quinta-feira, 20 de junho de 2013

o futebol e Lima Barreto: 'atualidades'...

oportuno;  atual -- neste tempo de futebol,e (imprescindíveis,irrevogáveis) protestos com relação aos descalabros dos gastos (superfaturados) com as copas , versus [para usar termo do esporte] as gritantes,insolúveis (sic) carências na Educação, na Saúde, Infraestrutura, Segurança, etc
[dois excertos de meu livro Lima Barreto vs. Coelho Neto : um fla-flu literário (2010]
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em 1921, confirmava-se para Lima Barreto o quanto o futebol tornara-se mais do que nunca instrumento de dominação — social, racial e econômica: ficava patente constituir-se o futebol acima de tudo numa questão social, mais do que isso, ‘ideológica’ , pois antepunha ricos e pobres, brancos e negros, poderosos e excluídos, ‘senhores e escravos’.  
                                                                                                  Bendito futebol
                                                                                                   Careta ,01.10.1921
            Não há dúvida alguma que o futebol é uma instituição benemérita, cujo rol de serviços ao país vem sendo imenso e parece não querer ter fim.
            Com a citação deles, podíamos encher colunas e colunas desta revista, se tanto quiséssemos e para isso nos sobrasse paciência.
            Não é preciso. É bastante elucidativa a enumeração de alguns principais. Um deles, se não o primordial, é ter trazido, para notoriedade das páginas jornalísticas e das festanças e regabofes dos Césares destas bandas, nomes de obscuros cavalheiros, doutores ou não, sequiosos de glória, que, sem ele, não teriam um destaque qualquer , fosse de que natureza fosse.
           Um outro é ter permitido que os trabalhadores de ofícios em que se exige grande força muscular nas pernas e nos pés, tais como  o de caixeiro de bancos, o de empregado e lojas comerciais e em escritórios, o de funcionário público, o de estudante e o de profissional do “desvio”, realizassem as suas respectivas profissões com perfeição e segurança de quem dispõe de poderosos “extensores”. “pediosos”, “perônios”, “tíbias”, etc., etc.
            Não falemos da gesticulação e falatório dos “torcedores” e “torcedoras”, nem dos soberbos rolos que coroam partidas magistrais.
            Além daqueles ótimos serviços, que citamos, prestados  pelo futebol, à Pátria e à mocidade brasileira de mais de quarenta anos, falemos de um terceiro mais geral de que todos nós brasileiros lhe somos devedores: ele tem conseguido, graças a apostas belicosas e rancorosas, estabelecer não só a rivalidade entre vários bairros da cidade, mas também o dissídio entre as divisões políticas do Brasil. Haja visto o que se tem passado entre São Paulo e Rio de Janeiro e vice-versa, por causa do jogo de ponta-pés na bola.
            O futebol é eminentemente um fator de dissensão. Agora mesmo, ele acaba de dar provas disso com a organização das turmas de jogadores que vão à Argentina atirar bolas com os pés, de cá para lá, em disputa internacional. O Correio da Manhã, no seu primeiro suelto de 17 de setembro, aludiu ao caso. Ei-lo:
                    “O Sacro Colégio do Futebol reuniu-se em sessão secreta, para decidir se podiam ser levados a Buenos Aires  campeões que tivessem, nas veias, algum bocado de sangue negro ¾ homens de cor, enfim.”
            A Igreja fazia, fez ou faz uma indagação semelhante que tinha o nome, se a minha ignorância não me trai, de processo de puritate sanguinis. Isto, porém, ela fazia para os candidatos a seu sacerdócio ¾ coisa extraordinariamente diversa de um simples habilidoso que sabe, com mestria e brutalidade, servir-se dos pés, como normalmente os homens fazem com as mãos, para jogar bolas de cá para lá, da esquerda para adiante, de trás para frente e vice-versa. O sacerdote é o intermediário entre Deus e os homens; um futebolesco, o que é? Não sei.
          O conchavo não chegou a um acordo e consultou o ‘Papa’, no caso, o eminente senhor presidente da República. Sua Excelência que está habituado a resolver questões mais difíceis como sejam a cor das calças com que os convidados devem comparecer às recepções de palácio; as regras de precedência, que convém sejam observadas nos cumprimentos a pessoas reais e principescas, não teve dúvida em solucionar a grave questão. Foi sua resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não devia figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano.
          É verdade, aduziu ainda, que os estrangeiros possuem os retratos dos nossos senadores, dos nossos deputados, dos nossos lentes e estudantes, dos nossos acadêmicos, etc., etc., mas são fatos domésticos com os quais nada tem a ver os estranhos; porém, fez Sua Excelência com ênfase, numa representação nacional, não é decente que tal gente figure. É verdade que o Senado, a Câmara são, mas... isso não vem ao caso.
          Concordaram todos aqueles esforçados cavalheiros que trabalham “pedestremente” pela prosperidade intelectual e pela grandeza material do Brasil; e, como complemento da medida, decidiram nomear uma comissão de antropólogos para examinar os “Enviados Extraordinários e Ministros Plenipotenciários da Pátria”, ao certame de junta-pés, na República Argentina. Sabemos que de tal comissão fazem parte as grandes inteligências arianas e ilustres desconhecidos: senhores Anastácio, Zebedeu Palhano e Juliano Qualquer, doutos todos em várias coisas e também deputados federais.
            A providência, conquanto perspicazmente eugênica e científica, traz no seu bojo ofensa a uma fração muito importante, quase a metade, da população do Brasil; deve naturalmente causar desgosto, mágoa e revolta; mas – o que se há de fazer? O papel do futebol repito, é causar dissensões no seio da nossa vida nacional. É a sua alta função social.
            O que me admira  é que os impostos, de cujo produto se tiram as gordas subvenções com que são aquinhoadas as sociedades futebolescas e seus tesoureiros infiéis, não tragam também a tisna, o estigma de origem, pois uma grande parte deles é paga pela gente de cor. Os futeboleiros não deviam aceitar dinheiro que tivesse tão malsinada origem. Aceitam-no, entretanto, cheios de satisfação. Não foi à toa que Vespasiano disse a seu filho Tito que o dinheiro não tem cheiro.
            Havia um remédio para resolver esse congesto estado de coisas: o governo retirava do doutor Belisário Pena as verbas com que ele socorre as pobres populações rurais, flageladas por avarias endêmicas que se dizimam ou as degradam; e punha-as à disposição do futebol.
            Dava-se o seguinte: o futebol ficava mais rico e mais branco; e a gente de cor, de que se compõe, em geral, os socorridos por aquele doutor, acabava desaparecendo pela ação da malária, da opilação e outras moléstias de nomes complicados que não sei pronunciar e muito menos escrever.
            O governo, procedendo assim, seria lógico consigo mesmo. Ilógico é querer conservar essa gente tão indecente e vexatória, dando-lhes médico e botica, para depois humilhá-la, como agora, em honra do futebol regenerador da raça brasileira, a começar pelos pés. “Ab Jove principium...”
            Os maiores déspotas e os mais cruéis selvagens martirizam, torturam as suas vítimas; mas as matam afinal. Matem logo os de cor; e viva o futebol, que tem dado tantos homens eminentes ao Brasil! Viva!
            P. S. – A nossa vingança é que os argentinos não distinguem, em nós, as cores; todos nós, para eles, somos macaquitos. A fim de que tal não continue seria hábil arrendar por qualquer preço, alguns ingleses que nos representassem nos encontros internacionais de futebol. Há toda a conveniência em experimentar. Dessa maneira, sim, deixávamos todos de ser macaquitos, aos olhos dos estranhos.
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em 1922,  Lima Barreto prosseguia  em sua cruzada, porém já mostrava tênues indícios de  um certo esgotamento diante da crua realidade .Parecia dar mostras de que, irreversível a popularização e  sedimentação do futebol por todas as classes sociais, considerava ‘batalha perdida’. A irreversível popularidade do futebol — violento ou não; fator de desagregação e segregação social, ou ‘regenerador da raça’; instrumento de discriminação econômica e étnica, ou de ‘redenção cívica’ — era reconhecida por todos seus ferrenhos opositores, inclusive pelo fato de ser crescente o espaço concedido pelos jornais diários, para atenderem, segundo Lima “ao  gosto do público”.

                                                                                              O nosso esporte
                                                                                              A.B.C.,26.08.1922
            Quem abre qualquer um dos nossos jornais, principalmente nestes dias de centenário festejados faustosamente em meio da maior miséria, há de concluir que este nosso Rio de Janeiro não é o paraíso do jogo do bicho, a retorta monstruosa da politicagem, a terra dos despautérios municipais e de poetas.
            Concluirá que é um imenso campo de futebol. Senão, vejam : os cotidianos ocupam uma ou duas colunas, em semana, com política, um cantinho com coisas de letras, algum pouco mais com as patacoadas do nosso teatro, quase nada com artes plásticas, tudo o mais de suas edições diárias, isto é, a quase totalidade da folha, enche-se com assassinatos, anúncios e futebol.
            De resto, as gazetas têm razão. Vão ao encontro do gosto do público, seguem-no e, por sua vez, excitam-no. Toda a gente, hoje, nesta boa terra carioca, se não fica com os pés ferrados, ao menos com a cabeça cheia de chumbo, joga o tal sport ou esporte bretão, como eles lá dizem. Não há rico nem pobre, nem velho nem moço, nem branco nem preto, nem moleque nem almofadinha que não pertença virtualmente pelo menos, a um club destinado a aperfeiçoar os homens na arte de servir-se dos pés.
           Até bem pouco, essa habilidade era apanágio de outra espécie animal; hoje, porém, os humanos disputam entre si o primado nela. Deixo a explicação desse fenômeno à inteligência e sagacidade dos sociólogos de profissão. O que verifico é que toda a nossa população anda apaixonada pela eurritmia dos pontapés e os poderes públicos protegem generosamente as associações que a cultivam.
            Abram o Diário Oficial, lá verão, no orçamento e fora dele, as autorizações inúmeras ao governo para auxiliar com subvenções de cem, duzentos e mais contos, tais e quais ligas de “desportos”, como eles, os sportmen, dizem, na sua comichão de vernaculismo.
            As mais das vezes, essas subvenções ficam no caminho; mas, nem por isso, o Congresso deixa de auxiliar o desenvolvimento físico dos nacionais do país.
            Diabo! Uma alimentação sadia, uma habitação higiênica, um bom clima agem tão eficazmente sobre o nosso organismo como umas marradas ou uns pontapés dominicais, debaixo de um sol ardente – não acham? E o dinheiro, dado para isto é mais empregado naquilo – penso eu.
            A proteção dispensada ao futebol não se limite à que lhe dá o Congresso. O Conselho Municipal vai além, porque o Conselho, como toda a gente sabe, é composto do que há demais fidalgo de sangue na nossa sociedade; e é próprio de fidalgos, tanto da Inglaterra como de Madagascar, amar toda espécie de esporte, desde a escalada ao topo do “pau de sebo”, em cuja ponta há uma grande pelega, até os raids de aeroplanos.
          Sendo assim, o nosso Conselho Municipal derrama-se, esparrama-se, derrete-se em favores aos moços demais de quarenta anos que se dão ao sacrifício de dar pontapés numa bola, para desenvolvimento dos respectivos mollets e gáudio das damas gentis que, assistindo-lhes as performances aprendem ao mesmo tempo o calão dos bairros escusos, com cujos termos os animam nas pugnas. É verdade que essas singulares vestais dos nossos modernos coliseus, às vezes, engalfinham-se no correr da luta. É que elas têm partido: uma é pelo leão do Atlas e a outra é pelo “retiário”.
            Os nossos edis, tendo em conta esse aspecto de beleza do nosso futebol, isentaram-lhe de impostos, enquanto sobrecarregam os outros divertimentos de ônus asfixiantes; entretanto, uma função de futebol rende, às mais das vezes, uma fortuna, sem despesa alguma, enquanto as diversões outras ...
            A edilidade, porém, tem razão. Os clubes de futebol são de uma pobreza franciscana, tanto assim que há alguns que compram vitórias a peso de ouro, peitando jogadores dos contrários a contos de réis e mais ...
            Bem haja o Conselho Municipal que protege o desenvolvimento físico das pernas de alguns marmanjos! Ele se esquece de estimular os poetas, os músicos, os artistas naturais ou filhos adotivos da cidade que representa; mas, em compensação, dá “arras” de sua admiração pelos exímios “ponta-pedistas” de toda a parte do mundo. É mesmo essa a função de uma municipalidade.
                                                                                                      


sexta-feira, 7 de junho de 2013

Machado de Assis e os portugueses

o dia 10 junho, data do nascimento de Camões, é dado como o"o  dia de Portugal"(alguns eventos específicos começam a realizar-se desde o dia 07).
aqui, um artigo que reporta-se a meu estudo Machado de Assis e os portugueses""- já objeto de palestras, entrevistas e de livro em preparação.
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                                              “(...) Portugal não teve [apenas] influência, ele está presente [no Brasil]. Os portugueses suscitam desdobramentos delicados (...) ;são eles próprios engrenagens vivas e sensíveis. Trata-se de recolher os elementos que permitirão escrever a história interatlântica do mundo lusofalante no século XIX. Em conseqüência,o conhecimento do século XIX português e especialmente a transição do romantismo ao realismo serão bem esclarecidos,já que as duas literaturas vivem em simbiose.
                                                [J.M-Massa, A juventude de Machado de Assis].
                                                                                                                                
Algumas  dos elementos aqui expostos entendo serem de conhecimento, em maior ou menor grau, por parte de estudiosos, pesquisadores, cultores e admiradores das literaturas portuguesa e brasileira; procuro no entanto aqui apresentar e enfatizar determinadas considerações,observações e comentários que, menos comum e frequentemente apontadas,explanadas e analisadas no enfoque do presente tema , julgo extremamente relevantes  para o melhor discernimento e imprescindível enriquecimento de estudos a  respeito  das (importantes) relações e  interações luso-machadianas.
A priori, convém frisar ter-me debruçado – até mesmo em escala prioritária, comparativa a outros projetos em pauta – ao estudo das relações e interações entre Machado de Assis e os portugueses, per se nunca até então desenvolvido, nos termos e enfoque e sob o escopo deste que agora se propõe, movido pelo detectar da extrema, crucial importância destes quer na vida pessoal quer nas  formação e constituição literárias e na construção da obra do escritor brasileiro; e mais : no embasamento e no engajamento político, na fundamentação de seu pensamento ideológico – este, na verdade, um aspecto pouquíssimo notado e conhecido e raramente estudado.
 Encontrava-me então em meio a estudo (da mesma forma inédito) amplo, abrangente e genérico acerca das influências e orientações estrangeiras em Machado de Assis (a abrigar, a par dos portugueses, os franceses, os ingleses, os alemães, os gregos, os latinos, espanhóis e italianos – a oferecer subsídios valiosos para os estudos de Literatura Comparada, um dos basilares approach que entendo devesse inexoravelmente imprimir a meus programas investigativos, analíticos e reflexivos de obras,textos e autores da literatura brasileira dita clássica , vale dizer, examiná-los e interpretá-los à luz das injunções e conexões de origem estrangeira  recebidas por eles e atuantes sobre suas produções literárias (outro dos vieses seria a História, sob as lentes e prismas da qual se submetem clamorosamente todas as manifestações e realizações de literatura, por extensão artísticas) – e nesse  cenário matricial constatei, ao chegar e aprofundar no exame dos lusos, a (não vacilo em dizer incomparável) relevância dos mesmos para com a própria existência machadiana. 
Cabe, nesse particular, uma digressão – fundamentada, por certo – no que tange às relações machadianas com os elementos de cultura estrangeira, de resto  preponderantes no Brasil oitocentista (e bastante atuantes pelos ciclos seguintes) : ainda que a eles tenha-se referido  como “invasões culturais”, Machado de Assis,  qual antecipador da antropofagia modernista de 1922 (reporte-se a Oswald de Andrade et allii) assimilou-os, ‘deglutiu-os’, ‘digeriu-os’ e ‘expeliu-os’ incorporando à sua obra, à sua escrita e à sua linguagem literária e dotando estas ao mesmo tempo (como sabemos) de brasilidade e universalidade, de localismo e universalismo.
Convém aqui esclarecer o quanto de significância para um ‘desenho’ de marcantes influências literárias, intelectuais e culturais quer para a  formação do escritor quer para efeito de seu contributo à formação de seu leitor (e,vale deduzir e induzir, para o leitorado brasileiro do século XIX ) – convoco atenção especial a isso (vide comentário adiante) -- detêm as leituras, fosse  nos livros de sua posse mantidos na biblioteca pessoal fosse nas consultas realizadas por ele em bibliotecas públicas e particulares,em gabinetes de leitura – mormente no Real Gabinete Português de Leitura – em entidades e instituições, bem como as citações e referências expressas em seus escritos. Os acurados, metódicos, rigorosos levantamento e mapeamento desses elementos tornam-se obrigatórios  para constituição informativa e reflexiva de cenários e vetores das  orientações estrangeiras em Machado de Assis.
Notório fato: não obstante a preponderância dos franceses nesse cenário de influências estrangeiras, os portugueses -- por seus autores e obras lidos e consultados por Machado, naqueles que com ele conviveram no Rio de Janeiro, naqueles intensamente citados, referenciados em sua obra (do mesmo modo conclamo atenção para este tópico, em comentário adiante) -- foram absolutamente decisivos na vida, quer pessoal, social e conjugal, quer intelectual, em suas formação e constituição literárias e em sua obra, ficcional e não-ficcional, na edificação de sua linguagem,escrita e estilo narrativo,até mesmo no embasamento político-ideológico-filosófico de Machado de Assis.
A solidez e a característica genuína dos vínculos machadianos com os portugueses são nitidamente expressas por elementos que se estendem de  sua própria origem familiar aos fortes e intensos laços de amizade com lusitanos então residentes no Rio de Janeiro, de seu casamento às  leituras que lhe acompanharam por toda a vida ,fosse nos acervos públicos por ele regularmente freqüentados fosse nos livros em sua biblioteca pessoal, de sua formação literária e cultural às inúmeras (e significativas) citações,alusões, referências e recorrências a autores e obras lusitanos em sua ficção e não-ficção.
No âmbito de seus vínculos familiares e conjugais, emerge a constatação  do quanto mulheres de origem portuguesa constituíram-se não apenas em objeto de especial afeto por parte de Machado – até porque exerceram marcante papel em diversos momentos de sua vida -- mas sobremodo contribuíram para a  construção de sua linguagem, no que tange a  prosódia, sintaxe,  léxico e semântica, o que por extensão incorporou-se à  própria linguagem literária machadiana.[2]
Sob outro viés, vale a pena considerar que, em parte decorrente de desses originários vínculos familiares,  ao mesmo tempo guiado por um vetor sob o escopo maior de sua iniciação no embasamento literário-cultural, Machado desde cedo passou a conhecer autores e obras lusitanos, especialmente os clássicos da língua. Jovem, de parcos recursos financeiros, valeu-se na freqüência regular, contumaz a bibliotecas públicas e privadas, e de um acurado autodidatismo em suas leituras de formação, realizadas mormente no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro (o preponderante),  também no Liceu Literário Português, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Com o tempo, foi formando gradativamente – e consistentemente – sua biblioteca pessoal, na qual se não majoritários em quantidade autores e obras portugueses se fizeram notar por parâmetros de alta representatividade literário-bibliográfica.
No extenso painel de seus interesses literários e suas leituras, Machado de Assis constituiu-se , per se, em elo decisivo de  contato entre as culturas brasileira e portuguesa na segunda metade do séc. XIX : os  vínculos familiares de origem, bem como os de eleição afetiva e de interesse intelectual que manteve ao longo da vida com membros da colônia portuguesa radicados no Rio de Janeiro,  faziam o escritor circular dentro de um ambiente luso-brasileiro,de marcantes  ecos em seus próprios escritos.
È extenso, como extremamente significativo, o elenco de fraternas amizades cultivadas, desde sua juventude, com escritores portugueses recém transferidos para o Rio de Janeiro (estima-se que em 1852, por exemplo, viviam  cerca de 30 mil na cidade), atraídos pelo ambiente acolhedor e de  alta efervescência cultural, mas também de cunho filosófico-ideológico, aqui criado desde 1837 por aqueles que, afastando-se do levante do Porto, inclusive fundaram o Real Gabinete Português de Leitura.[3]
Pelos anos 1850 encontravam-se radicados no Rio de Janeiro literatos como Francisco Gonçalves Braga, Augusto Emílio Zaluar, Carlos Augusto de Sá, Faustino Xavier de Novais, Francisco Ramos Paz, Ernesto Cybrão, Reinaldo Carlos Montoro, Manuel de Melo, José Feliciano de Castilho, Antônio Feliciano de Castilho. Todos de alguma influência nas rodas literárias e nos ambientes letrados da capital brasileira.
Desse elenco, destaque absoluto – pelas decisivas, preponderantes influências em Machado – a Zaluar e Xavier de Novais, além de Antonio Feliciano de Castilho.
Todos esses autores encontram-se de alguma forma presentes nos escritos de Machado, atestando estreita interlocução literária – que, de resto, atesta o clamoroso fato de que nenhum escritor ou literato brasileiro, à época, aproximou-se e identificou-se de tal forma,e essência, como Machado de Assis junto aos portugueses.
Com efeito, foi exatamente por conta da fértil, profícua, intensa  convivência física com esses que Machado tinha como “amigos fraternos” que se assevera\ que realça e enfatiza – como se asseverou anteriormente – a importância crucial dos portugueses muito maior do que a dos franceses,ingleses, só para citar dois exemplos de preponderantes influências em Machado
Relacionamentos, convivências e atividades intelectuais em comum exercidos e praticados em torno, primeiramente – ainda que em escala incipiente – da Sociedade Petalógica (criada e incentivada por Paula Brito),em  1854-55, na qual estavam Braga,Zaluar e Garção; em seguida no escritório de Caetano Filgueiras -- que escreveria o famoso prefácio à 1ª. edição da coletânea poética Crisálidas, de Machado -- onde inclusive constituiu-se o denominado “Grupo dos Cinco”, composto de Filgueiras,Braga,.os brasileiros Casimiro de Abreu --que vivera bom tempo em Lisboa - Cândido Macedo Junior,e Machado, em  1857; depois, um novo grupo,unidos por traços ideológicos comuns,de elementos democráticos e liberais, a fornecerem o fermento para uma nova postura política de Machado (que a  sustentaria daí por diante, ao longo do tempo) –  tendo como figura central o proscrito francês Charles Ribeyrolles, e onde estreitou seu relacionamento com Augusto Emilio Zaluar, Reinaldo Carlos Montoro,Francisco Ramos Paz, Remigio de Sena Pereira (estes três iriam traduzir, ao lado de Machado e Manuel Antonio de Almeida, a obra de Ribeyrolles, sob supervisão e acompanhamento deste, Le Brèsil Pittoresque)-- todos mais tarde  participantes e atuantes, com Machado, no  (importantíssimo) jornal O Parahyba, de Petrópolis, e no Correio Mercantil
Mas também exercidos, os relacionamentos e convivências, nos saraus literários; nas reuniões no Grêmio Literário Português, no Retiro Literário Português (uma dissidência do Grêmio), na Arcádia Fluminense (onde, em 1864, Machado apresentou sua peça “Os deuses de casaca”); e  ao ensejo de dois eventos bastante significativos : o centenário (aliás, mais comemorado no Brasil que em Portugal) de nascimento de  Bocage, em 1865, e o tricentenário de nascimento de Camões, 1880, iniciativa do Gabinete Português de Leitura (acontecimento inclusive de intensa participação popular no Rio de Janeiro) – quando Machado apresentou a peça,escrita especialmente para a ocasião, “Tu,só tu puro amor”
E, importante notar, em distintos jornais, de relevância – cada um por suas circunstâncias – no contexto das relações lusas de Machado:  A Marmota, em 1855-56 (que publicava transcrições de obras portuguesas, como “Folhas caídas”, de Garret,poemas de João de Lemos e Antonio Dinis, e outros); O Parahyba, de Petrópolis, 1858-59 (jornal progressista, avançado para seu tempo, de relevância ímpar na história jornalística,editorial e literária brasileiras – até aqui não devidamente estudado[4] ), criado por Zaluar, editorialista e seu redator-chefe,e contando com Carlos Montoro, Ramos Paz e Machado ; Correio Mercantil,.1858-59, no qual  Machado conheceu Faustino Xavier de Novais, e publicou,entre outros textos, o  artigo “O Jornal e o Livro”, marco de um posicionamento dialético-político machadiano, cuja (escreveu ele) “idéia pertenceu ao sr. Reinaldo Carlos [Montoro]” –  artigo contendo  trecho de manifestação de  clara adesão aos princípios democratas e republicanos;[5] ; Diário do Rio de Janeiro, 1861-62 – nele (com Machado),  Ramos Paz e Sena Pereira; O Futuro, 1862-63, criado e dirigido por Faustino Xavier de Novais, o primeiro – e pode-se dizer principal, se não único -- jornal explicita e essencialmente luso-brasileiro, de resto expresso formalmente no texto de  editorial de seu 1º.número, a  15.09.1862, e que  inclusive abrigou crônicas machadianas de teor político (e de outros timbres)
A rigor, toda esse período de cerca de oito anos na vida de Machado – desde meados da década de 1850, as atuações em A Marmota, em O Parahyba,no Correio Mercantil, no Diário do Rio de Janeiro e em O Futuro, em todos eles ‘cercado’ de portugueses  – registra e retrata uma espécie de ‘pêndulo’ na postura,no pensamento, nas opiniões.comentários e manifestações literárias, oscilando entre a convivência e intimidade em grupos de literatos e o engajamento, entre participação efetiva,em termos de comentários incisivos, nos acontecimentos e a criação artística, ao mesmo tempo esquivando-se de polêmicas e debates e sendo vigoroso e loquaz em crônicas e poemas de tom patriótico. De qualquer modo, procurava impor uma certa ‘personalidade filosófica’, uma independência de pensamento não submisso a doutrinas e dogmas. Aos 24 anos (1863), lido, respeitado,requisitado, apreciado, passava a dedicar-se a concretamente difundir e propagar sua obra literária, à época já composta de crônicas, poemas,contos,peças teatrais, crítica teatral e literária : chegava ao final do ano de 1863 como um literato bastante respeitado,requisitado, apreciado, ‘amadurecido’ e em evolução.
Como que preparado para um marco importante em sua trajetória literária, no ano seguinte: 1864 viu surgir sua primeira coletânea de poesia, Crisálidas – com o ‘célebre’ prefácio de Caetano Filgueiras – corolário de toda sua criação poética dos anos precedentes, com um claro timbre de auto-reflexão literária.

Como os portugueses marcaram literariamente  o Machado escritor ?
Primeiramente, por meio dos autores e obras clássicos, quer antigos e canônicos quer contemporâneos a ele, dos quais foi Machado um persistente leitor, entre aqueles  armazenados em sua biblioteca e aqueles consultados, uns regularmente outros especifica e episodicamente, nos acervos públicos e privados que freqüentava.
Às intensas e perenes leituras e consultas nas bibliotecas e acervos bibliográficos e à estreita e criativa convivência com literatos lusos estabelecidos no Rio de Janeiro, acoplam-se, por sua extrema significância no retrato dessas relações, as profusas  citações e recorrências aos portugueses em toda a obra machadiana (devidamente mapeadas e formalizadas em raisonnés[6]) – o que, torno a enfatizar, identificam os teores,graus e influências de autores,obras e textos lusos em sua  genealogia literária concomitantemente apontam para vetores  na constituição,hábitos,gostos e perfis de leitores a sua época[7], vale dizer serem  vistas como fontes de informação e conhecimento dessas referências autorais e bibliográficas a seus leitores, por extensão ao leitor brasileiro de seu tempo : no que registra e faz aparecer em seus textos, Machado os ‘apresenta’ e transmite aos que o lêem. Há um claro, relevante processo de ‘transferência’ e transmissão de conhecimento literário, bibliográfico,cultural, histórico, político, etc, de insofismável formação cognitiva e de modulação de padrões de leitura da época.
Neste particular, quais autores  portugueses, a par de exercerem marcante influência em  sua formação literária, Machado de Assis informou e difundiu junto a seus leitores ? hegemônico foi Luis de Camões (quem, de resto, pode-se considerar, no cômputo geral das menções e referências de Machado, somente superado por Shakespeare) -- e  Os Lusíadas, a  obra mais citada por Machado depois da Bíblia ; e mais Almeida Garret, Alexandre Herculano,Bocage, Antonio F. de Castilho, Antonio .Dinis da Cruz e Silva,  Nicolau  Tolentino.
O papel e  influências de poetas portugueses  na formação de Machado de Assis, inserido  de resto na própria  tradição poética luso-brasileira da época, têm exemplos cristalinos em Camões,Garret e Castilho, que  marcaram forte e intensamente a poética machadiana, bem como um daqueles conviventes no Rio de Janeiro, Francisco Gonçalves Braga , a quem Machado designou como “meu primeiro mestre”. A se destacar também as influências significativas de Alexandre Herculano – ao lado de Garret, considerado por Machado como modelo na prosa -- e João de Barros na constituição de seu conhecimento histórico.
Almeida Garret,  mister enfatizar, a par da acentuada influência temática e estilística na poética machadiana, teve seu “Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa”, de 1827, estudo fundamental para a história da literatura no Brasil, a apontar caminhos da emancipação literária – o que viria a se constituir na égide do movimento deflagrado na década de 1830 por Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, em prol de um “nacionalismo literário brasileiro” – como  forte inspiração para as reflexões de Machado acerca da literatura brasileira, expressas nos ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira”(1858), “Instinto de nacionalidade”(1873) e “A nova geração”(1879), e sua obra Viagens da minha terra como uma das peças que moldaram,no teor da sátira menipéica-luciânica (ao lado das obras de Sterne,Diderot e Xavier de Maistre),  a célebre inflexão machadiana no início da década de 1880. 
A se arrolar ainda Camilo Castelo Branco, que inspirou Machado em certos recursos narrativos, como as digressões metaliterárias, as interferências do narrador em diálogo com o leitor, o uso da ironia (já foram apontados elementos da novela  Coração ,cabeça e estômago: uma estética da ambiguidade, de Camilo, em Memórias póstumas de Brás Cubas)
E de um português que não era escritor ou literato, Furtado Coelho, que  produtor teatral propiciou a Machado , porque as levava a cena, o incrementar de sua importantíssima atividade de tradutor (que Mario de Alencar, considerando-o “um dos maiores tradutores brasileiros”, lamentava tivesse Machado interrompido ).

Por fim, uma reflexão a respeito de questão que muito me instiga, e julgo pertinente. Machado – como representante proeminente do movimento de ‘nacionalização literária’ brasileira -- parece ter sido o primeiro, se não o único a se aproximar e interagir aos portugueses: não se tem referência, por exemplo, das  presença e atuação, nesse sentido, de Gonçalves de Magalhães, José de Alencar e dos demais românticos empenhados,no Brasil, nesse projeto (que se dava simultaneamente em Portugal, convém frisar) de afirmação de nacionalidade literária e cultural..
Não existem dúvidas de quanto ambíguos, ou no mínimo reticentes, postaram-se os românticos brasileiros com relação ao legado lingüístico e cultural dos portugueses: mesmo tendo em conta a importância, ou necessidade, de estabelecer,e sedimentar, traços  diferenciadores do novo país depois da independência de 1822,  o curioso – e  contraditório – é que desenrolou-se um processo de obediência e preservação dos padrões lingüísticos,sintáticos,gramaticais,léxicos portugueses como uma espécie de atestado de qualificação cultural  e ‘civilidade’ intelectual. Isto é, intentavam os primeiros românticos brasileiros se constituírem nos agentes a afirmação nacionalista brasileira, no âmbito cultural, sem no entanto romperem com o arcabouço lusitano...

                                                                                                                     





[1] Este artigo, constituído como escopo para a palestra proferida durante o “6º. Colóquio Portugal no Brasil: pontes para o presente”,do Real Gabinete Português de Leitura, abriga elementos inerentes a amplo Estudo, ora em desenvolvimento, e preparatórios para livro a ser dar à luz   neste 2013
[2] Cabe aqui uma reflexão acerca da questão da língua portuguesa em Machado de Assis. No decorrer do século XIX, os portugueses – em Portugal – questionavam as formas gramaticais,léxicas,semânticas, etc que os brasileiros utilizavam em seus escritos : e nesse sentido, José de Alencar, por exemplo, polemizava com eles, rebatendo suas críticas de que ele colocava mal os pronomes, etc. No entanto, a partir da década de 1880 – período crucial de inflexão na história brasileira, em todos os aspectos  – ocorrem mudanças substanciais, no sentido de que passou a ser ‘norma’ escrever  como alguns clássicos portugueses, recorrendo-se  a Vieira, pde. Manuel Bernardes, frei Luis de Souza.
   Machado de Assis, desde os  primórdios de sua escrita, já assim fazia, antecipava-se de certo modo a isso – tanto que passou a ser considerado, entre os brasileiros, como exemplo e epígono de um  processo a que o (emérito) crítico Alfredo Bosi  cunhou de ‘gramaticalização’, vigente a partir daquela década; o lado ‘conservador’(cf. Bosi),formal,  da prosa machadiana e sua escrita de lastro essencialmente luso vem de suas origens familiares, foi expandido em sua convivência com os portugueses  e sedimentado em sua união com Carolina. 
[3] Extremamente elucidativo e de incomparável relevância, nesse assunto, é o estudo desenvolvido por Fabiano Cataldo acerca da criação do Real Gabinete Português de Leitura.
[4] Encontro-me em trabalho de finalização de livro a respeito de O Parahyba.
[5] Texto que oferece aos estudiosos amplo arsenal de elementos para uma reflexão, até mesmo de cunho ‘revisionista’, acerca da (até então e,de resto, quase consensualmente tida) índole e perfil ‘monarquista-liberal’ machadianos.
                “(Graças ao jornal...) completa-se  a emancipação da inteligência e começa a dos povos.O direito da força,o direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis já não têm púrpura,envolvem-se nas constituições. As constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica” [“O Jornal e o Livro”, in Correio Mercantil, Rio de Janeiro :10-12.01.1859].
[6] No aludido estudo a que me dedico, acerca das influências e orientações estrangeiras em Machado de Assis, encontram-se construídos raisonnés de todas as citações e referências lusitanas em toda a obra machadiana , assim como os autores,obras e textos constantes de sua biblioteca pessoal e aqueles lidos e consultados em acervos públicos.
[7] A informação e formação de leitores, por parte de  Machado de Assis,  integram estudo, ora em conclusão: intitulado “As leituras dos formadores de leitores”, abriga  também os escritores Lima Barreto e Monteiro Lobato.