Lima Barreto e o Futebol
terça-feira, 30 de outubro de 2012
LIMA BARRETO, 90 anos -- III
no dia 1 novembro de 1922 -- portanto há 90 anos -- morria Lima Barreto. qual um réquiem, apresentam-se aqui,a cada dia desta semana, claves temáticas às quais ele dedicou muito de suas reflexões,suas críticas
Por trás da oposição crítica barretiana estava muito mais do que uma
questão literária ou mera contestação do papel de redenção social que Coelho
Neto atribuía ao futebol: Lima via nele um fator de degeneração da cultura e da
política nacional, pois patrocinava uma injusta e gritante diferenciação social
e regional, como declarou em entrevista ao Rio-Jornal em 13
de março de 1919 :“ – Está aí, uma grande
desvantagem social do nosso foot-ball.
Nos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram
apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e
profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do ponta-pé
propaga sua separação e o governo o subvenciona . “
,seus escritos.
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Lima Barreto e o Futebol
Lima Barreto e o Futebol
N
a efetiva contramão de um contexto de franco,amplo entusiasmo em torno do futebol -- não apenas entre o público mas em especial literatos e intelectuais,no que destacava-se Coelho Neto-- emerge Lima
Barreto e seu inquebrantável repúdio ao
futebol. O repúdio barretiano ao futebol integrava-se à ojeriza visceral e
irredutível ao estrangeirismo, a tudo que fosse alienígeno à nacionalidade
--vistas também como ‘estrangeiras’ as elites republicanas. Via a sociedade
brasileira como o fruto da combinação de distintas etnias, mestiçagem essa que
atingira grau elevado de intimidade e adaptabilidade á natureza tropical;
abominava por isso a preocupação obsessiva das elites em fomentar e transmitir a imagem de uma
‘nação branca e civilizada’, fato que as tornava tão estrangeiros quanto os
europeus e americanos “ invasores, as mais das vezes sem nenhuma cultura e
sempre rapinantes.”.
Na crítica à violência gerada pelo futebol dentro e fora dos campos,
inseria-se também em sua crença e pregão dos ideais de fraternidade, harmonia e
paz entre os homens; na crítica aos
elitismo, sectarismo e exclusão
social promovidos pelo futebol, a manifestação de sua ideologia
anarquista-maximalista; e ainda , na essência mesmo do futebol,
encontrava-se a figura de Coelho Neto,
epígono e personificação da escrita/linguagem ‘empolada, de expressões cediças
e figuras de efeito, cheias de arabescos estilísticos’, expressão da
frivolidade e mundanismo então prevalecentes. Sobretudo o futebol como exemplo
da pretensa, falsa e “obtusa” (sic) modernização preconizada e pretendida pela,
segundo ele, “nefanda República
Lima Barreto alinhava-se entre
“os tantos inimigos que pela imprensa o combatem” e que logo passou a
fazer do futebol um de seus temas prediletos nas páginas da imprensa carioca. Com
espaço e reconhecimento já assegurados nos círculos literários , com
três romances e uma infinidade de crônicas,
Lima inaugurou seus ataques em 15 de agosto de 1918 no artigo “Sobre o Foot-ball” no jornal Brás Cubas :
“ Diabo ! A cousa é assim tão séria ? Pois um divertimento é capaz de
inspirar um período tão gravemente apaixonado a um escritor ?
(...) Reatei a leitura, dizendo cá com
os meus botões : isto é exceção, pois não acredito que um jogo de bola e
sobretudo jogado com os pés, seja capaz de inspirar paixões e ódios. Mas , não
senhor ! A cousa era a sério e o narrador da partida, mais adiante, já falava
em armas...
Não conheço os antecedentes da
questão; não quero mesmo conhecê-los; mas não vá acontecer que simples disputas
de um inocente divertimento causem tamanhas desinteligências entre as partes
que venham a envolver os neutros ou mesmo os indiferentes, como eu, que sou
carioca, mas não entendo nada de foot-ball . “
Lima atentava, desde o princípio, para a força social do jogo: longe de
ser um mero passatempo sem sentido, era capaz de inspirar “paixões e ódios” — e
o futebol adquiria para ele uma seriedade ímpar, que o obrigaria como ‘crítico
de costumes’ a dedicar-se profundamente ao novo fenômeno. Transformando-se no
paladino do combate ao jogo de bola, Lima elegeria justamente Coelho Neto como
o principal adversário. . Iniciou-se então um
acirrado confronto pelas páginas da imprensa carioca , logo depois de
mais um empolgante discurso de Neto, por ocasião da inauguração da piscina do
Fluminense em 1919 — discurso que para Lima parecia um verdadeiro pecado,
manifestado na crônica “Histrião ou literato” , na Revista Contemporânea, de 15 de fevereiro de 1919 :
Lima Barreto acusava Coelho Neto
de fazer “somente brindes de sobremesa para satisfação dos ricaços”, e
sustentava que a simpatia de Neto pelo futebol
seria mero oportunismo, um meio de agradar às ricas famílias , vindo de
“um homem que não entende sequer a alma de uma criada negra”. A partir daí,
Lima aumentaria nos meses seguintes a quantidade e intensidade dos ataques, em crônicas
quer em tom agressivo quer irônico, nas
quais surge a imagem de um jogo brutal e sem sentido, totalmente diferente do
elemento de regeneração social preconizado por Coelho Neto, para desespero da
imprensa carioca, quase toda ela empenhada em prestigiar o futebol — com
raríssimas exceções como, por exemplo, a do jornalista e escritor Carlos
Sussekind de Mendonça, que incorporou-se à luta de Lima Barreto contra o
futebol, que ele considerava entre outros aspectos “micróbio de corrupção e
imbecilidade”, “estrangeirismo estéril e inútil”. Propunha sobretudo combater , de todas as formas, a “nefasta
defesa do futebol” feita por intelectuais e escritores — rejeitando, inclusive,
qualquer teoria de que “o esporte possa manter alguma relação com a razão e o
intelecto” — e denunciar as “verdadeiras atrocidades,até dentro dos próprios clubs”
promovidas pelo futebol : como Lima Barreto, enfatizava o “blefe de regeneração social” contido no futebol e os
malefícios “físicos, sanitários,sociais e culturais” de sua disseminação “que
só pode ser bocado de feitiçaria” em campos “onde se apinham centenas de
ociosos assistindo inertes, a transpirar, os vinte e dois heróis de maxambona
ou caixa pregos” .Em 1921, então editor
do jornal A Época, do Rio de Janeiro, Sussekind de Mendonça teve seu
livro O sport está deseducando a
mocidade brasileira - hoje obra raríssima - publicado com o
subtítulo “dedicado a Lima Barreto”.
Ainda em 1919, crescente sua
oposição ao futebol, Lima Barreto passa a contar com a solidariedade de outros
adversários do jogo: junto com ele, o dr. Mário de Lima Valverde — quem, cerca
de dois meses antes ,discorrera para Lima sobre os malefícios à saúde
provocados pela prática de futebol — o jornalista Antonio Noronha Santos e o
“homem de letras” Coelho Cavalcanti resolvem criar, em março de 1919, uma “Liga
Contra o Futebol”, cuja constituição é discretamente anunciada em pequena nota
na edição do Rio-Jornal de 12 de março.
As
aludidas “verdadeiras atrocidades promovidas pelo futebol”, eram denunciadas
por Lima Barreto — como na crônica intitulada “Divertimento?”, publicada na
revista Careta em 04 de dezembro de
1920, em que destacava os inúmeros
conflitos e constantes brigas ocorridos nos campos, com tumultos e batalhas
entre torcidas diferentes, registradas nos jornais diários a cada
segunda-feira, culminando com o tiroteio
num jogo entre o Metropolitano e o São Paulo e Rio em 18 de dezembro de 1920 —
como atestados de que, mais do que casos isolados, seriam “ o fim próprio e
natural do jogo”, como sustenta no artigo “Uma conferência esportiva”, na
revista Careta de 1 de janeiro de
1921.
Lima criticava os “favores e favorezinhos” que os clubes de futebol recebiam do governo
para “criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros , e longe de
tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral
entre as divisões políticas da União, separa-as” : segundo ele, os clubes de
futebol seriam “portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc”.
Isso porque os defensores do futebol, Coelho Neto à frente, sustentavam ser “um sport
que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo “ (jornal Sports, de 6 de agosto de 1915 ) e
reclamavam “que alguns jogadores não tinham o nível social de há uns anos
atrás” (Jornal do Brasil, de 3 de
maio de 1920).
Porém, não eram apenas econômicas e sociais as distinções combatidas
por Lima Barreto, mas também raciais, vedando aos negros participação nos grandes clubes de futebol: em
1921 quando o próprio presidente Epitácio Pessoa proíbe jogadores negros de
fazerem parte do selecionado que ia à Argentina disputar um campeonato, Lima
foi duro nas críticas, publicando no
mesmo dia 1 de outubro de 1921 dois
artigos — “O meu conselho” e “Bendito foot-ball”
— no jornal A . B. C., onde afirma que “quando não havia foot-ball, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer
parte” e aponta o caráter nocivo do
futebol para o país.“ É o fardo do homem branco : surrar os negros, a fim de
trabalharem para ele. O foot-ball não é assim : não surra, mas humilha, não
explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam .”
Vendo nos sócios dos grandes clubes os herdeiros dos antigos senhores
de escravos, Lima enxerga no futebol “uma das formas de continuação da
dominação exercida durante décadas pelo regime escravista, onde se troca a
violência pela humilhação de quem paga impostos para sustentar, com subvenções
oficiais, um jogo ao qual não tem acesso”, o futebol aparece em seus textos como “ um poderoso instrumento de
domínio utilizado por uma raça que se julga eleita por Deus graças às suas
habilidades nos pés ; como a escravidão, sua única finalidade é criar uma
separação idiota entre os brasileiros, perpetuando as desigualdades e
continuando um passado de diferenciação e segregação” (artigo “O nosso
esporte”, publicado no jornal A . B. C.,
de 26 de agosto de 1922 ).
Direta ou indiretamente, não há dúvida de que os literatos como Coelho
Neto e Lima Barreto e suas polêmicas alimentavam um processo que anos depois
faria do futebol, como o é hoje, uma verdadeira instituição nacional. A
dinâmica da transformação do jogo em fenômeno nacional — com suas implicações
sociológicas, políticas e culturais — no
entanto, foi muito menos compreendida por Coelho Neto do que por Lima Barreto,
que indignado com o fato de “indivíduos que não davam para nada “ serem
transformados em verdadeiros “heróis nacionais”, refutava no último artigo escrito antes de morrer ( “O
herói”, para a revista Careta de 18
de novembro de 1922 ) a lógica que fazia desses “pobres esforçados, que nada
fazem para o benefício comum, injustas ‘glórias do Brasil’”.
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
Lima Barreto, 90 anos -- II
no dia 1 novembro de 1922 -- portanto há 90 anos -- morria Lima Barreto. qual um réquiem, apresentam-se aqui,a cada dia desta semana, claves temáticas às quais ele dedicou muito de suas reflexões,suas críticas,seus escritos.
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Lima Barreto e Educação
Lima Barreto, nunca alheio às
questões de seu tempo, ser pensante e
militante como era, tratou da Educação
-- questão histórica nacional , a atravessar os séculos sem lograr satisfazer, a níveis razoáveis (para não
dizer desejáveis, ou obrigatórios) – e os
problemas,carências,insuficiências a ela inerentes,com as lucidez e discernimento
críticos que lhe eram peculiares,
registrado, comentado, denunciado tanto na nãoficção quanto na ficção,
em crônicas,artigos,textos,contos,novelas e romances.
A se ressaltar o pioneirismo, talvez exclusividade,
de Lima nesse campo : foi ele o primeiro,e a meu juízo o único, dos literatos –
refiro-me a escritores,entre romancistas,contistas,poetas, etc , não a
ensaístas e especialistas e teóricos do assunto – a debruçar,
discorrer,refletir, sobre a educação brasileira de seu tempo. Tudo
evidentemente, e coerentemente como não poderia ser de outro modo, sob o viés e
as lentes de sua conhecida, vigorosa, ‘aguerrida’ visão política que imprimiu à
sua vida e à sua obra.
As críticas e reflexões que
aparecem nos escritos de Lima Barreto revelam aspectos relevantes – muitos
deles presentes,e não-resolvidos, até hoje – do cenário educacional do Brasil
nas primeiras décadas do século XX, época em que o debate em torno da
universalização da escola estava posto, e que até procurava-se formular um projeto de educação
popular. Os teóricos e educadores profissionais brasileiros se constituíram
como tal somente a partir das décadas de 1920 e de 1930 -- até então, o
pensamento educacional expressava-se por meio de reflexões sociopolíticas,
realizadas por publicistas veiculadas particularmente pela imprensa.
Daí a importância das
precursoras apreciação e reflexão de
Lima Barreto – por meio de
artigos,crônicas, referências e menções em contos e romances -- sobre a educação no País, (inclusive no
inerente à mulher) , nas primeiras décadas do século XX , formulando uma
crítica , ainda que de forma
assistemática, à organização da educação
escolar, à qualidade do ensino e deficiências dos currículos escolares, às
formação e desempenho de professores, ao “bacharelismo”, à incompetência ,em
suma à política educacional brasileira
então em vigor.[1]
Lima Barreto oferece uma crítica clara à inadequação do ensino à
realidade brasileira, pela falta de um programa que propiciasse uma efetiva
formação técnica, ou pela importação de modelos que não respondiam às necessidades
nacionais. No seu olhar para a educação brasileira à época, Lima -- atento aos
mecanismos educacionais imbuídos nos processos sociais -- sobretudo incorpora e
propõe-se a exprimir a própria concepção política de Educação, em que esta teria como finalidade tanto o crescimento do
homem em si quanto concomitantemente contribuir para a transformação da
sociedade.
Todo arsenal crítico de Lima
Barreto à educação escolar condensa-se – até mais do que ao caráter elitista do
sistema escolar brasileiro -- na questão da sua má qualidade, da sua
fragilidade e superficialidade. As consistência, veemência, acuidade e
discernimento de seu enfoque o colocam, indiscutivelmente, na vanguarda da
crítica social produzida em sua época e o diagnóstico que elabora da formação
escolar de sua época antecipa as questões básicas que especialistas e teóricos
da educação iriam acentuadamente,e formalmente, apontar, em 1932, no “Manifesto
dos Pioneiros da educação Nova: ao povo e ao governo”.
Lima
Barreto e educação da mulher
Importante observar, na
apreciação barretiana sobre educação em geral, o olhar que dedicava à mulher, à
sua formação escolar e o processo educativo a elas estabelecido. Foi acerbado
crítico da carência de oportunidades educacionais às mulheres, e veemente
defensor da obrigatoriedade de serem a elas conferidas melhores possibilidades
de educação – o que, de resto, apenas confirmava a posição analítico-reflexiva
que dispensava à mulher em sua ficção e nãoficção (cf. ROSSO, 2010).
Sustentava que somente por meio
de uma instrução mais aprimorada a mulher, como ‘alicerce da família’, poderia
abrir seus horizontes e dispor da competência necessária para educar os filhos
com discernimento. Para ele, a instrução feminina contribuía de forma decisiva
para a do homem e seu engrandecimento enquanto cidadão: da educação dada aos
filhos dependia o destino das gerações e conseqüentemente da sociedade.
Na obra ficcional, Lima
Barreto aborda a questão da educação e
das relações de gênero : suas personagens femininas , assim como a maioria das
mulheres do início do século, viam a educação simplesmente como um meio para
se fazerem mais agradáveis a seus companheiros ; não buscavam por uma
emancipação intelectual – o que justamente levava Lima a propugnar por melhores oportunidades educacionais para
o sexo feminino[2].
Apesar de a maioria de suas personagens principais serem mulheres inteligentes,
com certo grau de erudição, mantinham-se
circunscritas à esfera do lar, refletindo os padrões culturais da
época: predominava o conceito de ser a mulher mais sentimental e
amorosa do que intelectiva e filosófica. Segundo Lima, era essa essencialmente
a causa de infelicidade existencial e
conjugal da mulher.[3]
Apesar disso, à exceção de Clara dos Anjos todas as personagens femininas de Lima Barreto estudaram – ainda que ,em sua
maioria, em colégios religiosos, o que era acentuadamente criticado por ele,
também nas crônicas e artigos, sugerindo para as mulheres uma educação mais
aberta, mais completa, mais eficiente do que a educação religiosa.
[1] Um dos traços característicos do século XIX, no
Brasil, era a importância atribuída à atividade intelectual como mola
propulsora de mudanças sociais: uma das soluções preconizadas para os males do
país residia na ilustração, resultando na supervalorização da figura do doutor.
Ao homem das idéias era oferecido todo o poder de intervenção na sociedade
daquele tempo. A literatura do período, de certo modo, absorveu essa ideologia
ilustrada, principalmente no romance realista, com sua linguagem cientificista e conversão dos
textos em uma espécie de caso clínico
seguido de receita.
Lima Barreto,porém, opta pela contramão desse discurso e adota a linha satírica ao fustigar os doutores ,e em especial os “falsos
doutores da Bruzundanga”, no conjunto de sua obra, ora com a ridicularização,
ora condenando-os à loucura.Basicamente, execrava a intelectualidade da época,o
doutor visto como privilegiado,para ele a figura que aglutina os mecanismos
regulatórios do exercício do poder no Brasil,primando pela empáfia,pela
superficialidade,pela alienação.
[2] Se por vezes, e em alguns textos, retrata a mulher
‘fútil’,vazia de cultura e de idéias,dada a “prendas domésticas e ofícios de
costureira, apenas a artes e música.”, na verdade põe em cheque e denuncia
justamente a ‘não educação’ oferecida as mulheres.
[3] A rigor ,e na essência, Lima culpava a educação
feminina por ser uma das responsáveis por casamentos errôneos, fracassadas,
frustrados, dissolvidos : sem ter outro objetivo em sua vida, pela carência e
insuficiência de educação, a mulher era despreparada para a vida conjugal
(...) Em geral, na nossa sociedade burguesa, todo o casamento é uma decepção.
É, sobretudo, uma decepção para a mulher. A sua educação estreitamente familiar
e viciada pelas bobagens da instrução das Dorotéias (jesuítas de saia) e outras
religiosas; a estreiteza e monotonia de suas relações, numa única classe de
pessoas, às vezes mesmo de uma só profissão, não dão às moças, que, comumente,
se casam em verdes anos, critério seguro para julgar os seus noivos, senão os
exteriores da fortuna, títulos, riqueza e um nome mais assim.(...)
crônica “Os uxoricidas e
a sociedade brasileira” (Revista Contemporânea 08.03.1919 )
O pior é que a tendência do romance naturalista brasileiro
de então era condenar as mulheres de casamento frustrado à loucura (cf. Flora
Süssekind, in Tal Brasil, qual romance?,
Rio de Janeiro: Achiamé, 1987, p. 53-62).
domingo, 28 de outubro de 2012
Lima Barreto, 90 anos -- I
no dia 1o. novembro de 1922 -- portanto há 90 anos -- morria Lima Barreto. qual um réquiem, apresentam-se aqui,a cada dia desta semana, claves temáticas às quais ele dedicou muito de suas reflexões,suas críticas,seus escritos.
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Lima Barreto e a política
Em essência, Lima Barreto sempre tratou mais
de política do que qualquer outro tema. Ninguém como ele, em seu tempo,
escreveu tanto sobre o tema e, por extensão, sobre questões sociais. Sua ‘literatura militante’,
assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra: sua visão
crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da
luta social; nos jornais e revistas investiu contra todos os signos do poder,
nos textos ficcionais denunciou as profundas injustiças da sociedade
brasileira.
Toda a obra barretiana desenvolve-se a
partir e em torno de um tema nuclear: o
poder e seus efeitos discricionários — o poder
visto e descrito por ele como “o
variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior
da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis,
tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as
possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa
inserção social”. Tinha a visão verticalizada, analisando desde as
estruturas políticas como o governo e as ideologias, e as instituições
culturais como a imprensa e a ciência, até os modelos determinantes do
comportamento coletivo e do relacionamento cotidiano. Lima Barreto era, acima
de tudo, um anti-patrimonialista.
Crítico implacável da pretensa modernidade que
se queria implementar com a República, avesso a todas as formas de assimilação
de valores estrangeiros (no bojo, p. ex. de sua resistência ao futebol, ao
cinema e à cultura importada ), defensor ,por vezes intransigente, de uma
brasilidade que sustentava devia permear a “autêntica língua nacional”, foi no
entanto opositor ativo do nacionalismo
ufanista surgido no final do séc. XIX e início do XX,a começar por questionar as imagens errôneas que o Brasil
fazia de si mesmo, levando ad absurdum os clichês e mitos nacionalistas e os
desmascarando um a um.(no romance Triste
fim de Policarpo Quaresma parodia
implicitamente o opúsculo patrioteiro de Afonso Celso, filho de seu protetor,
intitulado Por que me ufano do meu país
(1901), livro muito popular no começo do século XX, que deu origem ao termo
ufanismo e foi traduzido para diversas línguas na época, inclusive o alemão. Lima Barreto inclusive alertava para
o que denominava “um dos mitos mais
perigosos,o do patriotismo : no fundo, os patriotas grandiloqüentes de plantão
não passam de traidores da pátria, pois a usam para a sua própria autopromoção
e enriquecimento (...), a sociedade
de classes e o Estado a
instrumentalizarem o patriotismo e o nacionalismo em favor do interesse das
elites.”. Na contrapartida, procurou esboçar um patriotismo social, com
consciência histórica e respeito pela cidadania, ancorado na cultura própria,
resistente ao cosmopolitismo e de reconhecimento da mestiçagem – étnica,social
e cultural --no Brasil.
Para
ele, a nova sociedade ,caracterizada
pelo binômio cosmopolitismo, inspirador das ações da elite do país , e
bovarismo[1],
“atitude mistificatória de o homem se
conceber outro que não é, entre o que é e o que acredita ser”, era um
sistema que premiava o egoísmo, o banal, a decadência dos costumes, o
preconceito, lastreada nos valores máximos da elite – a fruição do conforto
material, os privilégios, a superioridade, gerando discriminação e
sectarismo. “A nossa República se
transformou no domínio de um feroz sindicato de argentários cúpidos, com os
quais só se pode lutar com armas na mão. Deles saem todas as autoridades, deles
são os grandes jornais, deles saem as graças e os privilégios; e sobre a Nação
eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que
lhes convém” [2]
Lima Barreto,em sua fértil produção
contística, publicou 46 contos de teor explicitamente político – ainda que em
alguns deles, caso específico do conjunto de 13 textos que ele próprio batizou
de “contos argelinos”, se utilize da alegoria e do simulacro. Exemplares
insofismáveis de veemente oposição à República, da ferrenha crítica aos
governos republicanos ,notoriamente o ‘florianismo’ (referente a Floriano Peixoto) e o ‘hermismo’ ( a Hermes
da Fonseca)[3]
-- já objetos de críticas exacerbadas em inúmeros artigos e crônicas e também
na novela Numa e a ninfa e no memorialístico Diário íntimo --
expressão do intransigente e obstinado
repúdio para as coisas da política, aos
políticos, aos conchavos partidários,às oligarquias , Lima Barreto os “contos argelinos” têm
em seu cerne paródico a ascensão dos militares, com sua crescente participação
na política, e o militarismo — importando
notar que, em outro viés de leitura e interpretação, trazem em si a emblematização ficcional do patrimonialismo,
contra o qual Lima Barreto se colocava na própria essência de sua ideologia.
A
criação, confecção e publicação desses 46 contos deram-se em período histórico
conturbado, durante os sucessivos governos de Hermes da Fonseca, Venceslau Brás
e Epitácio Pessoa, em sete dos mais cruciais anos de plena sedimentação do
regime republicano — de resto um processo de altíssima ebulição política,
convulsionante e transformadora.
Por
essa época , apenas Lima Barreto (Euclydes
da Cunha morrera em 1909) mantinha , entre os escritores, uma postura
participativa – de natureza crítica -- nas coisas da política , uma vez que os
demais literatos se afastaram do
envolvimento e da militância a que se entregaram ainda durante as campanhas
abolicionista e republicana, nas últimas décadas do século XIX e início do
século XX : frustrados a expectativa e o entusiasmo iniciais despertados pela
República , os intelectuais desistiram da participação política ativa,
militante, que muitos tiveram no advento do novo regime e passaram a se
concentrar na literatura e em parte no jornalismo ‘croniquesco’,
dedicando-se a produzir uma literatura
de linguagem empolada, o ‘clássico’
calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos
estilísticos — uma literatura impregnada
de vocábulos garimpados do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da
frivolidade dominante. Uma literatura como “o sorriso da sociedade” de que
falava Afrânio Peixoto e contra a qual Lima Barreto lutava com denodo.
No
lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante ,
destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, Lima Barreto por
essa época já era respeitado como articulista e cronista e reconhecido como
excepcional escritor mercê dos elogiados romances publicados Recordações do escrivão Isaias Caminha(1909)
e Triste fim de Policarpo Quaresma
(1915)—que rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho
jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional,
“instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa
civilização”. Sustentava ele que fazia “uma
literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época
(...), por oposição às letras que,
limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da
idealização da natureza”.
Assim,
na contrapartida ao aristocratismo da escrita de então, aos nefelibatas da
linguagem, tinha-se em
Lima Barreto um registro da
língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente
nacional que prenunciava a linguagem
modernista. Contrariamente à maioria de
seus contemporâneos, Lima Barreto
conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de
contribuir para a felicidade de um povo ,de uma nação, da humanidade” Em sua
concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com objetivo concreto e
definido, como sentencia em entrevista a A Época,18.02.1916 : “(...)não
desejamos mais uma literatura contemplativa, cheia de ênfase e arrebiques
,falsa e sem finalidade, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura
plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos,
manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos
que os adoravam; digamos não a uma
literatura puramente contemplativa, estilizante sem cogitações outras
que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses
embotados pelo dinheiro, de amplo emprego por pretensos intelectuais,bacharéis
e políticos” (...) “a obra
de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Este é meu escopo.
Vim para a literatura com todo o desinteresse e toda coragem. As letras são o
fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar:
glória!”
Dono
de obra ficcional e não-ficcional com vigoroso fulcro ideológico, Lima Barreto
buscava na politização da literatura um sentido sobretudo ético.Na única
conferência literária que faria, mas não o fez — “O destino da Literatura”
[publicada na Revista Souza Cruz,Rio de Janeiro, 1921 , em cujo número
também apareceu trecho do romance O cemitério dos vivos ], em Rio Preto , São Paulo, em
fevereiro de 1921 — foi explícito :“A Beleza não está na forma, no encanto
plástico, na proporção e harmonia das partes, como querem os helenizantes de
última hora . A importância da obra literária que se quer bela
sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, deve
residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse
humano(...) E o destino da literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar
esse grande ideal de fraternidade e de justiça entre os homens para que ela
cumpra ainda uma vez sua missão quase divina. Mais do que qualquer outra
atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a
que me dediquei e com quem me casei; mais do que ela, nenhum outro qualquer
meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio,
teve, tem e terá um grande destino em nossa triste humanidade.”
Marginalizado
por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à
modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade
brasileira que lhe foi contemporânea. Seu projeto era um projeto para uma vida
inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os
falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra
uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma
verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais
de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado
pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso
destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de
nossa conduta na vida” [Bagatelas ; Empresa de Romances Populares,
Rio de Janeiro,1923].
Tanto nos romances e contos como nas crônicas
e artigos, Lima Barreto exerceu sempre
uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia
política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por
uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’,
para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da sociedade, da
política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público,
penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas nada o
fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da República. A “esperança” mencionada por Lima
Barreto na entrevista de 1916 alimentava-se na verdade da recusa impassível em
transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por
via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos,
econômicos, sociais e culturais da República. Nada porém o fez submeter-se a
esses valores.
____
mr
[1] bovarismo, conceito cunhado pelo filósofo francês Jules de Gaultier em
sua obra Le Bovarysme, em 1892, advindo de Gustave Flaubert e sua Madame
Bovary, seja em relação à figura do artista ‘sonhador irresponsável’ seja a
um comportamento artificial simbolizando
um falseamento da vida,um desejo irreal de fuga – o abismo que se abre entre as duas escalas, a
da realidade e a do imaginário, conferindo-lhe
uma dimensão ao mesmo tempo trágica e irônica ; o termo é especialmente
empregado também com o sentido da alienação intelectual que precede a
construção de uma identidade cultural própria. Lima Barreto -- para quem o
bovarismo era uma atitude mistificatória típica da nova elite, extremamente
prejudicial para o país, “o poder partilhado no homem de se conceber
outro que não é, o afastamento entre o indivíduo real e o imaginário,entre o
que é e o que acredita ser” -- aplicou esse conceito tanto literariamente –
no romance Triste fim de Policarpo Quaresma e nos contos “A biblioteca”, “Lívia” e “Na
janela” aparece como a própria essência
dos textos – quanto socialmente : segundo ele, a República estava toda imersa
em atitudes bovaristas e ,pior, os
próprios intelectuais, teoricamente dotados de maior capacidade e lucidez
críticas, mergulharam desde o início numa militância ufanista,destemperada, de
otimismo ingênuo ; e esse ufanismo bovarista era uma forma terrível de se
alienarem dos graves problemas do país.
[2] “Sobre a carestia”, in O
Debate, 15.09.1917.
[3] em dezembro de 1909,Lima Barreto editara com Antônio
Noronha Santos (o maior de seus amigos) um panfleto contra a candidatura Hermes
da Fonseca à presidência da República, intitulado “O Papão – semanário dos
bastidores da política,das artes e... das candidaturas”.
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
A eternidade de “Mestre Graça”
há 120 anos nascia mais do que
um dos maiores escritores da literatura brasileira um grande pensador : Graciliano Ramos. Salve “Mestre
Graça” e a eternidade de sua obra.
e extremamente relevante e oportuno rever – e refletir – sua atuação
como prefeito de Palmeira dos Índios, Alagoas, em 1928 : constitui um modelo impecável para a classe
política brasileira de hoje e para os executivos municipais ora eleitos.
Certamente não era pela qualidade dos produtos oferecidos
que os habitantes do município de Palmeira dos Índios, no agreste alagoano,
viviam na loja de tecidos Sincera. Nada contra as mercadorias. Mas a alma do
negócio era o próprio dono, um intelectual que largava o balcão, punha cadeiras
na calçada em frente ao comércio e, entre doses de café e cachaça, discorria
horas sobre a Revolução Francesa. A gente pobre se deliciava. Resolvia comprar.
E sensibilizado com o aperto financeiro dos conhecidos, Graciliano Ramos vendia
fiado.
O comércio não mexia com a
imaginação de Graciliano. Aos 22 anos (nasceu a 27 de outubro de 1892, em
Quebrângulo, Alagoas) foi tentar a sorte no Rio de Janeiro. Já trabalhava como
revisor e escrevia crônicas quando um telegrama interrompeu o sonho de ser um
escritor. Chegava a notícia da morte de três irmãos, num só dia, e do péssimo
estado da mãe, todos vítimas da peste bubônica. Atarantado, voltou ao sertão, e lá ganhou notoriedade.
Em 1926, o prefeito de Palmeira
dos Índios apareceu fuzilado. De tanto recusar o convite dos amigos para sair
candidato, espalhou-se o boato de que Graciliano estava com medo de fracassar.
"Apareça quem disse que eu não sabia montar em burro bravo!",
desafiou. Ninguém apareceu e ele venceu as eleições sem fazer campanha. Logo
que assumiu o cargo, em 1928, decretou o recolhimento dos bois, cavalos e
porcos que andavam soltos nos passeios públicos. Os donos eram severamente
multados. Sobrou até para o pai do escritor. Certo dia, o fiscal encontrou
algumas vacas do velho em liberdade. Sebastião Ramos protestou, mas o filho
não teve dúvida: "Lavre a multa; prefeito não tem pai."
O homem que lia Marx em francês
na adolescência deu asas às suas inspirações e enviou a prestação de contas ao
governador em linguagem literária. Não se sabe como, mas o texto brilhante foi
parar nas mãos do editor carioca Augusto Frederico Schmidt. Ele supôs que quem
escrevia relatórios como aqueles deveria
ter algum romance escondido na gaveta. Schmidt acertou e mandou publicar Caetés, lançado quando Graciliano já
contava 41 anos. A austeridade do administrador resultou no convite para
dirigir a Imprensa Oficial do Estado, equivalente a uma Secretaria de Educação.
Detido sob a falsa acusação de participar da Levante
Comunista de 1935, Graciliano passou dez árduos meses preso no Rio de Janeiro.
O inferno foi retratado em Memórias do
cárcere. Deixou a cadeia em janeiro de 1936 e nunca mais voltou para
Alagoas. Ao contrário, trouxe a mulher, Heloísa, e duas filhas para uma pensão
no Catete, no Rio. "Parecia ser um sujeito ríspido, mas no fundo isso não
passa de estereótipo", lembra o jornalista Moacir Werneck de Castro, então
vizinho de Graciliano. O extraordinário crítico Otto Maria Carpeaux escreveu :
“A mestria singular de Graciliano Ramos reside no seu estilo. Para salvar esta
frase da apreciação ‘lugar-comum’ é apenas preciso definir o que é estilo:
escolha de palavras, escolha de construções, escolha de ritmos dos fatos,
escolha dos próprios fatos para conseguir uma composição perfeita,
perfeitamente pessoal: pessoal, no caso, ‘à maneira de Graciliano Ramos’.
Estilo é escolha entre o que deve perecer e o que deve sobreviver. É muito
meticuloso. Quer eliminar tudo o que não é essencial: as descrições pitorescas,
o lugar-comum das frases feitas, a eloqüência tendenciosa. Seria capaz de eliminar
ainda páginas inteiras, eliminar os seus romances inteiros, eliminar o próprio
mundo. Para guardar apenas o que é essencial, isto é, conforme o conceito de
Benedetto Croce, o ‘lírico’. O lirismo de Graciliano Ramos é amusical,
adinâmico, estático, sóbrio, clássico, classicista, traindo, às vezes, um
oculto passado parnasiano do escritor. Não quer agitar o mundo agitado; quer
fixá-lo, estabilizá-lo. Elimina implacavelmente tudo o que não se presta a tal
obra de escultor.Os romances de Graciliano Ramos são experimentos para acabar
com o sonho de angústia que é a nossa vida.”.
As dificuldades financeiras
acompanharam Graciliano até o fim da vida. Sua produção literária era lenta e
mal-remunerada. Acumulava as funções de inspetor de ensino e revisor do Correio da Manhã. A filiação ao Partido
Comunista aconteceu em 1945, quando o PCB saiu da ilegalidade do Estado Novo.
Foi um membro ativo, mas nunca se submeteu ao patrulhamento ideológico dos
companheiros, que insistiam para que sua obra se voltasse para um realismo
socialista. Preferia denunciar a miséria brasileira por meio de personagens
ásperos e uma linguagem sem rebuscamento..
Sua franqueza cortante foi
espionada até o último dia. Graciliano Ramos não resistiu ao câncer no pulmão
causado pelos três maços diários de cigarros Selma. Na manhã do dia 20 de março
de 1953, o telefone tocou na Casa de Saúde São Victor. "Pode me informar
se Graciliano Ramos faleceu?" "Sim, senhor", responderam.
"Meus pêsames. É do Departamento de Ordem Política e Social. Desejávamos
saber se podíamos inutilizar a ficha dele." Como se as idéias morressem
com o corpo.
aos
prefeitos recém-eleitos – e aqueles a ora se elegerem
Muitos escritores imprimiram a
suas obras literárias conotações políticas. Graciliano Ramos fez o caminho
inverso: transformou a mais árida política em literatura. Quando
prefeito de Palmeira dos Índios, de 1928 a 1930, redigiu os mais bem-escritos
relatórios -- dirigidos ao governador do estado -- de que se tem notícia.
Saiu-se na política quase tão bem quanto na literatura. A atenção que deu à
educação quando prefeito rendeu-lhe o convite para assumir a direção da
Instrução Pública de Alagoas. No cargo, revolucionou os métodos de ensino
utilizados no estado.
Hoje, em plena vigência – e
cobramos o perfeito cumprimento, por
parte de todos -- da benvinda Lei de
Responsabilidade Fiscal, vale lembrar que os princípios da “gestão fiscal responsável” já eram
inerentes à atuação de Graciliano à frente da Prefeitura de Palmeira dos
Indios. As medidas administrativas do então prefeito ficaram famosas em virtude
da divulgação dos “Relatórios de Prestação de Contas” enviados ao governador de
Alagoas -- como este de 16 junho 1929:
Relatório ao
sr. governador Álvaro Paes
Receita – 96:924$985
No orçamento do ano passado
houve supressão de várias taxas que existiam em 1928. A receita, entretanto,
calculada em 68:850$000, atingiu 96:924$985.
E não empreguei rigores
excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas
que não precisavam deles e pus termo às extorsões que afligiam os matutos de
pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores.
(...)
Administração – 22:667$748
Figuram 7:034$558 despendidos
com a cobrança das rendas, 3:518$000 com a fiscalização e 2:400$000 pagos a um
funcionário aposentado. Tenho seis cobradores, dois fiscais e um secretário.
Todos são mal remunerados. (...)
Cemitério – 243$000
Pensei em construir um novo
cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos
a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma
obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os
munícipes que não reclamam.
Iluminação – 7:800$000
A prefeitura foi intrujada
quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar
de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras.
É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá. (...)
Instrução – 2:886$180
Instituíram-se escolas em
três aldeias: Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. (...) Presumo que esses
estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras
revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas
algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras.
Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. (...)
Miudezas
Não pretendo levar ao
público a idéia de que os meus empreendimentos tenham vulto. Sei perfeitamente
que são miuçalhas. Mas afinal existem. E, comparados a outros ainda menores,
demonstram que aqui pelo interior podem tentar-se coisas um pouco diferentes
dessas invisíveis sem grande esforço de imaginação ou microscópio.
Quando iniciei a rodovia de
Sant’Ana, a opinião de alguns munícipes era de que ela não prestava porque
estava boa demais. Como se eles não a merecessem. E argumentavam. Se aquilo não
era péssimo, com certeza sairia caro, não poderia ser executado pelo município.
(...)
Projetos
Tenho vários, de execução
duvidosa. Poderei concorrer para o aumento da produção e, conseqüentemente, da
arrecadação. (...) Iniciarei, se houver recursos, trabalhos urbanos. (...)
Empedrarei, se puder, algumas
ruas.
Tenho também a idéia de
iniciar a construção de açudes na zona sertaneja.
Mas para que semear promessas
que não sei se darão frutos? Relatarei com pormenores os planos a que me
referia quando eles estiverem executados, se isto acontecer.
Ficarei, porém, satisfeito se
levar ao fim as obras que encetei. É uma pretensão moderada, realizável. Se não
realizar, o prejuízo não será grande.
O município, que esperou dois
anos, espera mais um. Mete na prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo de
mim cobras e lagartos.
Procuro sempre os caminhos
mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram
inteiramente impossíveis.
Há quem ache tudo
ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda
por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para
quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assunto
invariável: há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de
lucro.
Graciliano Ramos
segunda-feira, 22 de outubro de 2012
Lima Barreto e seus "amados subúrbios"
a propósito de telenovelas(foi-se uma,vem a outra, com idênticas ambientações locais) -- agora 'esmerando-se',por motivos e objetivos[sic] vários, no enfocar e captar o subúrbio carioca : vale reportar a Lima Barreto,que como ninguém o retratou,e efetivamente amou.
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Bailes e divertimentos suburbanos
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Bailes e divertimentos suburbanos
Gazeta de Notícias, 7.02.1922.
Há
dias, na minha vizinhança, quase em frente à minha casa, houve um baile. Como
tinha passado um mês enfurnado na minha modesta residência, que para enfezar
Copacabana denominei "Vila Quilombo", pude perceber todos os
preparativos da festa doméstica: a matança de leitões, as entradas das caixas
de doces, a ida dos assados para a padaria, etc.
Na noite do baile, fui deitar-me
cedo, como sempre faço quando me resolvo a descansar a sério. Às 9 horas, por
aí assim, estava dormindo a sono solto. O baile já havia começado e ainda com
algumas polcas repinicadas ao piano. Às 2 e meia, interrompi o sono e estive
acordado até às 4 da madrugada, quando acabou o sarau. A não ser umas
barcarolas cantadas em italiano, não ouvi outra espécie de música, a não ser
polcas adoidadas e violentamente sincopadas, durante todo esse tempo.
O dia veio se fazer inteiramente. Levantei-me da cama e, dentro em breve, tomava o café matinal em companhia de meus irmãos.
Perguntei a minha irmã, provocado pela monótona musicaria do baile da vizinhança, se nos dias presentes não se dançavam mais valsas, mazurcas, quadrilhas ou quadras, etc. Justifiquei-lhe o motivo da pergunta.
- Qual! - disse-me ela. - Não se gosta mais disso... O que apreciam os dançarmos de hoje, são músicas apolcadas, tocadas "a la diable", que servem para dançar o tango, fox-trot, rang-time, e...
- "Cake-walk"? - perguntei.
- Ainda não se dança, ou já se dançou; mas agora, está aparecendo um tal de "shimmy".
Nunca vi dançar tal coisa, nem me tenta vê-lo; mas a informação me fez lembrar do que era um baile familiar há vinte anos passados. O baile, não sei se é, era ou foi, uma instituição nacional, mas tenho certeza de que era profundamente carioca, especialmente suburbano.
Na escolha da casa, presidia sempre a capacidade da sala de visitas para a comemoração coreográfica das datas festivas da família. Os construtores das casas já sabiam disso e sacrificavam o resto da habitação à sala nobre. Houve quem dissesse que nós fazíamos casa, ou as tínhamos para os outros, porque a melhor peça dela era destinada a estranhos.
Hoje, porém, as casas minguam em geral, e especialmente, na capacidade dos seus aposentos e cômodos. Nas salas de visitas das atuais mal cabem o piano e uma meia mobília, adquirida a prestações. Meia dúzia de pessoas, numa delas, estão ameaçadas de morrer asfixiadas com as janelas abertas. Como é que elas podem comportar um baile à moda antiga, em que dançavam dúzias de pares? Evidentemente, não. Isto acontece com as famílias remediadas; com as verdadeiramente pobres, a coisa piora. Ou moram em cômodos ou em casitas de avenidas, que são um pouco mais amplas do que a gaiola dos passarinhos.
Por isso entre a gente média os bailes estão quase desaparecendo dos seus hábitos; e, na gente pobre, eles ficaram reduzidos ao mínimo de um concerto de violão ou a um recibo de sócio de um clube dançante na vizinhança, onde as moças vigiadas pelas mães possam pirutear em salão vasto.
O meu amigo Sussekind de Mendonça, no seu interessante livro O esporte está deseducando a mocidade brasileira , refere-se à licenciosidade das danças modernas.
Hei de falar mais detidamente sobre esse vigoroso livro: agora, porém, cabe só uma observação. Mendonça alude ao que se passa no "set" carioca; mas pelo que me informam, o subúrbio não lhe fica atrás. Nos tempos idos, essa gente verde das nossas elegâncias - verde é sempre uma espécie de argot - sempre mutável e variável de ano para ano, - desdenhava o subúrbio e acusava-o falsamente de dançar maxixe; hoje, não há diferença: todo o Rio de Janeiro, de alto a baixo, incluídos os Democráticos e o Music-Club das Laranjeiras, o dança.
Há uma coisa a notar: é que esse maxixe familiar não foi dos "Escorregas" de Cascadura para o Acchilleon do Flamengo; ao contrário, veio deste para aquela.
O meu estimado Mendonça atribui o "andaço" dessas danças desavergonhadas ao futebol. O Sr. Antônio Leão Veloso achou isso exagerado. Pode haver exagero - não ponho em dúvida tal coisa - mas o tal de futebol pos tanta grosseria no ambiente, tanto desdém pelas coisas de gosto, e reveladoras de cultura, tanta brutalidade de maneiras, de frases e de gestos, que é bem possível não ser ele isento de culpa no recrudescimento geral, no Rio de Janeiro, dessas danças luxuriosas que os hipócritas estadunidenses foram buscar entre os negros e os apaches. Convém notar que, entre esses retardados exemplares da nossa humanidade, quando em estado selvagem, semelhantes danças não têm a significação luxuriosa e lasciva que se julga. Fazem parte dos rituais dos seus Deuses, e com elas invocam a sua proteção nas vésperas de guerras e em outras ocasiões solenes.
Passando para os pés dos civilizados, elas são deturpadas, acentuadas na direção de um apelo claro à atividade sexual, perdem o que significavam primitivamente e se tornam intencionalmente lascivas, provocantes e imorais.
Isto, porém, não nos interessa, porque não interessa tanto ao subúrbio como ao "set" carioca, que dançam "one-step" e o tango argentino, e nessas bárbaras danças se nivelam. O subúrbio civiliza-se, diria o saudoso Figueiredo Pimentel, que era também suburbano; mas de que forma, santo Deus?
Quando fui morar naquelas paragens não havia noite em que voltando tarde para casa, não topasse no caminho com um baile, com um chôro, como se dizia na gíria do tempo. Havia famílias que davam um por mês, fora os extraordinários, e havia também cavalheiros e damas que não faltavam a eles, além de irem a outros de famílias diferentes.
Eram célebres nos subúrbios, certos rapazes e moças, como tipos de dançarinos domésticos. Conheci alguns, e ouvi muitos falar neles. Lembro-me bem, dentre eles, de uma moça que, às vezes, atualmente ainda encontro, gordinha, com dois ou três filhos que lhe dão um imenso trabalho para acomodar nos bondes. Chamavam-na Santinha, e tinha uma notoriedade digna de um poeta de "Amor" ou de um gatimanhas de cinematógrafo. Não' era bonita na rua, longe disso. A sua aparência era de uma moça como muitas outras, de feições miúdas, sem grande relevo, cabelos abundantes e sedosos. Tinha, porém, um traço próprio, pouco vulgar nas moças. A sua testa era alta e reta, testa de deusa a pedir um diadema. Era estimada como discipula de Terpsícore burguesa. A sua especialidade estava na valsa americana que dançava como ninguém. Não desdenhava as outras contradanças, mas a valsa era a sua especialidade. Dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, só nos dias de luto da semana santa e no de finados, não dançava. Em todos os mais, Santinha valsava até de madrugada. Dizia a todos que, por tanto dançar não tinha tempo de namorar. De fato, sempre requestada para esta e aquela contradança, via tantos e tantos cavalheiros, que acabava não vendo nenhum ou não firmando a fisionomia de nenhum.
Se não era bela na rua, em atitude comum de passeio, valsando ficava outra, tomava um ar de sílfide, de divindade aérea, vaporosa e adquiria um ar esvoaçante de visão extra-real. Fugia ao solo e como que pairava no espaço...
Os que a viram dançar e me falam dela, até hoje não escondem a profunda impressão que a moça, ao valsar, lhes causou; e quando hoje, por acaso, a encontro atrapalhada com os filhos, penso de mim para mim: para que essa moça se cansou tanto? Chegou afinal ao ponto em que tantas outras chegam com muito menos esforço...
O "pendant" masculino de Santinha era o seu Gastão. Baile em que não aparecia seu Gastão, não merecia consideração. Só dançava de "smoking", e o resto do vestuário de acordo. Era um rapaz de boa altura, simpático, grandes e bastos bigodes, de uma delicadeza exagerada; A sua especialidade não era a valsa; era o "pas-de-quatre", que dançava com ademanes de dança antiga, de minueto ou de coisa parecida. Fazia cumprimentos hieráticos e dava os passos com a dignidade e convicção artística de um Vestris. Seu Gastão ainda existe, e prosperou na vida. Quando rei suburbano do "pas-de-quatre" era empregado de um banco ou de um grande escritório comercial. Hoje é diretor-gerente de uma casa bancária, está casado, tem filhos, mora em Conde de Bonfim, numa vasta casa, mas raramente dá bailes. Dançou para a vida inteira e também pelos filhos e filhas.
Nesses bailes suburbanos, o mártir era o dono da casa: Seu Nepomuceno começava por não conhecer mais da metade da gente que, transitoriamente, abrigava, porque Cacilda trazia Nenê e esta o irmão que era namorado daquela - a única cuja família tinha relações com a do Seu Nepomuceno; e, assim, a casa se enchia de desconhecidos. Além destes subconvidados, ainda existiam os penetras. Chamava-se assim certos rapazes que, sem nenhuma espécie de convite, usavam deste ou daquele truque, para entrar nos bailes - penetrar.
Em geral, apesar da multidão dos convidados, essas festas domésticas tinham um grande cunho de honestidade e respeito. Eram raros os excessos e as danças, com o intervalo de um hora, para uma ceia modesta, se prolongavam até o clarear do dia sem que o mais arguto do sereno pudesse notar uma discrepância nas atitudes dos pares, dançando ou não. Sereno, era chamado o agrupamento de curiosos que ficavam na rua a espiar o baile. Quase sempre era formado de pessoas das vizinhanças e outras que não haviam sido convidadas e lá se postavam para ter assunto em que baseassem a sua despeitada crítica.
Esses bailes burgueses não eram condenados pela religião. Se algumas nada diziam, calavam-se. Outras até elogiavam. O puritanismo era francamente favorável a eles. Afirmava ele, pela boca de adeptos autorizados, que essas reuniões facilitavam a aproximação dos moços de dois sexos, cuja vida particular a cada um deles se fazia isoladamente, sem terem ocasião de trocar impressões, sem comunicarem mutuamente quais os seus anelos, quais os seus desgostos, favorecendo tudo isso os saraus familiares.
Estou certo de que os positivistas, hoje, julgariam que os atuais bailes aproximam por demais os sexos, e... "anathema sit".
O pequeno povo porém ainda não sabe o "fox-trot", nem o "shimmy". Nos seus clubes, ao som do piano ou de estridulantes charangas, dança ainda à antiga; e, no recesso do lar com um terno de flauta, um cavaquinho e violão ou sob o compasso de um prestativo gramofone, ainda volteia a sua valsa ou requebra uma polca, extraordinariamente honesta em comparação com os tais "steps" da moda.
Sem receio de errar, entretanto, pode-se dizer que o baile familiar e burguês, democrático e efusivo, está fora da moda, nos subúrbios. A carestia da vida, a exigüidade das casas atuais e a imitação da alta burguesia desfiguraram-no muito e tendem a extingui-lo.
O violão e a modinha que Catulo, com sua tenacidade, com o seu talento e a sua obediência cega a um grande ideal, dignificou e tornou capaz da atenção dos intelectuais, vão sendo mais prezados e já se fazem encantos dos saraus burgueses em que, pelas causas apontadas, as danças mínguam. É pena que para um Catulo, artista honesto, sob todos os pontos de vista, haja uma dezena de Casanovas disponíveis, que, maus de natureza e sem talento algum, se servem da arte reabilitada pelo autor de Sertanejo, a fim de, por intermédio de horríveis cantarolas, levarem a desgraça a lares pobres e perder moças ingênuas e inexperientes. Há por lá monstros desses que contam tais proezas às dezenas. É o caso de imitar o outro e escrever: O Código Penal e a inutilidade das leis.
Uma outra diversão que, antigamente, os suburbanos apreciavam muito e hoje está quase morta, era a do teatrinho de amadores. Quase todas as estações tinham mantido um Clube. O do Riachuelo, teve a sua meia hora de celebridade; possuía um edifício de razoáveis proporções; mas desapareceu, e, atualmente, foi transformado em escola municipal. O que havia de característico na vida suburbana, em matéria de diversão, pouco ou quase nada existe mais. O cinema absorveu todas elas e, pondo de parte o Mafuá semi-eclesiástico, é o maior divertimento popular da gente suburbana.
Até o pianista, o célebre pianista de bailes, ele arrebatou e monopolizou.
Nada tem, porém, de próprio ao lugar, é tal e qual outro e qualquer cinema do centro ou qualquer parte da cidade em que haja pessoas cujo gosto de se divertir no escuro arrasta a ver-lhes as fitas durante hora e tanto.
O futebol flagela também aquelas paragens como faz ao Rio de Janeiro inteiro. Os clubes pululam e os há em cada terreno baldio de certa extensão.
Nunca lhes vi uma partida, mas sei que as suas regras de bom-tom em nada ficam a dever às dos congêneres dos bairros elegantes.
A única novidade que notei, e essa mesma não me parece ser grave, foi a de festejarem a vitória sobre um rival, cantando os vencedores pelas ruas, com gambitos nus, a sua proeza homérica com letra e música da escola dos cordões carnavalescos. Vi isto só uma vez e não garanto que essa hibridação do samba, mais ou menos africano com o futebol anglo-saxônio, se haja hoje generalizado nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto afiançar.
Resta-nos o Carnaval; é ele, porém, tão igual por toda a parte, que foi impossível, segundo tudo faz crer, ao subúrbio dar-lhe alguma coisa de original. Lá, como na Avenida, como em Niterói, como em Maxambomba, como em todo este Brasil inteiro, são os mesmos cordões, blocos, grupos, os mesmos versos indignos de manicômio, as mesmas músicas indigestas e, enfim, o Carnaval em que como lá diz Gamaliel de Mendonça, no seu último livro - Revelação: - Os homens são jograis; as mulheres, bacantes. -
O subúrbio não se diverte mais. A vida é cara e as apreensões muitas, não permitindo prazeres simples e suaves, doces diversões familiares, equilibradas e plácidas. Precisa-se de ruído, de zambumba, de cansaço, para esquecer, para espançar as trevas que em torno da nossa vida, mais densas se fazem, dia para dia, acompanhando "pari-passu" as suntuosidades republicanas.
Ele não mais se diverte inocentemente; o subúrbio se atordoa e se embriaga não só com o álcool, com a lascívia das danças novas que o esnobismo foi buscar no arsenal da hipocrisia norte-americana. Para as dificuldades materiais de sua precária existência, criou esse seu paraíso artificial, em cujas delícias transitórias mergulha, inebria-se minutos, para esperar, durante horas, dias e meses, um aumentozinho de vencimentos...
O dia veio se fazer inteiramente. Levantei-me da cama e, dentro em breve, tomava o café matinal em companhia de meus irmãos.
Perguntei a minha irmã, provocado pela monótona musicaria do baile da vizinhança, se nos dias presentes não se dançavam mais valsas, mazurcas, quadrilhas ou quadras, etc. Justifiquei-lhe o motivo da pergunta.
- Qual! - disse-me ela. - Não se gosta mais disso... O que apreciam os dançarmos de hoje, são músicas apolcadas, tocadas "a la diable", que servem para dançar o tango, fox-trot, rang-time, e...
- "Cake-walk"? - perguntei.
- Ainda não se dança, ou já se dançou; mas agora, está aparecendo um tal de "shimmy".
Nunca vi dançar tal coisa, nem me tenta vê-lo; mas a informação me fez lembrar do que era um baile familiar há vinte anos passados. O baile, não sei se é, era ou foi, uma instituição nacional, mas tenho certeza de que era profundamente carioca, especialmente suburbano.
Na escolha da casa, presidia sempre a capacidade da sala de visitas para a comemoração coreográfica das datas festivas da família. Os construtores das casas já sabiam disso e sacrificavam o resto da habitação à sala nobre. Houve quem dissesse que nós fazíamos casa, ou as tínhamos para os outros, porque a melhor peça dela era destinada a estranhos.
Hoje, porém, as casas minguam em geral, e especialmente, na capacidade dos seus aposentos e cômodos. Nas salas de visitas das atuais mal cabem o piano e uma meia mobília, adquirida a prestações. Meia dúzia de pessoas, numa delas, estão ameaçadas de morrer asfixiadas com as janelas abertas. Como é que elas podem comportar um baile à moda antiga, em que dançavam dúzias de pares? Evidentemente, não. Isto acontece com as famílias remediadas; com as verdadeiramente pobres, a coisa piora. Ou moram em cômodos ou em casitas de avenidas, que são um pouco mais amplas do que a gaiola dos passarinhos.
Por isso entre a gente média os bailes estão quase desaparecendo dos seus hábitos; e, na gente pobre, eles ficaram reduzidos ao mínimo de um concerto de violão ou a um recibo de sócio de um clube dançante na vizinhança, onde as moças vigiadas pelas mães possam pirutear em salão vasto.
O meu amigo Sussekind de Mendonça, no seu interessante livro O esporte está deseducando a mocidade brasileira , refere-se à licenciosidade das danças modernas.
Hei de falar mais detidamente sobre esse vigoroso livro: agora, porém, cabe só uma observação. Mendonça alude ao que se passa no "set" carioca; mas pelo que me informam, o subúrbio não lhe fica atrás. Nos tempos idos, essa gente verde das nossas elegâncias - verde é sempre uma espécie de argot - sempre mutável e variável de ano para ano, - desdenhava o subúrbio e acusava-o falsamente de dançar maxixe; hoje, não há diferença: todo o Rio de Janeiro, de alto a baixo, incluídos os Democráticos e o Music-Club das Laranjeiras, o dança.
Há uma coisa a notar: é que esse maxixe familiar não foi dos "Escorregas" de Cascadura para o Acchilleon do Flamengo; ao contrário, veio deste para aquela.
O meu estimado Mendonça atribui o "andaço" dessas danças desavergonhadas ao futebol. O Sr. Antônio Leão Veloso achou isso exagerado. Pode haver exagero - não ponho em dúvida tal coisa - mas o tal de futebol pos tanta grosseria no ambiente, tanto desdém pelas coisas de gosto, e reveladoras de cultura, tanta brutalidade de maneiras, de frases e de gestos, que é bem possível não ser ele isento de culpa no recrudescimento geral, no Rio de Janeiro, dessas danças luxuriosas que os hipócritas estadunidenses foram buscar entre os negros e os apaches. Convém notar que, entre esses retardados exemplares da nossa humanidade, quando em estado selvagem, semelhantes danças não têm a significação luxuriosa e lasciva que se julga. Fazem parte dos rituais dos seus Deuses, e com elas invocam a sua proteção nas vésperas de guerras e em outras ocasiões solenes.
Passando para os pés dos civilizados, elas são deturpadas, acentuadas na direção de um apelo claro à atividade sexual, perdem o que significavam primitivamente e se tornam intencionalmente lascivas, provocantes e imorais.
Isto, porém, não nos interessa, porque não interessa tanto ao subúrbio como ao "set" carioca, que dançam "one-step" e o tango argentino, e nessas bárbaras danças se nivelam. O subúrbio civiliza-se, diria o saudoso Figueiredo Pimentel, que era também suburbano; mas de que forma, santo Deus?
Quando fui morar naquelas paragens não havia noite em que voltando tarde para casa, não topasse no caminho com um baile, com um chôro, como se dizia na gíria do tempo. Havia famílias que davam um por mês, fora os extraordinários, e havia também cavalheiros e damas que não faltavam a eles, além de irem a outros de famílias diferentes.
Eram célebres nos subúrbios, certos rapazes e moças, como tipos de dançarinos domésticos. Conheci alguns, e ouvi muitos falar neles. Lembro-me bem, dentre eles, de uma moça que, às vezes, atualmente ainda encontro, gordinha, com dois ou três filhos que lhe dão um imenso trabalho para acomodar nos bondes. Chamavam-na Santinha, e tinha uma notoriedade digna de um poeta de "Amor" ou de um gatimanhas de cinematógrafo. Não' era bonita na rua, longe disso. A sua aparência era de uma moça como muitas outras, de feições miúdas, sem grande relevo, cabelos abundantes e sedosos. Tinha, porém, um traço próprio, pouco vulgar nas moças. A sua testa era alta e reta, testa de deusa a pedir um diadema. Era estimada como discipula de Terpsícore burguesa. A sua especialidade estava na valsa americana que dançava como ninguém. Não desdenhava as outras contradanças, mas a valsa era a sua especialidade. Dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, só nos dias de luto da semana santa e no de finados, não dançava. Em todos os mais, Santinha valsava até de madrugada. Dizia a todos que, por tanto dançar não tinha tempo de namorar. De fato, sempre requestada para esta e aquela contradança, via tantos e tantos cavalheiros, que acabava não vendo nenhum ou não firmando a fisionomia de nenhum.
Se não era bela na rua, em atitude comum de passeio, valsando ficava outra, tomava um ar de sílfide, de divindade aérea, vaporosa e adquiria um ar esvoaçante de visão extra-real. Fugia ao solo e como que pairava no espaço...
Os que a viram dançar e me falam dela, até hoje não escondem a profunda impressão que a moça, ao valsar, lhes causou; e quando hoje, por acaso, a encontro atrapalhada com os filhos, penso de mim para mim: para que essa moça se cansou tanto? Chegou afinal ao ponto em que tantas outras chegam com muito menos esforço...
O "pendant" masculino de Santinha era o seu Gastão. Baile em que não aparecia seu Gastão, não merecia consideração. Só dançava de "smoking", e o resto do vestuário de acordo. Era um rapaz de boa altura, simpático, grandes e bastos bigodes, de uma delicadeza exagerada; A sua especialidade não era a valsa; era o "pas-de-quatre", que dançava com ademanes de dança antiga, de minueto ou de coisa parecida. Fazia cumprimentos hieráticos e dava os passos com a dignidade e convicção artística de um Vestris. Seu Gastão ainda existe, e prosperou na vida. Quando rei suburbano do "pas-de-quatre" era empregado de um banco ou de um grande escritório comercial. Hoje é diretor-gerente de uma casa bancária, está casado, tem filhos, mora em Conde de Bonfim, numa vasta casa, mas raramente dá bailes. Dançou para a vida inteira e também pelos filhos e filhas.
Nesses bailes suburbanos, o mártir era o dono da casa: Seu Nepomuceno começava por não conhecer mais da metade da gente que, transitoriamente, abrigava, porque Cacilda trazia Nenê e esta o irmão que era namorado daquela - a única cuja família tinha relações com a do Seu Nepomuceno; e, assim, a casa se enchia de desconhecidos. Além destes subconvidados, ainda existiam os penetras. Chamava-se assim certos rapazes que, sem nenhuma espécie de convite, usavam deste ou daquele truque, para entrar nos bailes - penetrar.
Em geral, apesar da multidão dos convidados, essas festas domésticas tinham um grande cunho de honestidade e respeito. Eram raros os excessos e as danças, com o intervalo de um hora, para uma ceia modesta, se prolongavam até o clarear do dia sem que o mais arguto do sereno pudesse notar uma discrepância nas atitudes dos pares, dançando ou não. Sereno, era chamado o agrupamento de curiosos que ficavam na rua a espiar o baile. Quase sempre era formado de pessoas das vizinhanças e outras que não haviam sido convidadas e lá se postavam para ter assunto em que baseassem a sua despeitada crítica.
Esses bailes burgueses não eram condenados pela religião. Se algumas nada diziam, calavam-se. Outras até elogiavam. O puritanismo era francamente favorável a eles. Afirmava ele, pela boca de adeptos autorizados, que essas reuniões facilitavam a aproximação dos moços de dois sexos, cuja vida particular a cada um deles se fazia isoladamente, sem terem ocasião de trocar impressões, sem comunicarem mutuamente quais os seus anelos, quais os seus desgostos, favorecendo tudo isso os saraus familiares.
Estou certo de que os positivistas, hoje, julgariam que os atuais bailes aproximam por demais os sexos, e... "anathema sit".
O pequeno povo porém ainda não sabe o "fox-trot", nem o "shimmy". Nos seus clubes, ao som do piano ou de estridulantes charangas, dança ainda à antiga; e, no recesso do lar com um terno de flauta, um cavaquinho e violão ou sob o compasso de um prestativo gramofone, ainda volteia a sua valsa ou requebra uma polca, extraordinariamente honesta em comparação com os tais "steps" da moda.
Sem receio de errar, entretanto, pode-se dizer que o baile familiar e burguês, democrático e efusivo, está fora da moda, nos subúrbios. A carestia da vida, a exigüidade das casas atuais e a imitação da alta burguesia desfiguraram-no muito e tendem a extingui-lo.
O violão e a modinha que Catulo, com sua tenacidade, com o seu talento e a sua obediência cega a um grande ideal, dignificou e tornou capaz da atenção dos intelectuais, vão sendo mais prezados e já se fazem encantos dos saraus burgueses em que, pelas causas apontadas, as danças mínguam. É pena que para um Catulo, artista honesto, sob todos os pontos de vista, haja uma dezena de Casanovas disponíveis, que, maus de natureza e sem talento algum, se servem da arte reabilitada pelo autor de Sertanejo, a fim de, por intermédio de horríveis cantarolas, levarem a desgraça a lares pobres e perder moças ingênuas e inexperientes. Há por lá monstros desses que contam tais proezas às dezenas. É o caso de imitar o outro e escrever: O Código Penal e a inutilidade das leis.
Uma outra diversão que, antigamente, os suburbanos apreciavam muito e hoje está quase morta, era a do teatrinho de amadores. Quase todas as estações tinham mantido um Clube. O do Riachuelo, teve a sua meia hora de celebridade; possuía um edifício de razoáveis proporções; mas desapareceu, e, atualmente, foi transformado em escola municipal. O que havia de característico na vida suburbana, em matéria de diversão, pouco ou quase nada existe mais. O cinema absorveu todas elas e, pondo de parte o Mafuá semi-eclesiástico, é o maior divertimento popular da gente suburbana.
Até o pianista, o célebre pianista de bailes, ele arrebatou e monopolizou.
Nada tem, porém, de próprio ao lugar, é tal e qual outro e qualquer cinema do centro ou qualquer parte da cidade em que haja pessoas cujo gosto de se divertir no escuro arrasta a ver-lhes as fitas durante hora e tanto.
O futebol flagela também aquelas paragens como faz ao Rio de Janeiro inteiro. Os clubes pululam e os há em cada terreno baldio de certa extensão.
Nunca lhes vi uma partida, mas sei que as suas regras de bom-tom em nada ficam a dever às dos congêneres dos bairros elegantes.
A única novidade que notei, e essa mesma não me parece ser grave, foi a de festejarem a vitória sobre um rival, cantando os vencedores pelas ruas, com gambitos nus, a sua proeza homérica com letra e música da escola dos cordões carnavalescos. Vi isto só uma vez e não garanto que essa hibridação do samba, mais ou menos africano com o futebol anglo-saxônio, se haja hoje generalizado nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto afiançar.
Resta-nos o Carnaval; é ele, porém, tão igual por toda a parte, que foi impossível, segundo tudo faz crer, ao subúrbio dar-lhe alguma coisa de original. Lá, como na Avenida, como em Niterói, como em Maxambomba, como em todo este Brasil inteiro, são os mesmos cordões, blocos, grupos, os mesmos versos indignos de manicômio, as mesmas músicas indigestas e, enfim, o Carnaval em que como lá diz Gamaliel de Mendonça, no seu último livro - Revelação: - Os homens são jograis; as mulheres, bacantes. -
O subúrbio não se diverte mais. A vida é cara e as apreensões muitas, não permitindo prazeres simples e suaves, doces diversões familiares, equilibradas e plácidas. Precisa-se de ruído, de zambumba, de cansaço, para esquecer, para espançar as trevas que em torno da nossa vida, mais densas se fazem, dia para dia, acompanhando "pari-passu" as suntuosidades republicanas.
Ele não mais se diverte inocentemente; o subúrbio se atordoa e se embriaga não só com o álcool, com a lascívia das danças novas que o esnobismo foi buscar no arsenal da hipocrisia norte-americana. Para as dificuldades materiais de sua precária existência, criou esse seu paraíso artificial, em cujas delícias transitórias mergulha, inebria-se minutos, para esperar, durante horas, dias e meses, um aumentozinho de vencimentos...
quinta-feira, 18 de outubro de 2012
Lima Barreto, feminismo, voto feminino
pelos 80 anos do voto feminino no
Brasil
mas convém expor,examinar e elucidar
razões,fatores e motivações que levavam um dos maiores escritores brasileiros,
ativo pensador e ardoroso defensor das mulheres a tais posturas.
__________________
Articulista, escritor, pensador,
nunca silencioso sobre seu tempo, Lima Barreto
não poderia pois ficar alheio à situação da mulher na realidade social
brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas transformações
na sociedade. Retratou e a fez personagem em contos e romances e escreveu sobre
a mulher em artigos e crônicas, publicadas em jornais e revistas — sob um caráter de ambigüidade,ora a criticando, por
vezes atacando, ora a defendendo, muitas vezes enaltecendo : diz-se
“antifeminista”, põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas
defende a necessidade de instrução para a mulher ; repele o ingresso da mulher
no serviço público , mas defende o divórcio ; imbuído da moral do seu tempo
retrata a mulher pela ótica comum, mas denuncia sua “absurda” situação de
dependência aos homens .
Longe, muito longe da falsa,
equivocadissima acusação de misoginia,
posicionava-se na realidade contra o
movimento feminista brasileiro , que ele denominava “feminismo bastardo,
burocrata”,não contra as mulheres,e sim como ojeriza aos signos do progresso
republicano -- era, antes de tudo,
crítico da mulher burguesa, esnobe, e ao contrário simpático à mulher
proletária, suburbana. Lima Barreto
sempre deu à mulher espaço significativo em sua obra ficcional e não-ficcional:
comenta a situação da mulher perante o casamento; a viuvez; as oportunidades
educacionais e profissionais; a moral que lhe é imposta pelo duplo valor; a
desigualdade de julgamento do adultério masculino e do feminino; o mundo da
prostituição e o início do movimento feminista no Brasil.
Se, de um lado, no conjunto de
textos sobre feminismo, movimento feminino, voto feminino, direitos femininos,
literatura feminina, e também sobre mundanismo, moda, comportamento, hábitos
femininos, Lima destila permanente ironia crítica sobre a mulher, de outro no
retrato das mulheres elaborado em seus romances, novelas e contos, em que
mostra-as sempre com atitude e comportamento progressistas , elas são
superiores aos maridos (exemplos de Olga e Edgarda em Triste fim de
Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara dos Anjos; Efigênia
em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia,
Lívia em Histórias e sonhos; muitas outras em contos, etc).Além domais,
esse suposto ‘antifeminismo’ barretiano teve sua contrapartida significativa:
em alguns escritos, a propósito de julgamentos de crimes ditos passionais,Lima
Barreto defendia veementemente a mulher
e atacava os homens, os advogados e juízes que “se atribuem direitos sobre a
vida das mulheres, direitos reconhecidos por júris que os absolvem, numa série de artigos e crônicas denunciando crimes de uxoricídio, nos quais
homens matavam “mulheres infiéis”— e pior eram absolvidos nos julgamentos por
“legítima defesa da honra”— em que ele ataca os homens “que se atribuem
direitos sobre a vida das mulheres” e defende intransigentemente a mulher “que
são “como todos nós, sujeitas, às influências várias que fazem flutuar as suas
inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores".
o anti-feminismo barretiano
O movimento feminista brasileiro,
iniciado no fim da década de dez séculos, antes de surgir como um bloco coeso,
dividiu-se já em suas origens em algumas ramificações cada uma delas com
líderes próprios e com algumas reivindicações idênticas e outras particulares,
verdadeiras bandeiras das facções ou, como dizia Lima Barreto, das “igrejas” ou “seitas”. Eram
quatro: a de Mme Chrysanthème que “quer, para a mulher, a plena liberdade do
seu coração, dos seus afetos, enfim dos seus sentimentos” (crônica “No ajuste
de contas”); a liderada por Deolinda Daltro, denominada “Partido Republicano
Feminino”, propugnando pelo direito da mulher; a de Bertha Lutz, sob o nome
de “Liga pela Emancipação Intelectual da
Mulher Brasileira” que tinha como bandeira a luta pelo ingresso da mulher na
burocracia; e a facção conhecida por “Legião da Mulher Brasileira” que nomeara
como presidente de honra a esposa do Presidente da República, d. Mary Saião
Pessoa, contando também com o apoio da Igreja Católica. Lima Barreto reduzia as
facções a duas: o feminismo sufragista e o feminismo burocrático; o primeiro de
“propriedade” de Deolinda Daltro (que aparece como Deolinda nas crônicas; e na
novela Numa e a ninfa, como a
personagem Florinda Seixas) e o segundo de Bertha Lutz ; à entidade de
Mme Chrysanthème não dava muita importância e quanto à “Legião da Mulher
Brasileira” se restringia a ironizar o caráter oficial da entidade.
Deolinda Daltro e Bertha Lutz eram os maiores objetos das críticas –
contundentes, irreversíveis – de Lima. Com tais ‘lideranças’, dizia Lima, as
reivindicações feministas de sua entidade não estavam a propugnar por uma
elevação da mulher, mas voltadas unicamente para elas, preocupadas apenas
em pleitear o direito de voto para que uma faixa da elite pudesse usufruir
das vantagens que estavam limitadas à cúpula política masculina. Até porque
Lima não via no voto um elemento por meio do qual pudesse ser reformada a
situação na Republica Velha – portanto o que as feministas pleiteavam pouco
significava, era mera acomodação ao
sistema montado, ao qual ele nunca deixou de se opor. A denúncia de Lima contra
o movimento feminista centrava-se em sua conivência com as práticas políticas
de então, em termos de corrupção,
favorecimento, clientelismo, oportunismo.
Além do mais,e isso para Lima
constituía questão crucial, o feminismo, como então praticado, esquecia-se
totalmente da mulher pobre e da mulher negra – ambas, aliás, observava ele,
tendo já conquistado lugar de operária, sem movimentos feminista, nas fábricas
de tecidos e nas livrarias como empacotadoras de livros.(“Pergunto: esta mulher [uma velha negra] precisou do feminismo burocrata
para trabalhar, e não trabalha ainda, apesar de sua adiantada velhice?”-
crônica “Voto feminino”).
Neste particular, vale realçar
que Lima não só acatava a
profissionalização da mulher -- mas causava-lhe
aversão ser ela realizada com intuitos interesseiros, circunscrita a
benefícios para poucos e no proteger os já privilegiados; acusava “a maneira irregular e ilegal que tem
presidido o provimento desses cargos,por moças e senhoras” (crônica “Voto
feminino”) -- não lhe negando capacidade e condições de exercer um cargo
público, por exemplo; como também propunha o aumento do número de Escolas
Normais para que as mulheres tenham melhor educação e com isso pudessem desempenhar papel importante na formação da
criança, quer na escola, quer em casa (cf. crônicas do grupo “Educação
feminina” e em “A poliantéia das burocratas”)..
Desse modo, segundo ele, as
proposições profissionalizantes e eleitoreiras dos movimentos feministas apenas
tinham em vista dar possibilidades de realização aos atributos menos
importantes da mulher e como bandeira a
aspiração do menos elevado, fazendo a mulher simplesmente obter igualdade aos
medíocres que compunham o sistema.Para Lima,
e sua concepção tão elevada da mulher, ela atuando junto ao homem, as
exigências do feminismo só podiam ser encaradas como rebaixamento da condição
feminina, portanto, censuráveis.
Em outro viés, enfatizando a
deterioração do casamento como motivo do aviltamento da mulher, só reconheceria
grandeza no movimento feminista da época se atacasse esse problema central: não
o fazia, ignorava-o. – “(...) contra tão desgraçada situação de nossa
mulher, edificada com a estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se
insurgem os borra-botas feministas que há por aí (...).-crônica “Voto
feminino”).
Lima Barreto não via no movimento feminista nada de
grandioso, de heróico, de superior, mas sim uma articulação feminina burguesa
para meramente conseguir, por meios não legais, cargos públicos, onde a mulher,
em lugar de realizar a sua natureza mais nobre, iria ter a possibilidade de
exercitar o seu lado, segundo ele, mais vulgar. Via o movimento como
eminentemente elitista, que nada mais buscava além de estender às mulheres os privilégios
de que gozavam os medíocres que compunham o sistema. Sem o mínimo pendor
social, limitava-se tão somente a reivindicar
direito a voto e a cargos públicos, constituía-se em aglutinação para
tentar obter a extensão às mulheres das regalias de que gozavam os membros
masculinos dos grupos dominantes.
De notável e inquestionável
consciência social, avesso a qualquer forma de autoritarismo,
intransigente denunciante do drama das
minorias no Brasil do final do século XIX --
negros e mestiços excluídos do mercado de trabalho no período
pós-abolição, a exploração dos operários – Lima Barreto tratou com vigor a
opressão contra as mulheres, não as que ele chamava “burguesa republicana
alienada”,mas principalmente as humildes, pobres, algumas delas mulatas,
submetidas a uma sociedade machista e injusta, submissas a pais ou padrastos ou
irmãos, ou maridos ou noivos ou namorados dominadores e agressivos, a patrões e
senhores exploradores,e em especial carentes de oportunidades de educação e
limitadas a formação educacional e cultural insuficiente, alijadas de círculos
sociais.
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