sexta-feira, 25 de janeiro de 2013
São Paulo, 459 anos , genuína cidade literária
um tributo pessoal e intelectual -- tanto que amo a cidade,aprendi quando lá morei e vivi.
________________
“Há uma
história da literatura que se projeta na cidade de São Paulo; e há uma história
da cidade de São Paulo que se projeta na literatura”
Antonio Candido
A cidade de
São Paulo sempre foi pólo fundamental da literatura brasileira.
E a aura do pioneirismo sempre a acompanhou, desde
seus primórdios. Não surpreende pois que
em São Paulo tenha nascido e se manifestado um dos momentos fundamentais da história
cultural brasileira , o Modernismo.A cidade , já natural e sequencialmente
pioneira em diversas manifestações
literárias — desde os jesuítas, fundadores da Vila São Paulo de Piratininga, a
25 de janeiro de 1554 (não se pode
esquecer que o Diálogo sobre a
conversão do gentio, de Manuel da Nóbrega, é o primeirissimo documento
literário do Brasil, e o Auto da Pregação
Universal, de José de Anchieta, a primeira peça encenatória) — o foi também
, por exemplo, na precursora expressão poética do ‘indianismo’ no poema “Nênia”
de Firmino Rodrigues Silva ; nela se deram ainda as realizações literárias
iniciais de autores não paulistanos como José de Alencar, com seu “Como e por
que me tornei romancista”, Castro Alves e seu “Navio negreiro”, Raimundo Corrêa
com “Primavera”; nela ocorreu o primeiro movimento literário de vulto não
apenas em relação à cidade mas ao próprio País ,em torno da Revista da Sociedade Filomática,em 1830,constituída na então recém-criada Faculdade de Direito — a primeira manifestação
de brasilidade literária por sua consciência de fins e coesão de esforços
renovadores.
A cidade pioneira e
precursora
O retrato da História exibe a
importância capital da Faculdade de Direito, a partir de 1827, na congregação
de homens e idéias por meio da convivência acadêmica que propiciou a formação
de agrupamentos de estudantes, com idéias estéticas, manifestações literárias e
expressões próprias — deflagrando um processo vigoroso de efervescência intelectual que passou a agitar intensamente
a pequena cidade de então. Ainda que se reconheça as limitações quantitativa e qualitativa da produção desses
estudantes, não há como negar que estabeleceram a literatura como atividade
presente na comunidade paulistana.
Deu-se por ela a primeira manifestação de uma vertente poética considerada “o início
da escola brasileira” : o indianismo, desenvolvido na obra de Gonçalves Dias,
mas praticado pioneiramente no poema “Nênia”, de Firmino Rodrigues Silva,
composto entre as arcádias da Faculdade
de Direito. E exercido ainda de forma pioneira em 1844, três anos antes do Primeiros cantos , de Gonçalves Dias, em
“Cântico do tupi”, “Imprecação do índio” e “Prisioneiro índio”, do Barão de
Paranapiacaba. Evidencia-se pois que quando Dias dominou o meio literário
brasileiro, a poesia indianista -- base da obra do maranhense -- já existia e
era praticada em São
Paulo.Em 1845, com a fundação da Sociedade
Epicuréia, consolida-se um processo de produção literária estudantil, embora de
qualidade reduzida mas que viria a receber um influxo importante com a estadia
de Castro Alves, em 1868 — foi em evento da Faculdade de Direito que declamou
pela primeira vez o antológico poema
“Navio negreiro” -- quem incutiu um teor
social ao tipo de obra, sobretudo
poética, que se fazia
Por essa época, o ‘corpo acadêmico’ já
constitui um grupo social diferenciado da comunidade paulistana, a boemia e a
literatura como manifestações mais características de um segmento com
consciência grupal própria.Artistas criadores e ao mesmo tempo críticos,
nas revistas e jornais , são os
estudantes, entre os naturais da cidade e os migrantes e radicados, autores de
denúncias e protestos contra a corrupção, a hipocrisia, as injustiças da
sociedade . Na década de 1880 São Paulo acolhe também um grupo de jovens
inflamados pelo verbo eloqüente de José Bonifácio o moço , uma geração
empenhada numa luta em prol das idéias liberalistas e republicanas : Joaquim
Nabuco, Rui Barbosa, Afonso Pena, Rodrigues Alves .
A cidade modernizada e mutante
O desenrolar e desdobrar de
percursos literários que culminariam com o Modernismo foi coincidente e conseqüente de um vigoroso processo de
evolução econômica, social e urbana da cidade, e há de obrigatoriamente levar
em conta determinados ‘símbolos’ da época : o modus literário que passou a ser atuante deve necessariamente
ser visto e analisado a partir do
desenho dos cenários e ambientes em que veio a se desenrolar , que são representações significativas da própria literatura brasileira na passagem
do século XIX para o século XX.
O declínio do Império coincidiu
com a ascensão das classes médias urbanas por força do processo da
gradativa metamorfose de uma sociedade
rural para urbana.Em sua luta pela aquisição de status, segmentos da classe média passaram a prestigiar valores
essencialmente burgueses, como o saber e agilidade intelectual -- até porque já
era uma tradição,no mundo,a valorização de virtudes intelectuais, o escritor
passando a ser objeto de grande consideração social e atividade cobiçada por
muitos filhos da classe média. A valorização da inteligência -- a par de possibilitar uma
“profissionalização da literatura” --com a ascensão social por via da literatura, fez com que o escritor absorvesse
valores aristocráticos, desprovidos de visão crítica do real -- com raríssimas
exceções— e veio a comprometer, na imensa maioria dos autores , a vitalidade do
estilo, em troca do emprego de
linguagem, digamos, ‘ornamental’.
No caso particular de São Paulo — então com cerca de
240 mil habitantes na passagem do século XIX para XX, em radical mudança de
perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro
ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o
extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa
diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em
que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes, passa a ser
executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova
burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras
partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu, eivada de
academicismo art-nouveau.
Expressa-se sobretudo um certo aristocratismo intelectual,
que agrada em cheio àquela burguesia
ascendente : cristaliza-se pois um padrão estético-literário-cultural definido
pela elite social, retirados do contingente inicial dos estudantes os valores e parâmetros da produção literária.
Constitui-se, numa sociedade de classes, uma literatura ‘classista’, elitista,
convencional, integrada aos padrões de refinamento da classe dominante. Acentuam-se
então os teores de sentimentalismo e romantismo,privilegiando a ‘pureza’ da
língua, a escrita correta, o ‘apuro’, a limpidez, a sonoridade, a ‘riqueza do
vocabulário’. A literatura como meio e degrau de ascensão social
incorpora-se à sociedade paulistana por
meio dos padrões de suas classes dominantes.
Contrária a essa vertente — personificada pelos
“corifeus da bela escrita”, precipuamente, no Rio de Janeiro, Coelho Neto, Olavo Bilac, os membros da
chamada “geração boêmia” ; em São
Paulo , Francisca
Julia, Vicente de Carvalho ,Julio Ribeiro, Silvio de Almeida — poucas
vozes (ou melhor escritas ) se colocaram : notadamente Lima Barreto ,no Rio de
Janeiro, e Alcântara Machado, em São
Paulo (há de se
considerar também Amadeu Amaral, Sylvio
Floreal, em
especial Juó Bananére , e anos depois João
Antonio) — que adotaram e assumiram temática, ambientação,
personagens, trama, linguagem e estilo eminentemente populares e
‘anti-aristocráticas’.
Vale ainda considerar a tese do
historiador e ensaísta José Murilo de Carvalho a distinguir cidades
ortogenéticas -- caso do Rio do Janeiro, por exemplo -- e cidades
heterogenéticas -- São Paulo como o maior exemplo, e que veio a marcar o tipo
de intelectual e modo de produção cultural gerados pelas duas cidades .A
ortogenética é caracterizada pela função política e administrativa, com grande
peso do governo e do poder público, cidade de consumidores e não de produtores
, baseada no comércio e na escravidão .Carvalho sustenta que a
proclamação da República teria reforçado
ainda mais essa função política do Rio de Janeiro, com mais intensa ainda
presença do poder público, fazendo com que grande parte da intelectualidade se
vinculasse de alguma forma à burocracia pública, em geral como funcionários do
governo federal : e se tal fato não “introduzia necessariamente uma perspectiva
governista na obra desses autores”, frisa ele, “certamente constituía limitação
à sua liberdade de criação”. De outro lado, a quase obrigação que se impunha ao
Rio de passar a imagem civilizada do
país fazia com que seus intelectuais tivessem grande dificuldade em compreender
perfeitamente a realidade do País e da cidade — daí as contradições e bloqueios
que se interpunham no caminho da criatividade dos intelectuais, a cidade não
conseguindo produzir uma cultura moderna/modernista. Diferente de São Paulo.
A cidade heterogenética, que São Paulo exemplifica,
estava fora do centro do poder político, caracterizada como cidade de
produtores, com maior liberdade de criação, maior iniciativa cultural, com
predomínio da atividade econômica e comercial e não política e administrativa —
somado ao fato de que nunca teve grande presença escrava Em contrapartida, a
intelectualidade paulista era muito menos vinculada ao Estado, e era na verdade
patrocinada pela própria oligarquia local -- muitos dos intelectuais eram aliás
eles mesmos membros da oligarquia. A independência em relação ao Estado lhes
dava maior liberdade de criação Além disso, havia maior homogeneidade social
entre a intelectualidade paulista, e isso propiciou a São Paulo maior
possibilidade do que o Rio de Janeiro de
desenvolver um projeto cultural ,mais consistente e ‘autônomo’ : na Paulicéia,
houve “melhor condição de um trabalho intelectual em cima da realidade social
concreta”.
O Modernismo de 1922
expressou um esforço para retirar à literatura o caráter de classe -- dado pela
elite social e cultural pós -1890 -- transformando-a em bem comum a todos. Como
o Romantismo, o Modernismo é de todas as correntes literárias brasileiras a que
adquiriu tonalidades especificamente paulistanas. Antonio Candido sentencia que
“se em São Paulo não tivesse havido
os escritores do período clássico, do Naturalismo, do Parnasianismo, do
Simbolismo, a literatura brasileira teria perdido um ou outro bom autor, mas
nada de irremediável. Se tal acontecesse no Romantismo e no Modernismo, o
Brasil ficaria mutilado de algumas de suas mais altas realizações artísticas,
de obras culminantes como Macário e Macunaíma, por exemplo. Dois momentos paulistanos, dois momentos em
que a cidade se projeta sobre o País”.
Modernismo ,
destruidor”e criador
Nos primeiros anos do século XX, quando novas correntes
artísticas começaram a circular pela Europa, a maior parte do mundo ocidental
encontrava-se em meio a transformações sociais, políticas, econômicas,
tecnológicas e culturais que alteraram radicalmente a forma de viver e de
sentir o mundo. Invenções revolucionárias como o rádio, o telefone, o automóvel
e o cinema passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, cada vez
mais urbanizadas. A industrialização modificara a economia das potências, e os
lucros acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados
garantiam tamanha sensação de conforto,
segurança e otimismo em relação ao futuro, que o período ficou conhecido como belle
époque — uma época de efervescência artística sem precedentes. Mas no
extremo oposto,para as classes trabalhadoras o tempo era de lutas por melhores
condições de vida e, no plano internacional um conjunto de fatores econômicos e
políticos levaram à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. O Brasil vivia
então período de grandes mudanças, com a urbanização e a adoção de novas
tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário das grandes cidades,
e que pareciam alterar a percepção do mundo. O intenso crescimento urbano e
industrial, acelerado desde o começo do século, e a chegada em massa de imigrantes,
principalmente italianos, muitos dos quais haviam vivido a experiência da luta
de classes em seus países, propiciando inclusive a difusão de idéias
anarquistas e socialistas, fizeram com que o proletariado crescesse e se
organizasse : nas primeiras décadas do século XX ocorreram várias greves
em São Paulo ,
a maior delas em 1917 - mesmo ano da Revolução Russa. Nos primeiros anos
do século XX vieram radicais transformações políticas, com acontecimentos
decisivos para a vida nacional, como as revoltas deflagradas pelo movimento
tenentista ( julho de 1922 no Rio de Janeiro; julho de 1924 em
São Paulo ),a Coluna Prestes, a fundação do Partido Comunista, a derrocada da
República Velha, das oligarquias rurais e da "política
café-com-leite", o início da Era Vargas.
É nesse contexto de crises e incertezas que surgiram as
correntes de vanguarda (do francês avant-garde, "o que marcha à
frente"), entre elas o Futurismo, o
Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo, recebidas com entusiasmo
por escritores que procuravam renovar as formas de expressão artística. Muito antes de 1922 os artistas participantes
da Semana já produziam obras influenciadas pelas novas correntes européias,
como a publicação, em 1917, de diversos livros de poemas em que jovens autores
buscavam uma nova linguagem, ainda não bem realizada., em Nós, de Guilherme de Almeida; Juca
Mulato, de Menotti del Picchia; Há
uma gota de sangue em cada poema, de Mário de Andrade — e a célebre
exposição de Anita Malfatti, em 1917, duramente criticada por Monteiro Lobato
no famoso artigo “Paranóia ou mistificação ?”
A Semana de Arte Moderna de
1922 foi o fato concreto que definitivamente integrava o Brasil no contexto
filosófico-estético-cultural do século XX
e levava-o a inserir-se nas coordenadas culturais, políticas e
socioeconômicas dos novos tempos —o mundo da técnica, o mundo mecânico e
mecanizado. A partir dela caminha o movimento modernista em busca de padrões
autônomos e formas autênticas para a criação estética nacional -- e não somente
no âmbito artístico : da mesma forma no campo do pensamento social, os
intelectuais procuravam estabelecer novos modos de se tratar e compreender a
cultura e a história do Brasil, estabelecendo novas interpretações e valores
para a identidade nacional e dando início à consolidação institucional do
pensamento sociológico brasileiro. Gerou sobretudo um estado permanente, latente , criativo,
estimulante, instigante, de inquietação intelectual, e iniciou um processo de
unificação cultural sem precedentes no Brasil.
Fica
para a História o depoimento de Mário de Andrade:
"A Semana de Arte
Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual.
Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum
tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos
dissolvia nos favores da vida. Está
claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria
natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais
nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só
podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E
vivemos uns oito anos até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a
história do país registra. (...) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor
do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico.
Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento
modernista foi essencialmente destruidor.".
A "destruição" tinha como objetivo, em um
primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas, especialmente a
parnasiana — em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico
parnasianos, os poetas modernistas valorizavam a incorporação de gírias e de
sintaxe irregular, e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da
sociedade brasileira— e mais: a preparação de um terreno onde se pudesse
reconstruir a a cultura brasileira, sobre bases nacionais, a realização de uma
revisão crítica da história e das tradições culturais do país. Os autores do
Modernismo procuraram no índio e no negro
os elementos primordiais da cultura brasileira que proporcionariam a
reconstrução da realidade nacional, e procuraram retratar a mistura de culturas
e raças existente no país.
Porém, o nacionalismo, a mais marcante característica do
Modernismo, iria separar ideologicamente os adeptos do movimento, opondo os
grupos “Pau-Brasil”,e depois “Antropofágico”(que incorporva o comunismo, o
freudianismo e o matriarcalismo), de
Oswald de Andrade , Raul Bopp e Tarsila do Amaral , e o “Verde-Amarelismo , de Menotti del Picchia,
Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Estudiosos
sustentam que a verdadeira ‘revolução’ modernista se deu mesmo em 1924, ano do rompimento de Graça Aranha com a Academia Brasileira de Letras, ano do
“Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, anos de dois textos fundamentais
de Mario de Andrade : A escrava que não é Isaura — a ‘teoria’ do
modernismo compendiada - e seu livro
mais ousado, em termos formais, Losango caqui.
Em seguida, 1928 marca a publicação de Macunaíma,
de Mario de Andrade, máxima obra literária do movimento, excepcional
romance-retrato do Brasil de grande miscigenação cultural — as tradições
culturais indígenas dos primórdios ao lado da modernidade europeizada dos
centros urbanos brasileiros da época — e
de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, inaugurando o ensaio de
cunho ao mesmo tempo histórico e sociológico que abriria caminho para o grande
ciclo de “interpretações do Brasil”.À renovação estética modernista,na década
de 1920, alia-se no decênio seguinte o
ensaio de interpretação e crítica social, que tenta recontar o processo de
formação histórica do país: a procura da identidade social passa igualmente
pela busca premente de uma ponte entre uma completa renovação cultural e a
reforma da sociedade, uma ponte entre a modernidade e a modernização do país .
O ano de 1930 é a época de instauração do Estado
Novo, que se ‘apropria’ ideológica e retoricamente do Modernismo — Getulio Vargas declarava em seu
discurso de posse: “As forças
coletivas que provocaram o movimento revolucionário do Modernismo na literatura
brasileira foram as mesmas que
precipitaram no campo social e político a Revolução de 1930”
(seguindo uma sugestão formulada por Cassiano Ricardo) — mas inicia um período
de intensa fermentação política, social
e cultural. É na primeira metade dessa década que nascem as primeiras tentativas de
interpretação de conjunto da história, da economia e da sociedade brasileira.Sobretudo
a prosa literária se desenvolve,
ficcionalmente no romance e no conto, que retratam decadência da aristocracia
rural, a formação do proletariado urbano, a luta do trabalhador, o êxodo rural,
as cidades em rápida transformação — os cenários para a expansão e proliferação
dos ensaios de interpretação do País, de Gilberto Freyre , Paulo Prado (Retrato
do Brasil), Sérgio Buarque de
Holanda (Raízes do Brasil) ,Caio Prado Júnior (Formação do Brasil
contemporâneo), todos lastreados pela ‘índole’ modernista em busca da
síntese explicativa dos múltiplos aspectos da vida social brasileira e de seu
desenvolvimento histórico.
Acima de tudo um processo de mudança cultural geral,
em direção a uma nova reconstrução sócio-política da identidade nacional, o Modernismo
“difunde-se no tempo, balizando grande parte dos sequentes debates
intelectuais, espalha-se no espaço, o poderoso ímã da literatura interferindo
com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio,
construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte,
que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil”, sentencia Antonio
Candido. Irradiante
, difuso e difusor, o Modernismo modelou substancialmente a literatura
brasileira no século XX e desdobrou-se pelas décadas seguintes em irreversível processo de amadurecimento : uma terceira fase do movimento,na busca de uma nova linguagem,
que expressasse os anseios de renovação do pós-guerra, veio na denominada
“geração de 1945” , depois, na Poesia Concreta, da
mesma forma na Poesia-Práxis , na atual narrativa em prosa — caracterizada esta por novas formas de linguagem , ora intensa e ágil,
‘cinematográfica’ , ora densa e introspectiva, ‘filosófica’,e pela
preponderante ambiência urbana retratando “a vivência vertiginosa nas grandes
cidades”, confluiu no último decênio do século XX e no despontar deste Terceiro
Milênio para o irreversível despontar de
uma nova geração de escritores, que abre espaço na literatura brasileira com
uma marcante característica vetorial : o
deslocamento maciço do eixo principal da
nova criação literária para São Paulo.
Na cidade, os novos e novíssimos ficcionistas
exercem sua prosa “de estrutura desconstrutivista , subversiva da linearidade,
de narrativa fragmentada, quebradiça, de temática citadina, com os elementos da
urbanidade pós-moderna , as tensões sociais e os conflitos individuais, o
envolvimento pela violência urbana , os impasses existenciais — fomentando uma produção literária como não é
feita em nenhuma outra cidade do País.
A São Paulo heterogenética continua abrigando
escritores, naturais ou imigrantes, paulistas ou radicados, que produzem uma
literatura ímpar, diferenciada, atualizada com os elementos da realidade,
afinada com a modernidade, determinante — hoje como ontem, e desde sempre — da
própria cultura brasileira.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
Por que esquecer este centenário ?
Há 100 anos, neste 21 janeiro,
morria Aluisio Azevedo(1857-1913) – um excepcional escritor, autor de romances
(um pouco mais conhecido, e lido, por estes : inclusive pelo status de O mulato,1881, como marco do Naturalismo
– que à época gerou escândalo e sucesso,maior do que Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado, publicado no mesmo
ano) ,contos e crônicas, mas sem ter até hoje devidamente reconhecida e
enaltecida toda sua grandeza literária (embora
o provavelmente mais lido e estudado
de seus romances, O cortiço,
1890, seja consensualizado como obra-prima).
A obra literária de Aluisio,de
alta qualidade, sempre provocou controvérsias – por isso mesmo deveria permanecer, por todos os motivos, intensamente
‘viva’. O que lamentavelmente não ocorre nas proporções, medidas e escalas
exigidas para um autor tão significativo na historiografia literária
brasileira..
Aluisio,e aqui uma faceta
extremamente importante desse notável escritor, foi um lúcido e ativo comentarista
da literatura e da vida literária brasileira de seu tempo, em crônicas e contos
– sabiam dele contista e cronista ?... -- publicados na imprensa. Dado como um dos primeiros homens a viver das Letras no
Brasil, seus escritos são bastante emblemáticos
para descrição e traçado críticos
sobre a leitura, a recepção e a circulação de obras literárias no período. Muitas de suas cartas e crônicas
demonstram sobejamente a dificuldade da formação de um público leitor já no
século XIX, tanto que levou o próprio Aluísio à decisão de abandonar a
Literatura e dedicar–se exclusivamente à carreira pública,especificamente de cônsul
no exterior.
No exercício da crítica literária, Aluisio chegou a inovar :
inseriu-a,ou ‘enxertou-a’, em meio ao folhetim,
algo exemplarmente híbrido no cenário do roda-pé de página do século XIX.
Fez isso em “Girândola de amores”, que ganhou o título de “Mistério da Tijuca”
na edição folhetinesca do jornal Folha
Nova do Rio de Janeiro entre 1882-1883 (seus comentários apontavam para a necessidade de agradar a dois
tipos de público: o romântico, o leitor médio de folhetim, e outro de formação
crítica mais refinada, ao mesmo
tempo em que alfinetavam os
críticos, que o atacavam que o atacavam – o que poderia ser válido pra hoje,
como refuto a restrições atuais à sua obra -- por escrever nos padrões
românticos,quando o realismo-naturalismo já empolgava os homens de letras e o
público).
______________
Aqui, duas crônicas de Aluisio
sobre a literatura e a vida literária brasileira de seu tempo: “Do vendeiro ao
poeta” e “Literatura nacional”, publicadas em O Combate , março de 1892.
Do vendeiro ao poeta
I
Meu Deus! como o Rio de Janeiro
ainda está longe de ser uma cidade artística e principalmente um centro
literário.
Nas grandes capitais do velho
mundo civilizado a primeira camada social é formada pelos homens de espírito,
pelos sábios, pelos homens de letras, pelos artistas de talento, pelos
investigadores e reformadores científicos, pelos exploradores notáveis; depois
seguem-se os políticos em evidência, os estadistas de pulso e os militares
distintos pelo saber profissional, pela honra e pela coragem; depois os grandes
funcionários jurídicos; depois os homens da alta indústria, os que movem
grandes massas de operários; depois os banqueiros milionários; depois os
grandes agricultores; depois vêm os artistas auxiliares, os cortesãos de
merecimento, os reprodutores dos quadros vitoriosos, os propagadores da ciência
e das letras, os peritos executores da boa música, os cantores, os gravadores,
os tipógrafos, os atores de gênero ligeiro; enfim, todo esse mundo de
habilidosos, que são incapazes de criar, mas que servem de veículo à grande
obra dos artistas criadores; e afinal, em último plano, chega a vez dos
mercadores, isto é, daqueles que, por falta de talento para conceber e por
falta de técnica para executar ou reproduzir qualquer trabalho científico ou
artístico, limitam-se a servir de intermediários entre a ciência, a arte e a
indústria e entre o público que o consome.
Esta última camada social
constitui o comércio, em grosso e a retalho. Na Inglaterra, na Alemanha, na
Itália, e na Rússia, as portas da boa sociedade lhe são vedadas
escrupulosamente.
A França, depois que se
democratizou, limita-se a empurrá-la para o fim da ordem social, e, se lhe não
fecha as portas da alta sociedade, faz pior: despreza-a, trata-a com desdém e
até com repugnância.
Em França, hoje essa classe só
serve para fornecer sogros ricos e noivas com bom dote.
É que a França vê no comerciante
o homem que nada produz e mais lucra; o homem que vive exclusivamente para a
ganância e para a especulação.
E o negociante, com efeito, ao
mesmo tempo que é o intermediário entre o produtor e o consumidor, é o feroz
parasita do homem de ciência, do homem de letras, do artista e do inventor
industrial.
Estes quase sempre acabam pobres,
e o negociante acaba rico, rico e são, porque durante toda a sua vida de lucros
nunca fez o menor esforço intelectual e por conseguinte nunca se gastou
nervosamente. Em toda a extensa classe social o negociante é o único que não
trabalha.
A sociedade dá-lhe o direito de
viver sem produzir, comprando por dois para vender por dois e meio; mas o
negociante abusa sempre desse direito, comprando por dois e vendendo por quatro
quando não vende por seis ou por oito. A consciência do comércio e muito
elástica quando se trata de negócios, porque faz parte dos principais
requisitos do seu ofício enganar o comprador. E tanto assim é, que eles
inventaram para uso prático, provérbios da ordem filosófica deste: "Amigos,
amigos - negócios à parte".
Efetivamente, entre os
negociantes não se respeita a amizade, nem se observam certos deveres de
consciência quando se trata de vender. Uma vez recebi de certa família do
interior, a quem devo obrigações, o pedido de comprar aqui uma dúzia de certos lenços especiais de
cambraia de linho que então estavam em grande moda e custavam bastante caro.
Como não entendo de fazendas e
não queria servir mal a quem me fez a encomenda, dirigi-me a certo dono de
armarinho, que eu conhecia de muito tempo e a quem tinha na conta de homem
sério.
- Não podias cair melhor!
disse-me ele, quando lhe expus o que me levava à sua casa. Não encontrarias em
outra parte fazenda como a que tenho no gênero que precisas. É o que há de
melhor, vais ver!
- Não preciso ver, porque, já
disse, não entendo da matéria. Uma vez me afianças que tens o que procuro, é
quanto basta.
Ele embrulhou os lenços, paguei e
saí.
Daí a alguns passos encontro
outro negociante meu amigo.
Paramos a conversar um instante e
contei-lhe a compra que fizera, dizendo que supunha aviar bem a encomenda
recebida.
Ele pediu para ver os lenços,
observou-os um instante e segredou-me:
- Foste enganado... Isto não é
cambraia de linho. Se queres servir bem a família que te encomendou os lenços,
não lhe mandes estes, vai à casa do Leite (e ensinou-me onde era) que é o único
no mercado que possui hoje dessa fazenda. E tive de ir eu de novo comprar os
lenços, pagando também quanto paguei pelos primeiros.
E agora digam-me com franqueza:
Fui ou não fui roubado?
E se com efeito fui; se o dono do
primeiro armarinho é um tratante, porque motivo hei de eu tratá-lo com mais
consideração do que aos outros gatunos, menos velhacos e que mais se expõem,
desses que roubam um queijo à porta de uma venda?...
Esses ao menos são mais sinceros
e arriscam a dormir na cadeia.
Os negociantes, em geral, são
como o amigo que me vendeu os lenços falsos; unicamente, eles lá na sua alta
filosofia comercial entendem que não praticam ato desonesto quando nos impingem
gato por lebre.
Concordo que assim vivam;
concordo que enganem o freguês sempre que possam; concordo que enriqueçam, sem
jamais produzir, concordo que o livreiro seja rico e que o autor que mais o
enriqueceu morra de fome; concordo que o empresário de teatro tenha milhões,
enquanto os artistas que trabalham para ele, escrevendo comédias, representando
os papéis, fazendo música, pintando cenografia, não tenham onde cair mortos;
concordo que o especulador engorde e que o produtor entisique e estoure de
esgotamento nervoso a força de trabalhar; mas com um milhão de raios! não
queiram que o parasita ignorante e sem escrúpulo venha colocar-se ao lado do
artista de talento, do escritor de espírito, do homem de ciência ou do soldado
de honra.
Dois proveitos não cabem no mesmo
saco! As cocotes não sofrem as provocações da mulher honesta, mas também não
gozam das regalias que esta goza!
Pois bem: para se calcular com
justiça do nosso estado de civilização e cultivo intelectual, basta lembrar-nos
de que aqui a escala social acha-se rigorosamente invertida.
Aqui, a primeira camada é feita
pela classe comercial, e a última pelos homens de espírito.
Rompe a marcha na ordem social,
em primeiro plano, o glorioso e brutal comendador, o vendeiro com o seu ventre
de monstro, a sua indecorosa fortuna e a sua obscena estupidez.
E quando precisamos alugar ~a
casa, diz-nos o proprietário:
- Não alugo sem carta de fiança
de vendeiro ou negociante matriculado.
Não! Definitivamente o Brasil
poderá ser um país civilizado, enquanto a grande revolução, a verdadeira, a
única, não o tomar pelas duas extremidades e sacudi-lo violentamente, até
deslocar todas as camadas sociais e obriga-las a tomar o lugar que lhes
compete.
Antes disso, não passará esta
terra de um grande porto comercial, onde os estrangeiros aventurosos vêm
procurar fortuna rápida.
O Combate, 6 de março de 1892.
II
Começo a convencer-me de que esta
seção não tem razão de ser e não devia existir, porque infelizmente a vida
literária de hoje no Brasil é uma cousa tão hipotética como a vida elegante na
costa d'África.
Dantes surgia ainda um livro de
vez em quando; vinha à tona, de longe em longe, um volume de versos ou de
contos; mas agora, valha-me Deus! não aparece com que dar à gente uma hora de
regalo ao apetite de letras pátrias.
E no entanto, o que dantes
inspirava versos aos poetas, e o que dantes fornecia aos romancistas capítulos
de enredo ou páginas de observação, continua por aí afora, inalteravelmente,
enchendo a vida de cousas bonitas, de cousas tristes e de cousas heróicas.
O amor, o grande manancial onde
os líricos e os românticos abeberaram por longos séculos as suas musas, não nos
consta que fosse também deposto, antes pelo contrário parece que se tem
desenvolvido ultimamente e que hoje é o único que não morre de fome no Brasil.
Eva continua, como Jesus Cristo,
a atravessar as gerações de braços abertos, à espera dos aflitos que precisam
de consolo e que se queiram abrigar na religião da ternura e do carinho. As
flores, ao que me consta, nada perderam da integridade do seu perfume primitivo
e as rosas continuam a ser belas e os lírios a ser cândidos que faz gosto. Os
lagos e os vales, afogados de verdura, perseveram em ter-se misteriosos e as brisas
não deixaram ainda de ciciar depois que o Sr. Floriano tomou conta da
República.
Segundo as minhas observações, o
azul do céu não desbotou e está novinho em folha como saísse da fábrica; as
estrelas são inalteravelmente as mesmas; e eu seria capaz de apostar que os
sabiás cantam tal qual como no bom tempo de Gonçalves Das, e que as roas não
são menos legítimas e gemebundas que as do falecido Casimiro de Abreu.
Por que pois acabaram-se os
poetas? Se há azul de céu, se há crepúsculos, e há lua, como pois não há
versos?
Como diabo não há versos e
poetas, havendo tudo aquilo e, o que é mais, o soberbo e inestimável elemento
da fome, da fome e da miséria?
Os senhores sabem quanto vale a
fome para os poetas!...
Não sei que mais desejam, os
exigentes!
Boa lua, mágoas de primeira
ordem, estrelas a discrição, um ditador sanguinário no poder, que é uma tetéia;
mulheres que só desejam ser cantadas e decantadas; lágrimas e luto por toda a
parte, do que se pode desejar de melhor; uma ótima peste desoladora, um belo sol
de rachar, uma falta absoluta de residências, e, por cima de tudo isso, que já
é muito, a carne seca a 1$200 o quilo!
Pois mesmo assim, com todas essas
vantagens, incrível! os senhores poetas conservam-se na moita e - nem pio! nem
um verso!
Os romancistas e os contistas e
novelistas, pelo eu lado, também não sei do que se possam queixar. Já não há
Portelas para desviá-los do trabalho literário; o governo da legalidade
fornece-lhes por dia assassinatos e tenebrosas perseguições, que dão para uma
enfiada de volumes; os conspiradores esfervilham de todos os lados; há no ar
gritos de agonia e fartum de sangue; rosna-se a respeito de fuzilamentos e
cabeças cortadas e assaltos a mão armada; um tesouro!
E os romancistas - moita!
Pelo teatro a mesma cousa: as revoluções
sucedem-se; os chefes políticos lutam como atletas; os estados transformam-se
em campos de batalha; a peste e a fome, de mãos dadas, invadem a casa do pobre
e promovem cenas de grande sensação. E, no entanto, não aparece um dramazinho,
uma tragédia, e nem sequer uma comédia em um ato, apesar de que o elemento
cômico não abunda menos que o dramático, se dermos crédito ao vizinho da Vida fluminense que conhece muita gente
engraçada e capaz de provocar as maiores pilhérias e as mais largas gargalhadas.
Os Melos, por exemplo! Como
aqueles dois gaiatos irmãos estão a pedir por amor de Deus que os ponham em
cena, de cócoras, um defronte do outro, a torcerem-se de patriotismo! E que
belo efeito não faria o Floriano de guarda ao tesouro, como o descreveu Pierrot,
de espingarda ao ombro e vela de sebo ao lado? E o batalhão patriótico a gingar
na frente da música? E a manifestação popular, obrigada a balõezinhos chineses
e descompostura às folhas da oposição?
Oh! definitivamente, não vejo
razões para não haver comédias, dramas, romances e poemas!
Se os Srs. literatos não
aproveitarem esta boa ocasião, se não aproveitarem enquanto Brás é tesoureiro
do Estado do Rio de Janeiro, nunca mais pilharão outra tão boa.
E é pena, porque o momento
histórico que atravessamos, devia passar à história, cantado em prosa e verso,
para gozo e regalo dos futuros brasileiros.
Um Floriano não se bispa duas
vezes no mesmo século!
Vamos, coragem, meus senhores!
mãos à obra, que a literatura brasileira precisa, para a sua glória, de ter
também, como a literatura italiana, o seu Bertoldinho e o seu Cacasseno.
Vá o país à garra, mas salvem-se
as letras, com um milhão de raios!
O Combate, 10 de março de 1892.
________________
Literatura nacional
I
Agora, sempre que por aí se fala
de literatura nacional, diz-se que ultimamente há grande desfalecimento entre
os escritores brasileiros e que diminui o numero de volumes publicados, e que
só se escreve sobre finanças e sobre política.
É exato. Mas a culpa não é dos
escritores; é das dificuldades que se apresentam hoje em dia para realizar a
publicação de qualquer trabalho. A falecida baronesa de Mamanguape levou os
seus timos anos de vida a publicar; na casa Pinheiro, um volume de versos, que
nunca veio à luz e lhe abreviou naturalmente os dias de existência.
Aluízio Azevedo, tem há quase ano
e meio, um volume de contos a publicar-se na casa Mont'Alverne, hoje Companhia
Editora; e, apesar de haver pago adiantado a primeira folha de composição,
ainda não teve o prazer de ver uma página impressa do seu livro; outros e
outros homens de letras queixam-se de iguais contrariedades, e não é natural
que alguém se disponha a escrever com boa vontade, tendo uma obra encalhada no
prelo.
Repetimos: a culpa não é de quem
escreve; a culpa é dos que imprimem. Hoje, no Rio de Janeiro, dar um livro à
publicidade é quase tão difícil como viver, ou talvez mais ainda, se atendermos
ao que por aí vai pelas tipografias e casas editoras.
É que no Rio de Janeiro
atualmente, ninguém quer trabalhar. A febre do jogo, criada desde o ministério
Ouro-Preto e desenvolvida depois pela revolução, o desespero de enriquecer
forte e rapidamente, o desalento causado pelos graves prejuízos trazidos pelo descalabro
de companhias, que eram a grande esperança dos ambiciosos; tudo isso
transformou a maior parte da população fluminense num infernal bando de
jogatineiros decavés, doidos perdidos, furiosos, desanimados, sem vintém e sem
ânimo para o mais insignificante trabalho honesto.
Vai-se a uma tipografia para
imprimir uma obra. Aparece-nos o dono da casa, triste, desorientado, pensando
nas suas tantas mil ações sem valor, e ouve-nos distraidamente, sem conseguir
ligar importância ao trabalho que lhe encomendamos; e, quando lá voltamos, o
homem já nem se lembra do que lhe dissemos a primeira vez.
Mas, se apesar de tudo, a
encomenda fica feita, por um preço paradoxal, e tornamos lá para ver as provas,
ai! que triste espetáculo nos espera! Cada tipógrafo é também uma vítima da
bolsa; cada tipógrafo tem em casa, inúteis como um baralho de bilhetes brancos
de loteria, unia infinidade de títulos de companhias arrebentadas.
E, macambúzio, dedos enterrados
no cabelo, cotovelos fincados na caixa de composição, cada desgraçado desses
olha sonambulamente para os tipos empastelados, mortos, emudecidos e cobertos
de pó, e não encontra em si coragem para compor um paquet.
Compor! Trabalhar! Para quê?...
Para receber uma soldada que, com os preços atuais do pão, mal chega para não
morrer de fome?... Ganhar 5$000 por dia, quando, se não rebentasse tal
companhia ou banco tal, deveríamos empolgar 300 ou 400 contos?... Não!
definitivamente não há valor de homem capaz de ir até lá!
E o tipógrafo, convencido de que
não vale a pena trabalhar tão resignadamente para ganhar tão pouco, faz como a
maior parte dos operários, toma o chapéu, despede-se da casa em que está
empregado, e sai de cabeça baixa e o coração encharcado de desalento; vai pedir
dinheiro emprestado a um amigo, ou empenhar alguma joiazinha da mulher, para
correr à roleta, que nada mais e do que a caricatura da bolsa; a roleta a
ultima esperança de lucro rápido; a roleta, donde o infeliz nunca mais voltará
ao trabalho e à dignidade da vida, porque a engrenagem daquela máquina infernal
jamais largou a presa que lhe caiu nos dentes!
E diz o dono da tipografia,
quando o autor vai à vigésima vez, pelas provas do seu pobre livro:
- Vê, meu caro senhor?... Estou
sem gente!... Os operários foram-se todos! Estou disposto a pagar o duplo do
que pagava dantes, mas ninguém aparece! E se isto continua assim - fecho a
porta!
E a verdade inteira é que este
dono de tipografia está morrendo por fazer como fez o tipógrafo: correr à
roleta! Correr à tavolagem!
E lá, em volta dos malditos trinta
e oito números, de 0O a 36, ou à música implacável do Trente et quarente irá
ele encontrar como em uma praia de desilusão todos esses náufragos da
megalomania, arrojadas à casa do jogo pelas ondas do oceano da bolsa.
Todos lá vão ter, desde o
assombroso titular até o magro poeta, que interrompeu os estudos, para meter-se
no ensilhamento. Banqueiros, doutores, funcionários públicos, artistas,
caixeiros, todos, todos!
Triste e desconsoladora romaria
que só tem uma fé - ganhar. Só tem uma esperança - levar a banca à glória.
Todos e tudo lá vão ter à praia
da tavolagem. Sim, meus senhores, aqueles belos carros, aqueles cavalos de
raça, aqueles diamantes, tudo isso rolará para sempre na areia e, com os tipos
da composição e com as páginas, os poetas e prosadores.
O Combate, 2 de março de 1892.
II
Ontem encontrei de novo o meu
querido romancista Ernesto Branco. Vinha ainda com o ar enfastiado e, ao
ver-me, foi logo me passando o braço pela cintura e levando-me para a
confeitaria dos pássaros.
-Estou furioso contigo! disse me
ele, quando nos assentamos, e depois que o garçon se afastou para ir buscar uma
garrafa de cerveja. - Furioso, mas o que se pode chamar "Furioso!".
-Por quê?
-Por causa do tal artigo de ontem
Li a tua detestável Vida Literária! Aquilo não se faz! É uma infâmia!
-Mas o que fiz eu?
-Fizeste pilhéria com as letras!
-Ora!
-Ora não! Não admito que se
brinque com a cousa mais séria que há no mundo! Não admito que se meta a
ridículo a Literatura, a sagrada e imaculada arte de escrever! Sabes tu o que é
um poeta pobre, meu amigo? sabes quanto é venerável essa criatura de sapatos
rotos, que só vive da amarga desgraça de não ser imbecil ou medíocre, e que vai
atravessando cinicamente e corajosamente a dantesca escala de todas as torturas
e de todas as misérias, olhos fitos no ideal e pé calcado sobre a convenção
burguesa e sobre as conveniências sociais?
Sabes tu o que é esse sombrio
boêmio que a multidão acotovela e que os felizes desdenham e odeiam; esse negro
espetro que tem a alma branca e palpitante como as estrelas da manhã? Esse, que
entre toda essa magra canalha que luta inconscientemente para comer e respirar
sobre a terra, é o único que sofre, porque é o único que tem inteira
consciência da lama em que se arrasta, com as asas inutilizadas pelo lodo da
miséria? esse é o poeta, e ao poeta tu ofendeste com as tuas abomináveis chufas
de cabotin de imprensa! Queres fazer graça? Que diabo! imita o Pierrot ou o
Clown; toma as marionetes do governo; enfileira-as defronte de ti, sobre a tua
mesa de trabalho, e pinta-lhes bigodes; põe-lhes chifres; puxa-lhes pela língua
até ao umbigo; rasga-lhes a boca até às orelhas; prega-lhes rabos de papel;
dá-lhes piparotes no nariz; toma-as entre as palmas da mãe e boleia-as até
reduzi-las a uma grande pílula; atira com esta ao ar, torna a apanha-la, torna
a atira-la; deixa-a cair ao chão; levanta-a com ponta do pé; atira-lhe outro
antes que ela torne a cair; mas, por amor de Deus, por amor de quem mais ames!
não fales de carne seca, quando falares de poesia! não exijas versos aos poetas
que dormem para não ver o que vai pela República! não peças gracejando obra
literária, quando o nosso país geme apunhalado por um salteador político!
- Mas, por isso mesmo, respondi
eu, esquentando-me também. Por isso mesmo que o Brasil chora de dor; por isso
que o Brasil é traído, é saqueado, é reduzido a ruínas, é que os poetas deviam
erguer-se cheios de indignação e arrancar das liras, ao menos para dar com elas
na cabeça do governo! Tu mesmo, que estás aí a declamar a favor deles; porque
não atiras agora ao público um livro patriótico, um grito de revolta que
fizesse tremer o palácio de Itamarati e gelar nas veias o sangue desses
assassinos que acabam de ensangüentar o Ceará?
- Eu? Por uma razão muito
simples: porque o talento é como os títulos da bolsa - sobe e baixa conforme a
procura.
O meu neste momento está muito
por baixo. Ainda ontem quis principiar um trabalho: dispus o papel sobre a
pasta, enchi o tinteiro, acendi um charuto, assentei-me corajosamente à mesa,
molhei com energia a pena e... em vez de escrever, pus-me a pensar... E em que
pensava eu? Pensava em uma carta do meu senhorio que nesse dia me comunicara
amavelmente a sua generosa resolução de aumentar-me 5O$OOO no aluguel da casa;
pensava na minha rnenagêre que me avisara na véspera que o dinheiro que eu lhe
dou agora para as despesas diárias não chega, apesar de ser quase que o duplo
do que lhe dava dantes; e pensei nos escandalosos preços que me cobrava agora o
alfaiate, e pensei no chapeleiro, e no sapateiro; e, insensivelmente, fui pondo
a pena de parte e levantando-me para ir assentar-me à janela, a contemplar o
céu.
Fez-se noite e eu continuava a
pensar em cousas alheias ao meu trabalho. Lembrei-me com mágoa de um amigo meu,
tão bom rapaz, tão simpático e tão bem educado, o Garcia do Amorim, que na
véspera tinha sido, como muitos outros, devorado pela maldita febre-amarela;
lembrei-me de o ter visto quatro dias antes, bom e esperançoso, a falar-me de
seus versos e de sua próxima viagem a Roma.
Fiquei triste com esta idéia, e
pus-me então a cismar no estado e no destino desta pobre terra em que
vegetamos, acabrunhados pela peste, pelo calor, pela infernal carestia da vida,
ameaçados a todos os instantes pela guerra civil... Pobre República viúva!
Pobre noiva a quem arrancaram o esposo ainda na lua-de-mel, para entregá-la à
prostituição, para entregá-la à torpe sensualidade da maruja! Ah! maldito
Floriano! maldita raça de traidores!
E de todos esses negros
pensamentos ficou-me no espírito uma surda amargura, uma funda e dura tristeza,
um vago desejo de desertar desta infeliz pátria, correndo à procura de um lugar
onde se respire um ar menos assassino, onde a vida não seja tão amarga e tão
tenebrosa, onde se não vejam cair tantas vítimas da peste e onde se não
encontrem pelas praias cadáveres boiando misteriosamente. E uma dor imensa,
terrível, sem esperanças de remédio, apoderou-se de mim e fez-me amaldiçoar a
hora em que vim ao mundo. Imagina se trabalhei!
- E por que não aproveitaste a
tua própria dor para fazer uma obra? Por que não fizeste da tua dor um poema?
- Porque era verdadeira demais
para isso! Desconfia das lágrimas descritas em prosa e verso. A dor legítima é
egoísta, é besta, é inútil, não serve senão para doer! A arte nasceu para
cantar e não para chorar!
Ia replicar, metendo as botas no
governo, mas o meu amigo cortou-me a palavra, segredando-me rapidamente:
- Caia-te! Esse sujeito que se
assentou agora atrás de ti é um espião de polícia... Cuidado!
Embucbei.
O Combate, 11 de março de 1892
domingo, 13 de janeiro de 2013
Machado,cronista modelo
nestes dias de homenagens natalícias a cronistas contemporâneos -- casos de Rubem Brafa e Sergio Porto -- vale reportar a Machado de Assis, verdadeiro criador da crônica brasileira, nos moldes praticados ao longo do tempo,até os dias de hoje e que se anuncia eterno.
_____________
A crônica em Machado de Assis
Inovador na ficção, como contista e romancista – está na história da
literatura brasileira a magistral inflexão estilística, temática e de linguagem
por ele executada no final da década de 1870 -- Machado de Assis foi soberbo
cronista que fez da crônica muito mais do que um registro pontual do cotidiano,
transformando-a em um verdadeiro gênero literário, a servir de modelo, molde e
paradigma a tudo e todos que o
sucederam, inclusive os de hoje. .
Ao longo de 41 anos, Machado criou
crônicas, nos mais diversos veículos, séries, formatos e assinaturas (ou
disfarces), desde 1859, em O Parahyba (de
Petrópolis), seguindo-se colaborações para o Correio Mercantil (1859-1864), para O Espelho (1859-60); para o Diário
do Rio de Janeiro (1860-63: série “Comentários da Semana”; 1864-67: série
“Ao Acaso”), O Futuro (1862-63), Imprensa Acadêmica, de São Paulo (1864 ;
1868 :série “Correspondência da Imprensa Acadêmica”) A Semana Ilustrada (1865-75: séries “Crônicas do Dr. Semana”,
“Correio da Semana”, “Novidades da Semana” , “Pontos e Vírgulas”, “Badaladas”), Ilustração
Brasileira (1876-78: séries “Histórias de 15 dias”, “Histórias de 30
dias”), O Cruzeiro (1878: série
“Notas Semanais”), Revista Brasileira (1879), Gazeta de Notícias (1881-1900: séries
“Balas de Estalo”, “A + B”, “Gazeta de Holanda”— constituídas em versos,os ‘versiprosa’ (termo cunhado por ele e que
antecipa em muitos anos a mesma expressão usada por Carlos Drummond de Andrade
--“Bons Dias!” e “A Semana”).
Nessas quatro décadas -- com uma produção de 738 artigos -- o País teve oportunidade de conhecer um magnífico repositório da arte
machadiana de criação de muitas das
melhores crônicas da literatura brasileira – um número nada desprezível delas
consideradas verdadeiras obras-primas..
.Machado fez da crônica mais do que simples jornalismo, superior ao
comum do gênero – haja vista o que Artur Azevedo sentenciou em artigo em O Álbum ,janeiro 1893 : "(...) Atualmente escreve Machado de Assis, todos
os domingos, na Gazeta de Notícias, uns artigos intitulados A Semana que noutro
país mais literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística",
a atestar o quanto dotou a crônica dos elementos de verdadeira literatura.
A crônica de Machado de Assis,
com suas primordiais características de leveza de tom e teor, fluência textual
e estilística muito próxima da oralidade, ironia satírica e pilhéria, metáfora
e paródia, ostenta também a presença incisiva (como ocorre em sua obra
ficcional) dos conhecidos e admiráveis elementos machadianos do disfarce, da
dissimulação, do subterfúgio, da sutileza, dos significados ocultos postos como
desafios ao leitor, por meio de outras de suas peculiaridades, o uso do
anonimato e do pseudônimo, de que ele foi um dos mais profícuos usuários, e em
especial a “arte das transições”-- levada a extremos no unir tópicos
aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que
justapostos oferecem um resultado
surpreendente,cujo trajeto é ‘amenizado’ para o leitor , primeiro desviando-o
do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral de
circularidade muitas vezes nem percebida de todo. Mestre do subterfúgio, da
dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma, Machado esconde ou disfarça
uma parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir,
utilizando armadilhas retóricas típicas de sua narrativa na ficção, executadas
também na crônica, sobretudo pelo absoluto
domínio da relação cronista-leitor, e a preponderância do conhecido
narrador machadiano, o ‘narrador volúvel’ da ficção aparecendo também na crônica :a rigor, nos
comentários e ilações desse narrador é que a crônica passa a se fazer e sentir.
Nesse particular, é possível a
construção de uma equação especulativa/ interpretativa sobre a correspondência
do estilo e enfoque machadianos postos na crônica com estilos, formas e temas
postos por ele na ficção e no conjunto de sua obra -- em especial o momento da
inflexão, por volta do final da década de 1870, cujas causas e motivos tanto
intrigam os analistas e estudiosos de
Machado. Em essência e matéria, a mesmíssima ‘reformulação’ de enfoque, forma e
estilo imprimida por Machado de Assis em sua criação ficcional –-- transpondo o
romantismo dos primeiros três romances (Ressurreição,
A mão e a luva, Helena) e a ‘ideologia’ presente nos contos iniciais (abrigados nas
coletâneas Contos fluminenses e Histórias da meia-noite), incorrente no
processo de transição no final da década de 1870 (representado por Iaiá Garcia e anunciador da inovação/
‘revolução’ sintetizada no ‘shandiano’ Memórias
póstumas de Brás Cubas) para um
aprofundamento e sedimentação do realismo, mas ‘subvertendo’ e renovando
esse realismo (em Papéis avulsos ,
consolidado em Quincas Borba , em Dom
Casmurro , depois em Esaú
e Jacó e no definitivo Memorial de
Aires ) . Esse processo de
reformulação, dizíamos , deu-se da mesma forma, sob o mesmo diapasão, com a
mesma ‘latitude’ literária , na mesma época, também na produção das crônicas publicadas na imprensa.
Relevante e absolutamente
indispensável realçar, nesse sentido, o quanto Machado, ao contrário do que
equivocadamente interpretado e difundido, tratou de política em seus escritos –
também nos contos e romances, sobretudo nas crônicas -- a desmistificar a pecha
de “alheio a questões de seu tempo”, “alienado”, etc. Foi ele um lúcido
‘relator’ da história brasileira e um crítico atento e severo da sociedade e
das instituições do País : dedicou-se intensamente, para quem não sabe, a
registrar, comentar, refletir e especialmente criticar assuntos da esfera política., exposto em nada menos do que 385 crônicas
,vale dizer cerca de 52% de sua produção total de 738 artigos – o mesmo se dando com relação à economia,
referenciada e reportada em 77 crônicas..
Ficção e realidade, ficção e história, ficção
e sociedade brasileira constituem fulcros sempre presentes na obra machadiana.
Em boa parte de sua ficção e da
não-ficção Machado oferece ao leitor uma interpretação satírica, por vezes
alegórica, desnundando mitos e certezas,
aparências e disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu olhar ,por vezes direto e
transparente,por vezes machadianamente oblíquo e dissimulado, feito testemunho incomparável sobre a vida
brasileira do século XIX.
sábado, 12 de janeiro de 2013
salve,salve cronistas !!
pelos 100 anos de nascimento RUBEM BRAGA,em 12.01.013 -- mas também (e não sei o porquê de não o estar comemorando como merece) 90 anos,em 11.01.013, de SERGIO PORTO (aliás, quem cunhou Braga como "o sabiá da crônica"; e a quem Braga 'batizou' de Stanislaw Ponte Preta...)
a crônica,mais do que um 'simples' gênero,encontra-se exatamente na fronteira entre o jornalismo e a literatura -- por isso grandes escritores constituíram-se grandes cronistas -- simbiose,e muitissimos outros elementos e atributos, criada e praticada originalmente por... Machado de Assis. então, na homenagem a Braga e a Sergio, como nasceu a crônica,segundo a acepção machadiana: -
- O nascimento da crônica
Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.
Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.
Não afirmo sem prova.
Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?
[em 01.11.1877,na Semana Ilustrada, série "História de 15 dias"]
a crônica,mais do que um 'simples' gênero,encontra-se exatamente na fronteira entre o jornalismo e a literatura -- por isso grandes escritores constituíram-se grandes cronistas -- simbiose,e muitissimos outros elementos e atributos, criada e praticada originalmente por... Machado de Assis. então, na homenagem a Braga e a Sergio, como nasceu a crônica,segundo a acepção machadiana: -
- O nascimento da crônica
Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.
Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.
Não afirmo sem prova.
Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?
[em 01.11.1877,na Semana Ilustrada, série "História de 15 dias"]
Assinar:
Postagens (Atom)