sábado, 31 de agosto de 2013

A propósito da Bienal do Livro – e de feiras e festas literárias

A cada ano, quando da realização de Bienal do Livro – como agora, de 29.08 a 08.09, no Rio de Janeiro – reportamo-nos às discussões e análises que ora se intensificam e desdobram  com relação à Bienal do Livro -- cuja última edição,em São Paulo,2012, mostrou-se esvaziada,’fisicamente’  por parte e no seio do próprio meio editorial-livreiro, haja vista p. ex. grandes editoras estarem  ausentes,sob argumentação de "custos exorbitantes" e "parcos resultados", e conceitualmente por força do crescente  pensamento crítico quanto ao tradicional "modelão”,ou "formatão" da Bienal (assim são definidos pelos profissionais do ramo), ao mesmo tempo em que as atenções se voltam cada vez mais para os eventos regionais, essa profusão (benéfica,digo eu) de festas e feiras pelo país: Belém, Fortaleza,Recife,Ouro Preto, Paraty, Porto Alegre,Passo Fundo (estas duas últimas bastante tradicionais, já de longa data).
Com efeito, as  diversas festas e feiras literárias regionais e específicas que se multiplicam pelo país a cada ano, constituem-se  claramente em  geradores de  elementos de reflexão acerca de eventos literários e de novos cenários, ou novas vertentes dos cenários editorial e livreiro,por extensão literários, do país – a proliferação de eventos e feiras de livros contrapostos,  por suas estruturas,escopo,focos e enfoques, ‘conceitualmente’ à  Bienal e seu formato tradicional.
Via de regra, todos transcendem o modelo comum de eventos de exposição e venda de livros para se constituírem em notáveis cenáculos temáticos, expressos em painéis, palestras, breves simpósios, mesas-redondas,oficinas, depoimentos – muitos voltados para a leitura,seus fomento,estímulo e prática.
 Persiste o intento, entre editores, livreiros e profissionais do setor, de fortalecimento e incremento a esses eventos regionais, os quais -- tanto por suas próprias concepções como pelas efetivas programações realizadas até aqui --têm oferecido os elementos de uma presente reflexão conceitual sobre a Bienal : constituir-se menos em cenários de venda e exposição de livros e mais de  incentivo a leitura – certo é que nas últimas edições a Bienal tem, embora de modo incipiente e algo disperso, incrementar certos painéis,mesas-redondas, debates, até mesmo ligeiras oficinas acerca de temas específicos, reflexões sobre literatura, promoção da leitura,etc(nesta, no Rio de Janeiro, inaugura-se um “Salão de Negócios”, nos três primeiros dias, entre editores nacionais e estrangeiros e agentes literários, nos moldes do que ocorre, por exemplo, em Frankfurt.)
Mais uma vez, o momento é propício e oportuno  para reflexões,meditações amplas e profundas,reformulações de pensamentos e concepções,e sobretudo ações concretas de superação de incompreensões e distorções conceituais..

Em minha opinião, ainda vejo extrema validade na Bienal -- mesmo sob as formas de seus  'modelão,formatão'; sendo como sempre frequentada pelos contingentes daqueles parcos e raros leitores para os quais todas as pesquisas apontam a média de leitura de ...  2 livros por ano (!); ainda que com as características de ‘feirão’,cenários ‘circenses’, etc  -- evidentemente admitindo, e concordando plenamente, com a necessidade de certas alterações, ajustes, como em especial o incentivo maior a realização de oficinas,painéis,debates, etc. A validade que sustento tem em vista o chamado 'grande público', por força do comprovado fato de a Bienal representar a contrapartida real,concreta, a um tipo de comportamento desse '(não)leitor comum': sua relação com a livraria, tida e vista por ele como uma espécie de 'templo sagrado', espaço ‘sacralizado’ -- apesar de tudo em termos de atrativo,utilidade, conforto, etc que as livrarias oferecem hoje (café,poltronas,ambientes de leitura,etc) -- a inibi-lo e refrear sua possibilidade de chegar ao livro. Na Bienal, justamente por seu ‘modelão’ -- que de resto permite uma exposição mais abrangente quase completa, do conjunto dos acervos de editoras -- por seus cenários 'populares' e descontraídos[sic], propicia um sensível processo de dessacralização...

Bienal do Livro, feiras e festas literárias, essencialmente reportam ao livro e à leitura. Referi-me aos “(...) parcos e raros leitores para os quais todas as pesquisas apontam a média de leitura de ... 2 livros por ano[!]”: talvez alguns dos que aqui me lerem  venham a contra-argumentar que na verdade o índice de leitura do brasileiro,apontado pela recente pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” – e registrado no oportuno livro sob mesmo título(org.Zoara Failla;edição IPL e Imprensa Oficial.) – é na verdade de 4(quatro) livros por ano,e não 2. Sim, o número em ‘estado bruto’ é esse, mas excluídas as obras indicadas pelas escolas e aquelas compradas pelo governo para distribuição à rede escolar e bibliotecas, e considerada apenas a leitura espontânea chegamos à  lamentável  marca que registrei.

Em minha opinião, até mesmo por meu latente ceticismo com relação às estatísticas de modo geral, (já houve quem dissesse: “números são como biquínis femininos: mostram muito mas escondem o essencial...”), ainda mais as formuladas cá no Brasil, questiono esses cenários de um modo geral . Todos os levantamentos,pesquisas e computações retratam,reportam-se e registram, no tocante a índices de leitura, de produção, de vendas, de faturamento, etc, única e exclusivamente os dados inerentes a livros impressos – sem catalogar, até porque não existem ainda mecanismos para tal [por indolência e ‘inércia’,por certo relutância (sic) de editores,livreiros,etc , face a suas respectivas posturas diante do elemento a que vou me referir a seguir], esses mesmos  dados para os livros digitais e todas as formas e meios de leitura intensamente,e irreversivelmente, presentes hoje, nos tablets,iPads,iPhones,portais,sites, diversos links pela internet e demais plataformas digitais.
       Vou adiante para uma desafiadora conclusão: lê-se mais que as (incompletas) estatísticas apontam; e produz-se e vende-se muito mais hoje no Brasil, e em todas  faixas etárias e todos os tipos de textos.

O que quero dizer : o digital faz crescer os índices de leitura no Brasil ! quando sustento que lê-se muito mais no meio digital do que revelam as simples(e simplórias) estatísticas sobre vendas , e leitura, de e-books, se já não bastasse citar o quanto de textos,obras e narrativas literárias que se abrigam,e são consultadas e 'downlonizadas' por milhares de pessoas diariamente, nos portais e sites de literatura, nos blogs, nas redes sociais, na internet como um todo . Um exemplo marcante : a coletânea Geração subzero (org. Felipe Pena;editora Record.), reunindo textos veiculados exclusivamente no twitter -- com um subtítulo bastante significativo, “20 autores congelados pela crítica, mas adorados pelos leitores” – e entre eles alguns ‘campeões de vendas’ no mercado (formal)  livreiro, como  Thalita Rebouças, André Vianco. Outro exemplo :  a editora Intrínseca veiculou  diariamente, em seu twitter, o texto “Caixa preta”, da americana Jennifer Egan, escrito originalmente em bloquinhos de até 140 caracteres -- no que,aliás, Claudio Soares fora pioneiro, ao 'tuitar', ainda em 2006, fragmentada em posts, sua (excelente) obra Santos Dumont número 8. Além dos exemplos das (já) centenas de obras convertidas em versões de aplicativos para iPad e iPhone.
      As ações e realizações em blogs, no Facebook, no twitter , em diversas plataformas constituem exemplos claros, taxativos, do que vem sendo chamado de narrativas digitais, literatura eletrônica ou narrativas em rede, uma 'literatura eletrônica" caracterizada basicamente por interatividade, hipertextualidade,não- linearidade, multimídia -- contundente,e inquestionável prova de como o criar textos literários - ficcionais e não-ficcionais - construir narrativas,contar histórias vem sendo remodelado com e pelas novas tecnologias,gerando em especial novos,e nunca tão dinâmicos na história cultural,modos,meios e formas de leitura,conhecimento.aprendizado,entretenimento, lazer e de novos comportamentos. Vale dizer, obras e textos em mídias, veículos e suportes outros que não aqueles metódica e estatisticamente computados.  Tudo, enfim, a exigir profundas e sérias reflexões.
Então (sem chegar a ser uma conclusão, porquanto temos de avançar vigorosamente em todas as reflexões possíveis e praticar todas as ações necessárias), dispostos uns, subjacentes outros, encontram-se muitos elementos, tópicos e questões a permear indissoluvelmente a leitura,e inerente a ela, o livro, no país.Que a Bienal,as festas literárias regionais auspiciosamente em proliferação,  o meio e a mídia digital a proporem e propiciarem notáveis perspectivas de difusão da matéria literária e de circulação do conteúdo do livro e,por extensão das oportunidades,possibilidades e fomento da leitura, tudo isso seja efetivamente incorporado,crescente e consistentemente, na agenda de todos os setores e searas  educacional-cultural,editorial,livreira e mesmo social.




domingo, 11 de agosto de 2013

o 11 de Agosto de 1903

há 110 anos (1903) era fundado  o Centro Acadêmico XI de Agosto, na Faculdade de Direito de São Paulo  -- a qual, criada como Academia de Direito,no  largo de São Francisco, 1827, tornou-se historicamente  cenário de expressões pioneiras da  literatura da cidade e do  País.
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 A Academia de Direito na história literária de São Paulo e do Brasil
                                                  Há uma história da literatura que se projeta na cidade de São Paulo; e há uma história da cidade de São Paulo que se projeta na literatura”
                                                                                                  Antonio Candido.
    
      São Paulo, desde seus primórdios, sempre foi pólo fundamental da literatura brasileira.E a aura do pioneirismo a acompanha até hoje. A cidade , já natural e sequencialmente pioneira em diversas  manifestações literárias — desde os jesuítas,  fundadores de um colégio no Campos de Piratininga, rezada a missa de inauguração em  25 de janeiro de 1554; a elevação à categoria de Vila São Paulo de Piratininga deu-se em 1560) : não se pode  esquecer que o Diálogo sobre a conversão do gentio, de Manuel da Nóbrega, é o primeirissimo documento literário do Brasil, e o Auto da Pregação Universal, de José de Anchieta, a primeira peça encenatória)— o foi também , por exemplo, na precursora expressão poética do ‘indianismo’ no poema “Nênia” de Firmino Rodrigues Silva ;  nela  se deram ainda as realizações literárias iniciais de autores não paulistanos como José de Alencar, com seu “Como e por que me tornei romancista”, Castro Alves e seu “Navio negreiro”, Raimundo Corrêa com “Primavera”; nela ocorreu o primeiro movimento literário de vulto não apenas em relação à cidade mas ao próprio País ,em torno da Revista da Sociedade Filomática,em 1830,constituída na então recém-criada  Faculdade de Direito — a primeira manifestação de brasilidade literária por sua consciência de fins e coesão de esforços renovadores.
         Em São Paulo, talvez mais do que em qualquer. outra cidade brasileira na época, manifestou-se a  tese de Antonio  Candido segundo quem “não se pode, nem deve delimitar obras e autores pelo critério estrito do nascimento”, mas sim de acordo com “o critério mais certo e plausível da participação na vida social e cultural de uma localidade ou região e de participação e integração de valores comuns, construindo obras em torno deles, agindo em função de estímulos recíprocos, estabelecendo intercâmbios, para chegar a uma ‘comunicação’”. A cidade , por suas características próprias, marcou e foi sensivelmente marcada pelos que nela viveram e vivem, em grau e modo mais forte que as de seus lugares de origem. Por uma razão ou outra, a cidade  logo atraiu — ainda como estudantes— muitos daqueles que mais tarde se tornariam intelectuais e autores proeminentes no cenário literário-cultural brasileiro.
      A rigor, a literatura de São Paulo  passa a existir tal como  “sistema orgânico articulado, de escritores, obras e leitores, reciprocamente atuantes na formação de uma tradição literária” ,  segundo a conceituação de Antonio Candido, somente após a Independência (da mesma forma, aliás, que toda a literatura brasileira) e em especial depois da Faculdade de Direito — embora já nos primeiros tempos se manifestassem alguns elementos incipientes.O século XIX,  marca a primeira clivagem consistente de expressão literária. O retrato da História exibe a importância capital da Academia de Direito, criada em março de 1828 (posteriormente denominada Faculdade) na  convivência acadêmica que propiciou a formação de agrupamentos de estudantes, com idéias estéticas, manifestações literárias e expressões próprias — deflagrando um processo vigoroso de efervescência  intelectual que passou a agitar intensamente a pequena cidade de então,intensificado por volta de 1830, em torno da Revista da Sociedade Filomática,que viria a desempenhar papel decisivo na literatura em São Paulo: constituíram, a revista e seus membros, o primeiro movimento literário de vulto não apenas em relação à cidade mas ao próprio País .E foi essa comunidade estudantil que iria  receber em seu meio jovens impregnados de igual fervor , imbuídos do “entusiasmo da construção literária” — que foi a mola propulsora do Romantismo — como José de Alencar, Olavo Bilac, José Bonifácio o moço, Teófilo Dias, Aureliano Lessa, Raimundo Corrêa, Coelho Neto, vindos do Rio de Janeiro , de Minas Gerais, de outros lugares ,para cursar a faculdade.
         Ainda que se reconheça as limitações  quantitativa e qualitativa da produção desses estudantes, não há como negar que estabeleceram a literatura como atividade presente na comunidade paulistana. Deu-se por ela a primeira manifestação  de uma vertente poética considerada “o início da escola brasileira” : o indianismo, desenvolvido na obra de Gonçalves Dias, mas praticado pioneiramente no poema “Nênia”, de Firmino Rodrigues Silva, composto  entre as arcádias da Academia de Direito. E exercido ainda de forma pioneira em 1844, três anos antes do Primeiros cantos , de Gonçalves Dias, em “Cântico do tupi”, “Imprecação do índio” e “Prisioneiro índio”, do Barão de Paranapiacaba. Evidencia-se pois que quando Dias dominou o meio literário brasileiro, a poesia indianista ——base da obra do maranhense —— já existia e era praticada em São Paul(nada mais condizente com a realidade o fato de nela ter se manifestado as primeiras expressões do indianismo — pois a presença de índios, os tupiniquins, era  acentuada na cidade: eram eles trabalhadores braçais, operários de construção, transportadores, agricultores ; e até meados do século XIX falava-se tupi tanto quanto o português).
             Em 1845, com a fundação da Sociedade Epicuréia, consolida-se um processo de produção literária estudantil, embora de qualidade reduzida mas que viria a receber um influxo importante com a estadia de Castro Alves, em 1868 — foi em evento da Faculdade de Direito que declamou pela primeira vez o antológico  poema “Navio negreiro”__ quem incutiu um  teor social ao tipo de  obra, sobretudo poética, que se fazia então.Por essa época, o ‘corpo acadêmico’ já constitui um grupo social diferenciado da comunidade paulistana, a boemia e a literatura como manifestações mais características de um segmento com consciência grupal própria. Simultaneamente, outras agremiações vão surgindo, em alta efervescência literária e cultural : Ensaio Filosófico (1850), Ateneu Paulistano (1852), Associação Culto à Ciência (1857), Instituto Acadêmico (1858), Clube Literário (1859).Algumas delas  tiveram seu periódico, como a Revista mensal do Ensaio Filosófico Paulistano, o Ensaios literários do Ateneu Paulistano, jornais como Acaiaba, O Guaianá, A Academia, Íris.
             Artistas criadores e ao mesmo tempo críticos, nas  revistas e jornais , são os estudantes, entre os naturais da cidade e os migrantes e radicados, autores de denúncias e protestos contra a corrupção, a hipocrisia, as injustiças da sociedade . O ‘satanismo’ então constituiu a manifestação mais típica desse tipo de poeta-crítico-estudante  singular e proeminente no meio literário-cultural da São Paulo de meados do século XIX —— o satanismo como expressão de uma ideologia de “revolta espiritual, de negação de valores triviais, de intenso egocentrismo” , ingrediente de uma certa atmosfera de desvario que passa a permear a vida acadêmica da cidade . Por meio da obra ainda incipiente de Álvares de Azevedo , com sua típica tonalidade de melancolia, humor negro, sarcasmo, gosto da morte, é difundido por todo o País e atrai Fagundes Varela, Raimundo  Corrêa, Couto Magalhães. Na década de 1880 São Paulo acolhe também um grupo de jovens inflamados pelo verbo eloqüente de José Bonifácio o moço , uma geração empenhada numa luta em prol das idéias liberalistas e republicanas : Joaquim Nabuco,  Afonso Pena, Rodrigues Alves .
        Na passagem do século XIX para XX -- São Paulo então com cerca de 240 mil habitantes , sob radical mudança de perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes, passa a ser executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu,  de academicismo art-nouveau.
            Expressa-se sobretudo um certo aristocratismo intelectual,  que  agrada em cheio àquela burguesia ascendente : cristaliza-se pois um padrão estético-literário-cultural definido pela elite social, retirados do contingente inicial dos estudantes  os valores e parâmetros da produção literária. Constitui-se, numa sociedade  de classes, uma literatura ‘classista’, elitista, convencional, integrada aos padrões de refinamento da classe dominante.Acentuam-se então os teores de sentimentalismo, romantismo e nacionalismo — em  oposição ao ‘satanismo’ característico  da décadas de 1840/50, caracterizado em Álvares de Azevedo — privilegiando a ‘pureza’ da língua, a escrita correta, o ‘apuro’, a limpidez, a sonoridade, a ‘riqueza do vocabulário’. A literatura como degrau de ascensão social incorporou-se à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas classes dominantes.Contrária a essa vertente — personificada  pelos “corifeus da bela escrita”  Francisca  Julia, Vicente de Carvalho ,Julio Ribeiro, Silvio de Almeida ,Alcântara Machado, em São Paulo  (há de se considerar também  Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, em especial Juó Bananére, e anos depois João Antonio)  — que  adotaram e assumiram temática, ambientação, personagens, trama, linguagem e estilo eminentemente populares e ‘anti-aristocráticas’.
         A incorporação efetiva da literatura à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas  classes dominantes  foi primordial para a consecução do Modernismo de 1922 , que iria promover profunda renovação literária e cultural e exercer  forte e incontrolável influência no meio cultural, social e político de todo o País . Até porque expressaram um esforço para retirar à literatura o caráter de classe— dado pela elite social e cultural pós –1890 — transformando-a em bem comum a todos.Como o Romantismo, o Modernismo é de todas as correntes literárias brasileiras a que adquiriu tonalidades especificamente paulistanas. Antonio Candido sentencia que “se em São Paulo não tivesse havido os escritores do período clássico, do Naturalismo, do Parnasianismo, do Simbolismo, a literatura brasileira teria perdido um ou outro bom autor, mas nada de irremediável. Se tal acontecesse no Romantismo e no Modernismo, o Brasil ficaria mutilado de algumas de suas mais altas realizações artísticas, de  obras culminantes como Macário e Macunaíma, por exemplo. Dois momentos paulistanos, dois momentos em que a cidade se projeta sobre o País”.
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 Álvares de Azevedo


A ‘geração literária’ de Álvares de Azevedo é aquela que inaugura um novo ciclo na poesia brasileira — distinto,sentencia José Veríssimo, por “maior liberdade espiritual, e conseqüente mais largo conceito estético, quer no  pensamento geral, quer na sua aplicação à literatura,não mais o estreme idealismo católico dos primeiros românticos”. Os jovens poetas que desde 1850, ainda não publicados em livros, vinham versejando, abandonam e rejeitam o indianismo preponderante nas formas ficcionais, não absorvem o nacionalismo inerente à literatura romântica, são “mais subjetivos, mais pessoais, mais ocupados de si, dos seus amores, das suas paixões, dos seus sofrimentos e dissabores”.Os poetas da denominada segunda geração romântica,assevera Veríssimo, “possuíram em grau notável a primeira virtude de quem nos quer comover, a sinceridade : circunstâncias fortuitas de sua vida fizeram com que todos eles de fato vivessem a sua poesia ou sentissem realmente o que com ela exprimiram, talvez por isso não são artistas mas poetas, com o mínimo de artifício e o máximo de emoção”.
Em 1844, o jovem Manuel Antonio Álvares de Azevedo, nascido em São Paulo em 1831, depois de passar 11 anos no Rio de Janeiro, para onde sua família se mudara em 1833, e lá conviver  com a Corte,a alta sociedade imperial, a agitada vida social, regressava à cidade natal e de imediato revelou-se sua “incompatibilidade ” com a então modestíssima vila — o que iria caracterizar concretamente sua curta vida (morreu aos 21 anos, em 1852, no Rio de Janeiro: morte que privou o País, nas palavras de José Veríssimo, “daquele que seria talvez o máximo poeta brasileiro”) e  toda sua produção literária : ‘a poesia e a prosa  do spleen’, a designar pessimismo, ceticismo, desalento, tédio, motivado pelo “atraso provinciano  em que vivia a cidade, distante de padrões mínimos de civilização; tédio em morar na pequena cidade colocada na montanha, envolta de várzeas relvosas, com ladeiras íngremes e ruas péssimas”.
O ingresso  na Academia de Direito em 1848 abriu-lhe as portas de um novo cenário: a partir das arcádias do casarão franciscano, a poesia tomou conta de São Paulo, sob a influência de Byron , Shelley,Heine  e Musset (segundo seu contemporâneo de Faculdade, José de Alencar, “todo estudante de alguma imaginação queria ser um  Byron, e tinha por destino inexorável copiar ou traduzir o bardo inglês”) , o ‘satanismo’ como a manifestação mais típica de uma ideologia de “revolta espiritual, de negação de valores triviais, de intenso egocentrismo”, formando um núcleo de poetas nativos e migrantes  : Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães,José Bonifácio o Moço, Paulo Eiró,  os migrantes Fagundes Varela, Castro Alves,  Olavo Bilac, de passagem efêmera (e o prosador José de Alencar) — ao centro Álvares de Azevedo, com seu romantismo intelectualizado de adolescente saturado de leituras  sonhando transformar o burgo pacto na "neblinas frias"(de que falaria Castro Alves, em réplica provinciana de Londres) , e logo fundando a Revista Mensal da Sociedade Ensaio Filosófico Paulistano, que deu vazão aos primeiros exercícios  literários dos estudantes.
Toda a produção literária de Álvares de Azevedo foi desenvolvida “freneticamente” durante os  quatro anos na Faculdade. Sua obra, acentuadamente autobiográfica, somente foi organizada e editada depois de sua morte— com a exceção de Lira dos vinte anos , cuja edição foi preparada por ele para integrar “As três liras”, projeto de livro em conjunto com Aureliano Lessa e Bernardo Guimarães. Lira dos vinte anos , nesse sentido, é um livro singular, “uma verdadeira medalha de duas faces”, simbiose de um ‘ultra-romantismo’ cheio de brumas, visões, sonhos e sentimentos  com um realismo crítico e satírico.
As obras completas de Álvares de Azevedo, como conhecidas hoje, compreendem: Lira dos vinte anos; Poesias diversas, “O poema do frade” e “O conde Lopo” (poemas narrativos); Macário, (teatro : uma "tentativa dramática"); A noite na taverna, (“contos fantásticos”); O livro de Fra Gondicário (inconcluso); os estudos críticos sobre “Literatura e civilização em Portugal”, “Lucano”, “George Sand”, “Jacques Rolla”, além de artigos, discursos e 69 cartas.

Macário
(............)
Macário: Por acaso há mulheres ali? (Em São Paulo)
Satã: Mulheres, padres, soldados e estudantes. (...) Para falar mais claro as mulheres são lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes vadios. Isso salvo honrosas exceções, por exemplo, de amanhã em diante tu.
Macário: Esta cidade deveria ter o teu nome.
Satã: Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o monge. Demais essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila e pobre como uma aldeia. (...) Até as calçadas...
Macário: Que têm?
Satã: São intransitáveis. Parecem encastoadas* as tais pedras. As calçadas do inferno são mil vezes melhores. Mas o pior da história é que as beatas e os cônegos cada vez que saem, a cada topada, blasfemam tanto com o rosário na mão que já estou enjoado.
Macário: Onde me levas?
Satan: A uma orgia. Vais ler uma página da vida; cheia de sangue e vinho - que importa? (...) Paremos aqui. Espia nessa janela.
Macário: Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas... umas lívidas, outras vermelhas... Que noite!
Satã: Que vida! Não é assim? Pois bem, escuta, Macário. Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra. O vinho é como o ópio, é o Letes* do esquecimento... A embriaguez é como a morte...
Macário: Cala-te. Ouçamos.
(................)


MR