terça-feira, 31 de março de 2009

Impasse no Le Monde Diplomatique Brasil


Demissão coletiva ameaça afastar do projeto instituição que lançou o jornal no Brasil, e toda a equipe que assegurou sua existência e ampliação nos últimos anos.
Antonio Martins
Uma série de fatos inesperados, cujo desfecho ainda é incerto, marcou a edição brasileira internet de Le Monde Diplomatique, nos últimos dias. Em 24 de março, a direção do Instituto Paulo Freire (IPF) dispensou, de uma só vez, a equipe que conduziu o jornal nos dois últimos anos. Fomos demitidos, além das redatoras Carolina Gutierrez e Marília Arantes, o editor, Antonio Martins, que introduziu o jornal no Brasil, em 1999. Um dia depois, quando a informação começou a circular, abriu-se uma possibilidade de negociação.
A demissão tem dois aspectos. O primeiro é interno ao IPF: embora traumático, está no âmbito da autonomia da instituição. O segundo implica o futuro de Le Monde Diplomatique no Brasil e, em seus desdobramentos, revelará bastante sobre os princípios e comportamento ético das instituições e pessoas envolvidas.
Lida a cada dia por cerca de 2 mil pessoas, que acessam 7 mil textos em média, a edição internet do Diplô é produto de uma parceria institucional e uma relação de trabalho, desde janeiro de 2007, Jornais nascem por meio de acordos, mas são feitos por gente em carne e osso. Embora reúna um número crescente de colaboradores, a versão digital de Le Monde Diplomatique é animada, há pelo menos um ano e meio, pela equipe que foi integralmente demitida, em 24/3. Carolina (que começou como estagiária), Marília (que atuou quase um ano como voluntária) e eu temos sido meio mambembes, meio visionários. Em outubro de 2007, cansados de apenas traduzir textos franceses e publicar eventualmente um ou outro artigo de lavra própria, bolamos o Caderno Brasil – que logo se transformou no centro de nosso trabalho. A intenção foi criar um espaço que, mantendo o mesmo espírito crítico e busca de profundidade característicos do jornal parisiense, fosse povoado... por brasileiros. O Caderno reúne hoje cerca de uma centena de colaboradores, que publicaram perto de mil artigos. O elenco inclui intelectuais renomados e pensadores emergentes, que a mídia conservadora oculta e a própria imprensa de esquerda tantas vezes não enxerga.
À mesma época, lançamos o
Blog da Redação. Alimentado desde então de forma às vezes errática (março marcou uma retomada, até o trauma do dia 24), ele visa abordar temas correntes, em que uma informação inédita, ou um ponto de vista incomum, fazem falta – e não podem esperar a elaboração de um artigo. Também precisa ser um canal para expressão dos colaboradores e dos próprios leitores ativos. Estamos trabalhando ativamente em sua reformulação, ao mesmo tempo em que apoiamos o lançamento de blogs sobre temas específicos. O primeiro vê a crise do capitalismo como oportunidade para questionar o sistema sob a qual vivemos, e intenficar a construção de novas lógicas sociais e relações entre o ser humano e o ambiente. O segundo será alimentado por quatro colaboradores que vivem em Paris, estão surpresos com a efervescência política (especialmente nas universidades) e querem narrá-la.

Que terá levado o Instituto Paulo Freire a demitir coletivamente a equipe que conduziu este trabalho? Questionados, os três diretores que participaram da reunião do dia 24 não apresentaram uma só razão política, editorial ou técnica. Alegaram que a Redação não se enquadrou nos métodos e normas do IPF. Neste aspecto, talvez estejam certos. Jamais aceitamos limitar nosso trabalho a um expediente das-nove-às-dezoito. Chegávamos e saíamos mais tarde; levávamos muito trabalho para casa e para a rua. Convidávamos, para dialogar e produzir conosco, pessoas não pertencentes aos quadros da instituição. Nos atrapalhávamos no preenchimento de inúmeros formulários e agendas.
O IPF, por seu lado, transformou-se numa organização de grande porte. Tem centenas de funcionários, em todo o país. Mantém convênios e parcerias com prefeituras e governos estaduais (diversos partidos), empresas e instituições de ensino, públicas e privadas. Em minha avaliação, o espírito criativo, que suas equipes conservam, choca-se crescentemente com uma estrutura que se assemelha à industrial, marcada por horários, disciplina e hierarquia cada vez mais rígidos.Os dirigentes do Instituto têm toda autoridade para julgar que práticas como as nossas destoam – ou mesmo perturbam – sua cultura institucional. Também podem, como consequência, não nos considerar desejáveis em seu quadro de funcionários. Só não tem o direito de usar estes fatos como pretexto para se apropriar unilateralmente do Le Monde Diplomatique e do Pontão de Cultura.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Machado e os fanfarrões sul-americanos(do Paraguai de ontem; da Venezuela,Bolivia,Equador, de hoje...)


24 de outubro de 1864
Diário do Rio de Janeiro – Ao Acaso

sobre López, no Paraguai
sobre “democracia americana”
sobre os ‘não-direitos’ da mulher

Se há nesta boa cidade do Rio de Janeiro algum Homero disponível, é chegada a ocasião de ilustrar o seu nome, e mandar um homem à posteridade.
Canta, ó deusa, a cólera do presidente Lopez ! O presidente Lopez não quis deixar passar esta ocasião de brilhar; conseguiu apanhá-la pelos cabelos . Era a mais propícia para trazer à tona da água os seus sentimentos de liberdade, de independência e de democracia --três vocábulos sonoros que têm conceituado muita gente, debaixo do sol.
Dizia-se há muito que o presidente Lopez nutria pretensões monárquicas e preparava o terreno para cingir um dia a coroa paraguaia; mas S. Excia. é, antes de tudo, democrata americano; onde quer que ouça gemer a democracia americana, não hesita - pede a sua espada de Toledo, cinge o capacete de guerra e dispõe-se a ir verter o sangue em defesa da mãe comum.
Democracia americana - naqueles climas - quer dizer: companhia de exploração dos direitos do povo e da paciência dos vizinhos. Déspotas com os seus, turbulentos com os estranhos, sem grandeza moral, sem dignidade política, incapazes, presumidos, gritadores, tais são os pretendidos democratas de Montevidéu e da Assunção.
É uma santa coisa a democracia - não a democracia que faz viver os espertos, a democracia do papel e da palavra - mas a democracia praticada honestamente, regularmente, sinceramente. Quando ela deixa de ser sentimento para ser simplesmente forma, quando deixa de ser idéia para ser simplesmente feitio, nunca será democracia - será esperto-cracia, que é sempre o governo de todos os feitios e de todas as formas.
A democracia, sinceramente praticada, tem os seus Gracos e os seus Franklins ; quando degenera em outra coisa tem os seus Quixotes e os seus Panças. Quixotes no sentido da bravata. Panças no sentido do grotesco. Arreia-se então a mula de um e o rocinante de outro. Cinco palmos de seda, meia dúzia de vivas, uma fila de tambores - é quanto basta então para levar o povo atrás de um fanfarrão – ao ataque de um moinho ou à defesa de uma donzela.

Donzela ! Nem isto mesmo encontra agora o cavaleiro paraguaio. Aquela por quem ele vai fazer reluzir a espada ao sol, não cinge a coroa virginal. É a matrona arrancada ao sono e entregue aos afagos brutais da soldadesca. O que perdeu em viço ganhou em desenvoltura. As mãos torpes e grosseiras dos seus adoradores deram-lhe um ar desvergonhado e insolente. Tal é a heroína ameaçada, a favor de quem vai combater - com a lança em riste - o cavaleiro de la Mancha.
Pobre heroína ! pobre cavaleiro !
Mas o cavaleiro está de boa fé. Todo o seu desejo é o de equilibrar o Rio da Prata. Opor uma barreira às invasões imperialistas, eis o dever da um bom democrata americano, que ama deveras a liberdade e quer a independência da livre América : vinte quilômetros de baboseiras neste gosto, como se diz na comédia “Montjoye”.
Para isto o cavaleiro paraguaio convoca as multidões, prepara as manifestações públicas, fala-lhes a linguagem da liberdade e do valor. Tudo se extasia, tudo aplaude; corre uma faísca elétrica por todos os peitos; uma centelha basta para inflamá-los; ninguém mais hesita; todos vão depor no altar da pátria o óbolo do seu dever –“os homens o seu sangue, as mulheres a sua honra”
[1]
É um delírio .
Devem tomar-se ao sério estas demonstrações? Devemos estremecer à notícia do aspecto bélico do equilibrista paraguaio? Ninguém responderá afirmativamente. Só em Montevidéu é que ninguém ri do presidente López e do entusiasmo de Assunção. A razão é clara. Confederam-se os espertos e os impotentes para a obra comum de salvar uma democracia nominal, sem a força da dignidade nem o alento da convicção.
Quanto aos infelizes povos, sujeitos aos caprichos de tais chefes, se devemos lamentá-los, nem por isso deixaremos de reconhecer que a Providência consente às vezes na dominação dos Lopez e dos Aguirres, como flagelos destinados a fazê-los pagar, pelo abatimento e pelo ridículo, a fraqueza de que se não sabem despir.
O presidente Lopez - que eu continuo a recomendar a algum Homero disponível -- entra com direito nos assuntos amenos da semana.
Foi ele, com efeito, um dos assuntos mais falados depois da chegada das últimas notícias, relativas à aproximação de forças paraguaias.
Fora disso tivemos apenas uma preocupação : a das festas que se hão de celebrar hoje e amanhã por motivo do casamento de S. A. Imperial.
Os augustos consortes devem chegar hoje de Petrópolis. Preparam-se festas que, além das cerimônias oficiais da Corte, constarão dos espetáculos de gala e da iluminação das casas, arcos e coretos.
O Rocio, segundo se diz, tomará novo aspecto, diverso daquele que apresentava no dia 15. Quanto ao arco da rua Direita, que no dia 15 ainda se achava em trajes menores, trata de vestir-se aceleradamente para os dias de hoje e de amanhã.
Só uma das festas do programa fica adiada - a ascensão do aeronauta Wells.
Noticiei no meu folhetim passado que uma dama americana pretendia acompanhar o sr. Wells, na sua excursão ao ar. Segundo me afirmam agora, irá igualmente com o corajoso Wells uma brasileira. É uma glória que não deixarei de mencionar nestas páginas.
Mas que farão os homens? Deixarão acaso que o sexo frágil, o sexo das cinturas quebradiças, o sexo dos desmaios, o sexo excluído da guerra, da urna, da Câmara, o sexo condenado a viver debaixo dos tetos, ao pé das crianças - deixarão acaso, pergunto eu, que este sexo apresente um tal exemplo, sem que atrás dele corra uma legião de homens?
Faço simplesmente a pergunta.
Prepara-se no Teatro Lírico, o Haroldo, de Verdi. Durante a semana houve apenas um espetáculo, creio eu; cantou-se o Baile de Máscaras. A representação em geral correu bem. Mereceram as honras da noite o soprano e o tenor. Quanto ao novo contralto, sem condená-la inteiramente, a opinião geral é que devem haver novas provas para um julgamento definitivo. Afigura-se-me que a artista, cuja voz está longe de ser condenada, sair-se-á bem nas provas requeridas.
A pressa obriga-me hoje a muito pouca demora nos assuntos e nenhum cuidado no enlace necessário entre eles.
Ainda não tive ocasião de falar de Emília das Neves, na nova peça em que atualmente representa, “Adriana Lecouvreur”. Como o objeto principal, direi mesmo exclusivo, da concorrência pública, é a eminente artista, acontece que ainda não mencionei um grande melhoramento que se observa nos espetáculos dramáticos no Teatro Lírico. Refiro-me ao vestuário e aos arranjos de cena, em que se nota sempre muita propriedade e asseio, e muitas vezes um luxo a que não andávamos acostumados.
A representação da comédia de Scribe foi uma ocasião que tivemos de apreciar este melhoramento tão reclamado.
Emília das Neves é uma artista julgada. (.....)

(...........)
M.A.

[1] Segundo matéria do Correio Mercantil, à época, assim declarou o Semanário, de Assunção.

domingo, 15 de março de 2009


Pesquisa nacional revela o novo perfil do idoso brasileiro - leia na Folha de S.Paulo de hoje,15 março

então, a oportunidade é excelente para conhecer uns escritos insólitos, para dizer o mínimo, de um dos mais conceituados- sob a ótica da 'cultura bem-pensante e bem-comportada' --escritores brasileiros.

A seguir, um dos "Contos para velhos" [o conjunto completo está in ww.cronopios.com.br,organizado por mim]


O diabo

Tinham metido tantas caraminholas na cabeça da pobre Luizinha, que a coitada, quando, às dez horas, apagava a luz, metida na cama, vendo-se no escuro, tinha tanto medo, que começava a bater os dentes... Pobre Luizinha! que medo, que medo ela tinha do diabo!
Um dia, não pôde mais! E, no confessionário, ajoelhada diante de padre João, abriu-lhe a alma, e contou-lhe os seus sustos, e disse-lhe o medo que tinha de ver uma bela noite o diabo em pessoa entrar no seu quarto, para a atormentar...
Padre João, acariciando o belo queixo escanhoado, refletiu um momento. Depois, olhando, com piedade a pobre pequena ajoelhada, disse gravemente:
— Minha filha! basta ver que está assim preocupada com essa idéia, para reconhecer que realmente o Diabo anda a perseguí-la... Para o tinhoso amaldiçoado assim é que começa...
— Ai, senhor padre! que há-de ser de mim?! tenho a certeza de que, se ele me aparecesse, eu nem forças teria para gritar...
— Bem. filha, bem... Vejamos! costuma deixar a porta do quarto aberta?
— Deus me livre, santo padre!
— Pois, tem feito mal, filha, tem feito mal... Para que serve fechar a porta se o Amaldiçoado é capaz de entrar pela fechadura? Ouça o meu conselho... Precisamos saber se é realmente Ele que quer atormentá-la... Esta noite, deite-se, e reze, deixe a porta aberta... Tenha coragem ... Às vezes, é o Anjo da Guarda que inventa essas coisas, para experimentar a fé das pessoas. Deixe a porta aberta esta noite. E, amanhã, venha dizer-me o que se tiver passado...
— Ai! senhor padre! eu terei coragem?...
— É preciso que a tenha... é preciso que a tenha... vá... e, sobretudo, não diga nada a ninguém... não diga nada a ninguém...
E, deitando a benção à rapariga, mandou-a embora. E ficou sozinho, sozinho, e acariciando o belo queixo escanhoado...
E, no dia seguinte, logo de manhã cedo, já estava o padre João no confessionário, quando viu chegar a bela Luizinha. Vinha pálida e confusa, atrapalhada e medrosa. E, muito trêmula, gaguejando, começou a contar o que se passara....
— Ah! meu padre! apaguei a vela, cobri-me toda muito bem coberta, e fiquei com um medo... com um medo... De repente, senti que alguém entrava no quarto... Meu Deus! não sei como não morri... Quem quer que fosse, veio andando devagarinho, devagarinho, devagarinho, e parou perto das cama... não sei... perdi os sentidos... e...
— Vamos, filha, vamos...
— ... depois quando acordei... não sei, senhor padre, não sei... era uma cousa...
— Vamos, filha... era o Diabo?
— Ai, senhor padre... pelo calor , parecia mesmo que eram as chamas do inferno... mas...
— Mas o que, filha? vamos!...
— Ai, senhor padre... mas era tão bom que até parecia
mesmo a graça divina!

Bob

Bob, que assina os "Contos para velhos", foi o pseudônimo de que se valeu...o emérito Olavo Bilac "príncipe dos poetas brasileiros"-- quem diria, ora,direis !

domingo, 8 de março de 2009


Lima Barreto e a mulher - II

Clara dos Anjos (a Andrade Murici)


O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas, mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta,instrumento que já foi muito estimado, não o sendo tanto atualmentecomo outrora. Acreditava-se até músico, pois compunha valsas, tangose acompanhamentos para modinhas.Aprendera a "artinha" musical na terra de seu nascimento, nosarredores de Diamantina, e a sabia de cor e salteado; mas não safra daí.Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. Empregado de um advogado famoso, sempre quisera obter um modesto emprego público que lhe desse direito àaposentadoria e ao montepio, para a mulher e a filha. Conseguiraaquele de carteiro, havia quinze para vinte anos, com o qual estavamuito contente, apesar de ser trabalhoso e o ordenado ser exíguo.Logo que foi nomeado, tratou de vender as terras que tinha nolocal de seu nascimento e adquirir aquela casita de subúrbio, porpreço módico, mas, mesmo assim, o dinheiro não chegara e o restopagou ele em prestações. Agora, e mesmo há vários anos, estava deplena posse dela. Era simples a casa. Tinha dois quartos, um que davapara a sala de visitas e outro, para a de jantar. Correspondendo a umterço da largura total da casa, havia nos fundos um puxadito que eraa cozinha. Fora do corpo da casa, um barracão para banheiro, tanque,etc.; e o quintal era de superfície razoável, onde cresciam goiabeirasmaltratadas e um grande tamarineiro copado.A rua desenvolvia-se no plano e, quando chovia, encharcavaque nem um pântano; entretanto, era povoada e dela se descortinavaum lindo panorama de montanhas que pareciam cercá-la de todos oslados, embora a grande distância. Tinha boas casas a rua. Havia atéuma grande chácara de outros tempos com aquela casa característicade velhas chácaras de longa fachada, de teto acaçapado, forrada deazulejos até â metade do pé-direito, um tanto feia, é fato, sem garridice, mas casando-se perfeitamente com as anosas mangueiras, com as robustas jaqueiras e com todas aquelas grandes e velhas árvoresque, talvez, os que as plantaram, não tivessem visto frutificar.Por aqueles tempos, nessa chácara, se haviam estabelecido as"bíblias". Os seus cânticos, aos sábados, quase de hora em hora,enchiam a redondeza. O povo não os via com hostilidade, mesmoalguns humildes homens e pobres raparigas simpatizavam com eles,porque, justificavam, não eram como os padres que, para tudo,querem dinheiro.Chefiava os protestantes um americano, Mr. Sharp, homemtenaz e cheio de uma eloqüência bíblica que devia ser magnífica eminglês; mas que, no seu duvidoso português, se fazia simplesmentepitoresca. Era Sharp daquela raça curiosa de yankees que, de quandoem quando, à luz da interpretação de um ou mais versículos da Bíblia,fundam seitas cristãs, propagam-nas, encontram adeptos logo, osquais não sabem bem por que foram para a nova e qual a diferençaque há entre esta e a de que vieram.Fazia prosélitos e, quando se tratava de iniciar uma turma, osnoviços dormiam em barracas de campanha, erguidas no eirado dachácara ou entre as suas velhas árvores maltratadas e desprezadas. Ascerimônias preparatórias duravam uma semana, cheia de cânticosdivinos; e a velha propriedade, com as suas barracas e salmodias,adquiria um aspecto esquisito de convento ao ar livre de mistura comum certo ar de acampamento militar.Da redondeza, poucos eram os adeptos ortodoxos; entretanto,muitos lá iam por mera curiosidade ou para deliciar-se com a oratória de Mr. Sharp.Iam sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nossopequeno povo fazer um extravagante amálgama de religiões ecrenças de toda sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme ostranses de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apelapara a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia tenaz e resistente,procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar debatizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há quem não sezangue: Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!Joaquim não fazia exceção desta regra e sua mulher, a Engrácia,ainda menos.Eram casados há quase vinte anos, mas só tinham uma filha, aClara. O carteiro era pardo claro, mas com cabelo ruim, como se diz;a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso.Na tez, a filha puxava o pai; e no cabelo, à mãe. Na estatura,ficara entre os dois. Joaquim era alto, bem alto, acima da médiaombros quadrados; a mãe, não sendo muito baixa, não alcançava amédia, possuindo uma fisionomia miúda, mas regular, o que nãoacontecia com o marido que tinha o nariz grosso, quase chato. A filha,a Clara, tinha ficado em tudo entre os dois; média deles, era bem afilha de ambos. Habituada às musicatas do pai, crescera cheia devapores das modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de raparigapobre com os dengues e a melancolia dos descantes e cantarolas.Com dezessete anos, tanto o pai como a mãe tinham por elagrandes desvelos e cuidados. Mais depressa ia Engrácia à venda de"seu" Nascimento, buscar isto, ou aquilo, do que ela. Não que a vendade "seu" Nascimento fosse lugar de badernas; ao contrário: as pessoasque lá faziam "ponto" eram de todo o respeito.O Alípio, uma delas, era um tipo curioso de rapaz, que, conquanto pobre, não deixava de ser respeitador e bem comportado.Tinha um aspecto de galo de briga; entretanto, estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos malaios de apostas, nãopossuindo - é preciso saber - nenhuma.Um outro que aparecia sempre lá era um inglês, Mr. Persons,desenhista de uma grande oficina mecânica das imediações. Quandosaía do trabalho, passava na venda, lá se sentava naqueles característicos tamboretes de abrir e fechar, e deixava-se ficar até ao anoitecerbebericando ou lendo os jornais do senhor Nascimento. Silenciosoquase taciturno, pouco conversava e implicava muito com quem otratava por mister.Havia lá também o filósofo Meneses, um velho hidrópico, quese tinha na conta de sábio, mas que não passava de um simples dentista clandestino, e dizia tolices sobre todas as cousas. Era um velho branco, simpático, com um todo de imperador romano, barbas alvase abundantes.Aparecia, às vezes, o J. Amarante, um poeta, verdadeiramentepoeta, que tivera o seu momento de celebridade em todo o Brasil, seainda não a tem; mas que, naquela época, devido ao álcool e a desgostos íntimos, era uma triste ruína de homem, apesar dos seus dezvolumes de versos, dez sucessos, com os quais todos ganharamdinheiro menos ele. Amnésico, semi-imbecilizado, não seguia umaconversa com tino e falava desconexamente. O subúrbio não sabiabem quem ele era; chamava-o muito simplesmente - o poeta.Um outro freqüentador da venda era o velho Valentim, um por-tuguês dos seus sessenta anos e pouco, que tinha o corpo curvadopara diante, devido ao hábito contraído no seu oficio de chacareiroque já devia exercer há mais de quarenta. Contava 'casos" e anedotasde sua terra, pontilhando tudo de rifões portugueses do maissaboroso pitoresco.Apesar de ser assim decente, Clara não ia à venda; mas o pai, emalguns domingos, permitia que fosse com as amigas ao cinema doMéier ou Engenho de Dentro, enquanto ele e alguns amigos ficavamem casa tocando violão, cantando modinhas e bebericando parati.Pela manhã, logo nas primeiras horas, os companheiros apareciam, tomavam café, iam em seguida para o quintal, para debaixo dotamarineiro, jogar a bisca, com o litro de cachaça ao lado; e ai, sem dar uma vista d'olhos sobre as montanhas circundantes, nuas e empedrouçadas, deixavam-se ficar até à hora do "ajantarado" que a mulher e a filha preparavam.Só depois deste é que as cantorias começavam. Certo dia, umdos companheiros dominicais do Joaquim pediu-lhe licença paratrazer, no dia do aniversário dele, que estava próximo, um rapaz desua amizade, o Júlio Costa, que era um exímio cantor de modinhas.Acedeu. Veio o dia da festa e o famoso trovador apareceu. Branco,sardento, insignificante, de rosto e de corpo, não tinha as tais melenasdenunciadoras, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-seseriamente com um apuro muito suburbano; sob a tesoura de alfaiate de quarta ordem. A única pelintragem adequada ao seu mister que apresentava consistia em trazer o cabelo repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente pelo meio. Acompanhava-o o violão.A sua entrada foi um sucesso.Todas as moças das mais diferentes cores que, ai, a pobrezaharmonizava e esbatia, logo o admiraram. Nem César Bórgia,entrando mascarado, num baile à fantasia dado por seu pai, noVaticano, causaria tanta emoção.Afirmavam umas para as outras:-É ele! É ele, sim!Os rapazes, porém, não ficaram muito contentes com isto; e,entre eles, puseram-se a contar histórias escabrosas da vida galantedo cantor de modinhas.Apresentado aos donos da casa e à filha, ninguém notou o olharguloso que deitou para os seios empinados de Clara.O baile começou com a música de um "terno" de flauta, cavaquinho e violão. A polca era a dança preferida e quase todos a dançavam com requebros próprios de samba.Num intervalo Joaquim convidou:- Por que não canta, "seu" Júlio?- Estou sem voz, respondeu ele.Até ali, ele tinha tomado parte no "remo"; e, repinicando as cordas, não deixava de devorar com os olhos os bamboleios de quadris deClarinha, quando dançava. Vendo que seu pai convidara o rapaz,animou-se a fazê-lo também:- Por que não canta, "seu" Júlio? Dizem que o senhor canta tãobem...Esse - "tão bem" - foi alongado maciamente. O cantadoracudiu logo:- Qual, minha senhora! São bondades dos camaradas...Concertou a "pastinha" com as duas mãos, enquanto Clara dizia:- Cante! Vá!- Já que a senhora manda, disse ele, vou cantar.Com todo o dengue, agarrou o violão, fez estalar as cordas e anunciou:- Amor e sonho.E começou com uma voz muito alta, quase berrando, a modinha,para depois arrastá-la num tom mais baixo, cheio de mágoa e langor,sibilando os "ss", carregando os "rr" das metáforas horrendas de queestava cheia a cantoria. A cousa era, porém, sincera; e mesmo as comparações estrambóticas levantavam nos singelos cérebros das ouvintes largas perspectivas de sonhos, erguiam desejos, despertavam anseios e visões douradas. Acabou. Os aplausos foram entusiásticos e só Clarínha não aplaudiu, porque, tendo sonhado durante toda a modinha, ficara ainda embevecida quando ela acabou...Dias depois, vindo à janela por acaso - era de tarde - semgrande surpresa, como se já o esperasse, Clara recebeu o cumprimento do cantor magoado. Não pôs malícia na cousa, tanto assim quedisse candidamente à mãe:- Mamãe, sabe quem passou aí?- Quem?- "Seu" Júlio.- Que Júlio?- Aquele que cantou nos "anos" de papai.A vida da casa, após a festança de aniversário do Joaquim, continuou a ser a mesma. Nos domingos, aquelas partidas de bisca como Eleutério, servente da biblioteca, e com o Augusto, guarda municipal,acompanhadas de copitos de cachaça, e o violão, à tarde. Não tardouque se viesse agregar um novo comensal: era o Júlio Costa, o famosomodinheiro suburbano, amigo íntimo do Augusto e seu professor detrovas.Júlio quase nunca jantava, pois tinha sempre convites em todos osquatro pontos cardeais daquelas paragens. Tomava parte nas partidasde bisca, de parceirada, e pouco bebia. Apesar de não demorar-sepela tarde adentro, pôde ir cercando a rapariga, a Clara, cujos seiosempinados, volumosos e redondos fascinavam-lhe extraordinariamente e excitavam a sua gula carnal insaciável. Em começo foram sóolhares que a moça, com os seus úmidos olhos negros, grandes,quase cobrindo toda a esclerótica, correspondia a furto e com medo;depois, foram pequenas frases, galanteios, trocados às escondidas,para, afinal, vir a fatídica carta.Ela a recebeu, meteu-a no seio e, ao deitar-se, leu-a, sob a luz davela, medrosa e palpitante. A carta era a cousa mais fantástica, no quediz respeito à ortografia e à sintaxe, que se pode imaginar; tinha,porém, uma virtude: não era copiada do Secretário dos amantes, eraoriginal. Contudo a missiva fez estremecer toda a natureza virgem deClara que, com a sua leitura, sentiu haver nela surgido alguma cousade novo, de estranho, até ali nunca sentida. Dormiu mal. Não sabiabem o que fazer: se responder, se devolver. Viu o olhar severo do pai;as recriminações da mãe. Ela, porém, precisava casar-se. Não havia deser toda a vida assim como um cão sem dono... Os pais viriam a morrere ela não podia ficar pelo mundo desamparada... Uma dúvida lheveio: ele era branco; ela, mulata... Mas que tinha isso? Tinham-se visto tantos casos... Lembrou-se de alguns... Por que não havia de ser? Ele falava com tanta paixão... Ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros estouravam de virgindade e de ansiedade de amar...Responderia; e assim fez, no dia seguinte. As visitas de Costatomaram-se mais demoradas e as cartas mais constantes. A mãedesconfiou e perguntou à filha:- Você está namorando "seu" Júlio, Clarinha?- Eu, mamãe! Nem penso nisso...- Está, sim! Então não vejo?A menina pôs-se a chorar; a mãe não falou mais nisso; e Clara,logo que pôde, mandou pelo Aristides, um molecote da vizinhança,uma carta ao modinheiro, relatando o fato.Júlio morava na estação próxima e a situação de sua família erabem superior à sua namorada. O seu pai tinha um emprego regularna prefeitura e era, em tudo, diferente do filho. Sisudo, grave, sério,ia até a imponência grotesca do bom funcionário; e não seria capazde admitir que a namorada do filho dançasse na sua sala. Sua mulhernão tinha o ar solene do marido, era, porém, relaxada de modos ehábitos. Comia com a mão, andava descalça, catava intrigas e "novidades" da vizinhança; mas tinha, apesar disso, uma pretensão intima de ser grande cousa, de uma grande família. Além do Júlio, tinha três filhas, uma das quais já era adjunta municipal; e, das outras duas, uma estava na Escola Normal e a mais moça cursava o Instituto de Música.Tiravam muito ao pai, no gênio sobranceiro, no orgulho fofo dafamília; e tinham ambição de casamentos doutorais. Mercedes,Adelaide e Maria Eugênia, eram esses os nomes, não suportariam denenhuma forma Clara como cunhada, embora desprezassem soberbamente o irmão pelos seus maus costumes, pelo seu violão, pelosseus plebeus galos de briga e pela sua ignorância crassa.Pequeno-burguesas, sem nenhuma fortuna, mas, devido à situaçãodo pai e a terem freqüentado escolas de certa importância, elas nãoadmitiriam, para Clara, senão um destino: o de criada de servir.Entretanto, Clara era doce e meiga; inocente e boa, podia-sedizer que era muito superior ao irmão delas pelo sentimento, ficandotalvez acima dele pela instrução, conquanto fosse rudimentar, comonão podia deixar de ser, dada a sua condição de rapariga pobríssima.Júlio era quase analfabeto e não tinha poder de atenção suficientepara ler o entrecho de uma fita de cinematógrafo. Muito estúpido, asua vida mental se cifrava na composição de modinhas delambidas,recheadas das mais estranhas imagens que a sua imaginação erótica,sufocada pelas conveniências, criava, tendo sempre perante seusolhos o ato sexual.Mais de uma vez, ele se vira a braços com a polícia por causa dedefloramento e seduções de menores.O pai, desde a segunda, recusara intervir; mas a mãe, dona Inês,a custo de rogos, de choro, de apelo - para a pureza de sangue dafamília, conseguira que o marido, o capitão Bandeira, procurasseinfluenciar, a fim de evitar que o filho casasse com uma negrinha dedezesseis anos, a quem o Júlio "tinha feito mal".Apesar de não ser totalmente má, os seus preconceitos junto àestreiteza da sua inteligência não permitiram ao seu coração queagasalhasse ou protegesse o seu infeliz neto. Sem nenhum remorso,deixou-o por aí, à toa, pelo mundo...O pai, desgostoso com o filho, largara-o de mão; e quase não seviam. Júlio vivia no porão da casa ou nos fundos da chácara ondetinha gaiolas de galos de briga, o bicho mais hediondo, mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Era a sua indústriae o seu comércio, esse negócio de galos e as suas brigas em rinhadeiros.Barganhava-os, vendia-os, chocava as galinhas, apostava nas rinhas;e com o resultado disso e com alguns cobres que a mãe lhe dava,vivia e obtinha dinheiro para vestir-se. Era o tipo completo dovagabundo doméstico, como há milhares nos subúrbios e em outrosbairros do Rio de Janeiro.A mãe, sempre temendo que se repetissem os seus ajustes decontas com a polícia, esforçava-se sempre por estar ao corrente dosseus amores. Veio a saber do seu último com a Clara e repreendeu-onos termos mais desabridos. Ouviu-a o filho respeitosamente, semdizer uma palavra; mas, julgou da boa política relatar, a seu modo,por carta, tudo à namorada. Assim escreveu:
"Queridinha confeço-te que ontem quando recebi a tua cartaminha mãe viu e fiquei tão louco que confecei tudo a mamãeque lhe amava muito e fazia por você as maiores violências,ficaram todos contra mim é a razão porque previno-te que nãoligues ao que lhe disserem, por isso pesso-te que preze bem omeu sofrimento. Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que lhe pedi na última cartinha.Saudades e mais saudades deste infeliz que tanto lhe adora enão é correspondido. O teu Júlio".
Clara já estava habituada com a redação e ortografia do seunamorado, mas, apesar de escrever muito melhor, a sua instrução erainsuficiente para desprezar um galanteador tão analfabeto. Ainda porcima, a sua fascinação pelo modinheiro e a sua obsessão pelo casamento lhe tiravam toda a capacidade critica que pudesse ter. A cartaproduziu o efeito esperado por Júlio. Choro, palpitações, anseios vagos,esperanças nevoentas, vislumbres de céus desconhecidos e encantados- tudo isso aquela carta lhe trouxe, além do halo de dedicação e amorpor ela com que Clara fez resplandecer, na imaginação, as pastinhasdo violeiro. Daí a dias, fez o prometido, isto é, deixou a janela doquarto aberta para que ele entrasse no aposento. Repetiu a façanhaquase todas as noites seguidas, sem que ele se demorasse muito no quarto.Nos domingos, aparecia, cantava e semelhava que entre ambosnão havia nada. Um belo dia, Clara sentiu alguma cousa de estranhono ventre. Comunicou ao namorado. Qual! Não era nada, disse ele.Era, sim; era o filho. Ela chorou, ele acalmou-a, prometendo casamento. O ventre crescia, crescia...O cantador de modinhas foi fugindo, deixou de aparecer amiúdo; e Clara chorava. Ainda não lhe tinham percebido a gravidez.A mãe, porém, com auxilio de certas intimidades próprias de mãepara filha, desconfiou e pó-la em confissão. Clara não pôde esconder,disse tudo; e aquelas duas humildes mulheres choraram abraçadasdiante do irremediável... A filha teve uma idéia:- Mamãe, antes da senhora dizer a papai, deixa-me ir até à casadele, para falar com a sua mãe?A velha meditou e aceitou o alvitre:- Vai!Clara vestiu-se rapidamente e foi. Recebida com altaneria poruma das filhas, disse que queria falar à mãe de Júlio. Recebeu-a estarispidamente; mas a rapariga, com toda a coragem e com sangue-friodifícil de crer, confessou-lhe tudo, o seu erro e a sua desdita.- Mas o que é que você quer que eu faça?- Que ele se case comigo, fez Clara num só hausto.- Ora, esta! Você não se enxerga! Você não vê mesmo quemeu filho não é para se casar com gente da laia de você! Ele nãoamarrou você, ele não amordaçou você... Vá-se embora, rapariga!-Ora já se viu! Vá!Clara saiu sem dizer nada, reprimindo as lágrimas, para que narua não lhe descobrissem a vergonha. Então, ela? Então ela não se podia casar com aquele calaceiro, sem nenhum título, sem nenhumaqualidade superior? Por quê?Viu bem a sua condição na sociedade, o seu estado de inferioridade permanente, sem poder aspirar a cousa mais simples a que todasas moças aspiram. Para que seriam aqueles cuidados todos de seuspais? Foram inúteis e contraproducentes, pois evitaram que ela conhecesse bem justamente a sua condição e os limites das suas aspirações sentimentais... Voltou para casa depressa. Chegou; o pai ainda não viera.Foi ao encontro da mãe. Não lhe disse nada; abraçou-a chorando. A mãe também chorou e, quando Clara parou de chorar, entre soluços, disse:- Mamãe, eu não sou nada nesta vida.

sábado, 7 de março de 2009


Lima Barreto e a mulher - I

Livia


E todos os dias quando ela, de manhã cedo, ia, ainda morrinhenta da cama, preparar o café matinal da família, ia toda envolvida num nevoeiro de sonhos, sonhados durante um demorado dormirde oito horas a fio. Por vezes - lá na cozinha, só, vigiando pacientemente a água que fervia - ao lhe chegarem as reminiscências delesem tumulto, juntas, borbulhava-lhe nos lábios uma interjetiva qualquer,eco desconexo do muito que lhe falavam por dentro.De quando em quando, sofreando um gesto glorioso de satisfação, dizia - é ele - e isso de leve traduzia a grande carícia que lheera dado gozar naquele instante, refazendo aquele sonho bom - tãobom e acariciador que bem lhe parecia um inebriamento de capitososperfumes a se evolar do Mistério vagarosamente, suavemente...Depois, logo que o café se aprontava e, na sala de jantar, todos aoredor da mesa se punham a sorvê-lo, mastigando o pão de cada dia- ela, d'olhos parados, presos a uma linha do assoalho, levandocompassadamente a xícara aos lábios, ficava a um canto a pensar,remoendo a cisma, procurando decifrar naqueles traços nebulosos - tão mal grudados pela memória - a figura viva daquele com quem,em sonhos, se vira indo de braço dado ruas em fora.Esforço a esforço, de evocação em evocação, aparecia-lhe aospoucos a sua figura, o seu ar; e, após esse paciente trabalho dereconstrução, lhe vinha, anunciado por um sorriso reprimido que lheencrespava radiosamente o semblante, o seu nome sílaba por sílaba...Go-do-fre-do. Então com volúpia, ela lhe pesava os recursos: ganhava cento e vinte, no emprego da Central, talvez, em breve, viesse a termais. Quarenta para casa e o resto para o vestuário e alimentos.Era pouco - convinha - mas servia, pois, assim ficaria livre datirania do cunhado, das impertinências do pai; teria sua casa, seusmóveis e, certamente, o marido lhe dando algum dinheiro, ela -quem sabe! - que tão bons sonhos tinha, arriscando no "bicho",aumentaria a renda do casal; e, quando assim fosse, havia de comprar um corte de fazenda boa, um chapéu, de jeito que, sempre, peloCarnaval, iria melhorzinha à rua do Ouvidor, assistir passarem as sociedades.O café já se havia acabado; e ela ficara ainda distraída e sentada, quando soou de lá da sala de visitas a voz vigorosa do cunhado:- Lívia! Traz o meu guarda-sol que ficou atrás da poita do quarto.Depressa!... Anda que faltam só oito minutos para o trem!E como se demorasse um pouco, o Marques, redobrando devigor no timbre, gritou:- Oh! Cos diabos! Você ainda não achou! Safa! Que gente mole!Humildemente, Lívia lá foi aos pulos, como uma corça domesticada, entregar o objeto pedido, para lhe ser arrancado bruscamente das mãos...Envolvida ainda naquele sonho que lhe soubera tão bem amanhã, ela, através das frinchas da veneziana viu o cunhado atravessara rua e se perder por entre o dédalo de casas.Certificada disso, abriu a janela. O subúrbio todo despertavalanguidamente.As montanhas, verde-negras, quase desnudas de vegetação,confusamente surgiam do seio da cerração tênue e esgarçada. Ascasas listravam de branco e ocre o pardacento geral, enquanto bocadosde neblina, finos, adelgaçados, flutuavam sobre elas como sombras erradias.As ruas descalças e enlameadas eram atravessadas por algunstranseuntes cabisbaixos, mal vestidos, andando céleres em busca do embarcadouro.Corria, de resto, como sempre, morosamente o viver diário; e aLívia, sacudida pelo silvo agudo de uma locomotiva, levantou derepente os olhos, até ali fitos na estação que emergia do ambientepardo a clarear-se, para pregá-los numa nesga do céu que o sol abria, por entre a névoa, furiosamente, vitoriosamente.A súbitas, sua alma voou, asas abertas, vôo rasgado, para outrasbandas, outras regiões. Voou para a cidade de luxo e elegância que,ao fim daquelas fitas de aço, refulgia e brilhava.Representaram-se-lhe os teatros de luxo, os bailes do tom, a ruada moda onde triunfavam as belezas. Ao considerar isso, viu-se alitambém, ela, sim! ela, que não era feia, tendo o seu porte flexível elongo, envolvido de rendas, a desprender custosas essências e aquelesseus dedos de unhas de nácar, ornados de ouro e pérolas, escolhendo,na mais chique loja, cassas, baptistes, voiles...Numa galopada de sonhos, supós maiores cousas e - lembrando-se do que lhe contara a madrinha (oh! como era rica!) - imaginoua Europa, aquelas terras soberbas, por onde a "Dindinha" passeava asua velhice e o seu egoísmo.Doidamente revolvia a alma e as cismas... Calculou-se lá também,na alameda de um soberbo jardim, de landau, com ricas vestes aocorpo unidas, ressaltando delas o esplendor de suas formas e o esguiopatrício de seu corpo. Imaginou que, através de um caro chapéu depalhinha branca, se coasse a luz macia do sol da Europa, polvilhando-lhea tez de ouro, em cujo fundo brilhassem muito os seus olhos vivos,negros e redondos.- Oh! que bom! Quem me dera! - quase exclamou por esse tempo.De reviravolta, Lívia adivinhou outra cousa no sonho. Não pensara bem; era outro que não o Godofredo, o rapaz que imaginara.Aquele nariz grosso, aquela testa alta, o bigode ralo, não eramdele; eram antes do Siqueira, estudante de farmácia, filho do agente.Esse poderia lhe dar aquilo - a Europa, o luxo - pois que formadoganharia muito.Dessa forma - resolvera- "amarraria a lata" no Godofredo e"pegaria" com o Siqueira. E era muito melhor! O Siqueira, afinal, iaformar-se, seria um marido formado, ao braço do qual, se não fosse àEuropa, viria a gozar de maior consideração...Demais a Europa era desnecessária - para quê? Era querermuito. Quem muito quer nada tem; e ela para ter alguma cousa deviaquerer pouco. Bastava pois que lhe tirassem dali, fosse esse, fosseaquele; mas... se em todo o caso pudesse ser um mais assim... seria muito melhor.E desde quando vinha ela querendo aquilo? Havia muitos anos;havia dez talvez. Desde os doze que namorava, que "grelava" só paraaquele fim; entretanto, apesar de haver tido mais de quinze namorados,ainda ali estava, ainda ali ficava, sob o mando do cunhado.Quinze namorados!Quinze! De que lhe serviram?Um levara-lhe beijos, outro abraços, outro uma e outra cousa; esempre, esperando casar-se, isto é, libertar-se, ela ia languidamente,passivamente deixando. Passavam um, dous meses, e os namoradosiam-se sem causa. Era feio, diziam; mas que fazer? como casar-se? Porconsequência, como viver? A sua própria mãe não lhe aconselhava?Não lhe dizia: "Filha, anda com isso; preciso ver esta letra vencida"?De resto, o amor lhe desculparia, pois não é o amor o máximotirano? Não é a própria essência da vida, das cousas mudas, dos seres, enfim?Porventura ela os amara? Teria ela amado aquela legião denamorados? Amara um, sequer? Não sabia...- O que é amar? interrogava fremente.Não é escrever cartas doces? Não é corresponder a olhares? Nãoé dar aos namorados as ameaças da sua carne e da sua volúpia?- Se era isso, ela amara a todos, um a um; se não era, a nenhumamara...E o que era amar? Que era então?Ao lhe chegar essa interrogação metafisica, para o seu entendimento, ela se perdeu no próprio pensamento; as idéias se baralharam, turbaram-se; e, depois, fatigada, foi passando vagarosamente a mãoesquerda pela testa, correu-a pacientemente pela cabeça toda até à nuca.Por fim, como se fosse um suspiro, concluiu:- Qual amor! Qual nada! A questão é casar e para casar,namorar aqui, ali, embora por um se seja furtada em beijos, por outro em abraços, por outro...- Ó Lívia! Você hoje não pretende varrer a casa, rapariga? Quefazes há tanto tempo na janela?!Obedecendo ao chamado de sua mãe, Lívia foi mais uma vezretomar a dura tarefa, da qual, ao seu julgar, só um casamento haviade livrá-la para sempre, eternamente...

sexta-feira, 6 de março de 2009


Arthur Azevedo e a mulher - II

Sabina

Havia três anos que o bacharel Figueiredo era o amante da viúva Fontes. E marido seria se ela quisesse; mas Sabina - Sabina era o seu nome - dera-se mal com o casamento, e não queria experimentá-lo de novo.
Um mês depois do seu primeiro encontro com o bacharel Figueiredo, este dizia-lhe:
- Eu amo-te, tu amas-me, eu sou livre, tu livre és: casemo-nos !
- Não! respondia ela, não! não! não!...
- Por quê, meu amor?
- Porque esse fogo, esse ímpeto, esse entusiasmo que te lançou nos meus braços, tudo isso desapareceria desde que eu fosse tua mulher!
- Mas a sociedade...
- Ora a sociedade! Sou bastante independente para me não importar com ela.

- Tua filhinha...
- Tem apenas quatro anos! está na idade em que se olha sem ver. Demais, não quero dar-lhe um padrasto. Amemo-nos, e deixemos em paz o padre e o pretor.
II
Ficaram efetivamente em paz o ministro de Deus e o representante da lei, mas nem por isso o bacharel deixou de enfarar-se ao cabo de dois anos, agradecendo aos céus o haver a viúva recusado o casamento que ele lhe propusera num momento de verdadeira alucinação.
Havia muitos meses já que o moço ruminava um plano de separação definitiva, mas não sabia de que pretexto lançar mão para chegar a esse resultado. Sabina guardava-lhe, ou, pelo menos, parecia guardar-lhe absoluta fidelidade, e nunca lhe dera motivo de queixa.
Nestas condições lembrou-se o bacharel de consultar o velho Matos, que o honrava com a sua amizade.
III
O velho Matos era um solteirão rico e viajado, que na sua tempestuosa mocidade tivera um número considerável de aventuras galantes, e era ainda considerado um oráculo em questões de amor. Muitos mancebos inexperientes recorriam aos seus conselhos, e tais e tão discretos eram estes, que eles alcançavam quanto pretendiam.
O bacharel Figueiredo foi ter a uma velha chácara da Gávea, onde o avisado conselheiro vivia das suas recordações e de alguns prédios e apólices milagrosamente salvos do naufrágio dos seus haveres.
O moço foi recebido com muita amabilidade, e sem preâmbulos expôs a situação:
- Há três anos sou o amante de uma senhora viúva, distinta e bem educada; quero acabar com essa ligação; que devo fazer?
- Antes de mais nada, é preciso que eu saiba o motivo que o desgostou. Tem ciúmes dela?
- Ciúme... - Oh! se a conhecesse!... É um modelo de meiguice, fidelidade e constância!
- Existe alguma particularidade que o afaste desse modelo?... quero dizer: uma enfermidade... - um defeito físico... o mau hálito, por exemplo?
- Pelo amor de Deus!... É uma mulher sadia, limpa, cheirosa.
- Então, é feia?
- Feia? ! Uma das caras mais bonitas do Rio de Janeiro!
- Tem mau gênio?
- Uma pombinha sem fel!
- Então é tola, vaidosa, pedante, presumida, afetada, asneirona...?
- Nada disso! é uma mulher de espírito, instruída e perfeitamente educada.
- É devota? Anda metida nas igrejas?... passa horas esquecidas a rezar diante de uni oratório?...
- Apenas vai ouvir missa aos domingos.
- Talvez abuse do piano, ou desafine a cantar...
- Não canta; toca piano, mas não abusa. Digo-lhe mais: interpreta admiravelmente Chopin.
- Você gosta de outra mulher?
- Juro-lhe que não.
- Bom; sei o que isso é; você aborreceu-se dela porque nunca lhe descobriu defeitos. É boa demais.
- Talvez. O caso é que esta ligação já durou mais tempo do que devia, e urge acabar com ela. A Sabina tem uma filha que está crescendo a olhos vistos, e não é conveniente fazer com que essa criança algum dia a obrigue a corar.. . Depois, eu sou moço... tenho um grande horizonte diante de mim... enceto agora a minha carreira de advogado... esta ligação pode prejudicar seriamente o meu futuro - não acha?
O velho Matos calou-se, e, passados alguns momentos, perguntou:
- Quer então você separar-se dessa mulher ideal?
- Quero.
- A sua resolução é inabalável?
- Inabalável.
- Só há um meio de o conseguir.
- Qual?
- Desapareça.
- Ela irá procurar-me onde quer que eu esteja.
- Boa dúvida, mas faça-se invisível, vá para a roça, e volte ao cabo de oito dias. Naturalmente ela aparece, e pergunta em termos ásperos, ou sentidos, o motivo do seu procedimento. Muna-se então de um pouco de coragem, e responda-lhe o seguinte: "Á vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nós. Não me peça explicações: meta a mão na consciência, e meça a extensão do meu ressentimento!"
- Mas que fato? Pois eu já não lhe disse que a Sabina e um modelo de...
- Meu jovem amigo, interrompeu o velho Matos, não há mulher, por mais amante, por mais dedicada, por mais virtuosa que seja, que não tenha alguma coisa de que a acuse a consciência. A sua Sabina, em que pese às aparências, não deve, não pode escapar à lei comum; desde que você se refira positivamente a um fato, embora não declare que fato é, ela ficará persuadida de que o seu amante veio ao conhecimento de alguma coisa que se passou, e que a pobrezinha supunha coberta pelo véu de impenetrável mistério.
- Mas a Sabina, quando mesmo tenha algum pecadinho na consciência (eu juro-lhe que o não tem!) com certeza há de protestar energicamente e exigir que eu ponha os pontos nos ii; há de querer que eu diga francamente a que fato aludo, e... - e vamos lá! como acusá-la sem consentir que ela se defenda?
- Ah! meu amigo! se você pretende aplicar razões jurídicas ao caso, não arranja nada. A jurisprudência do amor e extravagante e absurda. Acuse, retire-se, e não entre em explicações. Afianço-lhe que o êxito é seguro.
IV
Se bem o disse o velho Matos, melhor o fez o bacharel Figueiredo. Retirou-se durante alguns dias para uma fazenda sem dizer adeus nem dar satisfações à viúva.
Imagine-se o desespero dela. Quando soube que o seu amante voltara dessa misteriosa viagem, foi - e era a primeira vez que lá ia - foi à casa de pensão em que ele morava e entrou como uma doida no seu quarto.
- Então? que quer isto dizer?... exclamou a mísera caindo numa cadeira, a soluçar desesperadamente.
Ele até então nunca a tinha visto chorar. A viúva apresentava-se-lhe sob um aspecto estranho; parecia-lhe agora mais apetitosa.
Entretanto, fazendo um esforço violento sobre si mesmo, o bacharel franziu os sobrolhos e repetiu as palavras do velho Matos:
- À vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nós!...
Sabina ergueu-se como tocada por uma mola. Ele continuou:
- Não me peça explicações; eu não lhas daria! Meta a mão na consciência, e compreenda o meu eterno ressentimento...
Dizendo isto, saiu do quarto batendo com estrondo a porta, e deixando a pobre Sabina aparvalhada.
V
No dia seguinte o bacharel recebeu uma carta concebida nos seguintes termos:
"Figueiredo - Tens razão: nada mais pode haver de comum entre nós; aprecio e respeito a delicadeza dos teus sentimentos. Eu vivia na ilusão de que tudo ignorarias, de que jamais virias ao conhecimento de uma fraqueza que tão desgraçada me faz neste instante. Vejo que o miserável não guardou segredo, e fez chegar aos teus ouvidos a história de uma vergonhosa aventura a que fui arrastada num momento de desvario e de que logo me arrependi amargamente. Não me perdoes, porque o teu perdão seria um atestado de péssimo caráter, mas ao menos sabe que foi a tua frieza, o teu desprendimento, o pouco caso com que então começavas a tratar-me, que me determinaram a dar o mau passo que dei e que tantas lágrimas me tem custado. Adeus; lembra-te sempre da infeliz Sabina, que te ama ainda como sempre te amou, mas não procures tornar a vê-la, porque ela é a primeira a confessar que não é digna de ti. Console-te a certeza de que a minha vida vai ser de agora em diante um inferno de remorsos e de saudades. Adeus para sempre... - Sabina."
VI
Essa carta produziu terrível efeito no espírito do bacharel Figueiredo.
Era então certo?... ela pertencera a outro homem?...
E o seu amor extinto despertou mais violento, mais impetuoso que nunca. Passavam-lhe rapidamente pela memória, num turbilhão demoníaco, todos os deliciosos momentos que lhe proporcionara a meiga viúva, e o ciúme, um ciúme implacável, que o aniquilava e embrutecia, excitava-o tiranicamente.
Ele correu à casa de Sabina, e encontrou fechadas todas as portas e janelas. Informou-o um vizinho de que a viúva se retirara na véspera, com a menina e as criadas, levando malas e embrulhos.
Durante oito dias o bacharel, desesperado, enfurecido, mortificado pela insônia, pelos ciúmes, pelas saudades, correu á casa dela: tudo fechado!...
Ninguém lhe dava notícias de Sabina! Aonde iria ela?.. - onde estava?...
Afinal, um dia encontrou a porta aberta e entrou como um doido, tal qual Sabina entrara na casa de pensão. Encontrou-a no seu quarto, e, sem dizer palavra, sufocado pelo pranto, beijou-lhe sofregamente a boca, os olhos, o nariz, as orelhas, beijou-a toda, e, rasgando-lhe o vestido, atirou-a brutalmente sobre o leito, sequioso por entrar de novo na posse daquele corpo e daquele sangue.
Mas a viúva, debatendo-se heroicamente, conseguiu repeli-lo, e pôs-se de pé, gritando:
- Não! não! não, Figueiredo!... Tudo acabou entre nós! Eu não sou digna de ti!...
- Não digas isso pelo amor de Deus! Eu perdôo-te! Eu amo-te! Eu adoro-te!...
- Se realmente me amas, se me adoras, então és tu que não és digno de mim!
Dizendo isto, fugiu do quarto e foi para junto da filha, onde se julgou a coberto das perseguições do bacharel. Efetivamente, este deixou-se ficar no quarto, atirado sobre o leito e soluçando convulsivamente.
VII
Durante alguns dias a mesma cena se reproduziu, mas afinal restabeleceram-se as pazes.
Sabina cedeu sob duas condições: primeira, o bacharel só entraria no quarto dela com escala pela pretoria e pela igreja ; segunda, jamais lhe pediria explicações sobre o fato que determinara a crise.
VIII
Três meses depois do casamento, o velho Matos, que se tornara íntimo da casa, achando-se a sós com Sabina, contou-lhe a história do conselho dado ao bacharel, conselho que foi a causa imediata de tão extraordinários acontecimentos, e que tão negativo efeito produzira.
- Mas o que o senhor não sabe, disse ela, é que eu nunca tive outro amante senão o Figueiredo.
- Que me diz, minha senhora?
- Juro-lhe pela vida de minha filha que falo verdade.
- Mas valha-me Deus! o pobre rapaz está convencido de...
- Deixá-lo estar. É um pobre-diabo, feito da mesma lama que os outros homens. Confessei-lhe uma culpa que não tinha, porque adivinhei que só assim poderia reconquistá-lo.
- Mas agora estão casados e muito bem casados; é preciso dissuadi-lo.
- Não; ainda é cedo; mais tarde.. . Esse homem que ele não sabe quem é... essa aventura misteriosa.... essa ignóbil mentira é a garantia da minha felicidade. Enquanto ele supuser que não fui dele só, será só meu.
- Parabéns, minha senhora; pode gabar-se de ter embrulhado o velho Matos.
- Ora, o velho Matos! Quem é o velho Matos? Quem é o senhor? Algum psicólogo? Saiba que uma mulher inteligente é capaz de embrulhar Paul Bourget...

- Upa! upa! É capaz de enfiar pelo fundo de uma agulha o próprio Balzac !
Repito: parabéns, minha senhora!
(publicado em Contos efêmeros, 1897)

quinta-feira, 5 de março de 2009


Arthur Azevedo e a mulher - I

A berlinda

Um dia o poeta Passos Nogueira foi instantemente convidado para as terças-·feiras do Cunha.
-- Apareça, que diabo ! dizia-lhe este sempre que o encontrava. Minha senhora faz questão da sua pessoa e me recomenda com muito empenho que o convide. Ela adora a poesia, e por seu gosto vivia cercada de poetas.
-- Mas eu não sou poeta, meu caro sr. Cunha.
-- lsso agora é modéstia sua.O meu amigo não é ainda um Casimiro de Abreu
[1] nem um Rozendo Moniz; mas em todo o caso é um bom poeta.
Passos Nogueira não podia resistir à tanta amabilidade, e uma terça-feira lá foi à casa do Cunha, na rua Mariz e Barros.
A sala estava cheia de visitas. A dona da casa recebeu o poeta com grandes demonstrações de agrado ... e um aperto de mão fortíssimo.
Era uma bonita mulher, não há dúvida, aquela dona Helena dos olhos lânguidos, com arrebitado e petulante nariz cavalgado pelo pince-nez de ouro, e a boca -- uma boca adorável, primorosamente rasgada -- mostrando sempre os dentes alvos e brilhantes.
Os homens, quando se aproximavam dela, ficavam como envolvidos num vapor de sensualidade e volúpia.
Com aquele sorriso que murmurava : “Cheguem-se !”, aqueles olhos que diziam “Amem- me !”, e aquelas narinas que gritavam “Gozem-me !”, não podia dona Helena escapar da maledicência pública. Efetivamente a mísera não gozava da fama de uma Penélope, três ou quatro amantes sucessivos lhe apontava a vox populi . Sabia disso toda a gente ... , exceção do Cunha que - vamos e venhamos -- não era precisamente um Ulysses.
Passos Nogueira estava ao corrente da reputação de dona Helena, e, portanto, poderia quase sem remorsos aceitar o combate amoroso que ela visivelmente lhe oferecia. A boca, os olhos e as narinas da moça diziam-lhe : “Chega-te ! Ama-me ! Goza-me !”
Ele chegou-se; na ocasião era o mais que podia fazer . Ali, naquela sala pequena e cheia de gente, o combate deveria necessariamente limitar-se à fuzilaria dos olhos; não era possível recorrer à artilharia dos lábios.
-- Sr. Passos Nogueira, disse dona Helena em voz alta, queira recitar-nos uma das suas mimosas poesias.
-- Oh,excelentíssima ! poupe-me pelo amor de Deus o dissabor de vir trazer o sono a uma sociedade tão divertida .
-- Não apoiado ! não apoiado !... gritaram diversas vozes.
-- Vamos ! não se faça rogado, suspirou dona Helena.
-- Pois bem ; recitarei a minha última produção poética : algumas quintilhas que escrevi ontem para responder a certa pessoa que me perguntou se eu amava.
E os olhos do poeta encontraram-se com os da dona da casa. Fuzilaria.
-- Quer que dona Xandoquinha toque a “Dalila” enquanto o senhor recita? perguntou o Cunha.
-- Não, não é preciso acompanhamento, gemeu o poeta, penteando com os dedos a cabeleira farta .
Dispensem-me os leitores de reproduzir a poesia inteira; basta dizer-lhes que a terceira quintilha rezava assim :
“Queres saber, porém,
Se algum afeto escondo
No coração; pois bem,
Senhora, eu te respondo
Que nunca amei ninguém.”
E que a última era do teor seguinte :
“Em busca do meu bem,
Irei como a andorinha
Por esse mundo além;
E uma alma irmã da minha
Hei de encontrar também.”
Sentou-se o poeta, e os aplausos rebentaram de todos os ângulos da sala. Dona Helena dava claramente a perceber com os olhos, a boca e as narinas que ela possuía uma alma irmã da de Passos Nogueira.
E com tanta franqueza se entregava ao poeta, que este, aproveitando um momento em que a conversação se tornou geral, perguntou-lhe rapidamente:
-- Como poderei falar-lhe ?
Ela respondeu-lhe com um olhar docemente repreensivo, que ao mesmo tempo exprimia a impossibilidade de contestar por outra forma. Ele resignou-se.
Mas dona Helena, ardilosa como todas as criaturas do seu sexo, propôs à sociedade um jogo de prendas. Alguns tímidos protestos se levantaram; a maioria, porém, acolheu com entusiasmo a proposta, e formou -se uma grande roda.
Na ocasião da berlinda... Os leitores sabem o que é, num jogo de prendas, a berlinda? ... A pessoa sentenciada afasta-se para um canto da sala, e um dos circunstantes vai perguntar em segredo a cada um dos que tomaram parte no jogo porque aquela pessoa está na berlinda; depois repete alto e bom som todas as respostas.
Passos Nogueira foi designado por dona Helena para esse serviço.
Na berlinda estava um moço muito empomadado, caixeiro de um grande armarinho da rua do Ouvidor.
O poeta vergava-se diante de todos para que sucessivamente lhe segredassem a resposta.
Dizia um :
-- Está na berlinda, porque gosta de andar de calças brancas.
Outro:
-- Está na berlinda, porque é muito amável.
Dona Xandoquinha, a pianista :
-- Está na berlinda, porque há uma baroneza viúva que simpatiza muito com ele.
Chegou a vez de dona Helena. O poeta curvou-se e ela disse-lhe ao ouvido :
-- Amanhã, ao meio - dia,na travessa de São Salvador. Leve um carro fechado.

quarta-feira, 4 de março de 2009


Machado - II

Trina e una

A primeira coisa que há de espantar o leitor é o título, que lhe anuncia (posso dizê-lo desde já) três mulheres e uma só mulher. Há dois modos de explicar uma tal anomalia: — ou duas mulheres entram no conto indiretamente, são apenas citadas, e puxam os cordéis da ação do outro lado da página — ou as mulheres não passam de três gradações, três estados sucessivos da mesma pessoa. São os dois modos aparentes de definir o título, e, entretanto, não é nenhum deles, mas um terceiro, que eu guardo comigo, não para aguçar a curiosidade, mas porque não há analisá-lo sem expor o assunto.
Vou expor o assunto. Comecemos por ela, a mulher una e trina. Está sentada numa loja, à rua da Quitanda, ao pé do balcão, onde há cinco ou seis caixas de rendas abertas e derramadas. Não escolhe nada, espera que o caixeiro lhe traga mais rendas, e olha para fora, para as pedras da rua, não para as pessoas que passam. Veste de preto, e o busto fica-lhe bem, assim comprimido na seda, e ornado de rendas finas e vidrilhos. Abana-se por distração; talvez olhe também por distração. Mas, seja ou não assim, abana-se e olha. Uma ou outra vez, recolhe a vista para dentro da loja, e percorre os demais balcões onde se acham senhoras que também escolhem, conversam e compram; mas é difícil ver nos movimentos da dama a menor sombra de interesse ou curiosidade. Os olhos vão de um lado a outro, e a cabeça atrás deles, sem ânimo nem vida, e depois aos desenhos do leque. Ela examina bem os desenhos, como se fossem novos, levanta-os, desce-os, fecha as varetas uma por uma, torna a abri-las, fecha-as de todo e bate com o leque no joelho. Que o leitor se não enfastie com tais minúcias; não há aí uma só palavra que não seja necessária.
— Aqui estão estas que me parece que hão de agradar, disse o caixeiro voltando.
A senhora pega das novas rendas, examina-as com vagar, quase digo com preguiça. Pega delas entre os dedos, fitando-lhes muito os olhos; depois procura a melhor luz; depois compara-as às outras, durante um largo prazo. O caixeiro acompanha-lhe os movimentos, ajuda-a, sem impaciência, porque sabe que ela há de gastar muito tempo, e acabar comprando. É freguesa da casa. Vem muitas vezes estar ali uma, duas horas, e às vezes mais. Hoje, por exemplo, entrou às duas horas e meia; são três horas dadas, e ela já comprou duas peças de fita; é alguma coisa, podia não ter escolhido nada.
— Os desenhos não são feios, disse ela; mas não haverá outros?
— Vou ver.
— Olhe, desta mesma largura.
Enquanto o caixeiro vai ver, ela passa as outras pelos olhos, distraidamente, recomeça a abanar-se, e afinal torna a cravar os olhos nas pedras da rua. As pedras é que não podem querer-lhe mal, porque os olhos são lindos, e o que está escondido dentro, como dizia Salomão, não parece menos lindo. São também claros, e movem-se por baixo de uma testa olímpica. Para avaliar o amor daqueles olhos às pedras da rua, é preciso considerar que o raio visual é muita vez atravessado por outros corpos, calças masculinas, vestidos femininos, um ou outro carro, mas é raro que os olhos se desviem mais de alguns segundos. Às vezes olham tão de dentro que nem mesmo isso; nenhum corpo lhes interrompe a vista. Ou de cansados, ou por outro motivo, fecham-se agora, lentamente, lentamente, não para dormir ou cochilar, pode ser que para refletir, pode ser que para coisa nenhuma. O leque, a pouco e pouco, vai parando, e descamba, aberto mesmo, no regaço da dona. Mas aí volta o caixeiro, e ela torna ao exame das rendas, à comparação, ao reparo, a achar que o tecido desta é melhor, que o desenho daquela é melhor, e que o preço daquela outra é ainda melhor que tudo. O caixeiro, inclinado, risonho, informa, discute, demonstra, concede, e afinal conclui o negócio; a dona leva tantos metros de uma e tantos de outra.
Comprou; agora paga. Tira a carteirinha da bolsa, saca um maçozinho de notas, e, vagarosamente, puxa uma, enquanto o caixeiro faz a conta a lápis. Dá-lhe a nota, ele pega nela e nas rendas compradas e vai ao caixa; depois traz o troco e as compras.
— Não há de querer mais nada? pergunta ele.
— Não, responde ela sorrindo.
E guarda o troco, enfia o dedo no rolozinho das compras, disposta a sair, mas não sai, deixa-se estar sentada. Parece-lhe que vai chover; di-lo ao caixeiro, que opina de modo contrário, e com razão, pois o tempo está seguro. Mas pode ser que a dama dissesse aquilo, como diria outra coisa qualquer, ou nada. A verdade é que tem o rolo enfiado no dedo, o leque fechado na mão, o chapelinho de sol em pé, com a mão sobre o cabo, prestes a sair, mas sem sair. Os olhos é que tornam à rua, às pedras, fixos como uma idéia de doido. Inclinado sobre o balcão, o caixeiro diz-lhe alguma coisa, uma ou outra palavra, para corresponder tanto ou quanto ao sorriso maligno de um colega, que está no balcão fronteiro. É opinião deste que a dama em questão, que não quer outra pessoa que a sirva, senão o mesmo caixeiro, anda namorada dele. Vendo que ela está pronta para ir-se e não vai, sorri velhacamente, mas com disfarce, olhando para as agulhas que serve a uma freguesa. Daí as palavras do outro, acerca disto ou daquilo, palavras que a dama não ouve, porque realmente tem os olhos parados e esquecidos.
Já falei das calças masculinas, que de quando em quando cortam o raio visual da nossa dama. Toda a gente que sabe ler, que conhece a alma do licenciado Garcia, compreendeu que eu não apontei uma tal circunstância para ter o vão gosto de dizer que andam calças na rua, mas por um motivo mais alto e recôndito; para acompanhar de longe a entrada de um homem na loja. Puro efeito de arte; cálculo e combinação de gestos. São assim as obras meditadas; são assim os longos frutos de longa gestação. Podia fazer entrar este homem sem nenhum preparo anterior, fazê-lo entrar assim mesmo, de chapéu na mão, e cumprimentar a dama, que lhe pergunta como está, chamando-lhe doutor; mas eu pergunto se não é melhor que o leitor, ainda sem o saber, esteja advertido de uma tal entrada. Não há duas respostas.
Se ela lhe chamou doutor, ele chamou-lhe D. Clara, falaram dez minutos, se tanto, até que ela dispôs-se definitivamente a sair; ao menos, disse-o ao recém-chegado. Este era um homem de trinta e dois a trinta e quatro anos, não feio, antes simpático que bonito, feições acentuadas do Norte, estatura mediana, e um grande ar de seriedade. A vontade que ele tinha era de ficar ali com ela, ainda uma meia hora, ou acompanhá-la à casa. A prova está no ar comovido com que lhe fala, dependente, suplicante quase; os modos dela é que não animam nada. Sorriu uma ou duas vezes, para ele, mas um sorriso sem significação, ou com esta significação: — “sei o que queres; continua a andar”.
— Bem, disse ele; se me dá licença...
— Pois não. Até quando?
— Não vai hoje ao Matias?
— Vou... Até lá.
— Até lá.
Saiu ele, e foi esperar pouco adiante, não para acompanhá-la, mas para vê-la sair, para gozá-la com os olhos, vê-la andar, pisar de um modo régio e tranqüilo. Esperou cinco minutos, depois dez, depois vinte; aos vinte e um minutos é que ela saiu da loja. Tão agitado estava ele que não pôde saborear nada; não pôde admirar de longe a figura, realmente senhoril, da nossa dama. Ao contrário, parece que até lhe fazia mal. Mordeu o beiço, por baixo do bigode, e caminhou para o outro lado, resolvendo não ir ao Matias, resolvendo depois o contrário, desejoso de tirar aquela mulher de diante de si e não querendo senão fixá-la diante de si por toda a eternidade. Parece enigmático, e não há nada mais límpido.
Clara foi dali para a rua do Lavradio. Morava com a mãe. Eram cinco horas dadas, e D. Antônia não gostava de jantar tarde; mas já devia esperar isto mesmo, pensava ela: a filha só voltava cedo quando ela a acompanhava; em saindo só, ficava horas e horas.
— Anda, anda, é tarde, disse-lhe a mãe.
Clara foi despir-se. Não se despiu às pressas, para condescender com a mãe, ou fazer-se perdoar a demora; mas, vagarosamente. No fim reclinou-se no sofá com os olhos no ar.
— Nhanhã não vai jantar? perguntou-lhe uma negrinha de quinze anos, que a acompanhara ao quarto.
Não respondeu; posso mesmo dizer que não ouviu. Tinha os olhos, não já no ar, como há pouco, mas numa das flores do papel que forrava o quarto; pela primeira vez reparou que as flores eram margaridas. E passou os olhos de uma a outra, para verificar se a estrutura era a mesma, e achou que era a mesma. Não é esquisito? Margaridas pintadas em papel. Ao mesmo tempo que reparava nas pinturas, ia-se sentindo bem, espreguiçando-se moralmente, e mergulhando na atonia do espírito. De maneira que a negrinha falou-lhe uma e duas vezes, sem que ela ouvisse coisa nenhuma; foi preciso chamá-la terceira vez, alteando a voz:
— Nhanhã!
— Que é?
— Sinhá velha está esperando para jantar.
Desta vez, levantou-se e foi jantar. D. Antônia contou-lhe as novidades de casa; Clara referiu-lhe algumas reminiscências da rua. A mais importante foi o encontro do Dr. Severiano. Era assim que se chamava o homem que vimos na loja da rua da Quitanda.
— É verdade, disse a mãe, temos de ir à casa do Matias.
— Que maçada! suspirou Clara.
— Também você tudo lhe maça! exclamou D. Antônia. Pois que mal há em passar uma noite agradável, entre meia dúzia de pessoas? Antes de meia-noite está tudo acabado.
Este Matias era um dos autores da situação em que o Severiano se acha. O ministro da Justiça era o outro. Severiano viera do norte entender-se com o governo, acerca de uma remoção: era juiz de direito na Paraíba. Para se lhe dar a comarca que ele pediu, tornava-se necessário fazer outra troca, e o ministro disse-lhe que esperasse. Esperou, visitou algumas vezes o Matias, seu comprovinciano e advogado. Foi ali que uma noite encontrou a nossa Clara, e ficou um tanto namorado dela. Não era ainda paixão; por isso falou ao amigo com alguma liberdade, confessou-lhe que a achava bonita, chegaram a empregar entre eles algumas galhofas maduras e inocentes; mas afinal, perguntou-lhe o Matias:
— Agora falando sério, você por que é que não casa com ela?
— Casar?
— Sim, são viúvos, podem consolar-se um ao outro. Você está com trinta e quatro, não?
— Feitos.
— Ela tem vinte e oito; estão mesmo ajustadinhos. Valeu?
— Não valeu.
Matias abanou a cabeça: — Pois, meu amigo, lá namoro de passagem é que você não pilha; é uma senhora muito séria. Mas, que diabo! Você com certeza casa outra vez; se há de cair em alguma que não mereça nada, não é melhor esta que eu lhe afianço?
Severiano repeliu a proposta, mas concordou que a dama era bonita. Viúva de quem? Matias explicou-lhe que era viúva de um advogado, e tinha alguma coisa de seu; uma renda de seis contos. Não era muito, mas com os vencimentos de magistrado, numa boa comarca, dava para pôr o céu na terra, e só um insensato desprezaria uma tal pepineira.
— Cá por mim, lavo as mãos, concluiu ele.
— Podes limpá-las à parede, replicou Severiano rindo.
Má resposta; digo má por inútil. Matias era serviçal até ao enfado. De si para si entendeu que devia casá-los, ainda que fosse tão difícil como casar o Grão-Turco e a república de Veneza; e uma vez que o entendia assim, jurou cumpri-lo. Multiplicou as reuniões íntimas, fazia-os conversar muitas vezes, a sós, arranjou que ela lhe oferecesse a casa, e o convidasse também para as reuniões que dava às vezes; fez obra de paciência e tenacidade. Severiano resistiu, mas resistiu pouco; estava ferido, e caiu. Clara, porém, é que não lhe dava a menor animação, a tal ponto que se o ministro da Justiça o despachasse, Severiano fugiria logo, sem pensar mais em nada; é o que ele dizia a si mesmo, sinceramente, mas dada a diferença que vai do vivo ao pintado, podemos crer que fugiria lentamente, e pode ser até que se deixasse ficar. A verdade é que ele começou a não perseguir o ministro, dando como razão que era melhor não exaurir-lhe a boa vontade; importunações estragam tudo. E voltou-se para Clara, que continuou a não o tratar mal, sem todavia passar da estrita polidez. Às vezes parecia-lhe ver nos modos dela um tal ou qual constrangimento, como de pessoa que apenas suporta a outra. Ódio não era; ódio, por quê? Mas ninguém obsta uma antipatia, e as melhores pessoas do mundo podem não ser arrastadas uma para a outra. As maneiras dela na loja vieram confirmar-lhe a suspeita; tão seca! tão fria!
— Não há dúvida, pensava ele; detesta-me; mas que lhe fiz eu?
Entre ir e não ir à casa do Matias, Severiano adotou um meio-termo: era ir tarde, muito tarde. A razão secreta é tão pueril que não me animo a escrevê-la; mas o amor absolve tudo. A secreta razão era dissimular quaisquer impaciências namoradas, mostrar que não fazia caso dela, e ver se assim... Compreenderam, não? Era a aplicação daquele pensamento, que não sei agora, se é oriental ou ocidental, em que se compara a mulher à sombra: segue-se a sombra, ela foge; foge-se, ela segue. Criancices de amor — ou para escrever francamente o pleonasmo: criancices de criança. Sabe Deus se lhe custou esperar! Mas esperou, lendo, andando, mordendo o bigode, olhando para o chão, chegando o relógio ao ouvido para ver se estava parado. Afinal foi; eram dez horas, quando entrou na sala.
— Tão tarde! disse-lhe o Matias. Esta senhora já tinha notado a sua falta.
Severiano cumprimentou friamente, mas a viúva, que olhava para ele de um modo oblíquo, conheceu que era afetação. Parece que sorriu, mas foi para dentro; em todo o caso, pediu-lhe que se sentasse ao pé dela; queria consultá-lo sobre uma coisa, uma teima que tivera na véspera com a mulher do chefe de polícia. Severiano sentou-se trêmulo.
Não nos importa a matéria da consulta; era um pretexto para conversação. Severiano demorou o mais que pôde a solução pedida, e quando lhe deu, ela pensava tão pouco em ouvi-la que não sabia já de que se tratava. Olhava então para o espelho ou para as cortinas; creio que era para as cortinas.
Matias, que os espreitara de longe, veio ter com eles, sentou-se e declarou que trazia uma denúncia na ponta da língua.
— Diga, diga, insistiu ela.
— Digo? perguntou ele ao outro.
Severiano enfiou, e não respondeu logo, mas, teimando o amigo, respondeu que sim. Aqui peço perdão da frivolidade e da impertinência do Matias; não hei de inventar um homem grave e hábil só para evitar uma certa impressão às leitoras. Tal era ele, tal o dou. A denúncia que ele trazia era a da partida próxima do Severiano, mentira pura, com o único fim de provocar da parte de D. Clara uma palavra amiga, um pedido, uma esperança. A verdade é que D. Clara sentiu-se penalizada. Quê? ia-se embora? e para não voltar mais?
— Afinal serei obrigado a isso mesmo, disse Severiano: não posso ficar toda a vida aqui. Já estou há muito, a licença acaba.
— Vê? disse Matias voltando-se para a viúva.
Clara sorriu, mas não disse nada. Entretanto, o juiz de direito, entusiasmado, confessou que não iria sem grandes saudades da corte. Levarei as melhores recordações da minha vida, concluiu.
O resto da noite foi agradável. Severiano saiu de lá com as esperanças remoçadas. Era evidente que a viúva chegaria a aceitá-lo, pensava ele consigo; e a primitiva idéia do ódio era simplesmente insensata. Por que é que lhe teria ódio? Podia ser antipatia, quando muito; mas nem era antipatia. A prova era a maneira por que o tratou, parecendo-lhe mesmo que, à saída, um aperto de mão mais forte... Não jurava, mas parecia-lhe...
Este período durou pouco mais de uma semana. O primeiro encontro seguinte foi em casa dela, onde a visitou. Clara recebeu-o sem alvoroço, ouviu-lhe dizer algumas coisas sem lhe prestar grande atenção; mas, como no fim confessou que lhe doía a cabeça, Severiano agarrou-se a esta razão para explicar uns modos que traziam ares de desdém. O segundo encontro foi no teatro.
— Que tal acha a peça? perguntou ela logo que ele entrou no camarote.
— Acho-a bonita.
— Justamente, disse a mãe. Clara é que está aborrecida.
— Sim?
— Cismas de mamãe. Mas então parece-lhe que a peça é bonita?
— Não me parece feia.
— Por quê?
Severiano sorriu, depois procurou dar algumas das razões que o levavam a achar a peça bonita. Enquanto ele falava ela olhava para ele abanando-se, depois os olhos amorteceram-se-lhe um pouco, finalmente ela encostou o leque aberto à boca, para bocejar. Foi, ao menos, o que ele pensou, e podem imaginar se o pensou alegremente. A mãe aprovava tudo, porque gostava do espetáculo, e tanto mais era sincera, quanto que não queria vir ao teatro; mas a filha é que teimou até o ponto de a obrigar a ceder. Cedeu, veio, gostou da peça, e a filha é que ficou aborrecida, e ansiosa de ir embora. Tudo isso disse ela rindo ao juiz de direito; Clara mal protestava, olhava para a sala, abanava-se, tapava a boca, e como que pedia a Deus que, quando menos, a não destruir o universo, lhe levasse aquele homem para fora do camarote. Severiano percebeu que era demais e saiu.
Durante os primeiros minutos, não soube ele o que pensasse; mas, afinal, recapitulou a conversa, considerou os modos da viúva, e concluiu que havia algum namorado.
— Não há que ver, é isto mesmo, disse ele consigo; quis vir ao teatro, contando que ele viesse; não o achando, está aborrecida. Não é outra coisa.
Era a segunda explicação das maneiras da viúva. A primeira, ódio ou aversão natural, foi abandonada por inverossímil; restava um namoro, que não só era verossímil, mas tinha tudo por si. Severiano entendeu desde logo que o único procedimento correto era deixar o campo, e assim fez. Para escapar às exortações de Matias, não lhe diria nada, e passou a visitá-lo poucas vezes. Assim se passaram cinco ou seis semanas. Um dia, viu Clara na rua, cumprimentou-a, ela falou-lhe friamente, e foi andando. Viu-a ainda duas vezes, uma na mesma loja da rua da Quitanda, outra à porta de um dentista. Nenhuma alteração para melhor; tudo estava acabado.
Entretanto, apareceu o despacho do Severiano, a remoção de comarca. Ele preparou-se para seguir viagem, com grande espanto do amigo Matias, que imaginava o namoro a caminho, e cria que eles haviam chegado ao período da discrição. Quando soube que não era assim, caiu das nuvens. Severiano disse-lhe que era negócio acabado; Clara tinha alguma aventura.
— Não creio, reflexionou Matias; é uma senhora severa.
— Pois será uma aventura severa, concordou o juiz de direito; em todo caso, nada tenho com isto, e vou-me embora.
Matias refutou a opinião, e acabou dizendo que uma vez que ele recusava, não faria mais nada — exceto uma coisa única. Essa coisa, que ele não disse o que era, foi nada menos que ir diretamente à viúva e falar-lhe da paixão do amigo. Clara sabia que era amada, mas estava longe de imaginar a paixão que o Matias lhe pintou, e a primeira impressão foi de aborrecimento.
— Que quer que lhe faça? perguntou ela.
— Peço-lhe que reflita e veja se um homem tão distinto não é um marido talhado no céu. Eu não conheço outro tão digno...
— Não tenho vontade de casar.
— Se me jura que não casa, retiro-me; mas se tiver de casar um dia, por que não aproveita esta ocasião?
— Grande amigo é o senhor do seu amigo.
— E por que não seu?
Clara sorriu, e apoiando os cotovelos nos braços da poltrona, começou a brincar com os dedos. A teima começava a impacientá-la. Era capaz de ceder, só para não ouvir falar mais nisto. Afinal agarrou-se à impossibilidade material; ele vai para uma comarca interior, ela nunca sairia do Rio de Janeiro.
— Tal é a dúvida? perguntou o Matias.
— Parece-lhe pouco?
— De maneira que, se ele aqui ficasse, a senhora casava?
— Casava, respondeu Clara olhando distraidamente para os pingentes do lustre.
Distração do diabo! Foi o que a perdeu, porque o Matias fez daquela resposta um protocolo. A questão era alcançar que o Severiano ficasse, e não gastou dez minutos nessa outra empresa. Clara, apanhada no laço, fez boa cara, e aceitou o noivo sorrindo. Tratou-o mesmo com tais agrados que ele pensou nas palavras do amigo; acreditou que, em substância, era grandemente amado, e que ela não fizera mais do que ceder aos poucos.
Mas essa terceira razão era tão contrária à realidade como as outras duas; — nem ela o amava, nem lhe tinha ódio, nem amava a outro. A verdade única e verdadeira é que ela era um modelo acabado de inércia moral; e, casou para acabar com a importunação do Matias. Casaria com o diabo, se fosse necessário. Severiano reconheceu isso mesmo com o tempo. Uma vez casada, Clara ficou sendo o que sempre fora, capaz de gastar duas horas numa loja, quatro num canapé, vinte numa cama com o pensamento em coisa nenhuma.

[publicado originalmente em A Estação 1884]

terça-feira, 3 de março de 2009

viva a MULHER !


esta semana é toda ela de loas e mais loas a Ela. ao texto ao lado acolplam-se contos de três autores que tiveram a mulher como protagonista e leitmotiv.

Singular ocorrência
— Há ocorrências bem singulares. Está vendo aquela dama que vai entrando na igreja da Cruz? Parou agora no adro para dar uma esmola.
— De preto?
— Justamente; lá vai entrando; entrou.
— Não ponha mais na carta. Esse olhar está dizendo que a dama é uma sua recordação de outro tempo, e não há de ser de muito tempo, a julgar pelo corpo: é moça de truz.
— Deve ter quarenta e seis anos.
— Ah! conservada. Vamos lá; deixe de olhar para o chão, e conte-me tudo. Está viúva, naturalmente?
— Não.
— Bem; o marido ainda vive. É velho?
— Não é casada.
— Solteira?
— Assim, assim. Deve chamar-se hoje D. Maria de tal. Em 1860 florescia com o nome familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará. Morava na rua do Sacramento. Já então era esbelta e, seguramente, mais linda do que hoje; modos sérios, linguagem limpa. Na rua, com o vestido afogado, escorrido, sem espavento, arrastava a muitos, ainda assim.
— Por exemplo, ao senhor.
— Não, mas ao Andrade, um amigo meu, de vinte e seis anos, meio advogado, meio político, nascido nas Alagoas, e casado na Bahia, de onde viera em 1859. Era bonita a mulher dele, afetuosa, meiga e resignada; quando os conheci, tinham uma filhinha de dois anos.
— Apesar disso, a Marocas...?
— É verdade, dominou-o. Olhe, se não tem pressa, conto-lhe uma coisa interessante.
— Diga.
— A primeira vez que ele a encontrou, foi à porta da loja Paula Brito, no Rocio. Estava ali, viu a distância uma mulher bonita, e esperou, já alvoroçado, porque ele tinha em alto grau a paixão das mulheres. Marocas vinha andando, parando e olhando como quem procura alguma casa. Defronte da loja deteve-se um instante; depois, envergonhada e a medo, estendeu um pedacinho de papel ao Andrade, e perguntou-lhe onde ficava o número ali escrito. Andrade disse-lhe que do outro lado do Rocio, e ensinou-lhe a altura provável da casa. Ela cortejou com muita graça; ele ficou sem saber o que pensasse da pergunta.
— Como eu estou.
— Nada mais simples: Marocas não sabia ler. Ele não chegou a suspeitá-lo. Viu-a atravessar o Rocio, que ainda não tinha estátua nem jardim, e ir à casa que buscava, ainda assim perguntando em outras. De noite foi ao Ginásio; dava-se a “Dama das camélias”; Marocas estava lá, e, no último ato, chorou como uma criança. Não lhe digo nada; no fim de quinze dias amavam-se loucamente. Marocas despediu todos os seus namorados, e creio que não perdeu pouco; tinha alguns capitalistas bem bons. Ficou só, sozinha, vivendo para o Andrade, não querendo outra afeição, não cogitando de nenhum outro interesse.
— Como a ‘dama das camélias’.
— Justo. Andrade ensinou-lhe a ler. Estou mestre-escola, disse-me ele um dia; e foi então que me contou a anedota do Rocio. Marocas aprendeu depressa. Compreende-se; o vexame de não saber, o desejo de conhecer os romances em que ele lhe falava, e finalmente o gosto de obedecer a um desejo dele, de lhe ser agradável... Não me encobriu nada; contou-me tudo com um riso de gratidão nos olhos, que o senhor não imagina. Eu tinha a confiança de ambos. Jantávamos às vezes os três juntos; e... não sei por que negá-lo — algumas vezes os quatro. Não cuide que eram jantares de gente pândega; alegres, mas honestos. Marocas gostava da linguagem afogada, como os vestidos. Pouco a pouco estabeleceu-se intimidade entre nós; ela interrogava-me acerca da vida do Andrade, da mulher, da filha, dos hábitos dele, se gostava deveras dela, ou se era um capricho, se tivera outros, se era capaz de a esquecer, uma chuva de perguntas, e um receio de o perder, que mostravam a força e a sinceridade da afeição... Um dia, uma festa de S. João, o Andrade acompanhou a família à Gávea, onde ia assistir a um jantar e um baile; dois dias de ausência. Eu fui com eles. Marocas, ao despedir-se, recordou a comédia que ouvira algumas semanas antes no Ginásio — “Janto com minha mãe” — e disse-me que, não tendo família para passar a festa de S. João, ia fazer como a Sofia Arnoult da comédia, ia jantar com um retrato; mas não seria o da mãe, porque não tinha, e sim do Andrade. Este dito ia-lhe rendendo um beijo; o Andrade chegou a inclinar-se; ela, porém, vendo que eu estava ali, afastou-o delicadamente com a mão.
— Gosto desse gesto.
— Ele não gostou menos. Pegou-lhe na cabeça com ambas as mãos, e, paternalmente, pingou-lhe o beijo na testa. Seguimos para a Gávea. De caminho disse-me a respeito da Marocas as maiores finezas, contou-me as últimas frioleiras de ambos, falou-me do projeto que tinha de comprar-lhe uma casa em algum arrabalde, logo que pudesse dispor de dinheiro; e, de passagem, elogiou a modéstia da moça, que não queria receber dele mais do que o estritamente necessário. Há mais do que isso, disse-lhe eu, e contei-lhe uma coisa que sabia, isto é, que cerca de três semanas antes a Marocas empenhara algumas jóias para pagar uma conta da costureira. Esta notícia abalou-o muito; não juro, mas creio que ficou com os olhos molhados. Em todo caso, depois de cogitar algum tempo, disse-me que definitivamente ia arranjar-lhe uma casa e pô-la ao abrigo da miséria. Na Gávea ainda falamos da Marocas, até que as festas acabaram, e nós voltamos. O Andrade deixou a família em casa, na Lapa, e foi ao escritório aviar alguns papéis urgentes. Pouco depois do meio-dia apareceu-lhe um tal Leandro, ex-agente de certo advogado a pedir-lhe, como de costume, dois ou três mil-réis. Era um sujeito reles e vadio. Vivia a explorar os amigos do antigo patrão. Andrade deu-lhe três mil-réis, e, como o visse excepcionalmente risonho, perguntou-lhe se tinha visto passarinho verde. O Leandro piscou os olhos e lambeu os beiços: o Andrade, que dava o cavaco por anedotas eróticas, perguntou-lhe se eram amores. Ele mastigou um pouco, e confessou que sim.
— Olhe; lá vem ela saindo; não é ela?
— Ela mesma; afastemo-nos da esquina.
— Realmente, deve ter sido muito bonita. Tem um ar de duquesa.
— Não olhou para cá; não olha nunca para os lados. Vai subir pela rua do Ouvidor...
— Sim, senhor. Compreendo o Andrade.
— Vamos ao caso. O Leandro confessou que tivera na véspera uma fortuna rara, ou antes única, uma coisa que ele nunca esperara achar, nem merecia mesmo, porque se conhecia e não passava de um pobre-diabo. Mas, enfim, os pobres também são filhos de Deus. Foi o caso que, na véspera, perto das dez horas da noite, encontrara no Rocio uma dama vestida com simplicidade, vistosa de corpo, e muito embrulhada num xale grande. A dama vinha atrás dele, e mais depressa; ao passar rentezinha com ele, fitou-lhe muito os olhos, e foi andando devagar, como quem espera. O pobre-diabo imaginou que era engano de pessoa; confessou ao Andrade que, apesar da roupa simples, viu logo que não era coisa para os seus beiços. Foi andando; a mulher, parada, fitou-o outra vez, mas com tal instância, que ele chegou atrever-se um pouco; ela atreveu-se o resto... Ah! um anjo! E que casa, que sala rica! Coisa papa-fina. E depois o desinteresse... “Olhe, acrescentou ele, para V. S. é que era um bom arranjo.” Andrade abanou a cabeça; não lhe cheirava o comborço. Mas o Leandro teimou; era na rua do Sacramento, número tantos...
— Não me diga isso!
— Imagine como não ficou o Andrade. Ele mesmo não soube o que fez nem o que disse durante os primeiros minutos, nem o que pensou nem o que sentiu. Afinal teve força para perguntar se era verdade o que estava contando; mas o outro advertiu que não tinha nenhuma necessidade de inventar semelhante coisa; vendo, porém, o alvoroço do Andrade, pediu-lhe segredo, dizendo que ele, pela sua parte, era discreto. Parece que ia sair; Andrade deteve-o, e propôs-lhe um negócio; propôs-lhe ganhar vinte mil-réis. — “Pronto!” — “Dou-lhe vinte mil-réis, se você for comigo à casa dessa moça e disser em presença dela que é ela mesma.”
— Oh!
— Não defendo o Andrade; a coisa não era bonita; mas a paixão, nesse caso, cega os melhores homens. Andrade era digno, generoso, sincero; mas o golpe fora tão profundo, e ele amava-a tanto, que não recuou diante de uma tal vingança.
— O outro aceitou?
— Hesitou um pouco, estou que por medo, não por dignidade, mas vinte mil-réis... Pôs uma condição: não metê-lo em barulhos... Marocas estava na sala, quando o Andrade entrou. Caminhou para a porta, na intenção de o abraçar; mas o Andrade advertiu-a, com o gesto, que trazia alguém. Depois, fitando-a muito, fez entrar o Leandro; Marocas empalideceu. — “É esta senhora?” perguntou ele. — “Sim, senhor”, murmurou o Leandro com voz sumida, porque há ações ainda mais ignóbeis do que o próprio homem que as comete. Andrade abriu a carteira com grande afetação, tirou uma nota de vinte mil-réis e deu-lha; e, com a mesma afetação, ordenou-lhe que se retirasse. O Leandro saiu. A cena que se seguiu foi breve, mas dramática. Não a soube inteiramente, porque o próprio Andrade é que me contou tudo, e, naturalmente, estava tão atordoado, que muita coisa lhe escapou. Ela não confessou nada; mas estava fora de si, e, quando ele, depois de lhe dizer as coisas mais duras do mundo, atirou-se para a porta, ela rojou-se-lhe aos pés, agarrou-lhe as mãos, lacrimosa, desesperada, ameaçando matar-se; e ficou atirada ao chão, no patamar da escada; ele desceu vertiginosamente e saiu.
— Na verdade, um sujeito reles, apanhado na rua; provavelmente eram hábitos dela?
— Não.
— Não?
— Ouça o resto. De noite seriam oito horas, o Andrade veio à minha casa, e esperou por mim. Já me tinha procurado três vezes. Fiquei estupefato; mas como duvidar, se ele tivera a precaução de levar a prova até à evidência? Não lhe conto o que ouvi, os planos de vingança, as exclamações, os nomes que lhe chamou, todo o estilo e todo o repertório dessas crises. Meu conselho foi que a deixasse; que, afinal, vivesse para a mulher e a filha, a mulher tão boa, tão meiga... Ele concordava, mas tornava ao furor. Do furor passou à dúvida; chegou a imaginar que a Marocas, com o fim de o experimentar, inventara o artifício e pagara ao Leandro para vir dizer-lhe aquilo; e a prova é que o Leandro, não querendo ele saber quem era, teimou e lhe disse a casa e o número. E agarrado a esta inverossimilhança, tentava fugir à realidade; mas a realidade vinha — a palidez de Marocas, a alegria sincera do Leandro, tudo o que lhe dizia que a aventura era certa. Creio até que ele arrependia-se de ter ido tão longe. Quanto a mim, cogitava na aventura, sem atinar com a explicação. Tão modesta! maneiras tão acanhadas!
— Há uma frase de teatro que pode explicar a aventura, uma frase de Augier, creio eu: “ a nostalgia da lama”.
— Acho que não; mas vá ouvindo. Às dez horas apareceu-nos em casa uma criada de Marocas, uma preta forra, muito amiga da ama. Andava aflita em procura do Andrade, porque a Marocas, depois de chorar muito, trancada no quarto, saiu de casa sem jantar, e não voltara mais. Contive o Andrade, cujo primeiro gesto foi para sair logo. A preta pedia-nos por tudo, que fôssemos descobrir a ama. “Não é costume dela sair?” perguntou o Andrade com sarcasmo. Mas a preta disse que não era costume. “Está ouvindo?” bradou ele para mim. Era a esperança que de novo empolgara o coração do pobre diabo. “E ontem?...” disse eu. A preta respondeu que na véspera sim; mas não lhe perguntei mais nada, tive compaixão do Andrade, cuja aflição crescia, e cujo pundonor ia cedendo diante do perigo. Saímos em busca da Marocas; fomos a todas as casas em que era possível encontrá-la; fomos à polícia; mas a noite passou-se sem outro resultado. De manhã voltamos à polícia. O chefe ou um dos delegados, não me lembra, era amigo do Andrade, que lhe contou da aventura a parte conveniente; aliás a ligação do Andrade e da Marocas era conhecida de todos os seus amigos. Pesquisou-se tudo; nenhum desastre se dera durante a noite; as barcas da Praia Grande não viram cair ao mar nenhum passageiro; as casas de armas não venderam nenhuma; as boticas nenhum veneno. A polícia pôs em campo todos os seus recursos, e nada. Não lhe digo o estado de aflição em que o pobre Andrade viveu durante essas longas horas, porque todo o dia se passou em pesquisas inúteis. Não era só a dor de a perder; era também o remorso, a dúvida, ao menos, da consciência, em presença de um possível desastre, que parecia justificar a moça. Ele perguntava-me, a cada passo, se não era natural fazer o que fez, no delírio da indignação, se eu não faria a mesma coisa. Mas depois tornava a afirmar a aventura, e provava-me que era verdadeira, com o mesmo ardor com que na véspera tentara provar que era falsa; o que ele queria era acomodar a realidade ao sentimento da ocasião.
— Mas, enfim, descobriram a Marocas?
— Estávamos comendo alguma coisa, em um hotel, eram perto de oito horas, quando recebemos notícia de um vestígio: — um cocheiro que levara na véspera uma senhora para o Jardim Botânico, onde ela entrou em uma hospedaria, e ficou. Nem acabamos o jantar; fomos no mesmo carro ao Jardim Botânico. O dono da hospedaria confirmou a versão; acrescentando que a pessoa se recolhera a um quarto, não comera nada desde que chegou na véspera; apenas pediu uma xícara de café; parecia profundamente abatida. Encaminhamo-nos para o quarto; o dono da hospedaria bateu à porta; ela respondeu com voz fraca, e abriu. O Andrade nem me deu tempo de preparar nada; empurrou-me, e caíram nos braços um do outro. Marocas chorou muito e perdeu os sentidos.
— Tudo se explicou?
— Coisa nenhuma. Nenhum deles tornou ao assunto; livres de um naufrágio, não quiseram saber nada da tempestade que os meteu a pique. A reconciliação fez-se depressa. O Andrade comprou-lhe, meses depois, uma casinha em Catumbi; a Marocas deu-lhe um filho, que morreu de dois anos. Quando ele seguiu para o Norte, em comissão do governo, a afeição era ainda a mesma, posto que os primeiros ardores não tivessem já a mesma intensidade. Não obstante, ela quis ir também; fui eu que a obriguei a ficar. O Andrade contava tornar ao fim de pouco tempo, mas, como lhe disse, morreu na província. A Marocas sentiu profundamente a morte, pôs luto, e considerou-se viúva; sei que nos três primeiros anos, ouvia sempre uma missa no dia aniversário. Há dez anos perdi-a de vista. Que lhe parece tudo isto?
— Realmente, há ocorrências bem singulares, se o senhor não abusou da minha ingenuidade de rapaz para imaginar um romance...
— Não inventei nada; é a realidade pura.
— Pois, senhor, é curioso. No meio de uma paixão tão ardente, tão sincera... Eu ainda estou na minha; acho que foi a nostalgia da lama.
— Não: nunca a Marocas desceu até os Leandros.
— Então por que desceria naquela noite?
— Era um homem que ela supunha separado, por um abismo, de todas as suas relações pessoais; daí a confiança. Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo... Enfim, coisas!