sábado, 23 de fevereiro de 2008

a literatura vai ao cinema - II


...(continuação)

Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico __ e menos literário. E além disso,mesmo que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam lidar com o onírico, o sonho , e com o psicológico __ que é, sabemos, elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles antes e acima de tudo pessoas do cinema.
Quase sempre :
· a narrativa se faz em quadros, planos (longos , médios, curtos) e fotogramas , como num filme __ e qual angulações e diferentes tomadas, utilizam mudanças de foco narrativo [ de resto, recurso também comum e genericamente usado na literatura)
· a narração geralmente corre veloz, fatos se dão e são relatados quase que a galope , denota-se certo açodamento : só que no cinema a ação é rápida e a passagem de tempo ‘invisível’ para o espectador __ mas não o é para um leitor; nos escritos de cineastas, de uma seqüência chega-se a outra sem intermediações, nem explicações , contando com a imaginação do leitor
· na maioria dos casos,os personagens são desenhados superficialmente, sem o esmero e detalhamento descritivo comum à literatura __ mas como no cinema, um retratar rápido e sumário (já que o espectador vê) como se o leitor os estivesse vendo em imagem, numa tela de cinema ou de tv, e não delineando-os na imaginação; os personagens são moldados, agem e comportam-se como atores, que são vistos na tela, prontos, sem necessitar de muita elaboração
· assim também com as situações, fatos e com a própria ação : mesmo as reflexões e indagações que por exemplo um narrador faça, a respeito da natureza e do comportamento de personagens,
· como que a analisá-los, aparecem como que anotações geralmente feitas em meio ou à margem do texto de roteiro cinematográfico.
Ora, em literatura tudo há de ser elaborado de acordo com os métodos próprios e intrínsecos à escrita ficcional. Na maioria das vezes, o texto literário de gente do cinema carece, em sua construção, de uma ‘personalidade’ própria, ficando a meio-caminho entre o cinematográfico e o literário : entre altos e baixos, persegue uma certa ilusão de fusão de formas, meios e linguagens.
Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação : as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O caso é que um diretor de cinema ou de tv quando vai à literatura leva com ele uma bagagem da linguagem imagética __ o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador __ e assim comete pecados e pecadilhos marcantes ( veja-se por exemplo Patrícia Melo, que de roteirista de tv impõe em seus livros uma narrativa toda cinematográfica, e ainda recebe elogios orquestrados da mídia... ). Ao contrário, um escritor que vai para o cinema __ como roteirista, quase sempre __ o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores : caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood ,e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento __ ou do embate __ literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas “, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme (e vale lembrar que para Autran Dourado “ não existe livro filmado, existe filme baseado em livro” ), mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
Desejariam cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, responder a Stanley Kubrick __ para quem “ tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” __ provando que ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito' ?...

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

a literatura vai ao cinema- I

o evento é da indústria cinematográfica -- não da arte cinematográfica. o Oscar norte-americano é feito para servir os grandes, gigantescos ,interesses do cinema; festivais de arte, essencialmente(mas não exclusivamente : já existem, há muito, distorções neles) são Berlim, Veneza, Cannes (sic) , Sundance. de qualquer modo, a premiação do Oscar está às portas e a ocasião é boa para refletir sobre as relações entre o cinema e a literatura.
O cinema vai à literatura
(e a literatura se vale do cinema)
Cinema e Literatura, criações do imaginário, parceiros na construção da cultura, na era do domínio da imagem visual dividem ainda o desejo comum: fornecer o alimento indispensável à sobrevivência da fantasia, da inteligência, da crítica. E prazer.” (Beatriz Resende _UFRJ)
Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, tantos laços e gaps entre a tela e a página__ até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos contrastam- se; são sempre difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário __ originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos __ por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, porém,entre a página e a tela há laços estreitos__ em forma de ‘mão e contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "avant-garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale a trazer para os mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão — meios que privilegiam a linha narrativa — também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que , principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como F. Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, William Faulkner, James Age e Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto."

(continua).....

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

atentado !




não importa de quem seja,ou venha a ser, ações deste tipo, que expressam tentativas de cercear o universal princípio constitucional de liberdade de imprensa -- mais : da intocável e inviolável liberdade de expressão. ações judiciais foram movidas ,em diversos pontos do país , por membros da Igreja Universal do Reino de Deus contra a Folha de S. Paulo afirmando terem se sentido "ofendidos (sic)" pelo teor de reportagem publicada pelo jornal em 15 de dezembro -- intitulada "Universal chega aos 30 anos com império empresarial", da repórter Elvira Lobato.
As ações apresentam a mesma terminologia e são embasadas com os mesmos argumentos e até idênticas frases de membros da Igraja nas ruas em mais de 50 cidades diferentes -- vale dizer, algo combinado, organizado e orquestrado. Em dois casos, os juízes condenaram os membros da Universal por usar o Judiciário de forma indevida, o que é denominado litigância de má-fé. A Folha ganhou as cinco causas já julgadas até agora.
Além da Folha, membros da Universal movem ações contra os jornais Extra e A Tarde, devido a uma reportagem sobre a danificação de uma imagem sacra numa igreja católica de Salvador por um fiel da Universal, e contra O Globo, por ter denominado a igreja de seita.
repúdio total, de todos, a atitudes deste tipo, hoje e para todo o sempre!

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

os primeiros de Machado - I


pois então diz-se que agora semana pós-Carnaval, tem início o ano no País.Ano que se anuncia como o ano do centenário da morte (29 setembro 1908) de Machado de Assis, ele então com 69 anos(nascera em 21 junho1839) -- uma efeméride para estar marcada nos corações e mentes de todos. vamos daqui registrá-la e homenagear Machado[embora saibamos que todos os anos são de Machado de Assis ,seu nome, sua obra e sua grandiosidade acima e além de circunstâncias de momento].pretendo expor aqui uma série de textos abrigando as primeiras produções literárias de Machado, seguindo sua respectiva ordem cronológica.

a primeiríssima peça de criação machadiana foi um poema intitulado “Sonetos” , dedicado a uma misteriosa "Ilma. Sra. D.P.J.A.", publicado em 1854 , com a assinatura J. M. M. Assis, no Periódico dos Pobres – poema esse de que se tem notícia mas nenhuma cópia conhecida (perdeu-se no tempo,na então incipiência autoral de Machado e na insignificância da qualidade literária.do texto...).o que ficou devidamente registrado, como peças debutantes, foram os poemas “A palmeira”,estampado na edição de 6 janeiro 1855 no jornal A Marmota Fluminense (a partir de 1857 passou a intitular-se apenas A Marmota)de Paula Brito (o tipógrafo,livreiro e editor de enorme e crucial influência na vida de Machado), no qual Machado escreveu até 1862, seguido do poema "Ela", publicado nesse mesmo jornal em 12 janeiro .
A palmeira
a Francisco Gonçalves Braga

Como é linda e verdejante
Esta palmeira gigante
Que se eleva sobre o monte!
Como seus galhos frondosos
S'elevam tão majestosos
Quase a tocar no horizonte!

Ó palmeira, eu te saúdo,
Ó tronco valente e mudo,
Da natureza expressão!
Aqui te venho ofertar
Triste canto, que soltar
Vai meu triste coração.

Sim, bem triste, que pendida
Tenho a fronte amortecida,
Do pesar acabrunhada!
Sofro os rigores da sorte,
Das desgraças a mais forte
Nesta vida amargurada!

Como tu amas a terra
Que tua raiz encerra,
Com profunda discrição;
Também amei da donzela
Sua imagem meiga e bela,
Que alentava o coração.

Como ao brilho purpurino
Do crepúsculo matutino
Da manhã o doce albor;
Também amei com loucura
Ess'alma toda ternura
Dei-lhe todo o meu amor!

Amei!. .. mas negra traição
Perverteu o coração
Dessa imagem da candura!
Sofri então dor cruel,
Sorvi da desgraça o fel,
Sorvi tragos d'amargura!
........................
Adeus, palmeira! ao cantor
Guarda o segredo de amor;
Sim, cala os segredos meus!
Não reveles o meu canto,
Esconde em ti o meu pranto
Adeus, ó palmeira!. .. adeus!
________
in A Marmota Fluminense,6 janeiro 1855

Ela
Nunca vi, - não sei se existe
Uma deidade tão bela,
Que tenha uns olhos brilhantes
Como são os olhos dela!

F. G. Braga

Seus olhos que· brilham tanto,
Que prendem tão doce encanto,
Que prendem um casto amor
Onde com rara beleza,
Se esmerou a natureza
Com meiguice e com primor.
Suas faces purpurinas
De rubras cores divinas
De mago brilho e condão;
Meigas faces que harmonia
Inspira em doce poesia
Ao meu terno coração!
Sua boca meiga e breve,
Onde um sorriso de leve
Com doçura se desliza,
Ornando purpúrea cor,
Celestes lábios de amor
Que com neve se harmoniza.
Com sua boca mimosa
Solta voz harmoniosa
Que inspira ardente paixão,
Dos lábios de Querubim
Eu quisera ouvir um - sim _
Pr'a alívio do coração!
Vem, ó anjo de candura,
Fazer a dita, a ventura
De minh'alma, sem vigor;
Donzela, vem dar-lhe alento,
Faz-lhe gozar teu portento,
"Dá-lhe um suspiro de amor!"
_____________
in A Marmota Fluminense,12 janeiro 1855

como ‘curiosidade’, vale ainda expor outro poema, muito peculiar, dessa fase -- no qual Machado evoca o 'byronismo' que influenciara e impregnara a poética de Álvares de Azevedo,para citar o exemplo mais manifesto e enfático, por extensão muito da poesia que se fazia mormente em São Paulo no início da década de 1850. o poema machadiano em questão é "Cognac".

Cognac!...

Vem, meu cognac, meu licor d'amores! ...
É longo o sono teu dentro do frasco;
Do teu ardor a inspiração brotando
O cérebro incendeia! ...
Da vida a insipidez gostoso adoças;
Mais vai um trago teu que mil grandezas;
Suave distração - da vida esmalte,
Quem há que te não ame?
Tomado com o café em fresca tarde
Derramas tanto ardor pelas entranhas,
Que o já provecto renascer-lhe sente
Da mocidade o fogo!
Cognac! - inspirador de ledos sonhos,
Excitante licor - de amor ardente!
Uma tua garrafa e o Dom Quixote,
É passatempo amável!
Que poeta que sou com teu auxílio!
Somente um trago teu m'inspira um verso;
O copo cheio o mais sonoro canto;
Todo o frasco um poema!
_________________
in A Marmota Fluminense,12 abril 1856

sábado, 9 de fevereiro de 2008

http://www.culturabrasil.pro.br/zip/desobedienciacivil.pdf.

um requisito de cidadania


o atual (benvindo) movimento de boicote ao pagamento do IPTU,promovido por associações de moradores da cidade do Rio de Janeiro, exemplifica um nítido processo de(benfazeja,sempre) desobediência civil.
Desobediência civil é um método de oposição e resistência pacífica a um poder político (seja o Estado ou não), geralmente visto como opressor pelos desobedientes. É um conceito formulado originalmente pelo norte- americano Henry David Thoreau , pioneiro em estabelecer a teoria relativa dessa prática em seu ensaio de 1849, originalmente intitulado "Resistência ao Governo Civil", que mais tarde reintitulou "Desobediência Civil"(no ensaio, Thoreau explicitou suas razões porque se recusara a pagar seus impostos, como um ato de protesto contra a escravidão e contra a Guerra Mexicana). A idéia predominante abrangida pelo ensaio era de não precisar "lutar fisicamente contra o governo, mas sim não apoiá-lo nem deixar que ele o apóie estando você contra ele" O ensaio exerceu uma grande influência sobre muitos praticantes da desobediência civil. No ensaio, A desobediência civil serviu como uma tática principal aos movimentos nacionalistas em antigas colonias da África e Ásia, antes de adquirirem a liberdade. O mais notável, Mahatma Gandhi, usou a desobediência civil como uma ferramenta anti colonialista. Martin Luther King, líder do movimento dos direitos civis dos Estados Unidos na década de 1960, também adotou as técnicas da desobediência civil e ativistas anti-guerra, tanto durante quanto depois da Guerra do Vietnã, também agiram igualmente.
A Desobediência Civil, de acordo com alguns teóricos juristas brasileiros e estrangeiros, é uma das formas de expressão do Direito de Resistência, sendo esta uma espécie de Direito de Exceção que, embora tenha cunho jurídico, não necessita de leis para garanti-lo, uma vez tratar-se de um meio de garantir outros direitos básicos; tem lugar quando as instituições públicas não estão cumprindo seu fiel papel e quando não existem outros remédios legais possíveis que garantam o exercício de direitos naturais, como a vida, a liberdade e a integridade física.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

o Carnaval e Machado


27 fevereiro 1889
Bons dias!
Ei-lo que chega... Carnaval à porta!... Diabo! aí vão palavras que dão idéia de um começo de recitativo ao piano; mas outras posteriores mostram claramente que estou falando em prosa; e se prosa quer dizer falta de dinheiro (em cartaginês, está claro) então é que falei como um Cícero.
Carnaval à porta. Já lhe ouço os guizos e tambores. Aí vêm os carros das idéias... Felizes idéias, que durante três dias andais de carro! No resto do ano ides a pé, ao sol e à chuva, ou ficais no tinteiro, que é ainda o melhor dos abrigos. Mas lá chegam os três dias, quero dizer os dois, porque o de meio não conta; lá vêm, e agora e a vez de alugar a berlinda, sair e passear.
Nem isso, ai de mim, amigas, nem esse gozo particular, único cronológico, marcado, combinado e acertado,me é dado saborear este ano. Não falo por causa da febre amarela; essa vai baixando. As outras febres são apenas companheiras. . . Não; não é essa a causa.
Talvez não saibam que eu tinha uma idéia e um plano. A idéia era uma cabeça de Boulanger, metade coroada de louros, metade forrada de lama. O plano era metê-la em um carro, e andar. E vede bem, vós que sois idéias, vede se o plano desta idéia era mau. Os que esperam do general alguma coisa, deviam aplaudir; os que não esperam nada, deviam patear; mas o provável é que aplaudissem todos, unicamente por este fato: porque era uma idéia.Mas a falta de dinheiro ( prosa, em língua púnica) não me permite pôr esta idéia na rua. Sem dinheiro, sem ânimo de o pedir a alguém, e, com certeza, sem ânimo de o pagar, estou reduzido ao papel de espectador.
Vou para a turbamulta das ruas e das janelas; perco-me no mar dos incógnitos.Já alguém me aconselhou que fosse vestido de tabelião. Redargüi que tabelião não traz idéia; e depois, não há diferença sensível entre o tabelião e o resto do universo. Disseram-me que, tanto há diferença, que chega a havê-la entre um tabelião e outro tabelião.
- Não leu o caso do tabelião que foi agora assassinado, não sei em que vila do interior? Foi assassinado diante de cinqüenta pessoas, de dia e na rua, sem perturbação da ordem pública. Veja se há de nunca acontecer coisa igual ao Cantanheda...
-Mas que é que fez o tabelião assassinado?
-É o que a notícia não diz, nem importa saber. Fez ou não fez aquela escritura. Casou com a sobrinha de um dissidente político. Chamou nariz de César à falta de nariz de alguma influência local. É a diferença dos tabeliães da roca e da cidade. Você passa pela Rua do Rosário, e contempla a gravidade de todos os notários daqui. Cada um à sua mesa, alguns de óculos, as pessoas entrando as cadeiras rolando, as escrituras começando. .. Não falam de política; não sabem nunca da queda dos ministérios, senão à tarde, nos bondes: e ouvem os partidários como os outorgantes, sem paixão, nem por um, nem por outro. Não é assim na roca.Vista-se você de tabelião da roca, com um tiro de garrucha varando-lhe as costelas.
-Mas como hei de significar o tiro?
-Isto agora é que é idéia; procure uma idéia. Há de haver uma idéia qualquer que significa um tiro. Leve à orelha uma pena, na mão uma escritura para mostrar que é tabelião; mas como é tabelião político, tem de exprimir a sua opinião política. E outra idéia Procure duas idéias, a da opinião e a do tiro.
Fiquei alvoroçado, o plano era melhor que o outro, mas esbarrava sempre na falta de dinheiro para a berlinda, e agora no tempo para arranjar as idéias. Estava nisto, quando o meu interlocutor me disse que ainda havia idéia melhor.
-Melhor?
-Vai ver: comemorar a tomada da Bastilha, antes de 14 de julho.
-Trivial.
-Vai ver se é trivial. Não se trata de reproduzir a Bastilha, o povo parisiense e o resto, não senhor. Trata-se de copiar São Fidélis . .
- Copiar São Fidélis?
- O povo de São Fidélis tomou agora a cadeia, destruiu-a, sem ficar porta, nem janela, nem preso, e declarou que não recebe o subdelegado que para lá mandaram. Compreende bem, que esta reprodução de 1789, em ponto pequeno, cá pelo bairro é uma boa idéia.
-Sim, senhor, é idéia... Mas então tenho de escolher entre a morte pública do tabelião e a tomada da cadeia! Se eu empregasse as duas?
-Eram duas idéias.
- Com umas brochadas de anarquia social, mental, moral, não sei mais qual?
- Isso então é que era um cacho de idéias... Falta-lhe só a berlinda.
-Falta-me prosa, que é como os soldados de Aníbal chamavam ao dinheiro. Uba sacá prosa nanupacatu. Em português: "Falta dinheiro aos heróis de Cartago para acabar com os romanos." Ao que respondia Aníbal: Tunga loló.
Em português:
Boas noites.