quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Espelhos : o Rio de Janeiro por quatro escritores


O aniversário da cidade neste 1º. de março,  oferece excelente oportunidade para, em torno de quatro obras  sobre o Rio de Janeiro, tecer um exercício de reflexões,ilações e interações,vis a vis, entre quatro de seus mais representativos  escritores e  quatro de suas obras.


 A alma encantadora das ruas,, de João do Rio; , Memórias de um sargento de milícias,, de Manuel Antonio de Almeida; Casa Velha, de Machado de Assis; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto --  a cidade enfocada sob as lentes e as letras  de  escritores  que podem ser considerados da própria alma, geográfica,urbana,social,cultural,  do Rio de Janeiro.

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Caso exemplar de um conjunto que abre  possibilidades de  formulação de interessantes estudos e reflexões sobre    interações entre  as peças que o compõem. A rigor, mostra muito mais do que o geográfico-urbano-espacial elo comum entre o Rio e notáveis literatos: traz outros elementos de relações, encadeamentos e ilações -- estas tanto de identificação quanto de  contraposição -- entre as quatro obras, seus autores e... seus  personagens. Atente-se  pelo  conteúdo de cada um dos livros, per se, e pelo que abrigam de elementos referenciais em seu conjunto : neste, surgem  e emergem elementos excepcionalmente significativos, a propiciar a montagem de um verdadeiro jogo de referências cruzadas e  referências remissivas.
 Qual  espelhos que ao mesmo tempo em que refletem ‘invertem’ imagens, as obras em tela guardam e mantêm entre si identidades e contraposições, similaridades e contrapontos,intertextualidades e cotejamentos.(teriam os idealizadores deste conjunto inicial da Coleção vislumbrado essas interações de atores e obras, e o concebido  sob esse approach ?....)
 Primeiramente, vale observar que, sob a órbita do cenário carioca da segunda metade do século XIX e duas primeiras décadas do século XX  brasileira, os quatro livros   dados a público guardam,entre cada um dos escritores de cada uma das obras, o importante vínculo de encadeamento sequencial de ciclos cruciais da  historiografia literária brasileira , a saber:  Memórias de um sargento de milícias  como exemplar do Romantismo ( abalizadas análises projetem a obra de  Manuel Antonio de Almeida  na verdade como um antecipador do Realismo) ; Casa Velha,  como (especial) representante do Realismo (malgrado,não apenas  Machado de Assis poder ser considerado, e o é,acima de todos os ciclos e rótulos e chancelas, como ainda a interpretação  deflagrada pela crítica e ensaísta Lucia Miguel-Pereira em Machado de Assis: Casa Velha,1944, interpretação equivocada e depois revisada e corrigida, de ter sido a obra escrita muito antes de 1885, quando foi concretamente publicada).; Triste fim de Policarpo Quaresma,romance expoente do Prémodernismo,de que Lima Barreto foi inconteste epígono, de resto ciclo que também abrigou João do Rio e sua ode à "alma encantadora das ruas"-- obra que,nesta coleção, assume, a meu  estrito juízo, um papel bastante peculiar,qual uma espécie de 'abertura do pano', ou de 'intróito ao ambiente', como que uma 'apresentadora' do cenário urbano onde se desenrolam as histórias e tramas narradas  nos outros três livros.

A par de ilações concretas de cunho intelectual e literário entre os escritores e as obras em tela,  mencionemos  a existência efetiva de relações de ordem pessoal – amistosas, num caso; de franca antipatia  mútua,em outro : enquanto Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis guardavam excelente relacionamento e até afinidades  afetivas entre si (mas também marcantes ilações literárias, como se verá)– Almeida,.além de ter sido  chefe de Machado na oficina da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de tipografia,  introduziu-o  na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de Paula Brito e foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado, inclusive,dedicou a ele o (importantíssimo) artigo “O jornal e o livro”, publicado em janeiro 1859 (ele, com menos de 19 anos e meio) no Correio Mercantil  –  de outro lado, Lima Barreto e João do Rio se antegonizavam, nutriam forte animosidade um pelo outro.E entre Machado e João do Rio deu-se  curiosa episódio : Machado nunca respondeu ao questionário que,em 1899, João lhe submetera  para a coletânea, de entrevistas com diversos escritores, O momento literário, e acabou não aparecendo – não se sabe até hoje porque – na obra, publicada em 1904..
Em outro viés – aqui de natureza digamos ‘filosófica’ -- em Machado de Assis e Lima Barreto as diferenças e divergências entre ambos escondem proximidades e até mesmo identidades bastante significativas (veiculei  estudo a respeito, exatamente com esse título,  “Diferentes, divergentes, mas próximos muito próximos, no qual promulgo Lima Barreto e Machado de Assis como verdadeiros, natos, ‘parentes literários’. Ainda que bastante diferentes, ambos muito próximos de várias maneiras – essencialmente semelhantes em concepções filosóficas, temas, influências, pontos de vista,mesmo que sob formas,modos e discursos distintos. De modo convergente, mas de forma  divergente, analisaram os cenários políticos, históricos,institucionais,sociais,culturais de suas épocas e a existência do homem --: Machado, privilegiando as nuances, dissecando-o em sua essência ,revelando sutilezas, contradições e ambigüidades psicológicas; Lima, sem linhas e focos enviezados, desnudando suas fraquezas, insuficiências, submissões, condições sociais. Se Machado inaugurou o psicologismo na ficção brasileira, Lima introduziu o tema da incomunicabilidade, do isolamento existencial e social.)
 Por outro lado, notáveis – e sem o serem inusitadas ou surpreendentes - são as  intertextualidades, quer de interações quer  de contraposições, explícitas ou=implícitas, entre as quatro obras e os quatro autores. ’Sob um viés, Memórias de um sargento de milícias irradia genericamente para Casa Velha e para Triste fim de Policarpo Quaresma um vetor de estado e posturas de autoritarismo, concreto ou latente: o autoritarismo ditatorial de Vidigal, em Memórias...  é do mesmo naipe do de Floriano,como tratado em Policarpo Quaresma – de que aliás é o personagem principal, sem dúvida – e de outro tom no autoritarismo doméstico,familiar de d. Antonia em Casa Velha.
Leonardo Filho, Lalau e Policarpo Quaresma, cada um a seus modo, feitio e circunstâncias, são personagens que reagem a pressões, por vezes intoleráveis, de uma sociedade dominadora, patriarcal, ou de um ambiente matriarcal(como em Casa Velha) – de resto, também  o que se dá com os personagens de Lima Barreto, no geral de sua ficção : Leonardo Filho e Policarpo agem, mas sofrem as sanções da sociedade e do sistema político -- para o primeiro,ainda colonial; para o outro, já republicano -- que os sufocam e ferem; Lalau, de um imperial âmbito  familiar,doméstico, e de  esfera social.
Quer em Memórias de um sargento de milícias, em Casa Velha, quer em Triste fim de Policarpo Quaresma, personagens, situações,tramas – e os autores – ‘subjugados’ ao Estado,onipresente, seja “no tempo do rei”, seja ‘sob o manto imperial’(em 1839),seja sob a ‘mão pesada da República’.
 Não chego a dizer e sustentar que Memórias de um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida sejam a obra e o autor capitais, centrais, deste conjunto, mas podem ser vistos como um pólo gerador de eixos de ilações e recorrências com as demais obras e autores. Antonio de Almeida e sua obra --  emblemática  de uma inflexão temática, tramática e estilística no romantismo literário brasileiro -- ‘interagem’ com Machado de Assis  não só na antecipação do Realismo, mas também, e especificamente,no que Memórias de um sargento de milícias --‘anárquica’, ‘picaresca’(conotação, na verdade, cunhada por  Mario de Andrade , é questionada por Antonio Candido,em seu primoroso ensaio “Dialética da malandragem”, para quem Leonardo  Filho antes de ser um ‘pícaro’ é, sim, o primeiro malandro da literatura brasileira . No entanto, para ‘simplificar’ e evitar estender o que não é propósito deste comentário, aceitemos e adotemos essa  designação mesmo.) -- prenuncia Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)– ‘inovadora’, ‘revolucionária’, marco da inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário brasileiro,e da qual – convém notar - Casa Velha(1885),na produção romanesca machadiana,  é seqüente.
Memórias de um sargento de milícias  contrasta com a ficção brasileira do tempo – como Casa Velha difere, no enfoque e no tom e timbre, da ficção realista de sua época e inclusive, e em especial, das obras romanescas de Machado de Assis a partir da década de 1880 (Memórias póstumas de Brás Cubas; Quincas Borba; Dom Casmurro; Esaú e Jacó; Memorial de Ayres)
  “O tempo do rei’, i.e. de d. João VI, em que se dá a história de Memórias de um sargento de milícias,  é citado e adquire significância especial em  Casa Velha, no que determina como fulcro inicial  na dinâmica da trama a intenção do padre-narrador em escrever a história de Pedro I, inspirado  numa Memória de d. João VI,de autoria do pde. Luís Gonçalves dos Santos, o pde.Perereca. Vale dizer, a obra que o cônego em Casa Velha  propõe-se a escrever é,no âmbito ficcional, ‘decorrente’ da vivência no tempo em que decorre Memórias de um sargento de milícias.: nesta, a estrutura da trama, inerente a história política entre 1808 e 1822, faz o  pano de fundo histórico da obra de Manuel Antonio de Almeida  terminar onde começa o da obra de Machado de Assis.

Mais do que ‘picaresca’[sic] ou outra conotação que se lhe atribua,  Memórias... é antes de tudo, um romance social – como aliás são os de Lima Barreto.  Mas é também uma história do amor de Leonardo Filho por Luisinha – esta, ao contrário, de Lalau, de Casa Velha, e de certo modo de Olga, de Policarpo Quaresma,  é mocinha burguesa, com herança e meneios dissimulados. A obra de Antonio de Almeida também retrata uma família – Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, aliás  o núcleo central do elenco de protagonistas, como o são em Casa Velha d. Antonia,Lalau e Félix. Na obra de Machado de Assis há a contraposição ao mundo patriarcal representada pela figura de d. Antonia, e em dada escala por Lalau, não de todo submissa às regras sociais (embora de comportamento dentro da ‘ordem’); em Memórias de um sargento de milícias personalizada essa contraposição,e confrontante com a ordem estabelecida, por Leonardo Filho: ele e Lalau são dotados, cada um per se, de elementos simbólicos, como  personagens –representantes das classes não-dirigentes [e caberia aqui uma especulação- claro que numa escala ‘surreal’ : Lalau  poderia se interessar,e vice-versa, por Leonardo?...]

Por sua vez, tanto Memórias de um sargento de milícias quanto Triste fim de Policarpo Quaresma, talvez com sinais invertidos, representam metáforas sobre o destino do Brasil  como Nação. A impressão de realidade comunicada pelas obras decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou "destino" das pessoas naquelas sociedades;  Manuel Antônio, guardadas as devidas proporções, mantém em  comum com os autores realistas: a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade --exatamente como Lima Barreto..
 Ambas as obras e seus protagonistas  como veículos de hilariantes sátiras sócio-políticas, das instituições, Policarpo Quaresma como uma espécie de  Leonardo Filho ao contrário : se aquele  é modelo do patriota, este é o antipatriota. Enquanto Leonardo Filho sofre a repressão de uma sociedade forte,preocupada com a ordem pública,  Policarpo convence-se da necessidade de um governo forte -- o que o leva a apelar ao poder de Floriano Peixoto e alistar-se no exército florianista.
 No geral e em essência, o universo dos personagens da obra de Antonio de Almeida – empregados, subempregados, desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados, etc – é o universo ficcional de toda a obra de Lima Barreto.
Os dois autores, ‘contestadores’ da ordem – não apenas numa,digamos, ideologia de suas respectivas tramas e temas ficcionais, mas também  na forma literária: as escrita e linguagem ficcional imprimidas em Memórias.guarda identidades com as escrita,estilo e linguagem literária de Lima Barreto, ambas coloquiais,despojadas,fluentes,lastreadas na oralidade.(“antinefelibatas”, segundo Lima).

Em Triste fim de Policarpo  Quaresma – como de resto nos demais romances  e novelas barretianos (Recordações do escrivão Isaias Caminha e Morte e vida de M.J. Gonzaga de Sá; em Clara dos Anjos) – há um pathos trágico, da derrota final de Policarpo; em Memórias de um sargento de milícias , ao contrário, dá-se um aparente pathos ‘épico’, de vitória, Leonardo Filho feito por fim sargento de milícias

Se Leonardo Filho é um ‘herói atuante’, picaresco [ sic : conservemos a conotação ‘picaresca’,vá lá...] , ‘thorminiano’ (de Lazarillo de Thormes), Policarpo (bem como Isaias Caminha – e similarmente ao machadiano  ‘homem de espírito’) é um autêntico ‘herói carlyleano’,um ‘herói solitário’, ‘intelectual’ lyleano’– per se  um flâneur. Incorporado de Carlyle (uma das maiores influências intelectuais em Lima),  o flâneur  barretiano – foi Lima  o introdutor desta figura na literatura brasileira – que é um  flâneur dramático,debilitado, andarilho decadente, está no flaneurismo ,de perfil e atuação completamente contrários, de João do Rio, em seus freqüentar e retratar as ruas da cidade.
 Identificação e ‘entrocamento’ entre Lima e João – não obstante as antipatia  e animosidade de um pelo outro no campo pessoal --  que não se dá apenas nesse terreno subjetivo de comportamento social mas também em vívidos aspectos comuns da realidade de origem e de vivência de cada um.
Ambos  naturais e falecidos no mesmo Rio de Janeiro – João do Rio nascido em 1880, Lima Barreto em 1881(aliás, ano de publicação de Brás Cubas,marco ficcional machadiano); João, morto em 1921, Lima em 1922 : um ano a separá-los em seus nascimentos e mortes – Lima oriundo de família modesta, de funcionário público empregado pela Monarquia, amante de seus ‘adoráveis subúrbios’,rebelde e automarginalizado; João, de família de classe média, abolicionista,positivista, republicana, dândi  integrando-se  gradativamente às altas esferas da sociedade e às  elites ;  os dois vividos na mesma cidade,então em ebulição, pela pretensa modernização, ambos sob a mesma República, João, entusiasta incondicional, Lima, crítico visceral.
 João do Rio, sempre atuando na ‘imprensa burguesa’, em grandes jornais,prestigiado e famoso, foi até mesmo empresário jornalístico;; Lima Barreto, embora iniciando no portentoso e  poderoso Correio da Manhã (acida e demolidoramente criticado em Recordações do escrivão Isaias Caminha—aliás, também João do Rio, impiedosamente satirizado pela “futilidade de sua pose”), sempre preferiu a  imprensa libertária, alternativa, contestadora.. O João cronista, autêntico seguidor da ‘arte das transições’ e da ‘circularidade na crônica’ de Machado de Assis (espécie de marca registrada, entre outras características marcantes, a “arte das transições” faz parte da  própria forma narrativa,,  unindo tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado  surpreendente,cujo trajeto é ‘amenizado’ para os leitor , primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral  muitas vezes nem percebida de todo) : Lima, praticante consciente de  um novo estilo, contundente, fomentador,para não dizer criador, da crônica contemporânea. João do Rio, criador do colunismo social, um olhar no mundanismo, antagoniza e confronta Lima Barreto, comentarista político, sempre no debruçar nos aspectos  sociais.
 Mas, embora dotados de ideologias, posturas, visões e interpretações nada convergentes, ambos profundamente interessados na cidade e no seu habitante.
É nesse sentido e com essa índole que João do Rio registra, apregoa, expõe, dissemina e exalta a  “alma encantadora das ruas” da cidade – que por sua vez está também nos becos,ruelas,ladeiras, por onde Leonardo Filho e os personagens transitam ‘picarescamente’[sic] na obra de Manuel Antonio de Almeida e onde Lima Barreto constrói e ambienta todas suas tramas ficcionais. Os mesmos  contingentes sociais da cidade povoam literariamente as obras dos três escritores.
 Obras e autores a exibirem  exemplos claros da pujança literária do Rio de Janeiro, a extraordinária capacidade criativa de alguns de seus mais importantes escritores – conjunto,este, que oferece a oportunidade de tantos significativos cortes analíticos, tendentes,por extensão,a inspirar e prover estudo literário de maior alcance e aprofundamentos e prospecções mais alentadas  (que de resto intento,em seqüência,  vir a fazer em  ensaio específico ).

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O cinema vai à literatura (e a literatura se vale do cinema)


Abrem-se as cortinas e projeta-se na tela mais uma premiação do Oscar cinematográfico. Excelente oportunidade para examinar as relações entre cinema e literatura
Independentemente de festas, festivais  e premiações , o cinema sempre  é  objeto  do foco, das luzes ,  sempre presente no imaginário e no real cotidiano de praticamente todas as pessoas no mundo. .
                                                                                                                                             Eventos como a ‘festa’ do Oscar -- e de resto, festivais regularmente realizados em distintas cidades,temáticas e enfoques etc -- são excelentes por  permitir uma reflexão sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções, confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos  contrastam- se; são  sempre  difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário -- originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.

A par das diferenças, entre a página e a tela há laços  estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador  por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um  ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.

Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão --  meios que privilegiam a linha narrativa — também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.

Não se pode negar que, principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, James Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto."

“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ, para ministrar uma disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV. Para ele, as relações entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a tela, apontando três outros importantes pontos de encontro : o primeiro seria os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam vários exemplos em cinematografias distintas; outro, seria o uso estrutural ou incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta indubitavelmente a ocorrência maior; e também  o encontro da literatura e do cinema poderia se dar através de referências como alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado,  Johnson critica  enfaticamente  a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser  muito comum entre os espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. . A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo. O conceito, de‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se na discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no original.
 Esse freqüente discurso da fidelidade baseia-se,a meu juízo, na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à idéia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme secundário -- além evidentemente do pensamento de que cinema e literatura são rivais a partir da crença na idéia de que o filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro.

Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus pontos de partida – as relações entre o cinema e a literatura são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos literários anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse modo, a narrativa cinematográfica já se encontraria latente em alguns textos narrativos literários, e  a relação logo passou a trilhar indissolúvel (sic)  mão dupla, quando literatos e dramaturgos começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em  poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada linguagem --- isto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em 1950, etc ) : e o  momento histórico de cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um de seus produtos.
 Essa intrínseca,  dialógica e dinâmica relação nasce no momento em que o cinema descobre seu potencial digamos literário, ao absorver o modelo narrativo do romance do século XIX a subsidiá-lo para melhor contar histórias – malgrado podermos hoje levantar a reflexão em plena  era da imagem digital em que vivemos : o cinema  continuaria ‘preso’ a um modelo narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria literatura? .Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?
 Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo da narrativa, em sua já longa história, o cinema não sofreu muitas variações – malgrado certas exceções, como experimentos ‘de vanguarda’ – e vem à mente, por aproximação etimológica, a  Nouvelle Vague” da década de 1960 , que se propunha a romper  com a lógica linearizante da estética e da narrativa fílmica de até então, inspirada num congênere da seara literária, o “nouveau roman”—ambas dialogando entre si pelas respctivas técnicas narrativas, num movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.Convém não esquecer,entretanto, que sob a égide de suas  afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já consagrados da narrativa literária – levando  Jorge Luis Borges  a  observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar  as limitações formais e “não procurando  ordenar o caos”, ao contrário, o caos tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”, p. ex., queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que os caminhos são múltiplos; e por fim  aquilo que Jean Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar, pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta e um papel.
 Contudo, há de se atentar para um outro viés, uma espécie de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de publicação de  livros motivados... pelo cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração de filmes(making-of), edição ou reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos iconográficos  que remetem para os filmes realizados a partir da adaptação da obra para  o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura.  De resto, uma tendência à qual  avolumam-se questionamentos sobre até que ponto  sinaliza tanto  ‘perda de prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’ da matéria  literária, como sobretudo ‘dessacralização’ da literatura,  tênues que se tornam cada vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens culturais que circulam pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.

Das mesmas forma e diapasão e desse processo decorrente, deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX, por parte e ação do setor  editorial ,a  contrapartida à incorporação da obra literária,fosse best seller ou não – muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o relançamento de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros .Toda a literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um filme, e na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o espaço do livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações derivadas de filmes.
 Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico -- e menos literário. E além  disso, mesmo que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam  lidar  com o onírico, o  sonho , e com o psicológico -- que é, sabemos,  elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles  antes e acima  de tudo pessoas do cinema.
 Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O caso é que um diretor de cinema ou de tv  quando vai à literatura  leva com ele uma bagagem da linguagem  -- o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador -- e assim  comete  pecados e pecadilhos marcantes . Ao contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre -- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood, e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias  atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate -- literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme -- e vale lembrar que  para o escritor Autran Dourado “não existe livro filmado, existe filme baseado em livro” -- mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.

No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto -- relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou inferidos\induzidos, alguns elementos que responderiam a Stanley Kubrick -- para quem “tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” --  também provando o inevitável  desejo de cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, replicando a Kubrick, que  ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito’...
                                                                             [MR, pesquisador, ensaísta,escritor; amante do cinema].

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domingo, 10 de fevereiro de 2013

três cariocas e o carnaval -- III


"é carnaval... deixa o barco correr... seja vc. quem for,seja o que deus quiser"

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O morcego
O  carnaval é a expressão da nossa alegria. O ruído, o barulho, o tantã espancam a tristeza que há nas nossas almas, atordoam-nos e nos enchem de prazer.
Todos nós vivemos para o carnaval. Criadas, patroas, doutores, soldados, todos pensamos o ano inteiro na folia carnavalesca.
O zabumba é que nos tira do espírito as graves preocupações da nossa árdua vida.
O pensamento do sol inclemente só é afastado pelo regougar de um qualquer “Iaiá me deixe".
Há para esse culto do carnaval sacerdotes abnegados.
O mais espontâneo, o mais desinteressado, o mais lídimo é certamente o “Morcego".
Durante o ano todo, Morcego é um grave oficial da Diretoria dos Correios, mas, ao aproximar-se o carnaval, Morcego sai de sua gravidade burocrática, atira a máscara fora e sai para a rua.
A fantasia é exuberante e vária, e manifesta-se na modinha, no vestuário, nas bengalas, nos sapatos e nos cintos.
E então ele esquece tudo: a Pátria, a família, a humanidade. Delicioso esquecimento!... Esquece e vende, dá, prodigaliza alegria durante dias seguidos.
Nas festas da passagem do ano, o herói foi o Morcego.
Passou dois dias dizendo pilhérias aqui; pagando ali; cantando acolá, sempre inédito, sempre novo, sem que as suas dependências com o Estado se manifestassem de qualquer forma.
Ele então não era mais a disciplina, a correção, a lei, o regulamento; era o coribante inebriado pela alegria de viver. Evoé, Bacelar!
Essa nossa triste vida, em país tão triste, precisa desses videntes de satisfação e de prazer; e a irreverência da sua alegria, a energia e atividade que põem em realizá-la, fazem vibrar as massas panurgianas dos respeitadores dos preconceitos.
Morcego é uma figura e uma instituição que protesta contra o formalismo, a convenção e as atitudes graves.
Eu o bendisse, amei-o, lembrando-me das sentenças falsamente proféticas do sanguinário positivismo do Senhor Teixeira Mendes.
A vida não se acabará na caserna positivista enquanto os “morcegos" tiverem alegria...
                                                        Lima Barreto   [crônica  10.01.1915 Correio da Noite ]    

sábado, 9 de fevereiro de 2013

três cariocas e o carnaval -- II

[um dos 'cariocas', exatamente o que aqui se apresenta agora, não natural da cidade a ela se incorporou de tal modo,forma,espírito e obra que assim há de ser considerado -- sim senhor]


"é carnaval... deixa o barco correr... seja vc. quem for,seja o que Deus quiser"
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O palhaço(história triste para um dia alegre)
Como se explica que o Saraiva, um homem que tomava a sério as coisas mais cômicas da vida, e, segundo afirmavam as pessoas que o conheciam mais de perto, nunca ninguém viu rir, como se explica que o Saraiva, na terça-feira gorda de 1885, saísse de casa depois de jantar e, sem dizer nada à senhora, comprasse uma vestimenta de palhaço, uma cabeleira e uma máscara, e com tais objetos se metesse no seu escritório na rua do Hospício, de onde saiu disfarçado? Ninguém diria que escondido naquela roupa alegre, muito branca e semeada de rodinhas vermelhas, e por baixo daquela cabeleira azul, encimada por um chapeuzinho minúsculo e pontiagudo, e por trás daquela carranca jocosa, que ria de um rir comunicativo, estivesse o grave comerciante, que parecia haver nascido para vida monástica.
A esposa desse urso, d. Balbina, era, quando se casou, uma rapariga expansiva e risonha; teve, porém, que se submeter ao feitio dele: tornou-se tão séria e tão sensaborona como o Saraiva, e, sozinha em casa, sem filhos, sem amigas, porque o marido não queria visitas, aborrecia-se muito.
Aborrecia-se tanto que procurou uma distração, e encontrou-a num belo rapaz, seu vizinho, que de vez em quando pulava o muro do quintal para fazer-lhe companhia, e consolá-la daquele silêncio e daquela solidão.
Infelizmente para ela, outro vizinho, por inveja ou simplesmente por maldade, escreveu uma carta anônima ao Saraiva, de que ele tinha um sócio de cuja existência não suspeitava - e ora ai está como se explica que naquela terça-feira gorda, depois de dizer a d. Balbina que ia para o escritório, onde se demoraria até tarde da noite, fechando uma correspondência que devia partir no dia seguinte, o austero e sisudo negociante foi se vestir de palhaço para apanhar a esposa em flagrante delito.
- Eu saio, os criados saem, pensou ele; se ela tem realmente um amante, é de supor que aproveite a ocasião para metê-lo em casa...
Bem pensado, porque um quarto de hora depois de sair de casa o marido, o amante saltava o muro, e naquela terça-feira gorda, apesar de ter ficado em casa, d. Balbina divertiu-se mais que muitos foliões, nas patuscadas dos préstitos e dos bailes.
Havia já duas horas que o vizinho fazia companhia à solitária vizinha, quando a campainha do portão do jardim foi violentamente agitada. D. Balbina chegou à janela e avistou um tilburi, cujo cocheiro, mal que a viu, gritou:
- Mande cá uma pessoa, minha senhora!
Não havia um criado em casa. D. Balbina teve que ir pessoalmente abrir o portão.
- Que é? - perguntou ela.
- Minha senhora, este palhaço tomou o meu tilburi, e mandou tocar para esta casa; mas em caminho parece que teve uma apoplexia e morreu!
Efetivamente, o Saraiva, homem sangüíneo, que não pensou nas conseqüências de pôr aquela cabeleira e aquela máscara depois de jantar, tinha morrido no tílburi.
Deixo ao leitor o cuidado de pensar no espanto e na confusão que isso causou, e na tragicômica anomalia daquele negociante austero, estendido morto num canapé, e amortalhado em vestes de palhaço.
Só direi que d. Balbina, passado o período do luto, esposou o solicito vizinho que a consolava naquele silêncio e naquela solidão.
E até hoje, e lá se vão mais de vinte anos, ela não atinou com o motivo que levou o seu primeiro marido a vestir-se de palhaço... para morrer.
                                                         Arthur Azevedo [ conto - publicado durante década 1890]

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

três cariocas [da gema -- sim...] e o carnaval -- I


"é carnaval... deixa o barco correr... seja vc. quem for,seja o que Deus quiser"
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Bons Dias !

Ei-lo que chega... Carnaval à porta!... Diabo! aí vão palavras que dão idéia de um começo de recitativo ao piano; mas outras posteriores mostram claramente que estou falando em prosa; e se prosa quer dizer falta de dinheiro (em cartaginês, está claro) então é que falei como um Cícero.
Carnaval à porta. Já lhe ouço os guizos e tambores. Aí vêm os carros das idéias... Felizes idéias, que durante três dias andais de Carro! No resto do ano ides a pé, ao sol e à chuva, ou ficais no tinteiro, que é ainda o melhor dos abrigos. Mas lá chegam os três dias, quero dizer os dois, porque o de meio  não conta; lá vêm, e agora e a vez de alugar a berlinda, sair e passear.
Nem isso, ai de mim, amigas, nem esse gozo particular, único cronológico, marcado, combinado e acertado, me é dado saborear este ano. Não falo por causa da febre amarela; essa vai baixando. As outras febres são apenas companheiras. . . Não; não é essa a causa.
Talvez não saibam que eu tinha uma idéia e um plano. A idéia era uma cabeça de Boulanger, metade coroada de louros, metade forrada de lama. O plano era metê-la em um carro, e andar. E vede bem, vós que sois idéias, vede se o plano desta idéia era mau. Os que esperam do general alguma coisa, deviam aplaudir; os que não esperam nada, deviam patear; mas o provável é que aplaudissem todos, unicamente por este fato: porque era uma idéia.
Mas a falta de dinheiro (prosa, em língua púnica) não me permite pôr esta idéia na rua. Sem dinheiro, sem ânimo de o  pedir a alguém, e, com certeza, sem ânimo de o pagar, estou reduzido ao papel de espectador.
Vou para a turbamulta das ruas e das janelas; perco-me no mar dos incógnitos.
Já alguém me aconselhou que fosse vestido de tabelião. Redargüi que tabelião não traz idéia; e depois, não há diferença sensível entre o tabelião e o resto do universo. Disseram-me que, tanto há diferença, que chega a havê-la entre um tabelião e outro tabelião.
- Não leu o caso do tabelião que foi agora assassinado, não sei em que vila do interior? Foi assassinado diante de cinqüenta pessoas, de dia e na rua, sem perturbação da ordem pública. Veja se há de nunca acontecer coisa igual ao Cantanheda...
-Mas que é que fez o tabelião assassinado?
-É o que a notícia não diz, nem importa saber. Fez ou não fez aquela escritura. Casou com a sobrinha de um dissidente político. Chamou nariz de César à alta de nariz de alguma influência local. É a diferença dos tabeliães da roça e da cidade. Você passa pela rua do Rosário, e contempla a gravidade de todos os notários daqui. Cada um à sua mesa, alguns de óculos, as pessoas entrando as cadeiras rolando, as escrituras começando. .. Não falam de política; não sabem nunca da queda dos ministérios, senão à tarde, nos bondes e ouvem os partidários como os outorgantes, sem paixão, nem por um, nem por outro. Não é assim na roça.Vista-se você de tabelião da roça, com um tiro de garrucha varando-lhe as costelas.
-Mas como hei de significar o tiro?
-Isto agora é que é idéia; procure uma idéia. Há de haver uma idéia qualquer que significa um tiro. Leve à orelha uma pena, na mão uma escritura para mostrar que é tabelião; mas como é tabelião político, tem de exprimir a sua opinião política. E outra idéia Procure duas idéias, a da opinião e a do tiro.Fiquei alvoroçado, o plano era melhor que o outro, mas esbarrava sempre na falta de dinheiro para a berlinda, e agora no tempo. para arranjar as idéias. Estava nisto, quando o meu interlocutor me disse que ainda havia idéia melhor.
-Melhor?
-Vai ver: comemorar a tomada da Bastilha, antes de 14 de julho.
-Trivial.
-Vai ver se é trivial. Não se trata de reproduzir a Bastilha, o povo parisiense e o resto, não senhor. Trata-se de copiar São Fidélis.
- Copiar São Fidélis?
- O povo de São Fidélis tomou agora a cadeia, destruiu-a, sem ficar porta, nem janela, nem preso, e declarou que não recebe o subdelegado que para lá mandaram. Compreende bem, que esta reprodução de 1789, em ponto pequeno, cá pelo bairro é uma boa idéia.
-Sim, senhor, é idéia... Mas então tenho de escolher entre a morte pública do tabelião e a tomada da cadeia! Se eu empregasse as duas?
-Eram duas idéias.
- Com umas brochadas de anarquia social, mental, moral, não sei mais qual?
- Isso então é que era um cacho de idéias... Falta-lhe só a berlinda.
-Falta-me prosa, que é como os soldados de Aníbal chamavam ao dinheiro. Uba sacá prosa nanupacatu. Em português: "Falta dinheiro aos heróis de Cartago para acabar com os romanos." Ao que respondia Aníbal:
Tunga loló. Em português: Boas noites!.

                                                           Machado de Assis [ crônica de 27.02.1889,Gazeta de Notícias]
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