segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

um brinde machadiano


Soneto de Natal

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço no Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"


Machado de Assis

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O patrimonialismo, dos ‘donos do poder no Brasil, e Lima Barreto


A propósito dos 50 anos de publicação de uma das maiores obras ensaísticas da literatura brasileira – Os donos do poder, 1958– convém uma necessária ilação do patrimonialismo, primorosa e irretocavelmente conceituado,exposto e dissecado por Raymundo Faoro , com uma das mais importantes e significativas peças da vibrante obra de Lima Barreto.

Em essência, Lima Barreto sempre tratou mais de política do que qualquer outro tema. Ninguém como ele, em seu tempo, escreveu tanto sobre o tema e, por extensão, sobre questões sociais. Toda a obra barretiana desenvolve-se a partir e em torno de um tema nuclear: o poder e seus efeitos discricionários — o poder visto e descrito por ele como “o variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis, tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa inserção social”. Tinha a visão verticalizada, analisando desde as estruturas políticas como o governo e as ideologias, e as instituições culturais como a imprensa e a ciência, até os modelos determinantes do comportamento coletivo e do relacionamento cotidiano. Lima Barreto era, acima de tudo, um anti-patrimonialista.
Exemplares insofismáveis da veemente oposição de Lima Barreto à República, da ferrenha crítica aos governos republicanos , expressão do intransigente e obstinado repúdio para as coisas da política, aos políticos, aos conchavos partidários,às oligarquias , são , na obra barretiana, os “contos argelinos” que têm em seu cerne paródico a ascensão dos militares, com sua crescente participação na política, e o militarismo. E em outro viès de leitura e interpretação trazem em si a emblematização ficcional do patrimonialismo, contra o qual Lima Barreto se colocava na própria essência de sua ideologia.
Os “contos argelinos”, per se dotados de excepcional especificidade e acentuadas peculiaridades,constituem um conjunto único na obra ficcional de Lima Barreto , com características próprias de temática mas também muito especiais de teor, 'timbre', linguagem,estilo, ambiência. Sobretudo porque utilizam ,mais do que em quaisquer outros — e desse recurso muito se valeu em sua obra ficcional — a sátira , o sarcasmo e em especial um expressivo tom de alegoria,uma fina ironia alegórica que os percorre e faz se ‘entrecruzarem’, pioneiro exercício barretiano de intertextualidade a solicitar pois leitura em conjunto, cada um motivando novos aspectos interpretativos sobre o mundo ficcional neles desenhado.
Sob essa denominação, Lima Barreto escreveu 13 contos, publicados seqüencialmente sob numeração contínua, na revista Careta , do Rio de Janeiro , entre 1915 e 1922 . Comportam,cada um deles, no mise-em-scéne as maquinações do sistema de poder no Brasil -- vale dizer, manifestações do patrimonialismo -- desveladas e reveladas em ambiências de sultanatos,canatos — os estados brasileiros: “Al-Bandeirah” é São Paulo, “Al-Súgar” [açúcar] como Pernambuco, “Hbaya” sendo a Bahia — domínios de sultões, xeiques e personagens ‘orientalizados’ deliberadamente inspirados e relacionados a figuras políticas e estabelecendo claras referências a acontecimentos da época : o Brasil recriado como “o País de Al-Patak”, governado pelo “usurpador Abu-Al-Dhudut”, vale dizer Hermes da Fonseca, mais tarde por Basileus Epitaphio, isto é, Epitácio Pessoa ; palco das aventuras e desventuras de tipos secundários, como o “ministro da guerra, o polemarca Bem-Zuff Kalogheras e os modos desastrados de comandar o exército” , o “ministro dos negócios internos do reino, Cide Ércu Bem-Lânod” e seus “hábitos sacrílegos”, o “kaïa, chefe da polícia militar, Pessh Bem-Hoa” — os recursos à clef’ fazendo-se presentes em todos os Lima Barreto os teria concebido e criado -- com seus jogos de simulacros ,alegorias e paródias, e pela conotação que o âmbito de “sultões, quedivas, felás do Império Otomano” e da cultura muçulmana contêm -- como a própria expressão ficcional do patrimonialismo e seus fundamentos ideológicos e históricos.
[em 2009 publicarei “Lima Barreto e a política : os ‘contos argelinos' e outros textos recuperados]
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segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

em torno de Capitu e o exercício machadiano da dúvida.


a propósito da "Capitu" televisiva


Machado sempre cultivou a dúvida como instrumento de reflexão, e evitava o maniqueísmo de personagens por não aflorar os questionamentos. Uma das expressões de sua evolução literária foi a narração. O narrador machadiano muda. Existem as expressões cunhadas no estudo machadiano do narrador confiável e do narrador não-confiável; o narrador não-confiável se sobressaindo a partir da segunda fase, iniciada em 1880. Esse tipo de narrador é quem coloca dúvidas sobre as coisas. Nesse particular, costuma-se conferir importância desmesurada àquela grande questão do romance Dom Casmurro: Capitu traiu ou não traiu? – o que é absolutamente descartável e desprezível. E aqui peço licença para abrir um longo parênteses e me estender nesse assunto, que é importante para caracterizar um elemento fundamental , um dos fulcros capitais de toda a ficção machadiana . A tola discussão se Capitu traiu ou não traiu é o que menos -- na verdade,nada – importa :Machado faz de Dom Casmurro -- a meu juízo, a maior obra da literatura brasileira, anos-luz acima de qualquer outra, comparável às maiores obras-primas da literatura universal -- um transcendental exercício da dúvida, um ensaio sobre a dúvida, que de resto permeia toda sua ficção : evoca-se,nesse romance, o 'shakespearianismo' [sic : neologismo meu...] do ciúme e traição a la Otelo \Desdêmona, mas o que existe mesmo, assim entendo,é uma conotação 'hamletiana', vale dizer o 'ser ou não ser', que seria traduzido, sob a égide do exercício machadiano da dúvida,pelo 'traiu ou não traiu' inerente a Capitu -- aliás, a mais complexa e bem construída protagonista feminina da literatura brasileira , a suma da mulher machadiana criada e fomentada em toda sua ficção . Nesse ‘teor hamletiano’ reside toda a ficção machadiana, mormente na seara contística : é o 'fez\nãofez',''disse\não disse', ' saiu\não saiu', 'roubou\não roubou', 'recaiu\não recaiu' (caso do primoroso conto "Singular ocorrência"), e por aí vai. E o narrador é o agente dessas dúvidas .Examinado, ou lido, pela ótica, ou na órbita do ciúme --'oteliano': e Shakespeare foi a maior influência sobre Machado, suas referência e citação prediletas, mil vezes referenciado em contos e crônicas -- Capitu é julgada infiel pelo narrador Bentinho, um ciumento nato e hereditário,doentio,e dissimulado -- e aqui entra outra grande influência de Machado : Freud , pois fomenta a pseudo-traição de Capitu como processo de transferência de sua atração pela mulher de Escobar. Bentinho é o narrador da história . e aqui chegamos ao âmago da coisa, no âmbito da análise literária, que creio 'mata' a questão : o narrador-em –primeira- pessoa machadiano, mormente pós-1880 é um narrador não-confiável, que de resto Machado adotou em muitos dos textos ficcionais desse período -- justo os mais importantes e impactantes -- ao contrário do narrador confiável de antes, que se expressa pelo chamado narrador-em terceira-pessoa (embora Machado tenha também criado um ‘falso’ narrador-em-terceira-pessoa, mas isso faz parte de outra digressão) . Se o narrador de Dom Casmurro fosse este, distanciado e isento tanto quanto possível, haveria campo para se cogitar de Capitu infiel, adúltera , mas não : sendo em primeira-pessoa, nada a declarar, ou melhor nada a discutir. Dom Casmurro surgiu cerca de 3 ou 4 anos depois de Madame Bovary, de Flaubert, e de O primo Basilio, de Eça de Queiroz, dois 'parentes' sanguíneos ,literariamente, do romance de Machado, mas neles o narrador –em- terceira-pessoa não deixa dúvidas quanto à infidelidade de Ema Bovary e de Luisa , que são personagens 'chapados',definidos, mulheres praticantes nitidamente da infidelidade --não cabe aqui discutir quais os motivos que as levaram, ainda que saibamos ter sido o abandono por parte dos maridos ou a insatisfação com o casamento, etc : aliás, a infidelidade que Machado insinua em suas protagonistas, ao longo de sua ficção, é exatamente motivada ou gerada por esse comportamento dos homens, vide como exemplo emblemático disso o conto "Uma partida',neste livro que ora publico. Capitu não, não é nada 'chapada', é primorosamente construída como figura literária , sua grandeza ficcional é comparável á de Ana Karenina, e por aí vai.
Machado ao longo de sua ficção levantava ,incentivava, insuflava e cultuava todas essas dúvidas,praticava quase que permanentemente esse exercício, e as colocava no leitor. Então, ao mesmo tempo em que Machado moldava ,e mutava, sua trama e seus protagonistas, também moldava e mutava narradores e, conseqüentemente, leitores. Esse culto ao questionamento passou para o leitor, que começou a ler,ou pelo menos deveria ler – o que é mais do válido para o leitor de hoje, também -- as histórias de Machado de forma diferente. E nisso está plenamente demonstrada a genialidade de um autor : na evolução literária de Machado, alteram-se formas e ritmos narrativos (condimentados de ironia e humor,adquirem um tom mais coloquial e de certa forma intimista), transformam-se protagonistas, transmutam-se narradores e leitores. Mutações e transformações, dos protagonistas , que se manifestam também em transmutação do narrador e da voz narrativa e a criação de um ‘novo’ leitor, o leitor- modelo em contraponto ao leitor-empírico. Machado construiu em seu texto ,e por meio dele, um novo “leitor-modelo” — definido este conforme a conceituação de “leitor-modelo’ e “leitor-empírico” de Umberto Eco. Machado formou seus leitores recorrendo a estratégias temáticas,tramáticas,narrativas,estilísticas que ,como poucos, tinha e sabia usar -- entre essas estratégias ,as digressões,fragmentações narrativas,retardamentos de fatos anunciados ou prometidos ao leitor, metamorfoses de vozes narrativas, de forma e de linguagem .Machado descondicionou o leitor empírico do leitor-modelo, como ninguém na literatura brasileira, 'desconstruiu' essa relação, embora via de regra seja ela utilizada para que o leitor chegue aonde o autor deseja. Contudo, não satisfeito,na esteira desse 'dissídio' fez o leitor(o empírico) oscilar em "grave"-- que espera algo mais do que um 'simples texto', ou um 'puro romance', ou uma 'obra correta',um leitor que deseja reflexões de caráter mais realista-- e "frívolo"-- que espera impactos e emoções no texto ou na obra,um leitor de tipo romântico ; ora graves ora frívolos, esses leitores são por assim dizer 'transportados' para dentro dos romances e para a maioria dos contos pós-1880 : na obra machadiana, o leitor empírico é o ‘frívolo’, e ‘grave’ é o leitor-modelo. Até o final da década de 1870, os romances e contos , atendiam ao leitor empírico\frívolo , como aliás não poderia deixar de ser, condicionado e formado no âmbito do Romantismo e seus valores ; ao passo que o grave mantinha-se em ‘surdina’. As metamorfose ao longo do tempo, a partir da década de 1860, deram-se concomitantes : na medida da evolução literária machadiana,o leitor empírico\frívolo vai ‘cedendo espaço’ ao leitor-modelo (inclusive um novo,criado por Machado)\grave, ao mesmo tempo em Machado 'camufla' as diferenças existentes entre injunções ficcionais e reais ,incentiva o leitor a acreditar no fictício,ou embuste\artimanha, e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando um narrador de pouca,ou nenhuma, confiabilidade, uma espécie de 'narrador volúvel' que habita e conduz muitos de seus contos. E o leitor situa-se como um ‘espelho’ desse narrador.No fim , ainda que sob o controle do autor, ou do narrador cabe ao leitor,quase que exclusivamente, o acesso a unidade dentro da imensa e complexa obra ficcional de Machado – que nisso parece contrariar Nietzsche\Zaratustra : “Alguém que conhece o leitor, nada fará por ele...”
Vale lembrar que desde seu primeiro livro publicado,em 1861 , Queda que as mulheres têm para os tolos – que título instigante, provocador ! – Machado fomenta o enigma,o mistério, o disfarce,o subterfúgio: porque persiste a dúvida histórica de ser uma tradução ou uma criação original dele – de que não tenho a menor dúvida que seja(criação) : vejam a propósito minha edição crítica sobre esse livro. Cá entre nós e para nós, a versão de ser criação original é muito mais,digamos,’charmosa’, muito mais – não há dúvida alguma — ao estilo e espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado -- a par de outras igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado. Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’— e é esse teor ‘hamletiano’, a ligá-lo e referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores admirações e citação constante .Dele, Machado assimilou e incorporou à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ – presente e atuante em romances como Ressureição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos : binômio que remete a Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...— os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise, desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”.
O certo é que Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é , primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressureição (1872), e finalmente na opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.1899) . Queda que as mulheres têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia, de seu primeiro romance, e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora. Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” -- traduzida ou não por Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
Em Dom Casmurro a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês : Machado embebeu-se nas lições shakespeareanas e delas impregnou seu romance mais lido e estudado , conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo, e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose, inclusive, Machado como que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigente no âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX — proposta por especialista, “a ficção vista como nova fonte de teorização para a tradução”, a tradução aparecendo como fio condutor e meio operandi , quer tendo sido feita realmente em Queda que as mulheres têm para os tolos , quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro, e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida literária de Machado.Um elo a ligar ‘primeiras obras’ — a pioneira publicada, o exercício teatral inicial, o romance precursor — com aquela que é a síntese, corolário, consolidação. Elo que se alonga mais , visto por outros aspectos e ângulos: vai a Esaú e Jacó e atinge o corolário final em Memorial de Aires. Nos dois derradeiros trabalhos, Machado opta por um expediente ficcional — dentre os vários que utiliza ao longo de sua obra – atribuindo a um morto a autoria desses romances, deslocando-se para uma condição ambígua de editor e crítico de si mesmo, fingindo abrir mão da autoria de seu texto –- ambiguidade gerada e conduzida pelo mesmíssimo vetor que o fez, nos primórdios, assumir a também condição ambígua de ‘tradutor’ em Queda... e da mesma forma abrir mão da autoria de seu texto.


segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Os sertões: contemporâneo da posteridade


“O livro número um do Brasil”- que neste dezembro completa 106 anos de publicação -- diz muito de um drama da história nacional, e também de dramas dos tempos atuais.

“Só as obras bem escritas hão de passar à posteridade" :palavras lapidares escritas por um naturalista, o conde de Buffon (mais conhecido por uma frase que se tornou famosa :’le style c'est l'homme même’), ao tomar posse na Academia Francesa, em 1753.
Os sertões estão fadados à posteridade. A obra-prima de Euclides da Cunha, completa 106 anos celebrada por muitos, muitissimos motivos __ em especial por sua espantosa atualidade
Já se falou e escreveu __ vai-se falar e escrever sempre, ao que parece __ de sua linguagem difícil : o que não o impediu de ser o primeiro best-seller da história editorial brasileira , com três edições sucessivas no lançamento, a 2 de dezembro de 1902, (ou seja, cinco anos após o fim de Canudos), pela editora Laemmert, e de ser consensualmente considerado “o livro do Brasil”, “a obra número 1”. É bom lembrar que o “livro vingador” __ assim ele mesmo, Euclides da Cunha, o batizou, ao lançá-lo __ teve sua primeira edição (custeada com recursos próprios do autor) de 2 mil exemplares, rapidamente esgotados.
O que mais dizer de um livro que conta com mais de 30 edições em português, traduzida em 3 idiomas, em mais de 60 países__ em muitos deles foram feitas traduções sucessivas, em tentativa de contínuo aprimoramento. Mas, por outro lado, é equivocado pensar que sobre Os sertões tudo já foi dito, lido,ouvido e escrito : muito há o que comentar, muito o que refletir, muito até mesmo o que de críticas e ressalvas ouvir e ler, muito o que debater e meditar.
O que fez ,e faz, Os sertões tão célebre?
A consagração de Euclides e de sua obra se de um lado foi, à primeira vista, um fato relâmpago e inesperado __ um anônimo engenheiro e pouco conhecido jornalista ter se transformado no mais celebrado escritor do país, na época __ de outro está sedimentado por dois fatores básicos: 1) a aceitação de alguns conceitos –chave de Os sertões relacionava-se com um longo trabalho de imposição de novas idéias e concepções e de novos valores que vinham sendo gestados no país há pelo menos 30 anos __ o cientificismo da ‘geração 1870’; 2) a consagração-relâmpago foi impulsionada por alguns dos críticos literários mais importantes do país, José Verissimo, Araripe Juniorr e depois Silvio Romero__ além de Roquette-Pinto. Todos enalteceram , insistindo em signos de raridade na obra, mostrando o quanto texto, tessitura, forma, estrutura e conteúdo escapavam do comum, do conhecido.__ e os ensaios críticos que vieram em sequência, ao longo dos anos(e até hoje), enfatizam esse caráter de descobertas de verdades fundamentais para o destino do país, como “a tese dos dois Brasis”, a necessidade de olhar para o interior, para “o Brasil real”. O consenso era de que Os sertões não podia ser comparado a nenhum outro livro: era “uma bíblia permanentemente aberta para interpretações, vindas de diversas áreas : literatura, história, geografia, geologia, política,biografia,matemática, engenharia”.Tanto Verissimo como Araripe sublinhavam a idéia de totalidade encontrada no livro, resultado da soma da arte com a ciência, do épico com o trágico e da emoção com a razão. Euclides produzira uma obra científica, uma obra histórica, mantendo “a continuidade da emoção, sempre crescente, sempre variada, que sopra rija, de princípio a fim, no transcurso de 634 páginas, um livro fascinante, resultado de um conjunto de qualidades artísticas e de preparo científico”. Eis aí uma das vertentes do aspecto ‘ fundador’ da obra, tão mencionado pelos críticos literários ao longo do tempo.
Sim, pois na consagração de Os sertões menciona-se o aspecto “fundador” da obra. Em que consiste essa fundação ? por inovar , por renovar, por revolucionar.... por tornar-se enfim um clássico, em meio a elementos histórico-político-sociológicos e literário-culturais específicos de um período de fortes mudanças no país__ não apenas pela substituição da monarquia pela república, que seria aliás interpretado como um dos motivadores da ‘rebelião de Canudos’.
Euclides da Cunha, embora Os sertões fosse o seu primeiro livro, já havia atingido um alto estágio de amadurecimento, revelando nessa obra um perfeito domínio da língua e uma clara consciência da sua arte : Wilson Martins, por exemplo, reconhece que todos os elementos que formam o estilo euclidiano , e que em qualquer outro escritor” poderiam resultar em desastre”, salvam-se graças ao “poder transfigurador do grande artista da palavra que nele preexistia”. Alfredo Bosi sustenta que pode-se ler a obra principal de Euclides aproximando-a da prosa do seu tempo: naturalista no espírito, acadêmica no estilo”.Bosi argumenta ainda que Euclides não se teria tornado um dos nomes centrais da cultura brasileira pelo determinismo estreito das idéias nem pelo rebuscado da linguagem : Euclides implementou “uma consistência nova em nossas letras: o estatuto da contradição , expressa no livro em forma de opostos inconciliáveis”. Contradição e jogo de opostos, dicotomia tese/antítese que de resto constituem a essência mesma de toda a obra euclidiana __ os ‘contrastes e confrontos’(que deram título, aliás, a uma delas)
A questão de originalidade e autenticidade de Os sertões em última análise nada mais seria do que reflexo da personalidade de Euclides. Se o estilo é natural e original, “ele escreve o que vem de dentro, como sente”, nas palavras de José Verissimo, diferencia-se do escritor guiado apenas por sua subjetividade, pois examina a realidade exterior com as lentes da ciência, procurando o distanciamento __ outra das características apontadas pelos críticos: o ecletismo,o jogo de oposições, de tese e antítese( na melhor acepção da filosofia‘hegeliana’),de ‘contrastes e confrontos’, presente da primeira obra a todos os escritos posteriorede Euclides , em que trata de “assuntos mais opostos, psicologia, socialismo, religião, política, envoltos em problemas de história, pátria, imigração, povoamento, indústria, engenharia”, como chamou a atenção Araripe Junior.
A permanência e a atualidade de Os sertões se devem à veemência de sua denúncia, à sua pertinência histórica e à sua excelência literária, o que o sustenta como um marco fundamental da cultura brasileira. Por todas suas implicações, significações, interpretações e nuances, um livro enfim que veio afirmar novos valores e novos temas de literatura e ciência, obra com a rara qualidade de possibilitar aproximação plural e múltiplas leituras __ entre elas uma reinterpretação do Brasil, renovado com a descoberta dos sertões.
A modernidade de Os sertões __ mais: sua ‘eternidade’ __ está em ser entendido como verdadeiro fenômeno cultural, inserido no cenário de constituição e transformação do pensamento social sobre o Brasil.
Euclides da Cunha mostra-se sempre um intelectual preocupado em "pensar" o Brasil dentro de um momento histórico e complexo processo de formação de uma sociedade que fosse capaz de integrar os diversos grupos humanos (litoral e sertão) na definição da identidade nacional. Com toda justiça passou a ser reverenciado como o primeiro autor a escrever um ‘clássico’ no Brasil, uma obra de peso, científica, densa, consistente, vigorosa, que até então só podia ser encontrada em autores e livros estrangeiros. E ter um ‘clássico nacional’ adquiria valor especial : igualava-nos às nações civilizadas do mundo moderno da época.
A criação de Os sertões faz parte do rol dos ‘grandes momentos’ da história do Brasil, e não é por acaso que tenha atravessado um século como obra mater, ‘bíblia da nacionalidade’ e seja fadado à posteridade.

No lastro da posteridade, porque Os sertões, simbiose entre jornalismo,literatura,história, ensaismo, ciência, geografia, sociologia, antropologia, geologia, é obra de múltiplos atributos primordiais: factualidade, perenidade, atualidade.
Factualidade, por ser antes de tudo de uma obra jornalística (mas tão grandiosa que abriga outras características), livro de um jornalista, “o maior feito jornalístico das letras brasileiras ou o maior feito literário do jornalismo brasileiro”, ao retratar um dos episódios mais marcantes da história republicana, registrar o conflito “elite x povo”, “sertão x litoral”, “monarquia x república”, e sobretudo expor condições e situações sociais e culturais de contingentes populacionais, obra que é “uma epifania de brasilidade, uma fala do Brasil”.
Perenidade, em sendo um cânone literário, por constituir-se uma das obras fundadoras da nacionalidade, “a mais representativa da cultura brasileira de todas as épocas”, capaz de expressar importantes dilemas nacionais que extrapolam a própria narrativa da tragédia de Canudos; obra incluída entre os textos fundadores, fontes da historiografia literária : Euclides, ao lado de Manuel Bonfim e Gilberto Freyre, como um dos pioneiros grandes intérpretes do Brasil ; um dos textos básicos de “história e construção do pensamento brasileiro” , um acervo formado por obras de Gonçalves de Magalhães, Francisco Varnhagen, Marquês de Maricá, Joaquim Norberto de Souza e Silva , José do Patrocínio. Perenidade, ainda, por ser inovadora de uma literatura-denúncia.
Atualidade por “chamar a atenção para os excluídos”, denunciar uma questão social, expor mazelas e injustiças, a miséria, a fome, registrar “tendências conflituosas da sociedade brasileira”, enfocar “um Brasil injusto e dividido”, anotar a religiosidade, a crendice, o misticismo e o messianismo __ algo sempre latente no cenário político brasileiro (a eterna expectativa pelo ‘pai da Pátria’, pelo ‘salvador da Pátria’).
Sobretudo, a atualidade da obra deve-se à inquietação que seu caráter de denúncia provoca, um livro que oferece a oportunidade de ,a partir de Canudos, ter uma visão clara de questões de origens sociais.
Os sertões diz muito de um drama da história brasileira, e também de dramas dos tempos atuais.


quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O ‘Bruxo” e a “consciência negra"



Machado de Assis nunca deixou de exprimir seu mais absoluto horror à escravatura – fosse como funcionário da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura (órgão que tratava da política de terras e da aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871), na qual emitiu centenas de pareceres e réplicas no sentido de fazer cumprir a Lei e o preceito de liberdade para os filhos de escravos nascidos , fosse em muitos artigos e crônicas e,em especial, em romances e contos. Exatamente ao contrário da equivocada e distorcida interpretação --que ,como toda interpretação, é uma ‘leitura’,sujeita pois a melhor avaliação e até mesmo contestação --difundida ao longo dos anos,no sentido de não ter ele se integrado à causa abolicionista (sic) nem ter inserido o negro, ou a negritude,ou a condição do negro, em seus escritos, nem ter nenhum ‘herói negro’ entre os protagonistas de sua ficção, como se isso fornecesse convincente e taxativo certificado de consciência política , como se fosse elemento imprescindível na construção de romances e contos de qualidade. Os detratores teimam em julgar o homem com base nos raramente compreendidos e assimilados artifícios do ficcionista e do cronista – ainda mais quando este utiliza ad nauseam os recursos da sutileza, do subterfúgio, da dissimulação.
Machado fez da escravatura objeto crítico – por vezes desenhada pelas ‘entrelinhas’, por vezes direta, nada oblíqua ou dissimulada -- de crônicas, de poemas, de peças teatrais, de contos, além de torná-la pano de fundo de alguns romances, tanto os primeiros como aqueles pós-1880. Já é mais do que tempo de obrigatória releitura da equivocadissima omissão machadiana em relação à escravidão e às relações inter-raciais no Brasil do século XIX , de seu absurdamente propalado “aburguesamento” e de “denegação das origens” em sua obra.
A tese da ‘alienação’ machadiana desmorona ao se examinar o naipe de contos em que a “iníqua escravidão” é exibida criticamente, nas linhas e entrelinhas, com todos seus horrores ; é solapada ao se ler,por exemplo, as crônicas de 18.07.1864, de 04.04.1865,01.10.1876,15.06.1877,14.07.1878,07.11.1883,23.111885,30.08.1887,27.09.1887,11.05.1888,19.05.1888,20-21.05.1888,27.05.1888,01.06.1888,26.06.1888,14.05.1893,04.11.1897 ; perde vigor ao se deparar com os poemas “Sabina”(1875) e “13 de maio”(1888) , ou ao conhecer a crítica teatral à peça “Mãe”(1860), de José de Alencar, e o texto “O teatro de José de Alencar”(1866); além das referências,citações,comentários e verdadeiros libelos expostos na antológica novela Casa Velha(1885) e nos romances Ressureição (1872),Helena(176),Iaiá Garcia(1878),Memórias póstumas de Brás Cubas(1881), Quincas Borba(1891),Dom Casmurro(1899) – observando-se o quanto o processo histórico que resultou da lei de 1871, assim como suas conseqüências, encontra-se no cerne da concepção desses seis romances -- Esaú e Jacó(1904) e no derradeiro Memorial de Aires(1908) – cujo centenário de publicação deve constituir em imperdível oportunidade de ,primeiro, conhecer uma obra-prima, das maiores que a literatura brasileira já produziu , além de acompanhar a encenação da decadência e extinção da própria escravocracia, personalizada no Barão de Santa-Pia,sob uma narrativa revestida de contundente historicidade e , como o condizente grand finale da obra de um portentoso escritor, finalizada pela mensagem ressaltando o papel político da literatura como guardiã dos fatos passados e da memória coletiva de um país.
A crônica, até mesmo por sua própria natureza de dirigir-se diretamente ao público-leitor, na verdade foi a seara onde Machado melhor e mais clara e veementemente expressou sua implacável crítica ao escravagismo – mormente na série “Bons Dias!”, publicada na Gazeta de Notícias ininterruptamente de 05 abril de 1888 a 29 agosto de 1889 (per se como se sabe um período crucial da história brasileira, entre a concretização da Abolição e a emergência da República), de todos os conjuntos croniquescos de Machado aquele de mais contundente teor crítico,fosse à escravidão fosse ao novo regime , aquele que registra opiniões nunca expressadas por ele com tanta clareza e coerência, tanto que valeu-se ‘sensatamente’ do anonimato (somente descoberta autoria de Machado, por Galante de Souza, na década de 1950!),dada não só a explosiva complexidade do momento mas também ao risco,diante do delicado tema da república , que um funcionário público graduado da monarquia pudesse correr.
Em algumas delas, escritas com sua peculiar ironia ácida e cortante , evidencia-se a crítica machadiana à hipocrisia política, manifesta naqueles parlamentares que intitulavam-se abolicionistas mas votavam sempre a favor dos senhores – o que exibe,sob outro viés, a inquestionável atualidade de Machado [neste particular, aliás, convém saber – como ressalta o historiador José Murilo de Carvalho, in D. Pedro II,2007 – que os políticos de todos os partidos ,até mesmo os liberais e os republicanos, não se opunham à escravidão].
Na verdade, e sob o espectro mais geral, Machado foi um crítico contundente da sociedade e das instituições brasileiras, e escreveu muito sobre política , e até mesmo sobre economia.Tinha,sim senhor, opiniões políticas — era um monarquista liberal, não apoiava a República -- e é possível observar a política brasileira de sua época através de seu olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio) sentencia que pode -se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra de Machado : tanto na ficção quanto na não-ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e textos , utilizando uma série de elementos políticos -- escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura,aparelho policial, autocracia absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua escritura literária, de uma crítica da ideologia brasileira e de uma teoria política avançada, a qual no campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos especialistas. Há de se enfatizar ainda que, a par de outros aspectos, uma das grandes preocupações de Machado, uma espécie de linha-mestra, fulcro e fio condutor de sua produção não-ficcional centrava-se na questão da identidade nacional — preocupação expressa claramente nos ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura” (ainda em 1858), “Instinto de nacionalidade”(de 1873) e “Nova geração”(1879) e na essência de seus artigos e crônicas.
Machado criou crônicas nos mais diversos veículos, séries, formatos e disfarces, desde 1858, em O Paraíba (de Petrópolis), seguindo-se colaborações para o Correio Mercantil (1859-1864), para O Espelho (1859-60); para o Diário do Rio de Janeiro (1860-63: “Comentários da Semana”; 1864-67: “Ao Acaso”), O Futuro (1862-63), A Semana Ilustrada (1865-75: “Crônicas do Dr. Semana”,”Correio da Semana”, “Novidades da Semana” , “Pontos e Vírgulas”, “ Badaladas”), Ilustração Brasileira (1876-78: “Histórias de 15 dias”, “Histórias de 30 dias”), O Cruzeiro (1878: “Notas Semanais”), Revista Brasileira (1879), Gazeta de Notícias (1881-1900: “Balas de Estalo”, “Gazeta de Holanda”,“Bons Dias!” e “A Semana”) e para a Imprensa Acadêmica (1888)—com uma produção de 628 artigos.A par da quantidade, a explícita e intrínseca qualidade textual fizeram da crônica machadiana um referencial para os praticantes do gênero nos anos finais do século XIX e início do século XX (modelo que somente encontraria um diferencial em Lima Barreto, na década de 1910, criador este de uma novíssima linguagem na não-ficção e na ficção, numa crucial e histórica inflexão a moldar a própria linguagem literária brasileira por todo o século XX até os dias de hoje).Machado fez da crônica mais do que simples jornalismo, superior ao comum do gênero – haja vista o que Artur Azevedo sentenciou em artigo em O Álbum,janeiro 1893 : "(...) Atualmente escreve Machado de Assis, todos os domingos, na Gazeta de Notícias, uns artigos intitulados A Semana que noutro país mais literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística", a atestar o quanto dotou a crônica dos elementos de verdadeira literatura.
As crônicas machadianas possuem , em si, estrutura,forma e encadeamentos consistentes e complexos, além de plena interação com os contextos histórico, político,econômico, social,cultural,urbano sob os quais foram elaboradas : revelam cadeias de pensamento e reflexão em muitos aspectos, passagens e nuances intertextualizados, ou que viriam a se intertextualizar com elementos,ambiências e situações de romances e contos.
Em outro viés, justamente os recursos da ficção literária, sempre propícia a esse fim, foram os instrumentos que lhe permitiram expressar com nitidez seu total e visceral repúdio ao sistema escravocrata do Brasil do século XIX. Por meio de alguns de seus contos, é possível observar as relações inter-raciais de sua época através do olhar literário, abordando as tensas relações,inclusive as de ordem afetiva e sexual, entre os membros da família patriarcal típica do século XIX e seus criados negros e abrigando trama,ambiência, personagens e ‘ideologia’ inerentes à questão escravagista.
Importante notar que se o tema é pouco, ou apenas ‘tangencialmente’ e superficialmente tratado nas obras do período pré-Abolição, depois adquire tamanho vigor temático, tramático ,narrativo e de linguagem , que induzem a considerar uma espécie de ‘desforra’ de Machado quanto a uma questão que não pudera até então abordar como merecia, e como ele almejava. Com efeito, no período pós-1888,vale dizer já implementada a Abolição, as coisas podiam ser ditas mais clara e contundentemente, e a tal, Machado – com sua plena consciência histórica,política e ideológica -- não se furtou.
O primeiro dos contos desse naipe, “Frei Simão” - publicado originalmente no Jornal das Famílias em 1864 - se nas linhas narra uma história de amor,traçada em termos melodramáticos – um jovem de família rica que se apaixona pela criada,negra – traz as tinturas subjacentes do comentário machadiano ás relações entre indivíduos ,mais que de classes sociais, de etnias diferentes, e mais: a aparente simplicidade da narrativa embute um teor de modernidade (isso em 1864 !) expressa no expediente da fragmentação das memórias inéditas de Simão, a revelar uma história verdadeira, até então oculta nas linhas – como que significando a impossibilidade do autor ma em utilizar a linguagem adequada para exprimir o autoritarismo patriarcal do pai de Simão e a crueza\crueldade da condição do escravo(Helena).
“Virginius” – também publicado originalmente no Jornal das Famílias em 1864 - encarna com sutileza a dificuldade – quase impossibilidade – de expressão literária de tema tão delicado, mas exibe com todas as tintas a brutalidade e desumanidade do regime escravista, personificadas na violência e covardia de Carlos, ironicamente filho do pai de todos, um dono de escravos bondoso. Machado expõe com todas as letras e tintas a representação da crueldade inerente a relações inter-raciais de seu tempo—inclusive deixando implícito o entendimento do estupro como formas de escravidão.
“Mariana” abriga , de modo mais incisivo, o assunto escravidão – e de forma tão mais realista que veio a ser publicado em duas versões – a primeira, em 1871- no Jornal das Famílias - na qual Machado utiliza muito mais contundência no tratamento do tema “perigoso” que nas obras anteriores ( afinal, o ano é o da publicação da Lei do Ventre Livre, a permitir talvez que algo mais pudesse ser dito...), mas aliado,esse tom mais contundente, à contumaz estratégia da dissimulação,aqui temperada de sarcasmo: o homem branco tem a palavra para ele mesmo expor sua insensibilidade e descaso com relação aos negros, o autor (Machado) denunciando explicitamente a má consciência dos senhores no momento de uma crise “histórica” que mobilizava toda a nação – inclusive a protagonista,assim como a personagem Elisa, personificando a submissão tanto feminina quanto étnica ; a segunda versão, em 1891 – na Gazeta de Notícias - com o texto totalmente reelaborado , expressando a maior liberdade então concedida a se escrever sobre o assunto (além do fato de ser publicado no jornal que ,por todos os motivos e aspectos, permitia maior ‘autonomia’ a Machado).
“O caso da vara”, publicado originalmente na Gazeta de Notícias , 1891, não fosse por seus próprios atributos temáticos e narrativos , constitui uma das obras mais notáveis , porque emerge com toda sua contundência em um período digamos pouco fecundo de produção contística de Machado. O conto pode ser lido não só como uma história irônica, cuidadosamente estruturada, de conflitos internos versus ações reais – que são vencidas pela torrente dos seus pensamentos, medos, crueldades e dramas, conduzindo a narrativa até um desfecho enigmático-- mas sobretudo como uma perturbadora peça dramática com todas as características da tragédia clássica. Tal como esta, evidencia-se a predileção de Machado de Assis por situações universais que revelam a feição trágico-cômica do comportamento humano, numa narrativa carregada de implicações morais.
“Pai contra mãe”, não publicado em periódico mas sim na coletânea Relíquias de casa velha,1906, abre-se com palavras extremamente frias e objetivas, raríssimas vezes empregadas por Machado em sua ficção. É um dos contos mais perturbadores, um grito contra a escravatura, ainda que – e nisso reside sua profunda dramaticidade – seja um grito abafado, amordaçado, mas carregado de emoção : um tipo de emoção estritamente pessoal,diga-se, porquanto parece Machado intentar nele exprimir sua própria condição original de mestiço , uma dramática ambiguidade que se o perseguiu,segundo algumas interpretações, durante toda a vida , quase nunca transpareceu na obra literária.
É um texto arrepiante na sua violência controlada, na sua perfeita construção da estrutura literária ; quer ensinar-nos o que é o horror da escravatura, mas para chegar a isso utiliza o que há de mais chocante para o leitor: a apresentação do horror como ‘normalidade’.Machado avisa desde o primeiro parágrafo, quando interrompe a fria descrição dos instrumentos de tortura, para se dirigir diretamente ao leitor e lembrar que “era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco e alguma vez o cruel.”
Ficção e realidade, ficção e história, ficção e sociedade brasileira constituem fulcros sempre presentes na obra machadiana.Em boa parte de sua ficção e da não-ficção Machado oferece ao leitor uma interpretação satírica, por vezes alegórica, desnudando mitos e certezas, aparências e disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu olhar ,por vezes direto e transparente,por vezes machadianamente oblíquo e dissimulado, feito testemunho incomparável sobre a vida política e institucional brasileira do século XIX.

domingo, 16 de novembro de 2008

Os literatos e a República


a propósito deste 15 novembro 2008

O declínio do Império coincidiu com a penetração dos estilos pós-românticos no Brasil — simultâneos à ascensão das classes médias urbanas por força do processo da gradativa metamorfose de uma sociedade rural para urbana. Em sua luta pela aquisição de status, segmentos da classe média passaram a prestigiar valores essencialmente burgueses, como o saber e agilidade intelectual — até porque já era uma tradição do próprio Ocidente, como um todo,a valorização de virtudes intelectuais e o escritor objeto de grande consideração social e posição cobiçada por muitos filhos da classe média. Um exame da origem social de nossos escritores no período pós-romântico revela que a porcentagem de autores saídos da classe média, até mesmo da baixa classe média, aumentou consideravelmente com relação à era romântica — caso de José de Alencar, Gonçalves Dias, Álvares Azevedo, Fagundes Varela, Castro Alves. Em contrapartida, Machado de Assis, Aluisio de Azevedo, Cruz e Souza, Olavo Bilac, Silvio Romero e Lima Barreto vinham todos de lares remediados : para estes, uma vitória nas letras equivalia a uma promoção social.
A valorização da inteligência ,a par de possibilitar uma “profissionalização da literatura” , resultou na inevitável elevação do ‘nível mental da literatura’: a cultura geral dos pós-românticos é bem mais ampla que a de seus predecessores. Munidos de informação filosófica (e científica) bem maior, os autores desse período deram um sentido universalista à literatura brasileira, ‘desprovincianizando’ o nacionalismo romântico de antes. Esse universalismo, que atingiu o auge exatamente no Pré-modernismo, 1900-22, se de um lado contribuiu para assegurar à literatura brasileira um certo “tom lúcido e adulto” — para muitos,lastreado em influências estrangeiras e carregado de estrangeirismos temáticos e estilísticos — de outro tornou-se impermeável à captação autêntica da realidade nacional : e nisso,Lima Barreto foi um dos dois escritores (o outro, Augusto dos Anjos) a conseguir escapar a esse processo de desnacionalização da literatura brasileira.Isso explica, em parte, sua postura ‘marginal’, crítica, opositora, rebelde, e sua literatura de ‘contestação’.
Ao mesmo tempo, a conjunção dessa impermeabilidade à realidade com o universalismo ante-modernista fizeram comprometer, na imensa maioria dos autores , a vitalidade do estilo, em troca do emprego de linguagem, digamos, ‘ornamental’. No contexto republicano, recém-vigorante, a ascensão da classe média pela literatura, por via do domínio das técnicas e formas de expressão, fez com que o escritor absorvesse valores aristocráticos, desprovidos de visão crítica do real — exceção (outra vez ) a Lima Barreto, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, Aluisio de Azevedo: daí a torrente do parnasianismo, com seu jogo de estilo e excessos formais — de que Coelho Neto, por excelência, é “epígono prolífico e corifeu de uma literatura comportada , conservadora, acadêmica” [e contra o que o modernismo reagiu, vitoriosamente...], como sentenciou o crítico literário e ensaísta José Guilherme Merquior .
O certo é que o advento da República e a chegada do século XX , “o século da modernização e do progresso”, como se propalou à época, trouxeram novas formas e modos de o escritor se relacionar com a literatura, sob um processo algo ‘compulsório’ de aburguesamento e ‘mundanismo’ — de resto, condizentes com o ‘espírito geral’ que regia o sistema republicano que se pretendia implementar — decorrentes do esvaziamento do filão combatente contra a escravidão e a monarquia. E foi, paradoxalmente, o processo de arrivismo bursátil e de especulação mercantil -- gerando incremento de vultosos recursos , provocando a modernização da cidade, urdindo o que se denominou Regeneração, construindo a imagem de “uma sociedade ilustre e elevada” -- que propiciou aos intelectuais malogrados uma espécie de atavio : passaram a ser vistos pela sociedade como ‘símbolos de ilustração’, ‘expoentes da cultura’, propiciando, entre outros aspectos, o desenvolvimento do ‘novo jornalismo’, ao qual os literatos se entregaram de corpo e alma .
A adesão maciça dos escritores ao jornalismo, exercendo inevitavelmente efeitos negativos sobre a criação artística — falou-se em “vazio de idéias”-- obrigou os escritores a uma redefinição de suas posições intelectuais e uma clivagem em seu universo social. Deflagrava-se com todas as letras e tintas a belle époque cultural, com o conseqüente processo de banalização e neutralização da força cultural da literatura, o intelectual descaracterizado e ‘dissolvido’ em meio a sociedade, as facilidades da nova vida social tendentes a extinguir o engajamento dos intelectuais que fizeram a República. O novo espírito “agitado e trêfego” que tomou conta da cidade produziu “o recolhimento dos autores em estéticas e poéticas evasivas”, no entender de José Veríssimo, os intelectuais irreversivelmente assimilados pela nova sociedade construída pela República abrindo espaços para a mercantilização e banalização da própria literatura – vista agora como “o sorriso da sociedade”... Entrou-se de cheio no espírito mundano da belle époque, atingindo seu auge na primeira década do século.
A literatura típica da belle époque,porém, era estéril em termos nacionais,ainda que seu modelo cosmopolita europeu se coadunasse com a própria fachada da época: era uma literatura articulada com o modo de vida das elites urbanas europeizadas,fomentador do consumo, do excesso,da sensualidade,do aristocratismo; de extrema superficialidade e caráter preciosístico , uma coligação de alta sociedade e alta cultura. Nesse aspecto, Lima Barreto tinha a chave para entender e interpretar o Rio de 1900 : o bovarismo , que apontava para as fantasias centrais que compunham o significado dessa época.[Lima Barreto -- para quem o bovarismo era uma atitude mistificatória típica da nova elite, extremamente prejudicial para o país, “o poder partilhado no homem de se conceber outro que não é, o afastamento entre o indivíduo real e o imaginário,entre o que é e o que acredita ser” -- aplicou esse conceito tanto literariamente – no romance Triste fim de Policarpo Quaresma e nos contos “A biblioteca”, “Lívia” e “Na janela” aparece como a própria essência dos textos – quanto socialmente : segundo ele, a República estava toda imersa em atitudes bovaristas e ,pior, os próprios intelectuais, teoricamente dotados de maior capacidade e descortínuo crítico, mergulharam desde o início numa militância ufanista,destemperada, de otimismo ingênuo ; e esse ufanismo bovarista era uma forma terrível de se alienar dos graves problemas do país.]
Todo esse processo, por uma razão ou outra , trouxe a necessidade de adesão quase maciça dos literatos, a par das novas formas e modos de praticar a literatura, ao jornalismo — que se constituiu no fenômeno cultural mais marcante da virada do século XIX para XX. O significativo desenvolvimento dos meios técnicos da imprensa, iniciado na verdade em meados do século XIX, permitiria o crescimento e melhoria qualitativa dos jornais e o nascimento de muitas revistas ilustradas — ambos incluindo matérias literárias.
Por essa época, tanto os jornais como as revistas buscaram mais intensa e concretamente atingir a classe média urbana que então ia se formando e consolidando com o advento da República. Jornais e revistas, além do compromisso de informar e divertir, estavam engajadas num movimento de ‘democratização’ cultural : periódicos como Gazeta de Notícias, Diário do Rio de Janeiro,O Paiz, Diário Mercantil ,Correio da Manhã, Jornal do Commercio,Jornal do Brasil, Rio-Jornal, A.B.C. e as revistas O Malho , Revista da Semana, Kosmos, A Renascença , FonFon! ,Revista Contemporânea (essas duas caracterizadas como “simbolistas”), Careta , Ilustração Brasileira, A Cigarra , Revista do Brasil, Dom Quixote, Paratodos, O Cruzeiro, incluíam muita matéria cultural, como reportagens sobre exposições de artes plásticas, crítica literária, música, contos, crônicas, poesia, teatro e cinema . Quase todas as revistas não conseguiram sobreviver por muito tempo e terem vida longa — exceção apenas a FonFon! e a Careta, que chegaram , não ininterruptamente, até à década de 1970.
A maioria dos jornais e revistas (tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo) acolhia ,e pagava , colaboração literária , o que propiciou a escritores e literatos terem publicados seus trabalhos e ter uma fonte de recursos — para muitos, a única — e um chamado “second métier” condigno. Vale registrar que a imprensa propiciou a mudança para a metrópole de muitos intelectuais que não logravam realizar-se literariamente em suas cidades e regiões de origem : este, aliás, foi o caso de Coelho Neto, oriundo do Maranhão.
A rigor, quer no âmbito do jornalismo quer (mormente) da literatura, os escritores, sob pena de caírem em ostracismo cultural e profissional e financeiro,tiveram de em maior ou menor grau se submeter à preferência ou gosto dos leitores da época : a necessidade de se expressaram no mesmo diapasão da cidade contagiada pelos anseios de modernização e marcada pela ânsia do enriquecimento rápido fizeram-no adotar estilo, linguagem , forma e conteúdo mais superficiais e mesmo descartáveis, “adequados ao gosto do consumidor pequeno-burguês formado pela República”. E nisso, Coelho Neto parecia “talhado como ninguém”, comenta Alfredo Bosi,”para polarizar as características do gosto que se atribui ao leitor médio da Primeira República, um leitor que julga amar a realidade quando em verdade não procura senão as suas aparências menos triviais ou menos trivialmente apresentadas; um leitor que se compraz na superfície e no virtuosismo, um leitor em suma fundamentalmente hedonista. As qualidades de Coelho Neto ajustavam-lhe como a mão e a luva”.
Com o tempo, gradativamente,os jornais foram adquirindo um caráter cada vez menos doutrinário — que privilegiava a publicação de artigos e editoriais de opinião — e mais ‘informativo’, a favor do noticiário e da reportagem: incrementavam-se as notícias de polícia (que antes não mereciam mais do que algumas linhas) : surgia o noticiário esportivo, até então inexistente, exatamente para servir e atender o gosto do público que então começava a ser ‘conquistado’ pelos esportes em geral e pelo futebol em particular — tanto que propiciou a criação de semanários especializados : Sport Ilustrado, Época Sportiva, Sportmen.Com isso, determinou-se uma redução da colaboração estritamente literária dos escritores, em termos de contos, novelas, poesia — embora continuasse intensa a explícita colaboração em crônicas e artigos ,que ajudou a promoção e prestígio de Machado de Assis, Olavo Bilac, José de Alencar, Artur Azevedo,Gonzaga Duque, Coelho Neto.
A exemplo de quase todos literatos,mas por outros vieses, foi também no jornalismo que Lima Barreto encontrou o meio, forma,veículo e habitat para exercer sua crítica. Mas sua atuação nos jornais ,no entanto, difere inteiramente da de seus contemporâneos da boemia dourada. Depois de esporádicas colaborações no jornal humorístico Tagarela e no semanário O Diabo, iniciara profissionalmente a vida jornalística no grande Correio da Manhã, em abril de 1905, aos 24 anos de idade, com uma série de reportagens sobre o desmonte do Morro do Castelo, que viria a dar origem à brilhante criação ficcional na novela Os subterrâneos do Morro do Castelo, somente publicado em livro no ano de 1999 (editora Dantes, Rio de Janeiro), porém seu amor pela liberdade e o horror em transigir com o poder já o tinham levado a organizar em 1907 – quando também era redator da Fon-Fon -- com o jornalista Alcides Maia, a revista Floreal, que circulou até 1912 ; ainda assim,é colaborador de Gazeta da Tarde em 1911, passa a cronista do Correio da Noite em 1914 - interrompendo no final de 1915 para passar à Careta , e a partir de 1916 também no semanário político A. B.C.; em 1917, intentou repetir o ideal de 10 anos antes , na Floreal, criando a revista Marginália, cujo objetivo seria “resguardar para os escritores, normalmente presos aos interesses e susceptibilidades das grandes empresas dos nossos quotidianos, revistas e magazines, independência e autonomia intelectual” . Além disso, em 1917 tornou-se persona non grata à grande imprensa, provocado pelas críticas contundentes que no recém-publicado Recordações do escrivão Isaias Caminha formula ao jornalismo como um todo, a certos jornalistas e principalmente ao então poderoso Edmundo Bittencourt, dono do Correio da Manhã — assumindo a partir daí integralmente sua preferência irrevogável pela imprensa dita ‘alternativa’, libertária, fora do alcance do poder exercido pelos donos dos grandes jornais.
Depois, mesmo doente, continuou a escrever na imprensa libertária : nos jornais A .B.C., Brás Cubas, Rio-Jornal, Hoje, O Debate ; nas revistas Careta ,Revista Contemporânea (uma revista simbolista), A Renovação .Colaborou também para jornais revolucionários do Rio de Janeiro – como a Voz do Trabalhador, órgão da Confederação Operária Brasileira, onde escrevia sob o pseudônimo de Isaias Caminha (foi nessa publicação, a propósito do 1 de maio de 1913, que Lima explicitou e fez pública sua adesão ao anarquismo) — de São Paulo e até do Rio Grande do Sul, como O Parafuso, A Lanterna (que se autodenominava “anarquista”) , O Cosmopolita, A Patuléia, A Luta. Todos esses formavam o conjunto de maior teor explícito de crítica política e social aos problemas do País e à República.
De um modo geral, frustrados a expectativa e o entusiasmo iniciais despertados pela República , os intelectuais desistiram da participação política ativa, militante, que muitos tiveram no advento do novo regime (vide capítulo “Lima Barreto e a política”) e passaram a se concentrar na literatura e em parte no jornalismo ‘croniquesco’,dedicando-se — com as raríssimas exceções de Lima Barreto e Euclides da Cunha — a produzir uma literatura de linguagem empolada, o ‘clássico’ calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos estilísticos — uma literatura impregnada de vocábulos garimpados, do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da frivolidade dominante. Uma literatura como “o sorriso da sociedade” de que fala Afrânio Peixoto : “A literatura é o sorriso da sociedade. Quando ela é feliz, a sociedade, o espírito se lhe compraz nas artes e, na arte literária, com ficção e com poesias, as mais graciosas expressões da imaginação(...)”.
Exemplo ilustrativo da frivolidade dominante ,proliferavam então as conferências literárias — no que, aliás, Coelho Neto teve atuação marcante : um dos mais famosos salões,em 1905, tinha lugar em sua casa, reunindo escritores, músicos, pintores, cantores, escultores; e eram dele,de Olavo Bilac, Medeiros e Albuquerque, as mais concorridas conferências , predominante a presença de senhoras e mocinhas para ouvirem palestras sobre “a água”, “o fogo”, “a noite”, “a tentação”, “o dia”, “a rua”, “a mão e o pé”
Coelho Neto era quem sobressaía como “a grande presença literária entre o crepúsculo do Romantismo e a Semana de 22. De um modo geral, os estudiosos da literatura brasileira concordam em que ninguém como Coelho Neto encarnou “mais dramaticamente” o problema da forma. Romântico por inclinação e formação natural, realista em algumas obras, simbolista em outras, sobretudo parnasiano na essência da maioria de seus escritos, a Coelho Neto na verdade nunca faltou capacidade criadora, mas ele próprio a relegou a segundo plano em sua obsessão da escrita de efeito, obsessão que o levou a procurar seguir todas as correntes literárias das épocas em que viveu: somente no fim da vida rebelou-se contra a moda e os modismos — quando estes, com o Modernismo, significou precisamente a reação contra ‘a idolatria pela forma’. Com tais ‘deficiências’ Coelho Neto morreu — sustenta José Veríssimo — “sem descobrir que querendo ser primitivo e heleno, colher motivos em lendas nórdicas e orientais, exprimir a natureza de sua terra e a gente contemporânea, fazendo isso tudo menos por curiosidade intelectual do que pelo prazer de ouvir soarem vocábulos exóticos ou onamotopaicos, só conseguia imprimir à sua obra um cunho falso de artificialismo”.
No lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante , destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, , Lima Barreto rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional, “instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa civilização”. Sustentava ele que fazia “uma literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época(...), por oposição às letras que, limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza”
Na contra-mão do estilo predominante, Lima Barreto impôs — com sua escrita simples, direta e objetiva , que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc — os prenúncios do Modernismo logo a seguir irrompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana. Não à toa despertou interesse e respeito por parte de Mario de Andrade, do alto de sua ‘autoridade’ de contista e teórico da construção ficcional, e levou p. ex. Sergio Milliet a escrever “(...) Lembro-me da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. Alguns entre nós, como Alcântara Machado, andavam obcecados .O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres” [a escrita barretiana, baseada na oralidade, contrária ao rebuscamento estéril que caracterizava a época, teve apenas uma única exceção : no conto “Como o ‘homem’ chegou”,incluído no apêndice da 1a. edição de Triste fim de Policarpo Quaresma ( Typ. Revista dos Tribunais, Rio de Janeiro, 1915), utiliza propositadamente uma linguagem ‘empolada’, por vezes cansativa, repetitiva — só que sob evidente intuito de ironia e sátira, com “uma função anti-retórica,ou seja, complicada de propósito parece indicar ela mesma que o melhor caminho é a simplicidade”, observa o crítico Antonio Arnoni Prado.
Assim, no pólo oposto ao aristocratismo da escrita de então , aos nefelibatas da linguagem, tinha-se em Lima Barreto “um registro da língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente nacional que prenunciava a linguagem modernista”, observa o historiador e ensaísta Nicolau Sevcenko. Segundo ele, “chama muito à atenção quando se lê a obra do Lima Barreto, a atualidade dessa obra não só em termos de linguagem — uma linguagem bastante acessível, bastante próxima até da oralidade — pela qual foi muito criticado pelos seus pares e intelectuais da época. Mas não só por essa linguagem mas também pelos temas de que ele trata e pelo modo como os trata . Pode-se ir além porque muitos problemas de Brasil que ele pensa naquela época, que ele critica, e que ele, enfim, desenvolve como reflexão, permanecem absolutamente atuais”
Convictamente decidido a romper com o figurino estilístico e literário vigente, sua escrita simples, direta e objetiva nada tinha a ver com a pompa, o floreio da retórica de então. É ele o anti-acadêmico por excelência, por isso criticado – mesmo entre os críticos admiradores de sua figura e de sua obra — pelas imperfeições de estilo, até pelos erros de gramática, o tom caricatural dos personagens. Mas que não impediu de ser, já conhecido e reconhecido por Triste fim de Policarpo Quaresma (publicado em 1915 em livro, Typ. Revista dos Tribunais, Rio de Janeiro : em 1911 aparecera em folhetins no Jornal do Commercio ) — e mais ainda pela a publicação das 2a. edição e 3a. edição (as primeiras feitas no Brasil) de Recordações do escrivão Isaias Caminha , digno de admiração e respeito, como um dos grandes autores da época, a par de ostentar de certa forma a imagem e o conceito de ‘escritor maldito’. Exemplos claros da literatura diferenciada e de alta qualidade que fazia, Lima Barreto foi agraciado com extremas consideração e atenção por parte de ninguém menos que Monteiro Lobato, solicitando a Lima primeiramente sua colaboração na Revista do Brasil
Marginalizado por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira que lhe foi contemporânea .Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida”9
Esse ideal, entendia “ser impossível cumprir sob a égide acadêmica coelhonetista” [de Coelho Neto], como expõe taxativamente na entrevista à A Época, em fevereiro de 1916 : “Vim para a literatura com todo o interesse e com toda coragem... Não quero ser deputado, não quero ser senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas fáceis, não lhes peço gloríolas, peço-lhes coisa sólida e duradoura... Eu abandonei tudo por elas; e a minha esperança é que elas vão me dar muita coisa...”
Justo sua visão crítica da literatura é que levou-o, entre outros fatores de ordem mais ‘filosófico-ideológica’, por assim dizer, a atacar intransigentemente os literatos da belle èpoque, inclusive procurando ridicularizá-los. Tanto nos romances e contos como nas crônicas e artigos, Lima Barreto exerceu sempre uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’ ,para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da sociedade, da política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público, penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas nada o fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da República.
A esperança mencionada por Lima Barreto, expresso naquela entrevista de fevereiro de 1916 , alimentava-se na verdade da recusa impassível em transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos, econômicos, sociais e culturais da República. E um desses temas era o esporte, emblematizante das aspirações elitistas e ‘antenadas com a modernidade’ das incipientes e crescentes camadas médias urbanas das primeiras décadas do século XX.Ainda mais o esporte ‘literatizado’ e ‘pincelada com ares da Grécia e imagens helenísticas’ por Olavo Bilac e Coelho Neto, e suas ‘ênfases higienistas dos corpos’.

Os literatos e a Repúbica

Embora não tenha produzido correntes ideológicas próprias ou novas concepções estéticas, a geração de intelectuais, solidamente arraigados nas teorias cientificistas de 1870, e todo o espírito progressista da época pareciam estar com a República, apoiada pela maçonaria, pelo positivismo e pelas correntes que se julgavam “desassombradas de preconceitos”, as idéias circulando mais livremente num ambiente que Evaristo de Moraes qualificou de “porre ideológico” , um verdadeiro mosaico no qual era predominante o liberalismo- manifestando-se especialmente como abolicionismo e republicanismo,entre os republicanos ‘históricos’ como Benjamin Constant, José do Patrocínio, Silva Jardim, Lopes Trovão, Alberto Sales, Joaquim Serra – mas que abrigava alguma voga de anarquismo em Elisio de Carvalho (até escrever o Five o’clock), Curvelo de Mendonça,Fabio Luz, Afonso Schmidt, simpatias explícitas ao socialismo em Martins Fontes, Olavo Bilac, anti-racismo declarado em Alberto Torres e Manuel Bonfim.
Sob os princípios genéricos do liberalismo, o grupo intelectual definira a tarefa que lhes cabia ; contribuir e propugnar por uma ampla, profunda ação conjunta para construir a nação — no campo da produção intelectual intensificaram estudos da realidade brasileira (as obras de Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim,Oliveira Vianna são documentos exemplares) e se empenharam no ‘criar um saber próprio sobre o Brasil’( enfatizava José Veríssimo em “Um estudioso pernambucano”, artigo na revista Kosmos,n.1,Rio de Janeiro,1907 ) — e remodelar e fortalecer o Estado (o que obviamente punha em confrontação a ambigüidade de sua ideologia baseada no liberalismo....)
Já no 15 de novembro de 1889 registraram sua total adesão : numeroso grupo de republicanos,junto com gente da rua, tendo à frente José do Patrocínio,Aníbal Falcão, João Clapp,Campos da Paz, Olavo Bilac, Luis Murat e Pardal Mallet - estes três pela primeira vez movidos à ação política concreta-- dirigiu-se à sede da Câmara, aos gritos de viva à República, e redigiram moção de apoio aos chefes da insurreição militar [vide manifesto 1]

O entusiasmo adesista dos intelectuais era generalizado; em outro manifesto, dirigido ao Governo Provisório instalado a 16 de novembro, assinado por alguns homens de letras em 22 de novembro [manifesto 2]:
No clamor pela ampliação da atuação do Estado sobre a sociedade aliavam-se a homens públicos, políticos, jornalistas, até mesmo cafeicultores e industriais ,e a esse grupo juntar-se-ia os grupos militares defensores e sequiosos de maior participação dos militares na política— o que mais tarde não causaria surpresas quando do progressivo e acentuado fortalecimento dos governos republicanos a partir de Floriano Peixoto.
As reformas que preconizavam, no entanto, perderam-se no processo político republicano. Na consolidação do novo regime ,dando-se por meio de um processo caótico e dramático, malograram-se seus esforços cientificistas ,reformadores, inovadores na criação daquele ‘saber sobre o brasil’. Cedo, muito cedo, já nos primeiros anos do século XX desiludiam-se : “Está tudo mudado: Abolição, República... Como isso mudou ! Então, de uns tempos para cá parece que essa gente está doida”, vaticina Isaias Caminha , sob a pena de Lima Barreto. José Veríssimo, em “Vida literária” (revista Kosmos, n. 7,1904) , descreve : “Todos
se presumiam e diziam republicanos,na crença ingênua de que a República, para eles palavra mágica que bastava à solução de problemas de cuja dificuldade e complexidade não desconfiavam sequer, não fosse na prática perfeitamente compatível com todos os males da organização social, cuja injustiça os revoltava”. Ainda em outubro de 1890, antes do primeiro aniversário do 15 de novembro, desencantava-se Silva Jardim, lamentando em carta a Rangel Pestana : “Comunico-lhe que parto para a Europa, a demorar-me o tempo preciso a que esta País atravesse o período revolucionário de ditadura tirânica e de anarquia...” . “Esta não é a República de meus sonhos”. lamentou-se Lopes Trovão, um dos próceres do movimento republicano. “Foi para isso então que fizeram a República ?”, protestou Farias Brito.
No campo político, até que mantiveram-se passivos diante da “ditadura tirânica” e aceitaram as coligações de Deodoro da Fonseca com as forças mais conservadoras do Brasil agrário, mas as esperanças esfacelaram-se diante da índole e prática repressoras do governo Floriano Peixoto , quando se deu um cisma profundo entre os literatos e alguns dos antigos entusiastas da República tiveram de fugir do Rio de Janeiro para evitar a prisão, como Olavo Bilac e Guimarães Passos. Passado o momento inicial de esperança, desfeito o caminho almejado da democratização do País prometida em comícios, conferências públicas,na imprensa radical, consolidada a vitória da ideologia reforçadora do poder oligárquico, derrotados,desapontaram-se as elites, desapontaram-se os trabalhadores e o povo, desapontaram-se os intelectuais , que desistiram da política militante e se concentraram na literatura,aceitando postos ,mesmo decorativos, na burocracia especialmente no Itamaraty de Rio Branco, que atraíra em torno de si, eficiente Rui Barbosa no trabalho de ‘cooptação’, o grupo de intelectuais, representantes da intelligentsia do novo regime , constituindo o que à época se auto- denominaram “República dos Conselheiros”.
Difícil de manter uma convivência pacífica entre a República política e a ‘Republica das letras’, agravado pela crescente insatisfação popular com o novo regime, exposta em agitações de rua, episódios violentos, revoltas e movimentos de protesto – e mais ainda com os novos costumes e práticas de desenfreada especulação financeira, a busca de enriquecimento a qualquer custo,o advento de um capitalismo predatório levando ao encilhamento, a escandalizar Taunay que via “uma degradação da alma nacional” 22 e a decepcionar republicanos ardorosos como Raul Pompéia ( “A república discute-se consubstanciada no Banco da República” ).A par do afastamento repressor promovido pelo poder, viram-se compelidos a submeter sua produção literária ao “valor do mercado” — (...) neste século de danação social, em que o Dinheiro logrou a tiara de pontífice ubíquo, para reinar discricionariamente sobre todas as coisas..”, registrava Augusto dos Anjos em palestra pública.
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texto extraído das obras “Os contos políticos de Lima Barreto : os ‘argelinos’ e outros textos” e “Lima Barreto e o futebol : um fla-flu literário com Coelho Neto”,ambas a publicar (s.ed.)

sábado, 18 de outubro de 2008

Por que esquecer deste centenário ?


Assim como Machado de Assis, Arthur Azevedo também morreu no ano de 1908, a 22 de outubro .

Multi-criador de contos, crônicas, poesias, traduções, revistas, comédias, paródias e críticas, não há como deixar de ser considerado como um dos maiores escritores brasileiros , não pela quantidade mas pela qualidade, com textos plenos de humor e ironia, escritos em estilo simples, despojado e fluente, a revelarem o cotidiano carioca do final do século XIX e em especial retratarem uma cidade e uma sociedade em plena mutação.
Nascido em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, vindo para o Rio de Janeiro em 1873, fez-se, jornalista, cronista, poeta, teatrólogo – a partir do grande êxito obtido por sua primeira peça teatral “Amor por anexins”,escrita aos 15 anos – e contista,dos melhores da literatura brasileira . No jornalismo , projetou-se como um prodigioso criador literário :fundou publicações literárias, como A Gazetinha, Vida Moderna e O Álbum ; colaborou em A Estação, ao lado de Machado de Assis
, e no jornal Novidades, junto com Alcindo Guanabara, Moreira Sampaio,Olavo Bilac e Coelho Neto ; a partir de 1879 dirigiu, com Lopes Cardoso, a Revista do Teatro. Foi um dos grandes defensores da abolição da escravatura, em seus ardorosos artigos de jornal, em cenas de peças dramáticas como “O liberato” e “A família Salazar”, esta proibida pela censura imperial e publicada mais tarde em volume, com o título de O escravocrata. Escreveu mais de quatro mil artigos sobre eventos artísticos, principalmente sobre teatro, nas seções que manteve em O País ("A Palestra"), no Diário de Notícias ("De Palanque"), em A Notícia (o folhetim "O Teatro"). Multiplicava-se em pseudônimos: Elói o herói, Gavroche, Petrônio, Cosimo, Juvenal, Dorante, Frivolino, Batista o trocista, e outros. O teatro de Arthur Azevedo -- cerca de uma centena de peças de vários gêneros e mais de 30 traduções e adaptações livres de peças francesas, encenadas em palcos nacionais e portugueses -- fixou como nenhum outro a vida e a sociedade cariocas, constituindo-se suas peças como verdadeiros documentários sobre a evolução da então capital brasileira. Como poeta, foi um dos representantes do Parnasianismo, na verdade apenas por questão de cronologia, por pertencer à geração de Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Bilac, pois era um poeta lírico, sentimental, com sonetos perfeitamente dentro da tradição romântica.
Importante assinalar o quanto Arthur Azevedo, assim como Machado, pressentiu e colocou em suas obras, quer contísticas quer teatrais quer croniquescas, as incisivas transformações pelas quais passava a sociedade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX -- transformações políticas,econômicas,urbanas, manifestas inclusive nos comportamentos sociais e na própria literatura , na qual a ‘ideologia’ romântica, característica do Romantismo expresso sobretudo por Macedo e Alencar , dava sinais de esgotamento , o eixo da vida social e mesmo conjugal deslocando-se para fora do lar, a rua tornando-se o ambiente primordial da narrativa e da temática quer ficcional quer não-ficcional. Tais mutações foram exemplarmente entrevistas e assimiladas por Arthur Azevedo em suas peças, suas crônicas e especificamente em seus contos, impondo em todos os textos,em maior ou menor grau, a transformação da perspectiva romântica em realista – no caso de Azevedo, condimentada esta por irresistíveis doses de humor,ironia e sátira..
Incansável ‘hiper-ativo’, Arthur Azevedo constituiu-se no tradutor perfeito de uma cidade não apenas em acelerada transformação mas em vertiginosa ebulição . E tem ele no leitor um interlocutor que também freqüenta as ruas e conhece o cenário, as ocorrências, os personagens, os enredos – e dessa interação origina-se, nasce, forma-se, consolida-se e sedimenta-se sua obra. Nela, o habitante da cidade é retratado em toda sua dimensão humana, inclusive em sua perplexidade e confusão ante os novos tempos e espaços que se abrem e se transmutam , ante as novas relações sociais e comportamentais que se estabelecem com a República.
Os textos ficcionais e não-ficcionais de Arthur Azevedo na verdade constituem um significativo painel da própria sociedade brasileira de seu tempo, envolvendo diversos gêneros e criando novas possibilidades de criação literária ; forneceu a matriz para uma espécie de contística carioca – os contos eram até mais populares que os de Machado de Assis na mesma época -- pois a caracterização dos personagens é sempre de forma a construir o perfil do habitante e da cidade : de suas páginas sai uma completa galeria dos tipos urbanos pitorescos. Seus contos são considerados os introdutores das classes médias na literatura nacional ; a oralidade tem papel preponderante nas narrativas -- todos seus escritos ,a rigor, se aproximam da representação de uma comédia, muitos dos contos são piadas transcritas (“Sou um contador de histórias e tenho que inventar um conto por semana”). Namoros, os casamentos arranjados por conveniência, os desentendimentos conjugais, as relações de família ou de amizade, as cerimônias festivas ou fúnebres, tudo o que se passava nas ruas ou nas casas lhe forneceu assunto para as histórias.
Embora escrevendo contos desde 1871, só em 1889 animou-se a reunir alguns deles no inaugural Contos possíveis, dedicado a Machado de Assis, que então era seu companheiro no Ministério da Viação (e um de seus mais severos,embora amigáveis, críticos). Seu bibliográfico contístico reúne Contos possíveis (1889); Contos fora da moda (1894); Contos efêmeros (1897); Contos em verso (1898); e postumamente Contos cariocas (1928); Vida alheia (1929); Histórias brejeiras (1962).
Contos efêmeros é a última coletânea de Arthur Azevedo publicada em vida - originalmente em 1897[Typographia C.R.C.] - e a única entre elas não reeditada. Mais de um século depois, a coletânea será publicada,por Edições Loyola\editora PUC-Rio, no início do ano de 2009 , com organização,estudo crítico e notas de minha lavra . Contos efêmeros é considerado um dos mais emblematicamente representativos conjuntos de contos de Arthur Azevedo e de sua verve ficcional carregada de humor,sátira e crítica : abriga 32 contos alguns deles tão populares como o celebrado “O plebiscito” (que faz parte de Contos fora da moda ): caso de “A dívida”, “O númbaro” [ambos em apêndice], “Sabina”, “A sorte grande”, “Confissão de uma noiva”, “No bonde”, “O Gomes”, “Vi-tó-zé-mé”, e outras dentre as saborosas histórias que o fecundo e bem-humorado Azevedo criou para a posteridade.
Sobre Contos efêmeros, assim se pronunciou Raul Pompéia, em O Farol, 1897 :“(...) variam os gêneros, sim, varia a maior ou menor importância ligada ao assunto em momento de escrever; mas, apesar disso, apesar das diferentes épocas a que são atribuídos, os contos, o processo comum da frase, a preferência dos assuntos, o capricho da surpresa final, o pensamento humorístico encerrado como moralidade da fábula, adotadas as atenções convenientes ao assunto, ora grave, ora alegre, ora rasgadamente burlesco, constituem, do princípio ao fim do livro, uma demonstração indiscutível de unidade genésica. [...] O que fica fora de dúvida é que os Contos efêmeros fazem um livro de primeira ordem, a mais interessante das leituras e um dos mais belos títulos de orgulho da atualidade literária."

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

elo comum


Qual o elemento comum entre a inqualificável baixaria de Marta Suplicy ,com relação a Gilberto Kassab , em São Paulo ,com insinuações sobre sua vida pessoal,que nada têm a ver com a política e sua atuação pública – só podia mesmo partir de uma pessoa como ela, antipática e cheia de empáfia -- e a distribuição de panfletos apócrifos e ofensivos,no Rio, a Fernando Gabeira, acusando-o de homossexual, drogado e ateu, tudo que ele não é nem poderia ser – além do uso absurdo propaganda política a favor do candidato Eduardo Paes nos telões do Maracanã ,que pertence ao Estado – só podia se dar mesmo num governo chefiado pelo camaleônico Sergio Cabral . qual o elo que os une ?Ora, o PT ,presente e atuante nas duas campanhas ,de Marta e de Eduardo Paes,e 'parceiro' de Cabral – só podia mesmo ser obra desse abominável partido e seus conhecidos métodos de atuação.

Mauro Rosso

domingo, 5 de outubro de 2008

Machado e a crise financeira :ontem, como hoje


Os recentes acontecimentos turbulentos, envolvendo bolsas de valores em boa parte do mundo, além de induzir a necessárias reflexões, remetem-nos a ninguém menos que Machado de Assis e seu olhar oblíquo e crítico sobre o mundo das finanças durante um período crucial da história brasileira.

Certamente será surpresa para muitos – mas nada que não seja peculiar a esse perspicaz analista de seu tempo, que além de vanguardista inaugurou uma nova maneira de relacionamento com os leitores, inclusive fazendo da crônica muito mais do que um registro pontual do cotidiano, transformando-a em um verdadeiro gênero literário .Machado de Assis,sim senhor, tratou de fatos e assuntos da economia e das finanças , como nenhum outro escritor em sua época. Muitos de seus escritos no período 1892-96, publicados na Gazeta de Notícias mostram como o notável escritor,cronista,autor e criador debruçou-se com seu olhar acurado,lúcido,crítico,irônico, satírico – por vezes claro, nítido e direto, por vezes obliquo, dissimulado, sutil – sobre as mazelas provocadas e advindas, nos tempos novos da República, de uma ciranda financeira e sua plêiade de emissões, crédito luxuriante, jogatina, falências em cadeia , sem deixar de passar pelo machadiano crivo, aguçado e satírico, quebras de bancos – a “quebra do Souto”,alusão à falência da Casa (bancária) A . F. Souto & Cia, em 1864 -- o “estouro” da bolsa de valores em 1867 , a crise financeira inerente à guerra do Paraguai (1865-70), os problemas da conjuntura econômica envolvendo companhias,bancos e entidades.
Não poderia ser de outra forma na crônica machadiana, que desde sempre – apesar de suas primordiais características de leveza de tom e teor, fluência textual e estilística (muito próxima da oralidade), ironia satírica e alegórica -- foi, ao longo do tempo, em maior ou menor grau, de um lado influenciada e de outro refletora do fluxo da história brasileira do século XIX. Destacada a presença marcante também nas crônicas como ocorre em sua obra ficcional, dos conhecidos elementos machadianos do disfarce, da dissimulação,do subterfúgio, da sutileza, dos significados ocultos postos como desafios ao leitor, por meio da “arte das transições” -- no unir tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado surpreendente,cujo trajeto Machado ‘ameniza’ para os leitor, primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral de circularidade muitas vezes nem percebida de todo. Mestre do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, Machado esconde ou disfarça uma parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir ; utiliza à exaustão a ‘estratégia da negação/(que é uma afirmação’ , as armadilhas estéticas típicas da ficção machadiana executadas também na crônica : quando diz que “política não é o assunto da crônica”, pode-se ter certeza que efetivamente o é, e ao sentenciar que “não sei finanças” (que se tornou mais comum, em suas crônicas a partir de 1893, do que a repetida expressão de antes “não entendo de política”), vale observar o quanto contundentemente comenta os fatos da área financeira, e o quanto as valoriza, a ponto de repetir “finanças e semana são a mesma coisa”.
Machado, como nenhum escritor de seu tempo, anteviu que a própria evolução da sociedade nacional, o processo transformador que o País atravessava – de resto, sintonizado com o mundo industrializado, capitalista e socialmente ‘darwinista’ – impunha mudanças, de toda ordem, também em sua criação literária : daí, a significativa ‘guinada’, para ao mesmo tempo expor e contrapor, adotar e minar, revelar as contradições : esta a razão primordial da inflexão machadiana que tanto estimula e insufla a historiografia e o pensamento crítico literários. Ao olhar machadiano nada escapou dos fatos ,temas e assuntos -- de qualquer ordem ou natureza -- de seu tempo, uma época sob todos os aspectos ebulitiva,tumultuada e marcante para a história brasileira , a partir da Abolição,seguida pelo advento da República e as novas formas e manifestações de um capitalismo emergente.A economia o obcecou em “A Semana”, conjunto seqüencial de crônicas escritas ininterruptamente de 1892 a 1900 na Gazeta de Notícias – embora já escrevesse sobre questões econômicas desde 1859, assim como no decorrer das décadas de 1860,1870 e 1880. Foi crítico vigoroso do Encilhamento -- denominação dada à “bolha” especulativa na bolsa de valores do Rio de Janeiro, iniciada no final do Império, impulsionada com a reforma monetária feita por Ruy Barbosa, e que tem sua decadência ‘dolorosa’ no anos posteriores à crise econômico-financeira de 1891 -- que o chocou profundamente,fazendo-o sentir-se desalentado, tedioso,desgostoso, diante do vale-tudo do dinheiro pelo dinheiro, das fortunas feitas ou desfeitas da noite para o dia e da orgia financeira que se multiplicava a partir do que ele denominava “ano terrível(1890-91)”.
Na seara econômica, no entanto, Machado não ficou só no repúdio ao Encilhamento : destilou sua ácida ironia crítica ao câmbio, aos juros, à dívida pública, aos bancos,à política financeira, aos impostos, às subvenções do Estado,às crises de abastecimento, aos próprios dilemas e polêmicas da modernização, as perspectivas de progresso anunciadas pela República traduzindo-se em frustração desses desígnios.Seu olhar irônico -- singularmente oblíquo, como lhe era peculiar -- alcança a explosão especulativa, o papel moeda, a ascensão da burguesia argentaria, as falcatruas financeiras, as fusões e liquidações bancárias, os mistérios do câmbio, a inflação. Como poucos literatos de seu tempo, via e antevia os primeiros passos do nascente capitalismo brasileiro como propulsor não de um processo de desenvolvimento econômico mas de endividamento generalizado. As crônicas machadianas referentes à economia trazem uma espécie de tese sobre o Brasil : examinadas em conjunto, formam um enredo de sátira ativa ao nítido capitalismo de Estado que vicejava no país, em que tudo emanava do governo , fosse imperial como até 1889, fosse republicano . Machado percebe nitidamente o quanto o capitalismo brasileiro da época era "uma idéia fora lugar", uma máscara sobre uma economia composta de concessões e privilégios todos emanados do Estado .Não é outro o sentido, por exemplo, da postura crítica,no caso notavelmente cética, com relação ao acionista – personagem central de uma alegoria sobre a atividade empresarial no Brasil do final do século XIX : o acionista machadiano não é similar ao de nossos dias, tampouco se preocupa com as boas práticas de governança corporativa ; para ele, não vale a pena participar de assembléias ou interessar-se pelos destinos da empresa , não há por que se envolver com rituais societários, se tudo a rigor era decidido pelo poder público. Tem plena consciência de que o Estado mandava tanto na economia e no país que qualquer outra forma de pensar o capitalismo brasileiro seria mero fingimento.
As crônicas de Machado que tratam de finanças e economia formam um elenco bastante significativo de sua produção não-ficcional : são 77 textos escritas sob o clamor crítico-satírico do olhar machadiano feito testemunho incomparável sobre a história brasileira nas quatro últimas décadas do século XIX.

[colaborei com o economista Gustavo Franco,apresentando as crônicas, na organização da coletânea Machado de Assis e a economia: o olhar oblíquo do acionista, publicado em 2007, contendo 39 textos ; preconizo uma obra sequencial com as demais 38 crônicas. preparo para o Senado Federal a antologia "Machado de Assis e a política:crônicas", com 381 textos, a se publicar no início de 2009]

domingo, 31 de agosto de 2008

edição histórica de Machado


Contos de Machado de Assis: relicários e raisonnés [org. de Mauro Rosso \\ed. PUC-Rio\Edições Loyola ;224 pp]
Histórica,porque crivada de elementos inéditos, presentes nos dois blocos que a compõem.
O primeiro traz o conto “Um para o outro”, até então desconhecido, somente publicado em 1879, nunca republicado e dado como perdido – recuperado depois de 6 anos de investigação, busca, pesquisa e recolha empreendidas por Rosso ; o conto “Três tesouros perdidos”,que a par de suas particularidades intrínsecas, possui a condição historiográfica de ser a primeira narrativa curta escrita por Machado, há exatos 150 anos ; o conto “Uma partida”, de 1892, nunca publicado na íntegra ; e mais o conto “Bagatela” ,também de publicação restrita ,sobre o qual ainda persiste a dúvida de tratar-se de uma tradução ou criação original de Machado.
O segundo bloco oferece o histórico bibliográfico-editorial de toda a produção contística machadiana, em matrizes especialmente – e nunca antes – construídas, organizadas sob distintos vieses, que se cruzam e se reportam umas às outras, remissivas entre si, a retratarem , para cada um dos contos, suas respectivas seqüências de publicação e concomitantemente aspectos problemáticos inerentes a edições levadas a efeito, ou não realizadas como deveriam ser, além de um também inédito conjunto matricial completo – até aqui não objeto de levantamento e catalogação integrais – dos pseudônimos,anônimos e criptônimos de Machado.Dois blocos que, interligados e intertextualizados, têm o objetivo maior de expor elementos para novos e profícuos estudos sobre a evolução literária machadiana e ao mesmo tempo mostrar o quanto textos importantes de sua safra contística não são suficientemente revelados,conhecidos e estudados -- realçando o muito ainda a se realizar.
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Mauro Rosso --professor e pesquisador de literatura brasileira ; ensaísta, escritor ; idealizador e organizador de coleções bibliográficas de literatura brasileira ; autor de Uma proposta para a prática pedagógica (2002); São Paulo , a cidade literária (2004) ; Cinco minutos e A Viuvinha, de José de Alencar : edição comentada (2005.), Lima Barreto e a política : os ‘argelinos e outros contos . com todas as probabilidades é um dos autores mais profícuos,individualmente, de produção textual referente a Machado de Assis : colaborador da coletânea, org. Gustavo Franco, Machado de Assis e a economia:o olhar oblíquo do acionista (2007), conclui a preparação , para o Senado Federal da antologia Machado de Assis e a política : crônicas [com 381 textos machadianos] ; tem pronta a edição de Queda que as mulheres têm para os tolos : Machado de Assis,o subterfúgio, o feminino, a transcendência literária [o primeiro livro de Machado publicado,1861, pleno de elementos significativos e anunciadores,prenunciadores e antecipadores do ficcionista que viria depois].
palestrante e conferencista sobre Machado de Assis[abordando temas como “Machado de Assis,o subterfúgio, o feminino, a transcendência literária”, “O conto machadiano”; “Machado de Assis cronista, o grande relator da vida brasileira”;“Interseções da ficção e da não-ficção em Machado de Assis”, “A evolução literária machadiana e o processo de inflexão”, “Narradores e narratários machadianos e os novos leitor-modelo e leitor-empírico criados” ”; “Machado de Assis e seu tempo: a História, a política, a economia, as questões sociais”, “A atualidade de Machado de Assis”, “Machado de Assis em chaves temáticas”];
e colaborador para revistas acadêmicas e sites de literatura, com ensaios, artigos e textos [como “Apontamentos para um estudo de Casa velha” , “Em tempo de eleições, é bom ler Machado”, “Quem tem medo do ‘feminismo’ de Machado de Assis ?”, “Machado, eterno enigma” , “As mulheres preferem os tolos ?”,“Machado de Assis cronista : o grande relator da vida brasileira”, “Machado de Assis e a política : nada oblíquo, nada dissimulado”, “ Os narradores,os narratários e os novos leitores criados por Machado”, “O conto em Machado de Assis”.]