quinta-feira, 15 de março de 2012

Petrópolis, (também) cidade literária

pelo 16 de Março,aniversário da cidade



Petrópolis não é apenas cidade de cunho histórico, político, institucional, verdadeiras ‘capital social’ do Brasil no século XIX,tendo sido de fato a capital administrativa do Império – cenáculo não apenas de residência ou hospedagem de figuras proeminentes do governo e administração pública,homens de Estado ( em Petrópolis, o então presidente Hermes da Fonseca casou-se com Nair de Tefé, em 1910; o presidente Nilo Peçanha mantinha casa de veraneio ,assim como o presidente Washington Luís -- tradição, seguido por presidentes como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso), inclusive estrangeiros (em 1861, Maximiliano da Áustria, que viria a ser imperador do México, visitou o Palácio Imperial, e ao longo da história da cidade, outras autoridades estrangeiras marcariam presença: Balduíno da Bélgica,em 1920 ; Carol I, da Romênia,em 1944; Olavo V, da Noruega, em 1967 ; os reis da Suécia, Gustavo e Sílvia,em 1984; em 1913 o então ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt, tal como os presidentes da Bolívia, Henrique Peñarada e o do Paraguai, Higino Moringo,ambos em 1943; representantes dos Estados americanos se reuniram na cidade em setembro de 1947, na Conferência Interamericana de Manutenção da Paz, no Hotel Quitandinha -- encontro que contou, entre outros, com as presenças de Harry Truman, presidente dos EUA, e de Evita Perón, que chefiou a delegação argentina)., diplomatas, até mesmo cientistas (os físicos Albert Einstein e Guglielmo Marconi, respectivamente em 1925 e em 1935; o cientista Peter Medawar, prêmio Nobel de Física em 1954, de ascendência britânica, nasceu em Petrópolis em 1929 e morou na cidade até os 14 anos de idade),e da própria ocorrência de fatos e eventos que marcaram a História brasileira tanto do século XIX como do século XX (Petrópolis passou a ser a capital fluminense em 1893 – ano da Revolta da Armada, quando a cidade do Rio de Janeiro ,então capital da República, foi bombardeada e declarada a fragilidade da então capital do Estado do Rio, Niterói -- até 1903).
Petrópolis é também autêntica ‘cidade literária’ – no acolhimento, permanente ou temporário, corrente ou circunstancial, de uma plêiade significativa de escritores,literatos,intelectuais, a ela ligados de uma forma ou de outra, que aqui residiram\residem, aqui estiveram, aqui mantiveram residência, etc.,e nela,ou inspirados nela,ou nela ambientadas,ou a ela referenciadas, conceberam, idealizaram,criaram e produziram obras ficcionais e não-ficcionais, textos em prosa e em verso, contos e novelas, crônicas e peças teatrais,ensaios e registros memorialísticos, discursos e conferências.
O papel da cidade na criação literária de escritores é tão incontestável, tamanha sua conotação, ou ‘força’ literária emanadas, que um dos maiores da Literatura Brasileira, Machado de Assis, que aqui nunca esteve ‘de corpo presente’ foi justo um dos que mais escreveram sobre ela,mais citou-a tanto em contos,romances e crônicas – além de nela ambientar sua primeiríssima peça teatral,”Desencantos”, de 1861, e de publicar alguns de seus primeiros poemas em 1858 e em 1859 no jornal petropolitano O Parahyba, aliás periódico importantíssimo na história da imprensa brasileira,ainda não devidamente estudado (preparo um livro especial sobre o tema). Que José de Alencar, freqüentador assíduo, escolheu a cidade como ambientação de passagem de sua primeira obra ficcional, a novela Cinco minutos, de 1856; Joaquim França Junior, que muito aqui esteve, ambientou a cidade em duas de suas peças, uma delas “De Petrópolis a Paris” infelizmente perdida; Olavo Bilac, “príncipe dos poetas brasileiros”, expressou numa crônica todo seu encantamento com a cidade, enaltecida sua beleza e ‘pureza’ para contrapor-se à hipótese de vir a ser capital do estado do Rio de Janeiro, como cogitado à época.
Petrópolis, se não berço de nascença, caso de Raul de Leoni, foi a cidade eleita para vivência – longas temporadas, veraneio e férias, residência final – por poetas de diferentes épocas e gerações, de Raimundo Correa a Manuel Bandeira, de Vinicius de Moraes a Dante Milano e Fernando Py. E viu nascer em 1932, e aqui viver por muito tempo, a escritora Sylvia Orthof, premiada nacional e internacionalmente por suas extraordinárias obras infanto-juvenis.
Alguns dos mais influentes pensadores brasileiros encontraram aqui o cenário ideal para produzir páginas importantes do ensaísmo histórico, político ou cultural – caso de Ruy Barbosa, um dos maiores intelectuais e figura política proeminente da história brasileira,que inclusive morreu em 1923 em sua casa petropolitana na avenida Ipiranga(chamada carinhosamente por ele de “Sweet Home”), e aqui escreveu por exemplo a maior parte das conferências que pronunciou em sua segunda memorável campanha presidencial(de 1909), em 1917 fez seu célebre discurso incentivando o alinhamento do Brasil com os aliados no Teatro de Petrópolis, concluiu a famosa “Oração aos moços”,de 1920, e também a introdução do primeiro volume da obra Queda do Império,de 1889; Joaquim Nabuco, em cuja casa na avenida Piabanha escreveu alguns de seus Pensamentos soltos, que veio a ser publicado em Paris em 1901; o barão do Rio Branco (josé da Silva Paranhos) elaborou em sua residência de verão, localizada na rua que hoje leva seu nome, e na cidade foi assinado em 1908 o Tratado de Petrópolis, que demarcou as fronteiras com a Guiana Holandesa e a Bolívia e incorporou ao Brasil, o território do Acre; Alceu Amoroso Lima,nascido no Rio de Janeiro em 1893, radicado em Petrópolis – sua residência, na rua Mosela, hoje é o Centro Cultural Alceu Amoroso Lima e seu pseudônimo Tristão de Atayde denomina o centro cultural da Prefeitura -- e aqui falecido em 1983 , tornou-se por várias décadas o mais influente pensador católico em atuação no país.
A cidade ofereceu as condições e circunstâncias para que Jorge Amado concluísse, em seu apartamento no antigo hotel Quitandinha, o romance Gabriela, cravo e canela. Que Alberto Santos Dumont elaborasse aqui seu segundo livro, o autobiográfico O que eu vi.O que nós veremos, em sua bela residência denominada “A Encantada”, hoje ponto de atração turístico-cultural ; também na casa teria sido escrito, por volta de 1902, um manuscrito de 312 páginas ,recentemente descoberto por familiares ,no qual destacam-se trechos sobre o sonho de virar aeronauta e o encontro com Thomas Edison.Abrigou o escritor austríaco Stephan Zweig durante os anos 1940, vindo da Alemanha sob o jugo hitlerista, para aqui escrever sua autobiografia O mundo que eu vi, a novela O jogador de xadrez, e sobretudo criar e publicar sua famosa obra Brasil, país do futuro,em 1941. Acolheu a poetisa chilena Gabriela Mistral, então consulesa do Chile (ao longo da Iª República, de 1889 a 1930, cerca de 30 países mantiveram consulados em Petrópolis, entre eles Inglaterra, França, Itália, Alemanha, Rússia , Estados Unidos, Portugal, Uruguai,Chile, Noruega, Santa Sé.),durante a década de 1940, quando foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura -- única mulher na América Latina a ser contemplada..E recebeu, por diversas vezes, na Samambaia, a escritora inglesa Elizabeth Bishop, amiga da arquiteta, paisagista e artista Maria Carlota Costallat de Macedo Soares(Lota).
Não há como deixar de se realçar a importância cultural de Petrópolis, mostrando contribuições e manifestações literárias e artísticas talvez pouco conhecidas ou mesmo desconhecidas por muitos, a proporcionar o pleno conhecimento desse aspecto marcante da cidade, expresso por escritores naturais ou não, residentes ou não, hóspedes ou visitantes,privilegiados pela tradição petropolitana de acolhida e reconhecimento, que com ela interagiram,e interagem, literariamente, num significativo painel de autores de extrema qualidade que contribuíram, e contribuem,por meio da Cidade Imperial, para a própria história literário-artística do Brasil.
[este texto faz parte do livro Escritores brasileiros e a cidade de Petrópolis, em sua Introdução, idealizado e organizado para a Secretaria Municipal de Educação, para circular e ser trabalhado em sala de aula na rede pública escolar].


terça-feira, 13 de março de 2012

Lima Barreto e a mulher

em pleno mês da Mulher , o terceiro texto de meu triptico 'estudos (literários) da mulher' .



Feminista, emancipacionista; mas realista
Articulista, escritor, pensador, nunca silencioso sobre seu tempo, Lima Barreto  não poderia pois ficar alheio à situação da mulher na realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas transformações na sociedade. Retratou e a fez personagem em contos e romances e escreveu sobre a mulher em artigos e crônicas, publicadas em jornais e revistas — sob um caráter de ambigüidade, ora a criticando, por vezes atacando, ora a defendendo, muitas vezes enaltecendo: diz-se “antifeminista”, põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas defende a necessidade de instrução para a mulher; repele o ingresso da mulher no serviço público (“.rendosos cargos para as mulheres das classes sociais mais favorecidas : e as reivindicações das operárias ?...”), mas defende o divórcio e  justifica com vigor o adultério feminino (ambos forma de revolta contra um homem opressor e uma concepção de  casamento instituída pela sociedade); imbuído da moral do seu tempo, retrata a mulher pela ótica comum, mas denuncia sua “absurda” situação de dependência aos homens.
Evidentemente que sua posição ‘pendular’ no enfoque da mulher brasileira do início do século XX é resultado e reflexo do momento histórico em que vivia, pleno de oscilações e mutações.
Longe, muito longe da falsa, equivocadissima acusação de misoginia, posicionava-se na realidade não contra a mulher em si, ou ao feminismo como movimento defensor e propugnador dos direitos da mulher, mas sim contra o feminismo então praticado por “lideranças medíocres e interesseiras”, um feminismo da moda, “feminismo bastardo, feminismo burocrático, feminismo de secretaria”, e sobretudo  contra os signos do progresso republicano : a rigor, insurge-se contra um feminismo de caráter elitista, que não propugnava por transformações sociais e visava apenas a interesses particulares dos setores privilegiados da sociedade. Lima Barreto  era, antes de tudo, crítico da mulher burguesa, esnobe, e ao contrário simpático à mulher proletária, suburbana.
Nesse sentido, um dos maiores equívocos que se possa cometer é considerar Lima Barreto como contrário aos movimentos e ações emancipacionistas da mulher – não foi em hipótese alguma , realçando que “(...) Não me move nenhum ódio às mulheres, mesmo porque não tenho fome de carne branca; mas o que quero é que essa coisa de emancipação da mulher se faça claramente, após um debate livre, e não clandestinamente, por meio de pareceres de consultores e auditores, acompanhados com os berreiros de dona Berta e os escândalos de dona Daltro. É preciso que isso se faça claramente, às escâncaras. Cada um, então, que dê sua opinião.(...)”[crônica “O nosso feminismo” ]
Para ele o movimento feminista de então não propunha ou lutava pela defesa da mulher, era “frágil, inconsistente, inócuo, só se preocupava com perfumarias,acessórios  e inutilidades” ; desprezava a mulher operária e  reivindicações trabalhistas e sociais, divorciava-se da questão do ensino e da educação para a  mulher ; desvinculava-se dos problemas afetivos e conjugais da mulher e da  degradação do casamento imposto pelos homens e pela sociedade ;  mantinha-se completamente omisso diante do uxoricismo.
sexo forte,sexo frágil
Lima sempre conferiu  à mulher espaço significativo em sua obra ficcional e não-ficcional – retratando e  comentando a situação da mulher perante o casamento, a moral que lhe era  imposta pelo homem e pela sociedade, a desigualdade de julgamento do adultério masculino e do feminino,  a viuvez; as oportunidades educacionais e profissionais; a prostituição; o início do movimento feminista no Brasil.Se, de um lado, no conjunto de artigos e crônicas -- quer sobre feminismo, movimento feminino, voto feminino, direitos femininos, literatura feminina, quer em especial sobre mundanismo, moda, comportamento, hábitos femininos -- Lima destila permanente ironia crítica, de outro o retrato das mulheres elaborado em seus textos ficcionais mostra-as dependentes dos homens e submissas a ‘normas’ sociais da época, sim, mas em muitíssimas  vezes –  em outras, não -- com atitude e comportamento progressistas :  são elas superiores aos homens, exemplos de Olga em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara dos Anjos;   Edgarda em Numa e a ninfa ,Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia, Lívia e  outras em contos. .
“tema de Carmen”
Vale ressaltar, porém, que o suposto ‘antifeminismo’ barretiano tem sua contrapartida significativa: numa série de artigos e crônicas – a que ele denominou “tema de Carmen”[sic] -- a propósito de julgamentos de crimes ditos passionais : neles, Lima Barreto  defende veementemente a mulher e ataca os homens, os advogados e juízes que “se atribuem direitos sobre a vida das mulheres, direitos reconhecidos por júris que os absolvem”,   denunciando crimes de uxoricídio nos quais homens matavam “mulheres infiéis”— e pior eram absolvidos por “legítima defesa da honra” -- e alardeando  intransigentemente os direitos da mulher “que são,como todos nós, sujeitas, às influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores".
De modo geral, Lima interpretava, denunciando, a  atitude  violenta dos ho­mens  por força de eles se sentirem donos, proprietários das mulheres com as quais se rela­cionavam, não admitindo ser preteridos.Defendia com vigor a mulher e clamava  que as deixem amar à vontade, “não as matem, pelo amor de Deus !"(crônica “Não as matem”).
Incondicionalmente sustentava que devia-se,  isto sim, “condenar o matador conjugal”, que conforme a nefasta concepção dos crimes executados “em nome de uma honra familiar,lava- a matando a  mu­lher", a qual face à opressão de que via de regra era vítima,pelo homem e pelas ‘regras’ da sociedade, tem  todo o direito de não amá-lo mais. Repudiava  veementemente este tipo de crime --  crime muito mais grave do que o adultério era o do assassinato , ato premeditado, não movido por um impulso de momento -- pois "as constantes absolvições de uxoricidas dão a en­tender que a sociedade nacional, por um dos seus mais legíti­mos órgãos, a admite como normal e necessária" – em sessões nas quais era julgada não a atitude criminosa  do homem mas a conduta sexual da mulher, que de vítima tornava-se ré : defendia-se  o uxoricida atacando a  honra feminina,acu­sada a mulher  de “desavergonhada”.Acusava essa prática que além do mais funcionava  como um estímulo para que tais crimes continuassem ocorrendo: para ele, o julgamento de cri­mes de uxoricídio deveriam ser desvinculados da apreciação da conduta sexual feminina e da ideologia dominante que exi­gia do sexo feminino a fidelidade absoluta -- o que deveria ser sentenciado era o assassínio em si.
a mulher e a sociedade
A rigor, esses textos barretianos devem ser compreendidos a partir da posição de Lima face ao casamento e ao adultério – visto este como  forma de revolta da mulher contra a sociedade que lhe apresenta um homem como dotado de predicados excepcionais;  para ele, não proveniente de  motivação física, sexual, e sim originário da concepção de casamento instituída pela sociedade, cuja  única vítima é a mulher , impossibilitada de realizar nele a sua natureza sentimental, vendo-se obrigada, fora dos canais convencionais, a procurar o homem que deseja e a realize.
Lima Barreto, convém frisar,  respeitava o  casamento  e o entendia como o meio quase único de realização plena do sexo feminino – cita o alemão Krafft-Ebbing, “a profissão da mulher é o casamento”(crônica “A amanuense”): insistia na  imperiosidade da relação franca e elevada que deveria regular a vida matrimonial --“entre os dois só deve haver a máxima lealdade, todos os dois devem entrar na sociedade conjugal com a máxima boa vontade e admiração um pelo outro”-- em prol dos valores que caminhavam para o desaparecimento ou deterioração na sociedade burguesa da época.
Não deixava, contudo, de ater-se à realidade concreta do que era o casamento nessa sociedade republicana burguesa: para o homem, uma espécie de “transação comercial”, reduzindo a mulher, em última instância, a uma “escala para subir” – como Numa Pompílio de Castro, que só se casara com d. Edgarda Cogominho para  poder ascender na carreira política, já que o pai dela era um dos proeminentes políticos no meio nacional (novela Numa e a ninfa); em contrapartida, a mulher procuraria encontrar sua realização e dedicar-se a  um ‘homem superior’ – que a sociedade definia ser o  doutor, ela via de regra se deixando levar por essa equivocada conceituação, gerando,em certos casos, a decepção, que a induzia à busca de ‘alternativas’ : ao ter a revelação da face real do marido, desiludida no casamento, decepcionada, procurava fora do matrimônio alguém ‘superior’ a quem pudesse dedicar sua natureza sentimental  insatisfeita. -- caso de d. Laura (conto “O filho de Gabriela”), casada com o conselheiro Calaça.
Lima entendia ser o amor eterno praticamente impossível, sabia ser intrínseco à condição e natureza humanas a mutação dos  sentimentos – e em especial, responsável pelas transformações sentimentais, sensoriais e afetivas femininas. Daí enxergava a temporalidade do casamento, sua ‘não eternidade’, e preconizava o direito feminino de interrompê-lo, em ter  liberdade de escolha, buscar outro amor ao ter o casamento fracassado(ao contrário de d. Laura, quem vai encontrar no amante,dr. Benevenuto, “o que lhe exigiram a imaginação e a inteligência”, o homem superior que não há no marido é  justo Edgarda, em Numa e a ninfa) e com isso praticar o adultério – não aceito e punido pela sociedade, sem merecer no entanto vir a ser assassinada....
A defesa barretiana da mulher não se limitava à explicação da raiz do adultério: ia mais além, propondo a instituição do divórcio – como nas crônicas “No ajuste de contas”  e “Como budistas....” -- e uma reformulação jurídica da instituição do casamento , com propostas que, convertidas em lei, atingiriam no cerne todas as deformações implícitas no matrimônio, propiciariam a libertação da mulher do estado degradante que lhe era imposto e eliminariam o direito consuetudinário e quase legal de o marido poder praticar o uxoricídio em caso de adultério.
feminismo
Casamento, adultério feminino, divórcio, uxoricídio constituem pressupostos à suposta - e equivocada - posição ‘anti-feminista’ de Lima Barreto. Opunha-se, isso sim, às forma,métodos,práticas e posturas do movimento feminista da época.
O movimento feminista brasileiro, iniciado no fim da década de dez séculos, antes de surgir como um bloco coeso, dividiu-se já em suas origens em algumas ramificações cada uma delas com líderes próprios e com algumas reivindicações idênticas e outras particulares, verdadeiras bandeiras das facções ou, como dizia  Lima Barreto, das “igrejas” ou “seitas”. Eram quatro: a de Mme Chrysanthème que “quer, para a mulher, a plena liberdade do seu coração, dos seus afetos, enfim dos seus sentimentos” (crônica “No ajuste de contas”); a liderada por Leolinda Daltro, denominada “Partido Republicano Feminino”, propugnando pelo direito da mulher; a de Berta Lutz, sob o nome de  “Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher Brasileira” que tinha como bandeira a luta pelo ingresso da mulher na burocracia; e a facção conhecida por “Legião da Mulher Brasileira” que nomeara como presidente de honra a esposa do Presidente da República, d. Mary Saião Pessoa, contando também com o apoio da Igreja Católica. A principal reivindicação que as unia era a extensão do direito de voto à mulher.
Lima Barreto reduzia as facções a duas: o feminismo sufragista e o feminismo burocrático; o primeiro de “propriedade” de  Leolinda Daltro (que aparece como Deolinda nas crônicas; e na novela Numa e a ninfa, como a personagem  Florinda Seixas)  e o segundo de Berta Lutz ; à entidade de Mme Chrysanthème não dava muita importância e quanto à “Legião da Mulher Brasileira” se restringia a ironizar o caráter oficial da entidade.
Leolinda (ou Deolinda) Daltro e  Adalberta Lutz, que capitaneavam as posições feministas da época, eram os maiores objetos das críticas – contundentes, irreversíveis – de Lima. Com tais ‘lideranças’, dizia Lima,  as reivindicações feministas de sua entidade não estavam a propugnar por uma elevação da mulher, mas voltadas unicamente para elas,preocupadas apenas em  pleitear o direito de voto  para que uma faixa da elite pudesse usufruir das vantagens que estavam limitadas à cúpula política masculina. Até porque Lima não via no voto um elemento por meio do qual pudesse ser reformada a situação na Republica Velha – portanto o que as feministas pleiteavam pouco significava, era  mera acomodação ao sistema montado, ao qual ele nunca deixou de se opor. A denúncia de Lima contra o movimento feminista centrava-se em sua conivência com as práticas políticas de então, em termos de  corrupção, favorecimento, clientelismo, oportunismo.
Além do mais,e isso para Lima constituía questão crucial, o feminismo, como então praticado, esquecia-se totalmente da mulher pobre e da mulher negra – ambas, aliás, observava ele, tendo já conquistado lugar de operária, sem movimentos feminista, nas fábricas de tecidos e nas livrarias como empacotadoras de livros.(“Pergunto: esta mulher [uma velha negra] precisou do feminismo burocrata para trabalhar, e não trabalha ainda, apesar de sua adiantada velhice?”- crônica “Voto feminino”).
Neste particular, vale realçar que Lima  não só acatava a profissionalização da mulher -- mas causava-lhe  aversão ser ela realizada com intuitos interesseiros, circunscrita a benefícios para poucos e  no  proteger os já privilegiados; acusava “a maneira irregular e ilegal que tem presidido o provimento desses cargos,por moças e senhoras” (crônica “Voto feminino”)  -- não lhe negando  capacidade e condições de exercer um cargo público, por exemplo; como também propunha o aumento do número de Escolas Normais para que as mulheres tenham melhor educação e com isso pudessem  desempenhar papel importante na formação da criança, quer na escola, quer em casa (cf. crônicas do grupo “Educação feminina” e em “A poliantéia das burocratas”)..
Desse modo, segundo ele, as proposições profissionalizantes e eleitoreiras dos movimentos feministas apenas tinham em vista dar possibilidades de realização aos atributos menos importantes da mulher e  como bandeira a aspiração do menos elevado, fazendo a mulher simplesmente obter igualdade aos medíocres que compunham o sistema.Para Lima,  e sua concepção tão elevada da mulher, ela atuando junto ao homem, as exigências do feminismo só podiam ser encaradas como rebaixamento da condição feminina, portanto, censuráveis.
Em outro viés, enfatizando a deterioração do casamento como motivo do aviltamento da mulher, só reconheceria grandeza no movimento feminista da época se atacasse esse problema central: não o fazia,  ignorava-o. – “(...) contra tão desgraçada situação de nossa mulher, edificada com a estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem os borra-botas feministas que há por aí (...).-crônica “Voto feminino”).
Lima Barreto  não via no movimento feminista nada de grandioso, de heróico, de superior, mas sim uma articulação feminina burguesa para meramente conseguir, por meios não legais, cargos públicos, onde a mulher, em lugar de realizar a sua natureza mais nobre, iria ter a possibilidade de exercitar o seu lado, segundo ele, mais vulgar. Via o movimento como eminentemente elitista, que nada mais buscava além de estender às mulheres os privilégios de que gozavam os medíocres que compunham o sistema. Sem o mínimo pendor social, limitava-se tão somente a reivindicar  direito a voto e a cargos públicos, constituía-se em aglutinação para tentar obter a extensão às mulheres das regalias de que gozavam os membros masculinos dos grupos dominantes.
De notável e inquestionável consciência social, avesso a qualquer forma de autoritarismo, intransigente  denunciante do drama das minorias no Brasil do final do século XIX --  negros e mestiços excluídos do mercado de trabalho no período pós-abolição, a exploração dos operários – Lima Barreto tratou com vigor a opressão contra as mulheres, não as que ele chamava “burguesa republicana alienada”,mas principalmente as humildes, pobres, algumas delas mulatas, submetidas a uma sociedade machista e injusta, submissas a pais ou padrastos ou irmãos, ou maridos ou noivos ou namorados dominadores e agressivos, a patrões e senhores exploradores,e em especial carentes de oportunidades de educação e limitadas a formação educacional e cultural insuficiente, alijadas de círculos sociais.
 educação da mulher 
Especial era o olhar que Lima dedicava à  formação escolar da mulher e ao processo educativo a elas estabelecido. Foi acerbado crítico da carência de oportunidades educacionais às mulheres, e veemente defensor da obrigatoriedade de serem a elas conferidas melhores possibilidades de educação – o que, de resto, apenas confirmava a posição analítico-reflexiva que dispensava à mulher em sua ficção e nãoficção .
Na verdade, a maioria das mulheres do início do sécu­lo  via a educação simplesmente como um meio para se faze­rem mais agradáveis a seus companheiros ; não buscavam por uma emancipação intelectual – o que justamente levava  Lima a propugnar  por melhores oportunidades educacionais para o sexo feminino. As mulheres,via de regra, mantinham-se circunscritas à es­fera do lar, refletindo os padrões culturais da época:  predominava  o conceito de ser a mulher mais sentimental e amorosa do que intelectiva e filosófica. Segundo Lima, era essa essencialmente a causa de infelicidade existencial e conjugal da mulher. Além disso, estudavam ,em sua maioria, em colégios religiosos, o que era acentuadamente criticado por ele, sugerindo para as mulheres uma educação mais aberta, mais completa, mais eficiente.
Lima sustentava que somente por meio de uma instrução mais aprimorada a mulher, como ‘alicerce da família’, poderia abrir seus horizontes e dispor da  competência necessária para educar os filhos com discernimento. Para ele, a instrução feminina contribuía de forma decisiva para a do homem e seu engrandecimento enquanto ci­dadão: da educação dada aos filhos dependia o destino das gerações e conseqüentemente da sociedade.
mr

sábado, 10 de março de 2012

Machado, Freud, as mulheres

em pleno mês da Mulher [mas faço minha a sentença de Affonso Romano de Sant'Anna : "não se contentem em reinar apenas um dia por ano..."], o segundo texto de meu triptico  'estudos (literários) da mulher'


  Desde o início de sua gestação ficcional em prosa, Machado de Assis traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as mulheres;  sua temática essencial consistiu em expressar as sutilezas do mecanismo psicológico no deflagrar de ações, emoções, expressões e reações no comportamento humano, muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade :  criou um estilo de literatura não apenas de observação das  pessoas mas sobretudo de  interpretação, expondo das  pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes,  um outro lado , que  muitas vezes  aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente.
  A partir do final da década de 1870, mormente depois do denominado romance de transição Iaiá Garcia, a obra machadiana, seguindo a linha da litera­tura psicológica, apresenta heróis e heroínas com seus eternos conflitos, complexos, dúvidas e hesitações. E traz, para o centro das discussões, a questão da afetividade  feminina,  fazendo surgir  uma mulher que aspira  poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de, quase sempre , não poder dizer de seu desejo.
        Machado sempre foi um autor interessado em prospectar as  paixões humanas, em dissecar-lhes as intimidades, em levantar ques­tões e em tomá-las públicas pela voz de seus personagens.  Sobretudo percebia, com clareza, o lado trágico das relações  humanas. Este lado trági­co --- já presente em Shakespeare, p. ex.,  a principal leitura e maior influência em  Machado (a dúvida ‘hamletiana’ percorre e permeia, qual exercício posto em desafio ao leitor, toda a ficção machadiana : inclusive é o príncipe da Dinamarca a referência\recorrência primordial em Dom Casmurro, e não Otelo,ao contrário do vaticinado por Helen Caldwell [O Otelo brasileiro de Machado de Assis:. São Paulo : Ateliê Editorial, 2002 ] (e,parece,inteiramente assimilado por muitos estudiosos...)  –-  passa  pelo permanente mal-entendido dos encontros humanos, de um ser humano permanentemente acossado pelo outro, num processo originado,determinado e dinamizado pelo  ciúme e pela desconfiança implícita, pela traição e pela infidelidade..
    Muito da temática e da tramática machadianas gira em torno do ciúme e do perdão – vale dizer, do binômio freudiano de ‘culpa e perdão’: Foi ele o autor brasileiro que introduziu a perspectiva  crítica, fazendo da dúvida, do questionamento e da argumentação, ‘a la Freud’, uma constante em sua obra. .De Freud, Machado consubstanciou, sem o conhecer, os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e  pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise,  desde as primeiras obras  e atingindo seu clímax na ficção produzida a partir da década de 1880 . Como sentencia Roberto Schwarz [“Mesa redonda”, in Bosi, Alfredo et alli, Machado de Assis. São Paulo :Ática, 1982]  , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”.
          O amor é o grande tema, central e capital, na obra ficcional  de Machado. O  amor visto, tido e exposto como a única comunicação possível entre pessoas,quaisquer que sejam suas natureza, caracteres, etnia,classe social, e o casamento – não havia como escapar,nos tempos do Império, da ‘ideologia’ moral-social que fazia o amor prisioneiro do casamento,o qual possibilitava a constituição da família : amar era casar , para o homem,era adquirir ‘título de propriedade’ ; a mulher, prisioneira e submissa, via no amor  um meio de libertar-se, para isso,no caso da mulher machadiana, utilizando sua característica primordial: a dissimulação --  e seu derivativo mordaz, o ciúme.
        Amor ciúme – de resto, um ‘clássico’ binômio freudiano -- são os leitmotives  basilares de Machado, presentes sem exceção em todos os  contos, vez por outra inserindo assuntos difíceis de serem tratados à época ,mas sempre em defesa da base moral do amor -- como relações afetivas e conjugais entre pessoas de classes sociais diferentes, incompatibilidades e embustes sentimentais,dissimulações e disfarces , etc...Os  amores e frustrações femininos eram temas constantes, inclusive o adultério e a pros­tituição -- anteriormente decididamente não-aceitáveis na literatura (mas convém observar que José de Alencar já preconizara uma ‘subversão’ na peça “Asas de um anjo”, 1860 -censurada à época e retirada de cena - cujo tema iria inspirar e originar o romance  Lucíola,1862) .
    Em sua ficção, Machado  traz, juntamente com Freud,  para o centro das discussões, a questão da sexualidade feminina. A princípio, de forma velada, fiel à ‘ideologia’ das décadas de 1850-60, nos primeiros romances e contos -- a maioria das mulheres da época, vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse amor, melhor, mas não era o principal, pois a questão do amor era secundária, era um luxo que muitas mulheres não tinham, prioritários eram as conveniências pecuniárias, o interesse econômico, a ascensão social -- mas nas obra depois de 1880 redime o amor, e numa “recomposição com a vida”  surge  uma mulher que quer poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de algu­mas vezes não poder dizer de seu desejo, a fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita -- e sabemos o quanto  Freud já preconizava a infidelidade como uma saída “não neurótica” para  a infelicidade matrimonial vigente na sociedade burguesa mundial no século XIX.
   Um verdadeiro antecipador modernista, Machado não acreditava na honra baseada na castidade, tendo nas linhas e entrelinhas de seus contos e  romances chamado atenção para  as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual da mulher , que devia receber instrução e não ficar com­pletamente confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à li­berdade.
  Machado sempre escreveu sobre mulheres e para as mulheres e não era segredo – pelo menos até 1881,quando consolidou a longa e profícua atuação nas páginas da Gazeta de Notícias -- preferir colaborar  em publicações cujo público predominante era feminino, primeiro no Jornal das Famílias,de 1864 a 1876, e a partir de 1879 em A Estação. Sua obra, de modo geral, encena vários tipos femininos, com histórias povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que as mulheres se defrontam na vida: assim é com  Lívia de Ressurreição,  Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Virgília e Marcela de Brás Cubas, Sofia de Quincas Borba, Capitolina de Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das protagonistas de inúmeros contos, que encenam vários tipos femininos e situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum  – como, p. ex., “Missa do galo”, “Capítulo dos chapéus”, “Singular ocorrência” , “Uma senhora”, “Trina e una”, “Primas de Sapucaia!”, “Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”, “Uns braços”, “D. Paula”, e muitos outros  -- a maioria podendo se catalogada como   ‘estudos sobre a mulher”, ao revelar  de forma soberba a mais aguda sensibilidade  de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética, preconceito social, autoritarismo, amor e ciúme.:
   Suas mulheres ficcionais -- orgulhosas ou tímidas, calculistas ou levianas, singelas ou complexas -- “com seus contornos roliços, seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, são criaturas feitas de capricho e de carne, sobretudo de carne, tudo instinto, sem nenhum raciocínio”.E nesse privilegiar a mulher como personagem primordial de sua ficção, desde os primeiros romances, Machado as desenha como personagens de grande densidade psicológica, alimentando de forma rica e sugestiva sua temática preferida: a traição. Traição era a uma preocupação permanente em Machado, desde Ressurreição, atingindo o clímax ‘explícito’ em Dom Casmurro – ciúmes e traição, ‘equação’ inerente a Freud.
     Importante notar, como que a reciclagem de um processo  desenvolvido por longos 36 anos (desde Ressurreição, em 1872), em sua obra conclusiva –  Memorial de Aires --  a par de continuar a privilegiá-las, valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as mulheres : não mais a figura sensual que, impulsionada pelo desejo, pode chegar à traição – como Capitu[sic...], Virgilia, Sofia, Guiomar, Valéria, Marcela -- mas a mulher proba, que pode ser amada e admirada, distante e alheia à tentação, ‘salvas do pecado’,como Fidélia e Carmo -- nos romances pós-1880, Machado chega a reduzir o homem a um nada,ele  sem a mulher, nada vale.: em Memorial de Aires, d.. Carmo segue a linha da mulher totalmente dedicada à famí­lia, e que firmemente controla não só o espaço doméstico, como, e prin­cipalmente, o marido; daí a famosa frase: "Aguiar sem Carmo é nada".
Não mais as machadianas adúlteras, sedutoras, ambiciosas,impuras,dissimuladas,traidoras — antes de tudo, fúteis e fugazes, a ponto de preferirem os tolos ao invés dos homens de espírito...
          [ A  tríade tolo -- mulher --homem de espírito permeia a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente ao longo do tempo e de sua  evolução literária,transportada a 'ideologia' do livro iniciante,Queda que as mulheres têm para os tolos, para muitas das obras posteriores : a  trindade  habita intensamente a maioria dos contos do ciclo 1860 -79 , está nos romances RessurreiçãoA mão e a luvaHelena , anuncia-se em certa  metamorfose na transição representada por Iaiá Garcia, transmuta-se inteiramente em Memórias póstumas de Brás Cubas e em Quincas Borba , reaparece sob enfática perspectiva em Dom Casmurro), por fim chega a seu ocaso nos derradeiros romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires, neste a seara  da redenção total da mulher machadiana(protagonizada por Carmo), definitivamente apartada da preferência pelo tolo ao invés e em vez do homem de espírito.
          Os tolos – para quem as mulheres têm acentuada queda, no início-- são, via de regra, estroínas, praticam as fórmulas socialmente estabelecidas, sua linguagem assemelha-se à retórica romântica dos folhetins, ostentam autoconfiança, são determinados e objetivos nas ações afetivas, até mesmo fingindo sentimentos e aparentando paixões com o fito exclusivo de conquistar a mulher ; exatamente ao contrário dos homens de espírito, que  fracassam e são excluídos  por não se coadunarem com os padrões de postura, convenções  e relacionamento sociais e por acreditarem numa vida  além e acima do jogo estratégico de aparências falsas e artificiais – mas depois , numa espécie de aprendizado pelo fracasso, irão amadurecer,assumir  uma atitude de reflexão sobre a "realidade aética da vida" vis-a- vis à desilusão com as possibilidades da vida moral ,e  por fim vão eles transmutar-se no cético.
             A transformação do homem de espírito se dá no cenário das metamorfoses processadas na criação ficcional machadiana. Não obstante o ‘aviso’ dado em Queda... , alertando para o insucesso do romanticismo, praticado em diferentes níveis e objetivos, Machado indica, nas obras iniciais, o amor romântico como solução --embora o narrador insinue ser um meio ingênuo – para depois trilhar caminhos mais audaciosos, descrevendo-o como a mola propulsora da destruição, o problema deixando de ser visto dentro dos termos de relações de classes e passando a ser encarado sob a ótica mais ampla e universal  da própria condição humana .
             A partir do início  da década de 1870,o macro-universo do entorno se transforma, o micro-universo literário deve acompanhá-lo : Machado pressente os novos tempos,convence-se da necessidade crucial de mudança, já exercita os primeiros passos, altera seu enfoque, sua temática,sua linguagem,seu estilo, sua estética literária. Intensifica o  apontar para o superficialismo das relações humanas, as pessoas (homens e mulheres) tendo de viver sujeitos a valores sociais que lhes são impostos e dos quais somente poderão se libertar com mudanças radicais de consciência, de atitude e de atos, dando início a um processo de reflexão que será plenamente desenvolvido nas obras posteriores – processo que o autor\narrador protagoniza no homem de espírito-personagem, que passa do alheamento e  distanciamento,da desesperança e da  desilusão  às gradativas adaptação e interação com a realidade , daí assumindo postura reflexiva e consciente (até transformar-se no cético) .Porém,  se o homem de espírito muda, amadurece, estabelece nova relação com a mulher, o tolo  continua com sua frivolidade e estoicismo, servil das convenções sociais e atado ainda à retórica romântica – e  novos perfis são dados a dois dos vértices do triângulo: o homem de espírito caminha da contemplação para o ceticismo,a ‘nova’ mulher machadiana deplora a frivolidade do tolo e passa a se inclinar para o homem de espírito.             
          Machado, como supremo criador, atento e obediente aos ditames sociais-‘ideológicos’ dos novos tempos, interfere no processo: o que o homem de espírito não logrou – modificar a natureza das mulheres – o autor/narrador faz, porém  mantendo tanto a “vulgaridade dos tolos” quanto   a natureza “aética” da vida social. No entanto,    como sempre fez em toda sua obra ficcional , o autor\narrador  que modifica a mulher e o homem de espírito abre mão de suas ‘prerrogativas’ , camufla  as diferenças existentes  entre injunções ficcionais e reais, incentiva o leitor a acreditar no fictício,ou no embuste\artimanha, e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando um narrador de pouca,ou nenhuma, confiabilidade, um  'narrador volúvel' (que habita e conduz particularmente  Dom Casmurro e muitos dos contos): em suma, convoca o leitor à acurada reflexão sobre a preferência da mulher – quer a antiga quer a atual – e deixa-lhe a  responsabilidade do julgamento conclusivo.].
   Especulam  muitos dos estudiosos que  Machado era mesmo ‘feminista’  -- e a cada leitura de sua obra  nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo.Sem dúvida alguma  em Machado o feminino confirma-se como uma categoria literária. Obsessivamente observador, a aguda e profunda visão machadiana das “cousas deste mundo” o fez constatar o quanto a mulher na sociedade oitocentista  brasileira -- reclusa e dominada, doméstica e servil -- era ‘anulada’ por sua própria condição feminina: se o mundo da mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Quem tem medo da literatura feminina / feminista ?

pelo 8 de março !

 Preconizada por Virginia Woolf, na década de 1930 [Virginia, irônica e realista, em conferência para jovens universitárias inglesas no Giron College, estabelecia as condições mínimas para que as mulheres atravessassem a fronteira física e psíquica da criação literária, ao declarar : “tendo um quarto para si e renda própria” -- ditames abrigados no livro A Room of One’s Own (Um quarto todo seu.) ], defendida pelas feministas  européias de 1970, uma ‘escrita feminina’ ganhou corpo (e forma) na literatura .
Mulheres escritoras (ficcionais e não-ficcionais) passaram a ter – ou adquiriram, por ‘méritos próprios de qualidade e personalidade  -- voz própria, estilo próprio, linguagem própria, temática própria, longe de “simplesmente reproduzirem modelos falocêntricos, caracterizados por racionalismos e pragmatismos”  acentua a ensaísta  Luce Irigaray:

Qual seria afinal uma ‘linguagem feminina’, como se expressa  um discurso essencialmente  ‘feminino’? existe afinal  uma voz especificamente feminina ?

Apesar das (para alguns, incontornáveis) dificuldades para uma definição precisa, entendo  -- e sustento, com vigor -- existir uma linguagem literária feminina com elementos, valores e vetores próprios, nitidamente percebidos na prosa ficcional, na poesia  e no teatro, e que só fazem acrescentar e enriquecer a Literatura (e a Cultura, em geral) – linguagem marcada pela subjetividade, por uma escrita mais sensorial e sensível, mais poética, lírica , uma escritura com ‘o corpo e a alma’.
Na ficção feminina, o (originariamente ditado pelos cânones românticos) amor -- condimentado pelo erotismo, por vezes intenso -- deixa de ser tema absoluto para ceder espaço a sondagens existenciais -- “a procura do sentido das coisas”: esta talvez, a expressão-chave da escrita feminina contemporânea.--  e até ao questionamento político e filosófico. Tudo isso traduzido e materializado em experiências formais e estilísticas : fragmentação narrativa, o ritmo ‘labiríntico’ no lugar da estrutura  linear, intertextualidade, tendência a impregnar a escrita com elementos de oralidade,  foco narrativo múltiplo,  intenso fluxo-de-consciência..

Certamente pode-se encontrar desses elementos na denominada ‘literatura masculina’– e efetivamente encontra-se : como negar serem essencialmente ‘femininas’ a linguagem literária, o estilo, a escrita de Marcel Proust, de Flaubert, de Balzac, ou muitas passagens de Tolstoi, e mesmo de Shakespeare, para citar gigantes da literatura universal – o que,de algum modo, desmistificaria esse tipo de distinção acentuada, da qual, enfatizo, não sou partidário. Gratifica-me bastante acentuar que a escrita feminina, marcante como é, ostenta suas características próprias, peculiares, plena de ‘personalidade literária’, assim como a possui,em sua devida proporção, a ‘literatura  masculina’. 

E no que enfatizo a concreta existência e expressão de uma literatura feminina, vis a vis com  uma ‘literatura masculina’ [sic],  longe muito longe de ratificar, conforme certas críticas de contingentes feministas, uma indesejável,digna de repúdio “divisão de sexos”, ao contrário justamente confere identidade própria e plena personalidade às linguagem,escrita e estilo praticados literariamente pela mulher. A meu juízo, valorizo-as,enalteço-as, dignifico-as.
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uma escrita feminina brasileira, sim

Muitos constataram — e comprovaram — a influência negativa da literatura em relação à posição da mulher na sociedade, "os literatos, romancistas e poetas explorando a concuspicência, a imoralidade e a luxúria que chamam amor; e naturalmente como nas relações entre senhor e escrava só pode haver obscenidade, os homens de talento produziram montanhas de livros onde a patologia mundana do amor é rebuscada ao mais íntimo e profundo limite." Com o tempo e a evolução dos conceitos sociais, almejada uma efetiva  mudança na sociedade, tornou-se imperativo repensar a condição feminina, enxergando a mulher, não como um complemento da família, mas como importante agente de mudanças pela função que exerce na sociedade.

No Brasil, o surgimento de mulheres escritoras ocorre principalmente a partir do século XIX, no contexto da crescente importância da imprensa e do início de movimentos em prol dos direitos das mulheres. Quando as questões relativas à emancipação feminina começaram a aparecer na imprensa, as mulheres se organizavam associativamente e passaram a reivindicar maior participação na sociedade em mudança. Ocorreram entao os primeiros movimentos organizados tendo como principal objetivo a melhoria das condições de vida da mulher — desde que orientada pela ótica masculina. [afinal, na constituição da família brasileira sempre imperou o pater familias, ou seja, o poder  nas mãos do homem, responsável não só por seus escravos e agregados como também por sua mulher, filhos e netos — a família patriarcal como a célula mais importante da formação da sociedade; este poder social do homem advinha do direito consuetudinário e as próprias leis brasileiras asseguravam-lhe autoridade : os direitos civis no Brasil, basicamente, até 1890, eram uma extensão dos de Portugal, isto é, eram regidos pelas Ordenações Filipinas — o primeiro Código Civil Brasileiro só vigorou a partir de 1917. Na família monogâmica, criada para preservar o poderio econômico dentro de um mesmo grupo sangüíneo, exigia-se que a sexualidade feminina fosse rigorosamente controlada, pois era a única forma de que o homem dispunha para assegurar a paternidade e a herança familiar. ]

O que não impediu, porem, a formação de uma linhagem de mulheres militantes dentro da literatura (como personagens ou como autoras) e da sociedade (na militância política, por meio sobretudo do veículo jornalístico) que desenvolveram trabalho emancipatório preparador das condições que propiciariam, no século XX, a implementação e solidificação de um movimento que se  poderia chamar de estética feminista.

Na literatura brasileira, considera-se o romance Úrsula (1859), da maranhense Maria Firmina dos Reis, a primeira narrativa de autoria feminina. O romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da história. Contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da protagonista, vítima da sanha do cruel perseguidor.

No entanto, de modo geral a  escrita praticada por mulheres esteve ausente dos anos decisivos para a formação da literatura brasileira durante o século XIX , na vigência do Romantismo – o que soa algo inusitado, porquanto justamente a mulher como leitora foi o grande,crucial, basilar elemento,primeiro pela prática de leitura no país, responsável pela existência e proliferação de escritores e da própria  literatura brasileira. Se não totalmente ausente do mercado, restrita a colaborações em periódicos de vida curta ou de público definido pela circulação no espaço doméstico (o que, de resto, significa em meados dos 1800  uma confirmação  antecessora   à  interpretação de Virginia Woolf, da década de 1930).. As primeiras manifestações de escrita feminina levadas oficial e intensamente ao público externo vieram no final do século XIX, já na ‘vigência’ do Realismo na literatura brasileira [paradoxal ? não seria o Romantismo  ‘mais apropriado’ para a expressão da écriture féminine?...]

Loas, todas as loas, portanto, para as pioneiríssimas  Rita Joana de Souza, Ângela do Amaral Rangel, Barbara Heliodora, Maria Josefa Barreto, Beatriz Francisca de Assis Brandão, Maria Clemência Silveira, Delfina Benigna da Cunha, Ildefonsa Laura Cesar, Ana Euridice de Barandas, Nisia Floresta, Violante de Bivar e Velasco, Alta de Souza, Clarinda da Costa Siqueira, Joana Paula de Noronha, Ana Luisa de Azevedo Castro, Maria Firmina dos Reis, Adelia Fonseca, Maria Benedita de Oliveira Barbosa (Zaira Americana), Maria Angélica Ribeiro, Isabel Gondim, Maria do Carmo de Melo Rego, Rita Barém de Melo, Joaquina Meneses de Lacerda, Ana Ribeiro, Julia da Costa, Amália Figueiroa, Luciana de Abreu, Serafina Rosa Pontes, Adelina Vieira, Josefina Álvares de Azevedo, Carmem Dolores, Narcisa Amália, Gabriela de Andrada, Maria Benedita Bormann, Inês Sabino, Anália Franco, Delminda Silveira, Adelaide de Castro Guimarães, Honorata  Carneiro de Mendonça, Carmen Freire, Emilia Freitas, Vitalina de Camargo Queirós, Ana Facó, Francisca Izidora da Rocha, Maria Carolina Corcoroca de Souza, Ana Autran, Corina Coaraci, Luísa Leonardo, Alexandrina Couto dos Santos, Ana Aurora do Amaral Lisboa, Revocata Heliosa de Melo, Anna Alexandrina Cavalcanti de Albuquerque. Até entrarmos o século XX com Júlia Lopes de Almeida, chegar a Gilka Machado e Maria Lacerda de Moura. 
Contemporaneamente, a escrita feminina brasileira encontra  expoentes, entre outras, em: Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria Alice Barroso, Maria Helena Cardoso,Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César ,Hilda Hist, Adélia Prado, Lya Luft,Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Nilma Gonçalves Lacerda, Maria Adelaide Amaral, Luzilá Gonçalves Ferreira, Myriam Campelo. E entre as mais novas, Heloisa Seixas, Patricia Melo, Fernanda Young ; e nas novissimas, Carmen Oliveira, Adriana Lisboa, Maria Conceição Góes, Clarah Averbuck, Cíntia Moscovich , Carola Saavedra, Leticia Wierzchowski. O ensaísmo abriga Flora Sussekind, Heloisa Buarque de Holanda, Leyla Perrone-Moisés, Leyla Perrone-Moisés, Walnice Nogueira Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Nelly Novaes Coelho, Marisa Lajolo, Marilena Chuaí, Marilene Felinto, Eliane Vasconcelos, Isabel Lustosa, Beatriz Resende.   E outras e outras e outras, muitas outras   

 

Os homens e as mulheres


Naquele  século XIX e na primeira quadra do século XX, no entanto, não foram apenas elas que escreveram ‘sobre elas ou para elas’: quatro  escritores-homens se destacaram por voltar-se, em graus e enfoques diferentes, para as mulheres.: Joaquim Manuel de Macedo descreveu-a e tratou-a como “donzela de irrepreensíveis pendores” em especial em A Moreninha e em inúmeros contos.  José de Alencar traçou o mais completo retrato da mulher ‘urbana’ da corte, no Brasil pós-Independência, no auge do romantismo, notadamente na trilogia  Senhora, Diva e Lucíola, além de nas novelas Cinco minutos e  A viuvinha ,e nos romances   A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação.  
Há de se destacar, porém, Lima Barreto: debruçou-se como ninguém sobre a mulher ‘republicana’ : primeiro na década de 1910, ao desenvolver o “tema de Carmem” , uma série de artigos e crônicas  em jornais e revistas nas  quais a propósito de crimes ou julgamentos,  ataca os homens “que se atribuem direitos sobre a vida das mulheres”, denunciando crimes de uxoricídio, nos quais homens matavam “mulheres infiéis”— e pior eram absolvidos nos julgamentos por “legítima defesa da honra”; e ao longo de toda sua produção croniquesca em jornais e revistas tratar de questões como movimento feminino, voto feminino, direitos femininos.
A rigor, Lima Barreto , que nunca silenciou sobre seu tempo, não poderia mesmo  ficar alheio à situação da mulher na realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas transformações na sociedade. Retratou e a fez personagem em  contos e romances, escreveu sobre a mulher em artigos e crônicas, publicadas em jornais e revistas — sob um  caráter de ambigüidade,ora a criticando, por vezes atacando, ora a defendendo, muitas vezes enaltecendo : diz-se “antifeminista”, põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas defende a necessidade de instrução para a mulher ; repele o ingresso da mulher no serviço público (“... rendosos cargos para as mulheres das classes sociais mais favorecidas : e as reivindicações das operárias ?...”), mas defende o divórcio ; imbuído da moral do seu tempo, retrata a mulher pela ótica comum,  Lima destila sua ácida  ironia crítica sobre a mulher ,mas denuncia sua “absurda” situação de dependência aos homens . Longe, muito longe da falsa, equivocada acusação de  misoginia, posicionado na realidade contra o movimento feminista brasileiro — o que ele denominava “feminismo bastardo, burocrata”— não contra as mulheres,e sim como ojeriza aos signos do progresso republicano, Lima Barreto sempre dá à mulher espaço significativo em sua obra ficcional e não-ficcional : nos romances, contos, artigos e crônicas, apontamentos e notas, comenta a situação da mulher perante o casamento; a viuvez; as oportunidades educacionais e profissionais; a moral que lhe é imposta pelo duplo valor; a desigualdade de julgamento do adultério masculino e do feminino; o mundo da prostituição e o início do movimento feminista no Brasil — e sobretudo defende intransigentemente a mulher “que são “como todos nós, sujeitas, às influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores". Uma ambigüidade implícita e explícita em seus artigos não permeia o retrato da mulher elaborado em seus romances, novelas e contos, em que elas  têm sempre atitude e comportamento progressista, são superiores aos maridos (exemplos de Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara dos Anjos; Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; muitas outras em contos, etc) .
                  
Porém, nenhum escritor brasileiro do período ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis. Ele  escrevia sobre mulheres e para mulheres. Amores e frustrações femininos eram temas constantes, sempre presentes o ciúme, o adultério, a prostituição, e as personagens femininas ocupam lugar privilegiado, lugar de destaque em todos os romances e na maioria dos contos.E mais :Machado sempre escreveu para periódicos cujo público era predominantemente feminino, primeiro no Jornal das Famílias ,depois em A Estação.
Nas entrelinhas de seus contos, romances, e também de suas crônicas, Machado sempre chamou atenção para as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras: argumentava que a mulher devia receber instrução e não ficar confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à liberdade -- daí, seus temas mais constantes: o ciúme e o adultério. Machado trouxe à luz a questão da sexualidade feminina ,a exemplo de Flaubert, Balzac, Eça, e mais tarde Freud . [aliás, como Roberto Schwarz diz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois” -- nos romances, principalmente da ‘segunda fase’, Machado capta de forma aguda, a la Freud, as sutilezas do ‘discurso do desejo inconsciente’,  descreve conflitos e enfatiza o inconsciente, sua obra como o principal elemento/vetor de pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise ; a percepção acentuada do funcionamento do psiquismo humano na verdade vem desde as primeiras obras.]

Na maioria dos romances, a mulher é o elemento forte, põe o homem dependente, é também o esteio, a base da relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, a figura masculina sendo até desnecessária; é  comum no romance machadiano, que retrata a sociedade de seu tempo, mulheres fortes, viúvas que não mais casam, como em Iaiá Garcia, Dom Casmurro, Casa Velha, Memorial de Aires. Em toda sua obra, Machado enfatizou o personagem feminino: mesmo em sua primeira fase, Livia, Guiomar, Helena, Iaiá Garcia, Lalau já dominavam; na segunda fase, as mulheres -- Marcela, Virgília, Sofia, Capitu, Fidélia, Carmo --são personagens de grande densidade psicológica
Um número surpreendente de contos são o que pode ser catalogado como  ‘estudos sobre a mulher’: “Singular ocorrência”; “Capítulo dos chapéus”; “Primas de Sapucaia!”; “Uma senhora”; “Trina e una”;  “Noite de almirante”; “A senhora do Galvão”; “Missa do galo”; “D. Paula”, encenam vários tipos femininos e situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum . Em todos, estão presentes os elementos básicos da ficção machadiana: ciúme, adultério, e prostituição.
Para muitos estudiosos, Machado era mesmo ‘feminista’ (eu, particularmente, não chego a tanto...)-- e a cada leitura de seus contos, romances e crônicas nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Pelo aniversário do Rio

O aniversário da cidade neste 1º. de março,  oferece excelente oportunidade para, em torno de uma coleção de livros sobre o Rio de Janeiro, tecer um exercício de reflexões,ilações e interações,vis a vis, entre quatro de seus mais representativos  escritores e  quatro de suas obras. 



Espelhos : o Rio de Janeiro visto pelos seus escritores
Coleção, preciosa na  forma e no conteúdo, enfoca a cidade sob as lentes e as penas de seus mais representativos escritores
 River of January – o Rio de Janeiro visto pelos seus escritores”(editora Cidade Viva\Instituto Light): em  edições  bilíngües(português-inglês) e com  ilustrações originais de grandes nomes das artes plásticas, A alma encantadora das ruas,, de João do Rio; , Memórias de um sargento de milícias,, de Manuel Antonio de Almeida; Casa Velha, de Machado de Assis; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.
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Caso exemplar de continente – a exuberante forma editorial-gráfica – integrado  à perfeição ao conteúdo – as magníficas criações literárias de grandes escritores, uma coleção, importante em todos sentidos, cujo primeiro conjunto abre  possibilidades de  formulação de interessantes estudos e reflexões sobre    interações entre  as peças que o compõem. A rigor, mostra muito mais do que o geográfico-urbano-espacial elo comum entre o Rio e notáveis literatos: traz outros elementos de relações, encadeamentos e ilações -- estas tanto de identificação quanto de  contraposição -- entre as quatro obras, seus autores e... seus  personagens.
 Não se deixem, leitores, ledores e comentaristas, levar apenas pelo fascínio das exuberantes formas editoriais-gráficas da Coleção,  mas atentem sobretudo pelo  conteúdo de cada um dos livros, per se, e pelo que abrigam de elementos referenciais em seu conjunto.Neste, surgem  e emergem elementos excepcionalmente significativos, a propiciar a montagem de um verdadeiro jogo de referências cruzadas e  referências remissivas.
 Qual  espelhos que ao mesmo tempo em que refletem ‘invertem’ imagens, as obras em tela guardam e mantêm entre si identidades e contraposições, similaridades e contrapontos,intertextualidades e cotejamentos.(teriam os idealizadores deste conjunto inicial da Coleção vislumbrado essas interações de atores e obras, e o concebido  sob esse approach ?....)
 Primeiramente, vale observar que, sob a órbita do cenário carioca da segunda metade do século XIX e duas primeiras décadas do século XX  brasileira, os quatro livros   dados a público guardam,entre cada um dos escritores de cada uma das obras, o importante vínculo de encadeamento sequencial de ciclos cruciais da  historiografia literária brasileira , a saber:  Memórias de um sargento de milícias  como exemplar do Romantismo ( abalizadas análises projetem a obra de  Manuel Antonio de Almeida  na verdade como um antecipador do Realismo) ; Casa Velha,  como (especial) representante do Realismo (malgrado,não apenas  Machado de Assis poder ser considerado, e o é,acima de todos os ciclos e rótulos e chancelas, como ainda a interpretação  deflagrada pela crítica e ensaísta Lucia Miguel-Pereira em Machado de Assis: Casa Velha,1944, interpretação equivocada e depois revisada e corrigida, de ter sido a obra escrita muito antes de 1885, quando foi concretamente publicada).; Triste fim de Policarpo Quaresma,romance expoente do Prémodernismo,de que Lima Barreto foi inconteste epígono, de resto ciclo que também abrigou João do Rio e sua ode à "alma encantadora das ruas"-- obra que,nesta coleção, assume, a meu  estrito juízo, um papel bastante peculiar,qual uma espécie de 'abertura do pano', ou de 'intróito ao ambiente', como que uma 'apresentadora' do cenário urbano onde se desenrolam as histórias e tramas narradas  nos outros três livros.
A par de ilações concretas de cunho intelectual e literário entre os escritores e as obras em tela,  mencionemos  a existência efetiva de relações de ordem pessoal – amistosas, num caso; de franca antipatia  mútua,em outro : enquanto Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis guardavam excelente relacionamento e até afinidades  afetivas entre si (mas também marcantes ilações literárias, como se verá)– Almeida,.além de ter sido  chefe de Machado na oficina da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de tipografia,  introduziu-o  na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de Paula Brito e foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado, inclusive,dedicou a ele o (importantíssimo) artigo “O jornal e o livro”, publicado em janeiro 1859 (ele, com menos de 19 anos e meio) no Correio Mercantil    de outro lado, Lima Barreto e João do Rio se antegonizavam, nutriam forte animosidade um pelo outro.E entre Machado e João do Rio deu-se  curiosa episódio : Machado nunca respondeu ao questionário que,em 1899, João lhe submetera  para a coletânea, de entrevistas com diversos escritores, O momento literário, e acabou não aparecendo – não se sabe até hoje porque – na obra, publicada em 1904..
Em outro viés – aqui de natureza digamos ‘filosófica’ -- em Machado de Assis e Lima Barreto as diferenças e divergências entre ambos escondem proximidades e até mesmo identidades bastante significativas (veiculei  estudo a respeito, exatamente com esse título,  “Diferentes, divergentes, mas próximos muito próximos, no qual promulgo Lima Barreto e Machado de Assis como verdadeiros, natos, ‘parentes literários’. Ainda que bastante diferentes, ambos muito próximos de várias maneiras – essencialmente semelhantes em concepções filosóficas, temas, influências, pontos de vista,mesmo que sob formas,modos e discursos distintos. De modo convergente, mas de forma  divergente, analisaram os cenários políticos, históricos,institucionais,sociais,culturais de suas épocas e a existência do homem --: Machado, privilegiando as nuances, dissecando-o em sua essência ,revelando sutilezas, contradições e ambigüidades psicológicas; Lima, sem linhas e focos enviezados, desnudando suas fraquezas, insuficiências, submissões, condições sociais. Se Machado inaugurou o psicologismo na ficção brasileira, Lima introduziu o tema da incomunicabilidade, do isolamento existencial e social.)
Por outro lado, notáveis – e sem o serem inusitadas ou surpreendentes - são as  intertextualidades, quer de interações quer  de contraposições, explícitas ou=implícitas, entre as quatro obras e os quatro autores. ’Sob um viés, Memórias de um sargento de milícias irradia genericamente para Casa Velha e para Triste fim de Policarpo Quaresma um vetor de estado e posturas de autoritarismo, concreto ou latente: o autoritarismo ditatorial de Vidigal, em Memórias...  é do mesmo naipe do de Floriano,como tratado em Policarpo Quaresma – de que aliás é o personagem principal, sem dúvida – e de outro tom no autoritarismo doméstico,familiar de d. Antonia em Casa Velha.
Leonardo Filho, Lalau e Policarpo Quaresma, cada um a seus modo, feitio e circunstâncias, são personagens que reagem a pressões, por vezes intoleráveis, de uma sociedade dominadora, patriarcal, ou de um ambiente matriarcal(como em Casa Velha) – de resto, também  o que se dá com os personagens de Lima Barreto, no geral de sua ficção : Leonardo Filho e Policarpo agem, mas sofrem as sanções da sociedade e do sistema político -- para o primeiro,ainda colonial; para o outro, já republicano -- que os sufocam e ferem; Lalau, de um imperial âmbito  familiar,doméstico, e de  esfera social.
Quer em Memórias de um sargento de milícias, em Casa Velha, quer em Triste fim de Policarpo Quaresma, personagens, situações,tramas – e os autores – ‘subjugados’ ao Estado,onipresente, seja “no tempo do rei”, seja ‘sob o manto imperial’(em 1839),seja sob a ‘mão pesada da República’.
Não chego a dizer e sustentar que Memórias de um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida sejam a obra e o autor capitais, centrais, deste conjunto, mas podem ser vistos como um pólo gerador de eixos de ilações e recorrências com as demais obras e autores. Antonio de Almeida e sua obra --  emblemática  de uma inflexão temática, tramática e estilística no romantismo literário brasileiro -- ‘interagem’ com Machado de Assis  não só na antecipação do Realismo, mas também, e especificamente,no que Memórias de um sargento de milícias --‘anárquica’, ‘picaresca’(conotação, na verdade, cunhada por  Mario de Andrade , é questionada por Antonio Candido,em seu primoroso ensaio “Dialética da malandragem”, para quem Leonardo  Filho antes de ser um ‘pícaro’ é, sim, o primeiro malandro da literatura brasileira . No entanto, para ‘simplificar’ e evitar estender o que não é propósito deste comentário, aceitemos e adotemos essa  designação mesmo.) -- prenuncia Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)– ‘inovadora’, ‘revolucionária’, marco da inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário brasileiro,e da qual – convém notar - Casa Velha(1885),na produção romanesca machadiana,  é seqüente.
 Memórias de um sargento de milícias  contrasta com a ficção brasileira do tempo – como Casa Velha difere, no enfoque e no tom e timbre, da ficção realista de sua época e inclusive, e em especial, das obras romanescas de Machado de Assis a partir da década de 1880 (Memórias póstumas de Brás Cubas; Quincas Borba; Dom Casmurro; Esaú e Jacó; Memorial de Ayres)
 “O tempo do rei’, i.e. de d. João VI, em que se dá a história de Memórias de um sargento de milícias,  é citado e adquire significância especial em  Casa Velha, no que determina como fulcro inicial  na dinâmica da trama a intenção do padre-narrador em escrever a história de Pedro I, inspirado  numa Memória de d. João VI,de autoria do pde. Luís Gonçalves dos Santos, o pde.Perereca. Vale dizer, a obra que o cônego em Casa Velha  propõe-se a escrever é,no âmbito ficcional, ‘decorrente’ da vivência no tempo em que decorre Memórias de um sargento de milícias.: nesta, a estrutura da trama, inerente a história política entre 1808 e 1822, faz o  pano de fundo histórico da obra de Manuel Antonio de Almeida  terminar onde começa o da obra de Machado de Assis.
Mais do que ‘picaresca’[sic] ou outra conotação que se lhe atribua,  Memórias... é antes de tudo, um romance social – como aliás são os de Lima Barreto.  Mas é também uma história do amor de Leonardo Filho por Luisinha – esta, ao contrário, de Lalau, de Casa Velha, e de certo modo de Olga, de Policarpo Quaresma,  é mocinha burguesa, com herança e meneios dissimulados. A obra de Antonio de Almeida também retrata uma família – Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, aliás  o núcleo central do elenco de protagonistas, como o são em Casa Velha d. Antonia,Lalau e Félix. Na obra de Machado de Assis há a contraposição ao mundo patriarcal representada pela figura de d. Antonia, e em dada escala por Lalau, não de todo submissa às regras sociais (embora de comportamento dentro da ‘ordem’); em Memórias de um sargento de milícias personalizada essa contraposição,e confrontante com a ordem estabelecida, por Leonardo Filho: ele e Lalau são dotados, cada um per se, de elementos simbólicos, como  personagens –representantes das classes não-dirigentes [e caberia aqui uma especulação- claro que numa escala ‘surreal’ : Lalau  poderia se interessar,e vice-versa, por Leonardo?...]
 Por sua vez, tanto Memórias de um sargento de milícias quanto Triste fim de Policarpo Quaresma, talvez com sinais invertidos, representam metáforas sobre o destino do Brasil  como Nação. A impressão de realidade comunicada pelas obras decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou "destino" das pessoas naquelas sociedades;  Manuel Antônio, guardadas as devidas proporções, mantém em  comum com os autores realistas: a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade --exatamente como Lima Barreto..
Ambas as obras e seus protagonistas  como veículos de hilariantes sátiras sócio-políticas, das instituições, Policarpo Quaresma como uma espécie de  Leonardo Filho ao contrário : se aquele  é modelo do patriota, este é o antipatriota. Enquanto Leonardo Filho sofre a repressão de uma sociedade forte,preocupada com a ordem pública,  Policarpo convence-se da necessidade de um governo forte -- o que o leva a apelar ao poder de Floriano Peixoto e alistar-se no exército florianista.
No geral e em essência, o universo dos personagens da obra de Antonio de Almeida – empregados, subempregados, desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados, etc – é o universo ficcional de toda a obra de Lima Barreto.
Os dois autores, ‘contestadores’ da ordem – não apenas numa,digamos, ideologia de suas respectivas tramas e temas ficcionais, mas também  na forma literária: as escrita e linguagem ficcional imprimidas em Memórias.guarda identidades com as escrita,estilo e linguagem literária de Lima Barreto, ambas coloquiais,despojadas,fluentes,lastreadas na oralidade.(“antinefelibatas”, segundo Lima).
 Em Triste fim de Policarpo  Quaresma – como de resto nos demais romances  e novelas barretianos (Recordações do escrivão Isaias Caminha e Morte e vida de M.J. Gonzaga de Sá; em Clara dos Anjos) – há um pathos trágico, da derrota final de Policarpo; em Memórias de um sargento de milícias , ao contrário, dá-se um aparente pathos ‘épico’, de vitória, Leonardo Filho feito por fim sargento de milícias
 Se Leonardo Filho é um ‘herói atuante’, picaresco [ sic : conservemos a conotação ‘picaresca’,vá lá...] , ‘thorminiano’ (de Lazarillo de Thormes), Policarpo (bem como Isaias Caminha – e similarmente ao machadiano  ‘homem de espírito’) é um autêntico ‘herói carlyleano’,um ‘herói solitário’, ‘intelectual’ lyleano’– per se  um flâneur. Incorporado de Carlyle (uma das maiores influências intelectuais em Lima),  o flâneur  barretiano – foi Lima  o introdutor desta figura na literatura brasileira – que é um  flâneur dramático,debilitado, andarilho decadente, está no flaneurismo ,de perfil e atuação completamente contrários, de João do Rio, em seus freqüentar e retratar as ruas da cidade.
Identificação e ‘entrocamento’ entre Lima e João – não obstante as antipatia  e animosidade de um pelo outro no campo pessoal --  que não se dá apenas nesse terreno subjetivo de comportamento social mas também em vívidos aspectos comuns da realidade de origem e de vivência de cada um.
Ambos  naturais e falecidos no mesmo Rio de Janeiro – João do Rio nascido em 1880, Lima Barreto em 1881(aliás, ano de publicação de Brás Cubas,marco ficcional machadiano); João, morto em 1921, Lima em 1922 : um ano a separá-los em seus nascimentos e mortes – Lima oriundo de família modesta, de funcionário público empregado pela Monarquia, amante de seus ‘adoráveis subúrbios’,rebelde e automarginalizado; João, de família de classe média, abolicionista,positivista, republicana, dândi  integrando-se  gradativamente às altas esferas da soiedade e às  elites ;  os dois vividos na mesma cidade,então em ebulição, pela pretensa modernização, ambos sob a mesma República, João, entusiasta incondicional, Lima, crítico visceral.
 João do Rio, sempre atuando na ‘imprensa burguesa’, em grandes jornais,prestigiado e famoso, foi até mesmo empresário jornalístico;; Lima Barreto, embora iniciando no portentoso e  poderoso Correio da Manhã (acida e demolidoramente criticado em Recordações do escrivão Isaias Caminha—aliás, também João do Rio, impiedosamente satirizado pela “futilidade de sua pose”), sempre preferiu a  imprensa libertária, alternativa, contestadora.. O João cronista, autêntico seguidor da ‘arte das transições’ e da ‘circularidade na crônica’ de Machado de Assis (espécie de marca registrada, entre outras características marcantes, a “arte das transições” faz parte da  própria forma narrativa,,  unindo tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado  surpreendente,cujo trajeto é ‘amenizado’ para os leitor , primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral  muitas vezes nem percebida de todo) : Lima, praticante consciente de  um novo estilo, contundente, fomentador,para não dizer criador, da crônica contemporânea. João do Rio, criador do colunismo social, um olhar no mundanismo, antagoniza e confronta Lima Barreto, comentarista político, sempre no debruçar nos aspectos  sociais.
Mas, embora dotados de ideologias, posturas, visões e interpretações nada convergentes, ambos profundamente interessados na cidade e no seu habitante.
É nesse sentido e com essa índole que João do Rio registra, apregoa, expõe, dissemina e exalta a  “alma encantadora das ruas” da cidade – que por sua vez está também nos becos,ruelas,ladeiras, por onde Leonardo Filho e os personagens transitam ‘picarescamente’[sic] na obra de Manuel Antonio de Almeida e onde Lima Barreto constrói e ambienta todas suas tramas ficcionais. Os mesmos  contingentes sociais da cidade povoam literariamente as obras dos três escritores.
 Caso exemplar de continente – a exuberante forma editorial-gráfica – integrado  à perfeição ao conteúdo – as magníficas criações literárias de grandes escritores, loas e mais loas,portanto, ao projeto editorial-literário-iconográfico, tão bem  idealizado e produzida pela Cidade Viva . Brilhante e relevante Coleção esta, a exibir exemplares claros da pujança literária do Rio de Janeiro, a extraordinária capacidade criativa de alguns de seus mais importantes escritores – cujo primeiro conjunto,este, oferece a oportunidade de tantos significativos cortes analíticos -- tendentes,por extensão,a inspirar e prover estudo literário de maior alcance e aprofundamentos e prospecções mais alentadas  (que de resto intento,em sequência,  fazer num ensaio)