terça-feira, 20 de abril de 2010

Lima Barreto e a mulher - VII


feminismo


A amanuensa
A República dos Estados Unidos do Brasil teima em cometer todos os absurdos contra as mais comezinhas leis da glória e os mais elementares princípios de sociologia.
As palavras que aqui vão ser lidas, espero sejam tomadas como um respeitoso protesto contra o ato de um homem público do Brasil por quem tenho a máxima consideração.
Trata-se do senhor Nilo Peçanha, cujo talento e cuja operosidade muito admiro. O senhor Nilo, porém, tem o defeito de querer ferir a multidão pela singularidade de seus gestos e estranheza de suas atitudes.
Há no nosso atual ministro do Exterior muito talento, muita vontade de acertar e um grande desejo de ser útil à causa do Brasil; mas a sua mania de aparecer como estranho e original prejudica extraordinariamente as suas grandes qualidades de homem de Estado e de homem inteligente.
Sua Excelência devia, para a nossa glória, já que subiu a posições tão eminentes, coibir-se de semelhante defeito.
Nos lugares que o senhor Nilo tem ocupado, e há de ocupar, o exigido é muita ponderação. Eu nunca seria nomeado ministro, nem aceitaria tal cargo, a não ser no regime maximalista.
O nosso atual ministro do Exterior, entretanto, que tem disputado tais cargos, não pode ir para eles com idéias de botequim.
O seu ato, admitindo em concurso, para o lugar de terceiro oficial da sua secretaria, uma moça, aprovando-a e nomeando-a, aberra de todas as nossas concepções políticas e vai de encontro a todos os princípios sociais.
Já de uma feita, houve da parte de uma senhorita pretensão semelhante, para escriturária do Tesouro. O ministro era o senhor Joaquim Murtinho, cujos méritos e adiantamento de espírito não preciso relembrar aqui.
Pois saiba, senhor doutor Nilo, o que fez o ministro: indeferiu o pedido.
O senhor Peçanha ou a sua secretaria devia saber que, nessas coisas, a praxe é estabelecida pelo Tesouro e nunca se a deve desrespeitar, a menos que haja lei clara que a contrarie.
Desde que os lugares públicos, mesmo os que não o são, mas que naturalmente são destinados aos homens, sejam invadidos pelas mulheres, tal fato irá prejudicar a regularidade da reprodução da nossa raça.
O nosso interesse está em favorecê-la da melhor forma e nunca prejudicar a perpetuidade da espécie humana no planeta.
É sabido que, desde que as mulheres foram, na Europa, chamadas aos serviços exercidos normalmente pelos homens, de ano em ano, as dimensões antropométricas exigidas para os recrutas eram diminuídas. Está isto no Spencer, Introdução à Ciência Social. Favorecer, empregando meninas na burocracia, tal coisa, é um pecado de lesa-humanidade.
A mulher ressente-se muito mais que o homem de semelhante espécie 'de serviço. O homem é sempre um progresso (sic) e resiste, por isso mesmo, a todos os inconvenientes.
A mulher é a conservação e sofre mais por ser assim do que há de mau no sedentarismo de uma mesa de secretaria.
Não é bastante que uma moça papagueie francês ou alemão para ser melhor funcionário que um rapaz. A inteligência da moça é, em geral, reprodutora, portanto muito própria para esse estudo de línguas muito do gosto das repartições catitas, como o Itamarati ; mas nunca é capaz de iniciativa, de combinação de imagens, dados concretos e abstratos que definam a verdadeira inteligência.
Tanto isto é verdade que a candidata do senhor Nilo, na falatina do Berlitz foi muito bem; mas quando se tratou da simples aritmética caiu n'água e, direito constitucional, nem se fala.
Não é possível compreender que o empregado de uma secretaria de Estado não saiba nada do nosso direito fundamental e que regula as relações, já não só dos indivíduos, mas dos poderes políticos do país.
A elegância da repartição da Rua Larga, porém, entende as coisas por forma.
Desde que por lá passou o pedantismo do barão do Rio Branco, a sua presunção e prosápia, ela ficou assim.
Sua alma, sua palma !
Ao acabar este ligeiro comentário, eu peço licença para lembrar ao senhor doutor Nilo Peçanha que Krafft-Ebing diz, num dos seus livros, que a profissão da mulher é o casamento.
Sua Excelência - eu lhe rogo - antes de tratar de fazer "amanuensas" procure arranjar para as meninas bons maridos, honestos e trabalhadores.
É obra de misericórdia que certamente há de levá-lo ao reino dos Céus.
A. B. C. 05.10.1918

Novidades

Quando queremos ler um jornal com cuidado, fazemos descobertas portentosas. Não há quem as não faça, por menos sagaz que seja. Veja esta só que vem no Correio da Manhã destes últimos dias:
J. Ferrer & Cia., negociantes, estabelecidos nesta capital, propuseram no juízo da 6ª. Vara Cível uma ação contra Álvaro de Tal e sua mulher, para o fim de condená-los a pagar a quantia de 9:607$950.
Até aí não há nenhuma novidade: mas leiam o que se segue:
Alegam os autores que forneceram à ré, quando solteira, dinheiro, materiais e mão-de-obra para a construção do prédio à rua etc. Dizem os autores que, casando a ré sem lhes haver pago, o marido, morando na casa e casado em comunhão de bens, também era responsável pela dívida, que se tornou comum.
O resto não nos interessa; mas pelo que aí fica, podemos fazer algumas considerações boas.
Até bem pouco tempo, o interesse principal do casamento, a sua virtude primordial era arranjar uma noiva rica que nos pagasse as dívidas.
Todos os rapazes tinham essa ambição; e, desde que conseguissem uma futura cara-metade, nessas condições tinham o crédito decuplicado.
Tenho um conhecido que se casou numa igreja de arrabalde afastado, não fez convites, foi quase à capucha, mas, ao entrar na igreja, ficou admirado com a numerosa assistência: eram os credores que a enchiam.
Parecia que era regra geral que os homens procurassem casar para fazer a operação de crédito muito simples de saldar as suas contas.
Hoje, porém, à vista do caso que o citado vespertino alude, parece que não. As mulheres também procuram maridos, para liquidar as suas dívidas convenientemente.
Estamos no tempo do feminismo rubro até ao tacape e nada há de admirar. Não nos devemos assombrar com as suas novidades, nem mesmo com esta. Tudo é possível.
Careta 22.11.1919

Legião da Mulher Brasileira

De quando em quando, as nossas gentis patrícias, como dizem as seções elegantes dos jornais, cansadas do ramerrão das festas mundanas e de torcer nas agitadas partidas de football, lembram-se de fundar partidos, clubes e outras agremiações exclusivamente femininas.
Há dias, no salão de honra da Associação dos Empregados no Comércio, ali adiante, nesta catita Avenida Central ou Rio Branco, muitas senhoras solenemente instalaram uma sociedade a que deram o nome retumbante de Legião da Mulher Brasileira.
Não tive a dita de assistir a essa instalação pelo motivo muito simples de que, sendo homem, julgava não me ser permitido tomar parte na festa ; mas, seguindo os acontecimentos, nos jornais que publicaram fotogravuras, vi bem que nessa legião da mulher tomavam parte muitos homens.
Parece - não afirmo coisa alguma - que as nossas senhoras não se julgam perfeitamente aptas para esses trabalhos de sessões solenes; precisam, por isso, do auxílio masculino e este foi abundante na partida a que me refiro.
Não há senão louvar nas nossas gentis patrícias (lá vem o estilo de seção elegante) essa precaução. Completamente novatas nessas coisas mais ou menos parlamentares, era justo que elas fossem buscar luzes entre os homens, que são sempre hábeis nesse ofício de sessões e assembléias.
O que afirmo nestas últimas palavras, posso garantir que é convicção por mim obtida graças a experiência própria.
Na minha vizinhança, no pacato Todos os Santos, nas proximidades de Inhaúma, a longínqua, dias ou semanas antes do carnaval, alguns meus conhecidos e amigos de modesta condição, que me dão a honra de ouvir, nas vendas e botequins, as minhas prédicas sociais e políticas, fundaram um cordão, rancho ou bloco a que chamaram de "Rapaduras Gostosas".
Eu não sei bem por que quiseram tal nome, mas nada objetei-lhes e calei toda a crítica irreverente ou tola a semelhante manifestação de arte popular. Diabo! Eu sou povo também; não descendo, como o presidente, de fidalgos flamengos, que ficaram no Brasil e abandonaram os seus patrícios quando eles foram batidos pelas hostes pernambucanas de André Vidal de Negreiros, Fernandes Vieira, Camarão e Henrique Dias. Sou essencialmente homem do povo e criticar manifestações artísticas de pessoas da mesma condição que a minha pode parecer pretensão e soberbia. Guardei a crítica e convenci-me de que podia haver rapaduras amargas.
Tendo tomado essa precaução, fui a uma das sessões de início do bloco e assisti-a de começo ao fim. A presidi-la, estava o meu bom camarada Manuel Parafuso, artista pintor de liso, muito consagrado pelas famílias abastadas da redondeza; o secretário era Miguel Barbalho, um rapaz acobreado da mais perfeita aparência caprina; e outros cujos nomes não me recordo.
Pois bem, todos esses homens humildes de condição e instrução guiaram os trabalhos da assembléia com uma perfeição extremamente parlamentar, a ponto de, se pudessem lá estar, causar inveja ao senhor Andrade Bezerra ou ao senhor Torquato Moreira.
Sendo assim, isto é, encontrando-se até em homens humildes capacidades de notáveis parlamentares, nada mais justo do que as senhoras da legião fossem pedir a alguns homens conspícuos o favor de dirigir-lhes os trabalhos legislativos.
O acerto foi notável com semelhante gesto, porquanto os senhores escolhidos foram dos mais notáveis no nosso meio intelectual.
Além do senhor Carlos de Laet, que é sobejamente conhecido como professor, erudito, jornalista e homem de letras, lá havia também dois sacerdotes católicos dos mais respeitáveis e portadores de instruções especiais de Sua Eminência o Senhor Arcebispo, para orientar a reunião.
A sessão parecia correr magnificamente, perfeitamente mansueta e cheia de beatitude, como era de esperar devido à influência do Espírito Santo que devia naturalmente estar presente.
Creio que foi por sua obra e graça que se aclamou -"presidente de honra" - a ilustre senhora Dona Mary de Saião Pessoa, digníssima esposa do senhor presidente da República.
Uma escolha dessas está tão acima das faculdades humanas que somente uma inspiração sobrenatural podia ditá-la.
Os outros cargos da diretoria ou das diretorias foram providos excelentemente, mas em nenhum deles houve esse sinete sobrenatural com que foi marcada a aclamação da "presidente de honra".
Tudo ia muito bem com discursos variados, masculinos e femininos, só se mantendo calado o senhor Carlos de Laet, quando, a folhas tantas, o eminente orador sacro, o reverendo João Gualberto, foi interrompido violentamente.
Estava aí um fim tristíssimo para uma assembléia que tinha começado sob tão belos auspícios. A coisa ia degenerar em sessão de football, esse divertimento que está tão profundamente unido à nossa mocidade por meio de barulhos e conflitos.
Felizmente, entre as nossas gentis patrícias (que mania essa minha de falar à moda do Binóculo !) não houve conflito nem pugilato. Para boa compreensão do sucesso, transcrevo as palavras dos jornais. Ei-las:
O padre Gualberto não pôde, entretanto, prosseguir a sua oração. As suas idéias, no momento expendidas, acerca do modo por que, baseada nos ensinamentos da igreja católica, devia a legião presidir os seus destinos, provocaram sério protesto de uma grande parte da assistência, que se levantou, retirando-se do recinto entre os protestos dos que, com as idéias referidas, não podiam, por uma questão de crença, estar absolutamente de acordo. Entendiam os que protestavam que a legião, formada por senhoras de diferentes credos religiosos, não podia admitir injunções de quem quer que fosse, de maneira a abalar o sentimento religioso que divergia por completo entre os presentes.
Esse charivari de fundo religioso deu fim à sessão. A diretoria declarou que vai convocar outra reunião em que se ponha de lado qualquer credo religioso; e as senhoras operárias foram até às redações dos jornais protestar contra essa intromissão manhosa do sacerdócio católico nos negócios do seu puro interesse.
Abstenho-me de mais comentários sobre esse pequeno acontecimento, mas estou certo que esse agradável insucesso da celebrada oratória do padre João Gualberto em nada influirá na diminuição ou acréscimo de seu auditório feminino, nas igrejas e matrizes dos bairros ricos.
O reverendo tem uma reputação feita nesses meios que nada pode abalar. Cada sermonista tem a sua freguesia escolhida e adequada,
Petrópolis gosta da frase elegante do senhor Padre João Gualberto; aqui, onde moro, em Todos os Santos, o grande orador sacro para toda gente é o padre André. Ele tem uma oratória popular com imagens pitorescas de coisas familiares e triviais que encanta a todos, inclusive a mim, que não lhe falto a uma prédica.
A política da igreja devia consistir em aproveitar cada vocação sacerdotal de acordo com as necessidades da catequese. Para Botafogo, este; para Madureira, aquele; e assim por diante.
É muita pretensão minha dar conselhos, mas é que desejo muito a prosperidade da Legião da Mulher Brasileira.
A. B. C. 27.03.1920


As mulheres na Academia

Os jornais, com grande ruído, publicaram um ofício ou carta de uma senhora que ilegalmente exerce uma função pública, pedindo que, na Academia de Letras, fossem admitidas meninas prendadas.
Está aí um negócio que eu acho muito razoável. Ninguém, como semelhantes moças, é próprio para semelhante coisa.
Nas salas e salões, desde Botafogo ao Méier, não há quem não admire uma moça que saiba recitar.
Todos os meninotes e mais dançarinos de tais paragens ficam embasbacados quando uma menina de olheiras põe-se no meio da sala e diz o "Quisera amar-te".
É um grande e inevitável sucesso que quebra a monotonia habitual dos bailes poucos regados à cerveja e outras bebidas.
Eu não tenho nenhuma ojeriza especial às moças que se dedicam às letras; ao contrário: acho que as meninas em geral têm muita vocação para isso, porquanto se vestem muito bem e com pouco dinheiro. Há grandes escritores que só são notáveis pelas suas roupas. Não preciso exemplificar porque tal cousa é sabida por todos.
Um vestido bem-talhado, por uma pobre costureira de qualquer grande casa de modas da rua do Ouvidor, deve ser título bastante para uma moça ser considerada uma honrada literata.
A literatura nada tem a ver com a vida, com os seus choques inevitáveis, com as dores dos outros, com os problemas do nosso destino e da sociedade; a literatura é um negócio de contramestre de casa de confecções (cuidado com o Assis Sintra) e modas.
Que sabe uma mulher, uma "melindrosa", ali da Avenida, a respeito da dor de uma pobre rapariga criada de servir?
Nada. Entretanto, ela esteve no Colégio de Sion e fala mais ou menos o francês e, do resto dos homens e mulheres que não são da sua roda, ela tem um grande desprezo.
Para ela, essa gente não tem alma, como certo concílio afirmou no tocante às mulheres.
Pois então, dirá essa dama prendada, aquele sujeito que vai ali tão feio e tão sujo pode dizer - merci?
Por isso mesmo, porque as mulheres não compreendem nada disto; porque elas não têm uma visão larga e profunda da Humanidade; porque elas nunca viram a dor dos humildes nem se interessaram por ela; por isso é que elas são grandes escritoras.
As suas qualidades primordiais estão em colocar bem os pronomes, em saber que quem descobriu a América foi Cristóvão Colombo, em afirmar que o ar é uma mistura e responder logo de pronto que a batalha de Lepanto foi em 1571.
A minha opinião, à vista do exposto, é que a academia deve ser composta só de mulheres; que ela não deve ter mais biblioteca, arquivo, nem coisas parecidas. O que ela deve ter, são jóias montadas, alfinetes e grampos para chapéus.
Dessa forma, ela pode muito concorrer para o progresso das letras pátrias.
Careta 19.02.1921

sábado, 17 de abril de 2010

Lima Barreto e a mulher - VI


mulher brasileira

Concurso para a cozinha

Na escola Rivadávia Correia realizou-se na semana passada, sendo examinadas as cinco candidatas da primeira turma e muitas outras, um concurso para contramestra de cozinha.
Aprovo o alvitre, tanto mais que verifico que são muitas as candidatas.
Na notícia que li, há cerca de dez nomes.
Com prazer verifiquei que a vocação da mulher para a cozinha ainda não foi morta pela de auxiliar de escrita da estrada de ferro.
O número das que se inclinam para o forno ainda não é menor do que aquelas que se sentem atraídas pela máquina de escrever do doutor Assis Ribeiro.
Prefiro as últimas às primeiras. Não há como um bom pitéu bem- temperado. Um tutu de feijão com um bom molho de tomates, cebolas e vinagre, seguido de uma carne-seca picadinha, vale mais do que qualquer ofício limpo, redigidinho naquela pobretona literatura oficial, sem calor nem gosto.
Não há quem possa negar isto; e muita gente tem escrito sobre as excelências da cozinha. Brillat-Savarin escreveu um tratado que ainda é lido, mais do que muitas obras solenes e científicas que ficaram às traças.
O destino das nações, diz ele, depende da maneira que elas se nutrem; e só os homens de espírito sabem comer.
Pois se é assim, agora que todos nós, inclusive o chefe do executivo, pretendemos criar de novo uma nação forte, cheia de inteligências, não há nada mais precioso que os poderes públicos se preocupem com a cozinha, formando mestras dela sábias e proficientes.
Semelhante iniciativa deve provir da firme disposição em que está o público brasileiro de fazer disto aqui um novo Estados Unidos da América do Norte.
Já começamos pela cozinha e havemos de chegar à sala de visitas, graças a Deus, thanks giving day!
Tomo, porém, licença de notar que não podemos ficar no feijão, na carne-seca ... Esta está pela hora da morte! Conto uma história:
Certo dia fui jantar com um amigo rico e ele me deu este caro menu:
Sopa de legumes;
Carne-seca frita e pirão;
Bacalhoada à portuguesa, com quiabos e maxixes.
Antes de nada, ele me disse:
-- Não repares! Só estes quiabos custaram-me um vintém cada um.
Comi muito e, lembrando-me do fato de agora, da mestra de cozinha, tenho medo que, aperfeiçoando-se muito a cozinha, nós não podemos mais comer ... Enfim!
Careta 22.11.1919

Amazonas do Assírio

No "restaurant" ou bar Assírio, diversas freqüentadoras daquelas paragens, segundo os jornais e por motivos que não vem a pêlo reproduzir aqui, se engalfinharam num pugilato, a altas horas da noite.
Em matéria de combates entre mulheres nós pouco sabemos de positivo.
A história não guarda memória de nenhuma delas, ao que eu saiba; e a única tribo guerreira de damas - assim mesmo não é da história, é da lenda, - de que se tem notícia, é das amazonas.
Essas, porém, não se batiam entre si, mas contra os homens unicamente.
As damas do elegante porão do Municipal, porém, não procedem assim. Deixam de parte os marmanjos e se engalfinham entre elas.
Não posso deixar de aprovar-lhes o procedimento, porque vai nisso um verdadeiro progresso. Se elas ficassem no papel de amazonas da mitologia, que seria delas, do champagne e das sedas?
Ia tudo por água abaixo e a indústria vinhateira ou semelhante de vários países muito sofreria, assim como a do bicho-da-seda.
Procedendo, como procederam, naturalmente quebraram-se algumas garrafas do precioso vinho espumante, estragaram-se muitos vestidos de seda. Daí vem um lucro para os mercadores de vinho e para os comerciantes de fazendas.
Dirão: se fosse à moda das Amazonas, acontecia o mesmo. Não há tal.
Aquelas respeitáveis senhoras combatiam com armaduras, capacetes e outras peças de uniforme inenarrável. O que não acontece com as combatentes atuais, que vão para a liça em traje de passeio.
Dou parabéns àquela dependência do Municipal, por ter podido presenciar mais esse progresso moderno nos costumes femininos.
Não foi à toa que ele, o teatro que devia regenerar a nossa literatura
dramática, custou tão caro ...
Careta 22.05.1920

Vestidos modernos

Nunca foi da minha vocação ser cronista elegante; entretanto, às vezes, me dá na telha olhar os vestidos e atavios das senhoras e moças, quando venho à Avenida. Isto acontece principalmente nos dias em que estou sujo e barbado.
A razão é simples. É que sinto uma grande volúpia em comparar os requintes de aperfeiçoamentos na indumentária, tanto cuidado de tecidos caros que mal encobrem o corpo das "nossas castas esposas e inocentes donzelas", como diz não sei que clássico que o Costa Rego citou outro dia, com o meu absoluto relaxamento.
Há dias, saindo de meu subúrbio, vim à Avenida e à rua do Ouvidor e pus-me a olhar os trajes das damas.
Olhei, notei e concluí: estamos em pleno carnaval.
Uma dama passava com um casaco preto, muito preto, e mangas vermelhas; outra, tinha uma espécie de capote que parecia asas de morcego; ainda outra vestia uma saia patriótica verde e amarelo; enfim, era um dia verdadeiramente dedicado a Momo.
Nunca fui ao Clube dos Democráticos, nem ao dos Fenianos, nem ao dos Tenentes; mas estou disposto a apostar que em dias de bailes entusiásticos nesses templos de folia, os seus salões não se apresentam tão carnavalescos como a Avenida e adjacências nas horas que correm.
Careta 22.07.1922