sábado, 29 de março de 2008

180 anos das arcádias paulistanas

...[continuação]
Em 1845, com a fundação da Sociedade Epicuréia, consolida-se um processo de produção literária estudantil, embora de qualidade reduzida mas que viria a receber um influxo importante com a estadia de Castro Alves, em 1868 — foi em evento da Faculdade de Direito que declamou pela primeira vez o antológico poema “Navio negreiro”__ quem incutiu um teor social ao tipo de obra, sobretudo poética, que se fazia então.Por essa época, o ‘corpo acadêmico’ já constitui um grupo social diferenciado da comunidade paulistana, a boemia e a literatura como manifestações mais características de um segmento com consciência grupal própria. Simultaneamente, outras agremiações vão surgindo, em alta efervescência literária e cultural : Ensaio Filosófico (1850), Ateneu Paulistano (1852), Associação Culto à Ciência (1857), Instituto Acadêmico (1858), Clube Literário (1859).Algumas delas tiveram seu periódico, como a Revista mensal do Ensaio Filosófico Paulistano, o Ensaios literários do Ateneu Paulistano, jornais como Acaiaba, O Guaianá, A Academia, Íris.
Artistas criadores e ao mesmo tempo críticos, nas revistas e jornais , são os estudantes, entre os naturais da cidade e os migrantes e radicados, autores de denúncias e protestos contra a corrupção, a hipocrisia, as injustiças da sociedade . O ‘satanismo’ então constituiu a manifestação mais típica desse tipo de poeta-crítico-estudante singular e proeminente no meio literário-cultural da São Paulo de meados do século XIX —— o satanismo como expressão de uma ideologia de “revolta espiritual, de negação de valores triviais, de intenso egocentrismo” , ingrediente de uma certa atmosfera de desvario que passa a permear a vida acadêmica da cidade . Por meio da obra ainda incipiente de Álvares de Azevedo , com sua típica tonalidade de melancolia, humor negro, sarcasmo, gosto da morte, é difundido por todo o País e atrai Fagundes Varela, Raimundo Corrêa, Couto Magalhães. Na década de 1880 São Paulo acolhe também um grupo de jovens inflamados pelo verbo eloqüente de José Bonifácio o moço , uma geração empenhada numa luta em prol das idéias liberalistas e republicanas : Joaquim Nabuco, Afonso Pena, Rodrigues Alves .
Na passagem do século XIX para XX -- São Paulo então com cerca de 240 mil habitantes , sob radical mudança de perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes, passa a ser executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu, de academicismo art-nouveau.
Expressa-se sobretudo um certo aristocratismo intelectual, que agrada em cheio àquela burguesia ascendente : cristaliza-se pois um padrão estético-literário-cultural definido pela elite social, retirados do contingente inicial dos estudantes os valores e parâmetros da produção literária. Constitui-se, numa sociedade de classes, uma literatura ‘classista’, elitista, convencional, integrada aos padrões de refinamento da classe dominante.Acentuam-se então os teores de sentimentalismo, romantismo e nacionalismo — em oposição ao ‘satanismo’ característico da décadas de 1840/50, caracterizado em Álvares de Azevedo — privilegiando a ‘pureza’ da língua, a escrita correta, o ‘apuro’, a limpidez, a sonoridade, a ‘riqueza do vocabulário’. A literatura como degrau de ascensão social incorporou-se à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas classes dominantes.Contrária a essa vertente — personificada pelos “corifeus da bela escrita” Francisca Julia, Vicente de Carvalho ,Julio Ribeiro, Silvio de Almeida ,Alcântara Machado, em São Paulo (há de se considerar também Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, em especial Juó Bananére, e anos depois João Antonio) — que adotaram e assumiram temática, ambientação, personagens, trama, linguagem e estilo eminentemente populares e ‘anti-aristocráticas’.
A incorporação efetiva da literatura à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas classes dominantes foi primordial para a consecução do Modernismo de 1922 , que iria promover profunda renovação literária e cultural e exercer forte e incontrolável influência no meio cultural, social e político de todo o País . Até porque expressaram um esforço para retirar à literatura o caráter de classe— dado pela elite social e cultural pós –1890 — transformando-a em bem comum a todos.Como o Romantismo, o Modernismo é de todas as correntes literárias brasileiras a que adquiriu tonalidades especificamente paulistanas. Antonio Candido sentencia que “se em São Paulo não tivesse havido os escritores do período clássico, do Naturalismo, do Parnasianismo, do Simbolismo, a literatura brasileira teria perdido um ou outro bom autor, mas nada de irremediável. Se tal acontecesse no Romantismo e no Modernismo, o Brasil ficaria mutilado de algumas de suas mais altas realizações artísticas, de obras culminantes como Macário e Macunaíma, por exemplo. Dois momentos paulistanos, dois momentos em que a cidade se projeta sobre o País”.

180 anos das arcádias paulistanas

este mês de março que se encerra marca um fato crucial para a cultura do brasileira: os 180 anos de fundação da Faculdade de Direito, criada como Academia de Direito – o largo de São Francisco , cenário de expressões pioneiras da literatura da cidade e do País.

A Academia de Direito na história literária de São Paulo e do Brasil - I
Há uma história da literatura que se projeta na cidade de São Paulo; e há uma história da cidade de São Paulo que se projeta na literatura
Antonio Candido.
São Paulo, desde seus primórdios, sempre foi pólo fundamental da literatura brasileira.E a aura do pioneirismo a acompanha até hoje. A cidade , já natural e sequencialmente pioneira em diversas manifestações literárias — desde os jesuítas, fundadores de um colégio no Campos de Piratininga, rezada a missa de inauguração em 25 de janeiro de 1554; a elevação à categoria de Vila São Paulo de Piratininga deu-se em 1560) : não se pode esquecer que o Diálogo sobre a conversão do gentio, de Manuel da Nóbrega, é o primeirissimo documento literário do Brasil, e o Auto da Pregação Universal, de José de Anchieta, a primeira peça encenatória)— o foi também , por exemplo, na precursora expressão poética do ‘indianismo’ no poema “Nênia” de Firmino Rodrigues Silva ; nela se deram ainda as realizações literárias iniciais de autores não paulistanos como José de Alencar, com seu “Como e por que me tornei romancista”, Castro Alves e seu “Navio negreiro”, Raimundo Corrêa com “Primavera”; nela ocorreu o primeiro movimento literário de vulto não apenas em relação à cidade mas ao próprio País ,em torno da Revista da Sociedade Filomática,em 1830,constituída na então recém-criada Faculdade de Direito — a primeira manifestação de brasilidade literária por sua consciência de fins e coesão de esforços renovadores.
Em São Paulo, talvez mais do que em qualquer. outra cidade brasileira na época, manifestou-se a tese de Antonio Candido segundo quem “não se pode, nem deve delimitar obras e autores pelo critério estrito do nascimento”, mas sim de acordo com “o critério mais certo e plausível da participação na vida social e cultural de uma localidade ou região e de participação e integração de valores comuns, construindo obras em torno deles, agindo em função de estímulos recíprocos, estabelecendo intercâmbios, para chegar a uma ‘comunicação’”. A cidade , por suas características próprias, marcou e foi sensivelmente marcada pelos que nela viveram e vivem, em grau e modo mais forte que as de seus lugares de origem. Por uma razão ou outra, a cidade logo atraiu — ainda como estudantes— muitos daqueles que mais tarde se tornariam intelectuais e autores proeminentes no cenário literário-cultural brasileiro.
A rigor, a literatura de São Paulo passa a existir tal como “sistema orgânico articulado, de escritores, obras e leitores, reciprocamente atuantes na formação de uma tradição literária” , segundo a conceituação de Antonio Candido, somente após a Independência (da mesma forma, aliás, que toda a literatura brasileira) e em especial depois da Faculdade de Direito — embora já nos primeiros tempos se manifestassem alguns elementos incipientes.O século XIX, marca a primeira clivagem consistente de expressão literária. O retrato da História exibe a importância capital da Academia de Direito, criada em março de 1828 (posteriormente denominada Faculdade) na convivência acadêmica que propiciou a formação de agrupamentos de estudantes, com idéias estéticas, manifestações literárias e expressões próprias — deflagrando um processo vigoroso de efervescência intelectual que passou a agitar intensamente a pequena cidade de então,intensificado por volta de 1830, em torno da Revista da Sociedade Filomática,que viria a desempenhar papel decisivo na literatura em São Paulo: constituíram, a revista e seus membros, o primeiro movimento literário de vulto não apenas em relação à cidade mas ao próprio País .E foi essa comunidade estudantil que iria receber em seu meio jovens impregnados de igual fervor , imbuídos do “entusiasmo da construção literária” — que foi a mola propulsora do Romantismo — como José de Alencar, Olavo Bilac, José Bonifácio o moço, Teófilo Dias, Aureliano Lessa, Raimundo Corrêa, Coelho Neto, vindos do Rio de Janeiro , de Minas Gerais, de outros lugares ,para cursar a faculdade.
Ainda que se reconheça as limitações quantitativa e qualitativa da produção desses estudantes, não há como negar que estabeleceram a literatura como atividade presente na comunidade paulistana. Deu-se por ela a primeira manifestação de uma vertente poética considerada “o início da escola brasileira” : o indianismo, desenvolvido na obra de Gonçalves Dias, mas praticado pioneiramente no poema “Nênia”, de Firmino Rodrigues Silva, composto entre as arcádias da Academia de Direito. E exercido ainda de forma pioneira em 1844, três anos antes do Primeiros cantos , de Gonçalves Dias, em “Cântico do tupi”, “Imprecação do índio” e “Prisioneiro índio”, do Barão de Paranapiacaba. Evidencia-se pois que quando Dias dominou o meio literário brasileiro, a poesia indianista ——base da obra do maranhense —— já existia e era praticada em São Paul(nada mais condizente com a realidade o fato de nela ter se manifestado as primeiras expressões do indianismo — pois a presença de índios, os tupiniquins, era acentuada na cidade: eram eles trabalhadores braçais, operários de construção, transportadores, agricultores ; e até meados do século XIX falava-se tupi tanto quanto o português).


[continua]....

sexta-feira, 7 de março de 2008

salve, salve 8 de março ! - II


...(continuação)

uma escrita brasileira, sim
No Brasil, o surgimento de mulheres escritoras ocorre principalmente a partir do século XIX, no contexto da crescente importância da imprensa e do início de movimentos em prol dos direitos das mulheres. Quando as questões relativas à emancipação feminina começaram a aparecer na imprensa, as mulheres se organizavam associativamente e passaram a reivindicar maior participação na sociedade em mudança. Ocorreram entao os primeiros movimentos organizados tendo como principal objetivo a melhoria das condições de vida da mulher — desde que orientada pela ótica masculina. [afinal, na constituição da família brasileira sempre imperou o pater familias, ou seja, o poder nas mãos do homem, responsável não só por seus escravos e agregados como também por sua mulher, filhos e netos — a família patriarcal como a célula mais importante da formação da sociedade; este poder social do homem advinha do direito consuetudinário e as próprias leis brasileiras asseguravam-lhe autoridade : os direitos civis no Brasil, basicamente, até 1890, eram uma extensão dos de Portugal, isto é, eram regidos pelas Ordenações Filipinas — o primeiro Código Civil Brasileiro só vigorou a partir de 1917. Na família monogâmica, criada para preservar o poderio econômico dentro de um mesmo grupo sangüíneo, exigia-se que a sexualidade feminina fosse rigorosamente controlada, pois era a única forma de que o homem dispunha para assegurar a paternidade e a herança familiar. ]
O que não impediu, porém, a formação de uma linhagem de mulheres militantes dentro da literatura (como personagens ou como autoras) e da sociedade (na militância política, por meio sobretudo do veículo jornalístico) que desenvolveram trabalho emancipatório preparador das condições que propiciariam, no século XX, a implementação e solidificação de um movimento que se poderia chamar de estética feminista. Na literatura brasileira, considera-se o romance Úrsula (1859), da maranhense Maria Firmina dos Reis, a primeira narrativa de autoria feminina. O romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da história. Contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da protagonista, vítima da sanha do cruel perseguidor.
No entanto, de modo geral a escrita praticada por mulheres esteve ausente dos anos decisivos para a formação da literatura brasileira durante o século XIX , na vigência do Romantismo . Se não totalmente ausente do mercado, restrita a colaborações em periódicos de vida curta ou de público definido pela circulação no espaço doméstico (o que, de resto, significa em meados dos 1800 uma confirmação antecessora à interpretação de Virgina Woolf, da década de 1930).As primeiras manifestações de escrita feminina levadas oficial e intensamente ao público externo vieram no final do século XIX, já na ‘vigência’ do Realismo na literatura brasileira [paradoxal ? não seria o Romantismo ‘mais apropriado’ para a expressão da écriture féminine?]
Loas, todas as loas, portanto, para as pioneirissimas Rita Joana de Souza, Ângela do Amaral Rangel, Barbara Heliodora, Maria Josefa Barreto, Beatriz Francisca de Assis Brandão, Maria Clemência Silveira, Delfina Benigna da Cunha, Ildefonsa Laura Cesar, Ana Euridice de Barandas, Nisia Floresta, Violante de Bivar e Velasco, Clarinda da Costa Siqueira, Joana Paula de Noronha, Ana Luisa de Azevedo Castro, Maria Firmina dos Reis, Adelia Fonseca, Maria Benedita de Oliveira Barbosa (Zaira Americana), Maria Angélica Ribeiro, Isabel Gondim, Maria do Carmo de Melo Rego, Rita Barém de Melo, Joaquina Meneses de Lacerda, Ana Ribeiro, Julia da Costa, Amália Figueiroa, Luciana de Abreu, Serafina Rosa Pontes, Adelina Vieira, Josefina Álvares de Azevedo, Carmem Dolores, Narcisa Amália, Gabriela de Andrada, Maria Benedita Bormann, Inês Sabino, Anália Franco, Delminda Silveira, Adelaide de Castro Guimarães, Honorata Carneiro de Mendonça, Carmen Freire, Emilia Freitas, Vitalina de Camargo Queirós, Ana Facó, Francisca Izidora da Rocha, Maria Carolina Corcoroca de Souza, Ana Autran, Corina Coaraci, Luísa Leonardo, Alexandrina Couto dos Santos, Ana Aurora do Amaral Lisboa, Revocata Heliosa de Melo, Anna Alexandrina Cavalcanti de Albuquerque.
Até entrarmos o século XX com Júlia Lopes de Almeida, chegar a Gilka Machado e Maria Lacerda de Moura.
Contemporaneamente, a escrita feminina brasileira encontra expoentes, entre outras, em: Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria Alice Barroso, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César ,Hilda Hirst, Adélia Prado, Lya Luft,Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Nilma Gonçalves Lacerda, Maria Adelaide Amaral, Luzilá Gonçalves Ferreira, Myriam Campelo. E entre as mais novas, Heloisa Seixas, Patricia Melo, Fernanda Young ; e nas novissimas, Carmen Oliveira, Adriana Lisboa, Maria Conceição Góes, Clarah Averbuck, Cíntia Moscovich , Leticia Wierzchowski.O ensaísmo abriga Flora Sussekind, Heloisa Buarque de Holanda, Leyla Perrone-Moisés, Walnice Nogueira Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Nelly Novaes Coelho, Marisa Lajolo, Marilena Chuaí, Marilene Felinto, Eliane Vasconcelos, Beatriz Resende.

salve, salve 8 de março ! - I


Quem tem medo da literatura feminina / feminista ?

Preconizada por Virginia Woolf, na década de 1930 [Virginia, irônica e realista, em conferência para jovens universitárias inglesas no Giron College, estabelecia as condições mínimas para que as mulheres atravessassem a fronteira física e psíquica da criação literária, ao declarar : “tendo um quarto para si e renda própria”__ ditames abrigados no livro A Room of One’s Own (Um quarto todo seu.) ] , defendida pelas feministas européias de 1970, uma “escrita feminina” ganhou corpo (e forma) na literatura, sim senhor __ queira-se ou não. Mulheres escritoras (ficcionais e não-ficcionais) têm voz própria, estilo próprio, linguagem própria, temática própria , longe de “simplesmente reproduzirem modelos falocêntricos, caracterizados por racionalismos e pragmatismos” como acentua a ensaísta Luce Irigaray.
A contrapartida, segundo ela, é uma “subjetividade feminina, marcada por uma escrita mais sensorial e sensível, mais poética, lírica mesmo, uma escritura com o corpo e a alma, maior liberdade de escrita”
Apesar das (para alguns, incontornáveis) dificuldades para definição precisa do que seja uma escrita feminina, eu particularmente entendo existir uma ‘literatura feminina’ com elementos, valores e vetores próprios __ que só fazem acrescentar e enriquecer a Literatura (e a Cultura, em geral). Fácil identificar entre escritoras brasileiras e estrangeiras contemporâneas uma escrita nitidamente feminina __ com suas obras carregadas de suas características específicas.

existe uma voz especificamente feminina ?

“Femininos,sim, são os textos que apresentem determinadas marcas, que percorrem o campo semântico de falta, silêncio, indizível, confessional, subjetivo, íntimo, prevalência do eu-narrador, visão interior, esgarçamento do sentido da palavra e da ordem do discurso, dilaceramento da escrita,busca da identidade, descontínuo, atópico, atemporal, extático, etc...”, sentencia a ensaista Vera Queiroz.
Segundo Luiza Lobo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, em "A literatura feminina na América Latina", “(...) o cânone da literatura de autoria feminina se modificará muito se a mulher retratar vivências resultantes não de reclusão ou repressão, mas sim a partir de uma vida de sua livre escolha, com uma temática, por exemplo, que se afaste das atividades tradicionalmente consideradas ‘domésticas’ e ‘femininas’ e ainda de outros estereótipos do ‘feminino’ herdados pela história, voltando-se para outros assuntos habitualmente não associados à mulher até hoje”. Para Luiza, “o termo ‘feminino’ vem sendo associado a um ponto de vista e uma temática retrógrados, o termo ‘feminista’, de cunho político mais amplo, em geral é visto de forma reducionista, só no plano das ciências sociais. Entretanto, deveria ser aplicado a uma perspectiva de mudança no campo da literatura. A acepção de literatura ‘feminista’ vem carregada de conotações políticas e sociológicas, sendo em geral associada à luta pelo trabalho, pelo direito de agremiação, às conquistas de uma legislação igualitária ao homem no que diz respeito a direitos, deveres, trabalho, casamento, filhos etc”.
“Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos”. Na afirmação de uma personagem do romance As meninas (1975), de Lygia Fagundes Teles, parece estar a raiz do fenômeno de transformação vivenciado pela mulher desde o século passado. Qual seria afinal uma “linguagem feminina” na arte e como é um discurso essencialmente ‘feminino’? A crítica argentina Marta Traba costuma apontar como características ‘femininas’ na literatura contemporânea “a palavra fragmentada, a tendência a impregnar a palavra escrita com elementos de oralidade, o discurso voltado para ‘o sujeito que fala’, a projeção da linguagem no nível simbólico, a tendência a explicar o universo em vez de interpretá-lo, a predileção pelo detalhe”.
Nelly Novaes Coelho , autora do Dicionário crítico de escritoras brasileiras , meticuloso registro da produção literária feminina brasileira de ontem e de hoje, e de A literatura feminina no Brasil contemporâneo , alerta para o fato de que toda criação literária está condicionada à cultura na qual se encontra imersa : daí, derivam certas peculiaridades na criação literária de um e de outro, e nessa perspectiva pode-se então falar em “literatura feminina” e em “literatura masculina”.Ao abordar a questão de haver ou não uma ’escrita feminina’ distinta da ’escrita masculina’, Nelly observa que a linha francesa, liderada por Hélène Cixous, chama a atenção para a peculiaridade de escrita feminina, a ‘écriture féminine’ — um conceito que estabelece a diferença feminina na língua e no texto, possibilitando uma maneira de se discutir os escritos que reafirmam o valor do feminino; mas tecnicamente, não se poderia falar em literatura "feminista" antes que o termo fosse cunhado, na década de 1960 — “como uma espécie de respiração, de sopro vital, de silêncios densos, algo meio mágico que diferenciaria a voz da mulher. Realmente isso existe. É realmente uma espécie de magia vocabular, inerente às grandes criações, a magia da palavra poética autêntica, mesmo quando escrita em prosa”.
Sem dúvida alguma, a literatura de autoria feminina já criou seu espaço próprio dentro do amplo universo literário mundial. Desde fins do século XIX e principalmente no século XX, a principal transformação pela qual passou a literatura de autoria feminina é a conscientização da escritora quanto a sua liberdade e autonomia e a possibilidade de trabalhar e criar sua independência financeira. Na verdade, as grandes mudanças que o século XX trouxe para a vida da mulher foram fator determinante para o surgimento e expansão de uma literatura feminina __ reflexo e manifestação dos novos papéis da mulher na sociedade e no mundo. A gestação dessa ‘nova mulher’ deu-se pelo amadurecimento crescente de sua consciência crítica, que determinou uma transformação radical da escrita realizada pela mulher : de uma literatura lírica-sentimental, de ‘contemplação emotiva’, para uma literatura ética-existencial, de ‘ação ética-passional’__ um caminho trilhado , e nitidamente percebido no meio exterior (por críticos, leitores, editores, agentes, midia, etc), na área da prosa ficcional, da poesia e do teatro.
Na nova ficção feminina, o amor __ codimentado pelo erotismo, por vezes exacerbado __deixa de ser o tema absoluto para ceder espaço a sondagens existenciais, ao ludismo e ao feérico na invenção literária, ao questionamento político e filosófico.Tudo isso traduzido e materializado em experiências formais e estilísticas : fragmentação narrativa, intertextualidade, o foco narrativo múltiplo, o intenso fluxo-de-consciência, o registro labiríntico no lugar da estrutura linear, a exploração dos mitos,do esotérico, a clara opção a pela ‘linguagem do corpo’, “a procura do sentido das coisas” __ esta talvez, a expressão-chave da escrita feminina contemporânea.
(continua)...