “A biblioteca”, a série (quase inédita) “contos argelinos”, um conjunto (também semi-inédito) ‘contos políticos’ -- e as vigorosas crônicas publicadas em inúmeros jornais e revistas -- abrigadas nas coletâneas póstumas Bagatelas (1923),Feiras e mafuás (1953), Marginalia (1953),Vida urbana (1953) ; além de duas marcantes novelas --Numa e a ninfa (1915) ; Clara dos Anjos(1948) -- memoráveis obras de sátira – Aventuras do dr. Bogoloff (1912), Os Bruzundangas (1922) e Coisas do Reino de Jambon (1952) – memorialística -- Diário íntimo (1953) e O cemitério dos vivos (1953) -- e de crítica literária --Impressões de leitura (1953).
Tanto na ficção quanto na obra não-ficcional, virtuose não podia ser, porquanto a par de outros aspectos — um deles, criticado que foi por alguns (incautos) por força de um “estilo desleixado” e um texto “cheio de erros gramaticais”(sic) — era conscientemente praticante de uma escrita diferenciada de seus pares, até porque ele mesmo diferenciado literária,ideológica e socialmente de seus contemporâneos. Seus textos são exemplos de relações e interações entre modos tradicionais de narrar e as especificidades da escrita moderna : com seu estilo simples, direto e objetivo, que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc ,impôs os prenúncios do Modernismo logo a seguir irrompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana -- tanto que foi reverenciado, à época, pelos modernistas e hoje consagrado como um renovador (revolucionário) e autêntico formulador da linguagem literária brasileira que atravessou o século XX e tem sua expressão contemporânea no que se faz hoje na ficção urbana.
A problemática existencial de Lima Barreto, marcada sobretudo pela origem negra e pobre e por dramas familiares, enfim pela marginalidade, formaram, sedimentaram e conduziram sem dúvida o espírito de intelectual combativo,engajado, consciente ,atuante, fazendo-o destoar do cenário literário de seu tempo e forjaram uma temática ficcional e uma forma literária que rompe com os cânones da escrita de então. O tom de denúncia conferido por ele à sua literatura emerge com muita intensidade e frequência em todos seus textos , seja nos romances e contos seja nas crônica --- tematizantes em sua essência da discriminação racial e social, o preconceito de cor, o vazio moral, intelectual e ético dos políticos, a ganância e a ambição, o arrivismo, o bovarismo, a miséria e a opressão social .
Nos artigos e crônicas,nos romances e nos contos, Lima Barreto é um dos mais profícuos e instigantes analistas da realidade brasileira. Sua obra ficcional e não-ficcional desenvolvem-se em torno de cinco eixos temáticos : a política; a mulher; o cotidiano da cidade; o subúrbio; a vida literária – mas com um tema nuclear : o poder e seus efeitos discricionários — o poder visto e descrito por ele como “o variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis, tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa inserção social”.
Na ficção ,poucos, na literatura brasileira – nem mesmo Machado de Assis-- criaram e apresentaram um elenco de personagens tão variado e vasto – homens e mulheres despojados pela sorte, políticos empenhados unicamente com o poder , pseudo- intelectuais abarrotados de retórica e voltados para a futilidade, militares crentes da própria infabilidade e “ignorantes das coisas da guerra”, os donos de jornais venais e corruptos, os magnatas, banqueiros, empresários, fazendeiros do café, os burocratas ,pequenos burgueses, arrivistas,charlatães,almofadinhas, melindrosas,aristocratas, gente do subúrbio, operários, artesãos, vadios, mendigos,bêbados, meliantes, prostitutas,mandriões,subempregados, artistas, coristas, alcoviteiras, funcionários, moças casadoiras, noivas, solteironas, loucos, adúlteros, agitadores, usurários, estrangeiros.Sobretudo procurando dar voz e vida aos “humilhados e ofendidos”, aos excluídos sociais ,em especial ao negro : falava sempre em escrever “a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência em nossa nacionalidade” – que no entanto ficou apenas no projeto ; pensou também num romance descrevendo “a vida e o trabalho dos negros numa fazenda... uma espécie de Germinal negro [ referência à famosa obra de Èmile Zola], com mais psicologia especial e maior sopro de epopéia”, sustentando que seria sua “obra-prima” com a qual introduziria na literatura brasileira uma nova escola, o “negrismo”—que não levou adiante; mas em 1903 escreveu uma peça teatral em um ato, “Os negros”, que permanece praticamente inédita [oportunamente a publicaremos neste espaço, o que se constituirá em empreendimento histórico]. Esses ideais e projetos na verdade iriam em parte consubstanciar-se no romance que começou a escrever em 1904, “Clara dos Anjos” – originado do conto com mesmo título – não concluído e que veio a ser publicado postumamente (1948) como novela inacabada : nela, expõe como tema a humilhação não apenas da mulher mas de toda a população negra do Brasil – exatamente no dia 13 de maio a mulata Clara é seduzida e deflorada por um rapaz branco que recusa casar e a abandona ...
A Lima Barreto cabe o mérito de ter introduzido na literatura brasileira, de forma contundente,incisiva, consistente – como nem os autores do Realismo o fizeram – a temática social de modo crítico. O caráter militante de sua literatura adquire funções revolucionárias –inclusive tendo ele,ideologicamente se manifestado como um “maximalista”,que equivalia à época ser um misto de anarquista e socialista (em algumas crônicas enalteceu a Revolução Russa de 1917 e o novo regime implantado) – sua escrita combativa utiliza-se da ficção como meio de expressar os problemas sociais que enxerga na sociedade brasileira, especialmente na ordem republicana.
A rigor e na essência, Lima Barreto sempre tratou mais de política do que qualquer outro tema: ninguém como ele, em seu tempo, escreveu tanto sobre o tema e,por extensão, sobre questões sociais . Sua ‘literatura militante’, assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra ; sua visão crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da luta social; nos jornais e revistas investiu contra todos os signos do poder, nos textos ficcionais denunciou as profundas injustiças da sociedade brasileira. As colaborações para revistas e jornais ‘alternativos’ da época, oposicionistas -- O Debate, O Careta, A Lanterna,
Rio-Jornal,A .B . C., Hoje -- constituem o conjunto de maior teor explícito de crítica política e social aos problemas do País e à República, da qual se fez opositor irascível e irreversível, implacável e demolidor : utilizando os recursos da sátira, da ironia, da caricatura, da crítica contundente, desmontou todo o esquema de sustentação do regime republicano recém-implantado. Crítico intransigente dos presidentes republicanos, da intervenção dos militares na política , de formas de governo autoritário e ultracentralizado ,de todo e qualquer tipo de violência na sociedade, das ideologias intolerantes , não se cansou de causticar por toda sua obra as mazelas do governo republicano, o grau de corrupção política e econômica que empestava o regime .
Ao mesmo tempo, nunca silencioso sobre seu tempo, Lima Barreto não poderia pois ficar alheio à situação da mulher na realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas transformações na sociedade. Sempre deu à mulher espaço significativo em sua obra não-ficcional e ficcional. Retratou-a e a fez protagonista nos romances e novelas — haja visto Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara dos Anjos; Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília em Diário íntimo , Edgard e Ângela em Numa e a ninfa — e em contos como “Um especialista”, “O filho da Gabriela”,”Um e outro”,”Miss Edith e seu tio”,”Cló”,”Adélia”,”Lívia”,”Clara dos Anjos”,”Uma vagabunda”,”Uma conversa vulgar”,”O número da sepultura”,”Quase ela deu o sim, mas...”,”Numa e a ninfa”,”A cartomante”,”O cemitério”,”Na janela”, “A mulher do Anacleto” : em todos, as mulheres têm sempre atitudes e comportamento progressista e são superiores aos maridos.Em artigos e crônicas ,apontamentos e notas, comenta a situação da mulher perante o casamento, a moral que lhe é imposta pelos códigos sociais, o mundo da prostituição , as oportunidades educacionais e profissionais,os direitos femininos, o feminismo e o início do movimento feminista no Brasil, o voto feminino,a literatura feminina, a desigualdade de julgamento nos casos de adultério (célebres – e vigorosos -- são seus textos de protesto contra a absolvição de homens em casos de crimes de uxoricídio nos quais eram evocados o indefectível ‘legítima defesa da honra’...).
Em outro viés, no cotidiano da cidade, estão suas tiritatibes ficcionais e não-ficcionais contra a modernização, a reforma urbana, o cinema, o carnaval e sobretudo futebol — visto por ele como ‘instrumento e meio de estrangeirismo’, de assimilação de elementos, valores e hábitos copiados em prol de uma “pretensa,falsa, artificial e detestável progresso bem a gosto desta República de bacharéis e aristocratas”.

Não mais fosse por outros argumentos, mormente por motivos ideológicos, foi criticado (por vezes e por alguns ainda é) pelas “imperfeições de estilo” e pelo “tom caricatural” com que retrata seus personagens . Os exemplos de “erros gramaticais” apontados em sua obra ficcional não caracterizam necessariamente um desconhecimento das regras do escrever, e sim o que filólogos configuram como “concordância ideológica” : segundo o professor e filólogo Silva Ramos defeitos e irregularidades em Lima Barreto decorrem não de uma ‘imperícia gramatical’ mas provêm de uma escolha feita pelo autor, dentre mais de um processo de expressão,que possibilita a tradução de seu pensamento ou sentimento : não são as palavras, a ordem em que são dispostas que valem, mas as idéias que exprimem, os sentimentos que fazem vibrar. O segundo elemento, que absolutamente implica em ‘superficialidade’ , encontra resposta à altura por parte de Lucia Miguel Pereira , segundo quem Lima Barreto, assim como Machado de Assis, tem sua escrita contística caracterizada por “explorações em profundidade, suas criaturas sempre indagando a existência”.( in Prosa de ficção: de 1870 a 1920 )
Marginalizado por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira que lhe foi contemporânea .Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma verdadeira missão – ideal expresso categoricamente no artigo “Amplius!”., publicado originalmente no primeiro número da Floreal, em 25.10.1907 , depois em A Época, em 18.02.1916, e incorporado como abertura da coletânea de contos Histórias e sonhos ), em que sentenciava : “(...)A literatura do nosso tempo (...)possa ela realizar, pela virtude da forma,(...) a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o açoite da vida, para maiorglória e perfeição da humanidade. (...).” Conferiu à sua obra o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo,de uma nação, da humanidade” – conceito reflexivo de felicidade também exposto nas páginas do romance Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá quando o protagonista conversa com o personagem Augusto Machado :
“(...) Imaginas tu que Mme. Belasman, de Petr6polis, tem um grande joanete, um defeito hediondo, com o qual sobremaneira sofre ; e o operário Felismino, da Mortona, orgulha-se em possuir um filho com talento. ( ... ) à vista disso, poderás dizer que todas as damas de Petr6polis são felizes e os operários da fundição são desgraçados? Há média possível para a felicidade das classes? N6s, os modernos, nos vamos esquecendo que essas hist6rias de classe, de povos, de raças, são tipos de gabinete, fabricados para as necessidades de certos tipos de edifícios l6gicos, mas que fora deles desaparecem completamente ( ... )”