sexta-feira, 25 de maio de 2012

Machado de Assis, a mulher, o amor


e já que antes falei de Capitu - e o exercício da dúvida -- eis como  Machado via (e enaltecia) as mulheres

        Desde o início de sua criação ficcional em prosa, Machado traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as mulheres, mormente depois do denominado romance de transição Iaiá Garcia, em que o poder de observação psicológica dos personagens se acentua — captando, de forma expressiva, o conceito freudiano  do desejo in­consciente. Machado  foi muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade :  criou um estilo de literatura não apenas de observação das  pessoas mas sobretudo de  interpretação, expondo das  pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes,  um outro lado , que  muitas vezes  aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente.

          Machado sempre foi um autor interessado em prospectar as  paixões dos homens, em dissecar-lhes as intimidades, em levantar ques­tões e em tomá-las públicas pela voz de seus personagens.  Sobretudo percebia, com clareza, o lado trágico das relações  humanas. Este lado trági­co, já presente em Shakespeare e Sófocles, p. ex.- duas das principais leituras de Machado,durante toda a vida –passa  pelo permanente mal-entendido dos encontros humanos, de um ser humano permanentemente acossado pelo outro, num processo originado,determinado e dinamizado//materializado pelo  ciúme e a desconfiança implícita, pela traição e pela infidelidade, de resto temas  constantes  na vida literátia de  Machado.Muito da temática e da tramática machadianas gira em torno do ciúme e do perdão – vale dizer, do binômio freudiano de ‘culpa e perdão’. Foi ele o autor brasileiro que introduziu a perspectiva  crítica, fazendo da dúvida, do questionamento e da argumentação, ‘a la Freud’, uma constante em sua obra.[1]   
           A temática essencial de Machado de Assis consistia, sob a correta disposição da forma, em expressar as sutilezas do mecanismo psicológico no deflagrar de ações,emoções,expressões e reações no comportamento humano . Tinha em vista um prisma polêmico: superar as simplificações mecanicistas praticada pelos epígonos do Naturalismo no final do século XIX, propondo radical e consistente denúncia contra mistificações e imposturas. Possuía uma maneira própria  de ver,representar e interpretar o mundo, a começar por seu peculiar processo de criação ficcional, as elaboradas transposições temáticas,tramáticas e de linguagem criando e intertextualizando intricado  que de resto não se ajusta às definições comuns dos gêneros literários, como por exemplo no caso a ‘indefinição’ genética de Queda que as mulheres têm para os tolos. 
 Afrânio Coutinho destaca que “o grupo mais extenso e de maior ressonância entre os assuntos machadianos seja os que traduzem o sentimento trágico da existência humana”[2] até porque em Machado pela primeira vez na literatura brasileira de então o narrativo e o descritivo dava lugar ao psicológico, ao íntimo, à alma – num processo que o conduziu, por vezes, a um certo amoralismo, buscando acima de tudo atingir a essência do ser humano, transcendendo o visível , o corpóreo, o material, num mergulho na contemplação das inúmeras e distintas perspectivas da alma humana
 Especialmente em sua segunda fase, a obra machadiana segue a linha da litera­tura psicoJógica , seus heróis e heroínas  com seus eternos conflitos, complexos, dúvidas e hesitações. A  análise rigorosa e fria de Machado deixa a nu, de  forma calculadamente espontânea, as cruezas e mazelas do ser humano, apresentado em  seus mais comezinhos de­sejos, das situações mais inesperadas e mesquinhas.
        A literatura de  Machado – nos moldes de  Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz --  traz, juntamente com Freud,  para o centro das discussões, a questão da sexualidade feminina. Nos romances machadianos surge  uma mulher que quer poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de, algu­mas vezes, ao não poder dizer de seu desejo — a maioria das mulheres da época, vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse amor, melhor, mas não era o principal,pois a questão do amor era secundária, era um luxo que muitas mulheres não tinham, prioritários eram as conveniências pecuniárias, o interesse econômico, a ascensão social : Machado,fiel à ‘ideologia’ das décadas de 1850-60, assim o trata em Ressureição , em A mão e luva, mas redime o amor em Memorial de Aires, numa “recomposição com a vida” — fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita. [e sabemos o quanto  Freud já preconizava a infidelidade como uma saída “não neurótica” para  a infelicidade matrimonial vigente na sociedade burguesa mundial no século XIX].
         E no contexto ainda ‘moralista’ da década de 1870 ,  Machado de Assis publicava, em 1880, em capítulos na Revista Brasileira, as Memórias póstumas de Brás Cubas,  tratando aberta e claramente da  traição femini­na, ainda que sob um irresistível tom de humor e cinismo. Trabalhar sobre o tema do adultério não era nada fácil,, visto que, ainda dominados pela moral preconizada pelas Ordenações,  a sociedade do século XIX via  o adultério femini­no como algo abominável. 
          Se Freud criou a psicanálise porque estava atento às necessidades e expectativas femininas quanto à sexualidade, ao desejo – por extensão à  histeria-- Machado "estava muito ciente de que escrevia para um público majoritariamente feminino (...).Esse esforço de produzir uma literatura que estimulasse as mulheres brasileiras é um dos traços mais importantes  da carreira desse suposto  retraído"[3]
           Nenhum escritor de seu tempo  — Joaquim Manuel de Macedo(de A Moreninha e em inúmeros contos),  José de Alencar( notadamente na trilogia urbana Senhora, Diva e Lucíola, além dos contos A viuvinha, Cinco minutos, das novelas A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação), nem Taunay (em Inocência), Bernardo Guimarães (e sua Escrava Isaura), Domingos Olímpio ( com Luzia Homem), nem  Lima Barreto (de suas Clara e Castorina em Clara dos Anjos , Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma , Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; etc., das instigantes crônicas em torno do tema “Não as matem!”) —   ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis. Ele  escrevia sobre mulheres e para mulheres : desde sua primeira obra publicada, Queda que as mulheres têm para os tolos , passando pelos primeirissimos romances Ressurreição, A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, na imensa maioria de  seus contos , na excepcional  novela Casa velha, chegando a Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memorial de Aires, as mulheres sâo as protagonistas, as personagens primordiais, o elemento central em torno  das quais desenrola-se a trama e a narrativa.
           Machado sempre preferiu escrever em publicações cujo público predominante era feminino, primeiro no Jornal das Famílias -- no qual inclusive publicou, de 1864 a 1876, em sua fase dita ‘romântica’, à qual se filiam também seus primeiros romances, os 8 contos enfeixados sob o título de “Histórias românticas” -- e a partir de 1879 em A Estação . Sua obra, de modo geral, encena vários tipos femininos, com histórias povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que as mulheres se defrontam na vida: assim é com  Lívia de Ressurreição,  Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Virgília e Marcela de Brás Cubas, Sofia de Quincas Borba, Capitolina de Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das protagonistas de inúmeros contos, notadamente em  “Missa do galo”, “Capítulo dos chapéus”, “Singular ocorrência” ,”Uma senhora”, “Trina e una”, “Primas de Sapucaia!”, “Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”, “Uns braços”, “D. Paula”, que encenam vários tipos femininos e situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum – podendo mesmo serem catalogado como   ‘estudos sobre a mulher”, ao revelarem  de forma soberba a mais aguda sensibilidade  de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética, preconceito social, autoritarismo, amor e ciúme
        Os  amores e frustrações femininos eram temas constantes, inclusive o adultério e a pros­tituição - anteriormente inaceitáveis na literatura. Um verdadeiro modernista, Machado não acreditava na honra baseada na castidade, tendo nas linhas e entrelinhas de seus contos, romances, e também de suas crônicas , chamado atenção para  as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras : argumentava que a mulher devia receber instrução e não ficar com­pletamente confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à li­berdade.
         Suas mulheres ficcionais -- orgulhosas ou tímidas, calculistas ou levianas, singelas ou complexas -- “com seus contornos roliços, seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, são criaturas feitas de capricho e de carne, sobretudo de carne, tudo instinto, sem nenhum raciocínio”.E nesse privilegiar a mulher como personagem primordial de sua ficção, desde os primeiros romances,Machado  trabalhou o psicológico como nenhum outro escritor de seu tempo, preocupado com climas, ambientes, situações existenciais sutis e delicadas: as mulheres surgem como personagens de grande densidade psicológica, alimentando de forma rica e sugestiva a temática preferida do mestre brasileiro: a traição. Traição era a uma preocupação permanente em Machado, desde Ressurreição, atingindo o clímax ‘explícito’ em Dom Casmurro – ciúmes e traição. E o tema da traição feminina  está sempre intimamente  ligado , freudianamente, aos desejos edipiano – e aí a interseção de Machado com Freud.
         Na maioria dos romances, a mulher é o elemento forte, traz o homem dependente de si, ela é o esteio, a base da relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, viúvas que não mais casam, em que se percebe que a figura masculina é, por vezes, desnecessária (Machado chega a reduzir o homem a um nada - sem a mulher, nada vale .: em Memorial de Aires, por exemplo, D. Carmo segue a linha da mulher totalmente dedicada à famí­lia, e que firmemente controla não só o espaço doméstico, como, e prin­cipalmente, o marido. Daí a famosa frase: "Aguiar sem Carmo é nada" ).
         Pretenderia Machado de Assis o matriarcado?,  especulam muitos dos estudiosos de sua obra, para os quais  Machado era mesmo ‘feminista’  -- e a cada leitura de sua obra  nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo. Sobretudo por seu explícito, e corajoso, reconhecimento das necessidades emocionais, econômicas e  sexuais da mulher – de que, além do exposto em romances e contos, há claras  evidências  em dois textos publicados em 1881 : o soneto "Dai à obra de Marta um pouco de Maria", que aparece na Poliantéia comemorativa da inauguração das aulas para o sexo feminino do Imperial Liceu de Arte e Ofícios e no artigo "Cherchez la femme" que celebrava o mesmo evento em A Estação.
         Importante notar, como que a reciclagem de um processo  desenvolvido por longos 36 anos (desde Ressurreição, em 1872), em seu último romance,sua obra conclusiva –  Memorial de Aires --  a par de continuar a privilegiá-las, valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as mulheres : não mais a figura sensual que impulsionada pelo desejo pode chegar à traição – como Capitu, Virgilia, Sofia, Guiomar, Valéria, Marcela, mulheres pérfidas mais diretamente  envolvidas com o pecado -- mas a mulher proba, que pode ser amada e admirada, distante e alheia à tentação, ‘salvas do pecado’,como Fidelia e Carmo. Não mais as machadianas adúlteras, sedutoras, ambiciosas, impuras, dissimuladas,traidoras — antes de tudo, fúteis e fugazes, a ponto de preferirem os tolos ao invés dos homens de espírito...
           A meu juízo, sem dúvidas em Machado o feminino confirma-se como uma categoria literária. Obssessivamente observador, a aguda e profunda visão machadiana das “cousas deste mundo” o fez constatar o quanto a mulher na sociedade imperial brasileira—reclusa e dominada, doméstica e servil-- era ‘anulada’ por sua própria condição feminina : se o mundo da mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.





[1] Sigmund Freud. Escritores criativos e devaneios. , Rio de Janeiro : Imago, 1980
[2] Afrânio Coutinho. “Machado de Assis na literatura brasileira”, in Cadernos da Academia. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1997
[3] John Gledson, Machado de Assis: impostura e realismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.


terça-feira, 15 de maio de 2012

Em torno de Capitu e o exercício machadiano da dúvida.




Machado sempre cultivou a dúvida como instrumento de reflexão, e evitava o maniqueísmo de personagens por não aflorar os questionamentos.. Uma das expressões de sua evolução literária foi a narração. O narrador machadiano muda. Existem as expressões cunhadas no estudo machadiano do narrador confiável e do narrador não-confiável; o narrador não-confiável se sobressaindo a partir da segunda fase, iniciada em 1880. Esse tipo de narrador é quem coloca dúvidas sobre as coisas. Nesse particular, costuma-se conferir importância desmesurada àquela grande questão do romance  Dom Casmurro: Capitu traiu ou não traiu? – o que é absolutamente descartável e desprezível. E aqui peço licença para abrir um longo  parênteses e me estender nesse assunto, que é importante para caracterizar um elemento fundamental, um dos fulcros capitais de toda a ficção machadiana. A tola discussão se Capitu traiu ou não traiu é o que menos -- na verdade, nada – importa :Machado faz de Dom Casmurro -- a meu juízo, a maior obra da literatura brasileira, anos-luz acima de qualquer outra, comparável às maiores obras-primas da literatura universal -- um transcendental exercício da dúvida, um ensaio sobre a dúvida, que de resto permeia toda sua ficção : evoca-se,nesse romance,  o 'shakespearianismo' [sic : neologismo meu...] do ciúme e traição a la Otelo\Desdêmona, mas o que existe mesmo, assim entendo,é uma conotação 'hamletiana', vale dizer o 'ser ou não ser', que seria traduzido, sob a égide do exercício machadiano da dúvida,pelo 'traiu ou não traiu' inerente a Capitu -- aliás, a mais complexa e bem construída protagonista feminina da literatura brasileira , a suma da mulher machadiana criada e fomentada em toda sua ficção . Nesse ‘teor hamletiano’ reside toda a ficção machadiana, mormente na seara contística : é o 'fez\nãofez',''disse\não disse', ' saiu\não saiu', 'roubou\não roubou', 'recaiu\não recaiu' (caso do primoroso conto "Singular ocorrência"), e por aí vai. E o narrador é o agente dessas dúvidas .Examinado, ou lido, pela ótica, ou na órbita do ciúme --'oteliano': e  Shakespeare foi a maior influência sobre Machado, suas referência e citação prediletas, mil vezes referenciado em contos e crônicas -- Capitu é julgada infiel pelo narrador Bentinho, um ciumento nato e hereditário,doentio,e dissimulado -- e aqui entra outra grande influência de Machado : Freud , pois fomenta a pseudo-traição de Capitu como processo de transferência de sua atração pela mulher de Escobar.   Bentinho  é o narrador da história:  e aqui chegamos ao âmago da coisa, no âmbito da análise literária, que creio 'mata' a questão : o narrador-em–primeira- pessoa machadiano, mormente pós-1880 é um narrador não-confiável, que de resto Machado adotou em muitos dos textos ficcionais desse período -- justo os mais importantes e impactantes -- ao contrário do narrador confiável de antes, que se expressa pelo chamado narrador-em terceira-pessoa (embora Machado tenha também criado um ‘falso’ narrador-em-terceira-pessoa, mas isso faz parte de outra digressão) . Se o narrador de Dom Casmurro  fosse este, distanciado e isento  tanto quanto possível, haveria campo para se cogitar de Capitu infiel, adúltera , mas não : sendo em primeira-pessoa, nada a declarar, ou melhor nada a discutir. Dom Casmurro surgiu cerca de 3 ou 4 anos depois de Madame Bovary, de Flaubert, e de O primo Basilio, de Eça de Queiroz, dois 'parentes' sanguíneos ,literariamente, do romance de Machado, mas neles o narrador –em- terceira-pessoa não deixa dúvidas quanto à infidelidade de Ema Bovary e de Luisa , que são personagens 'chapados',definidos, mulheres praticantes nitidamente da infidelidade --não cabe aqui discutir quais os motivos que as levaram, ainda que saibamos ter sido o abandono por parte dos maridos ou a insatisfação com o casamento, etc : aliás, a infidelidade que Machado insinua em suas protagonistas, ao longo de sua ficção, é exatamente motivada ou gerada por esse comportamento dos homens, vide como exemplo emblemático disso o conto "Uma partida',neste livro que ora publico. Capitu não, não é nada 'chapada', é primorosamente construída como figura literária , sua grandeza ficcional é comparável á de Ana Karenina, e por aí vai.
Machado ao longo de sua ficção levantava ,incentivava, insuflava e cultuava todas essas dúvidas, praticava quase que permanentemente esse exercício,  e as colocava no leitor. Então, ao mesmo tempo em que Machado moldava, e mutava, sua trama e seus protagonistas,  também moldava e mutava narradores e, conseqüentemente, leitores. Esse culto ao questionamento passou para o leitor, que começou a ler, ou pelo menos deveria ler – o que é mais do válido para o leitor de hoje, também --  as histórias de Machado de forma diferente. E nisso está plenamente demonstrada a genialidade de um autor : na evolução literária de Machado, alteram-se formas e ritmos narrativos (condimentados de ironia e humor,adquirem um tom mais coloquial e de certa forma intimista), transformam-se protagonistas, transmutam-se narradores e leitores. Mutações e transformações, dos protagonistas, que se manifestam também em  transmutação do narrador e da voz narrativa e a criação  de um ‘novo’ leitor, o leitor- modelo em contraponto ao leitor-empírico. Machado construiu em seu texto, e por meio dele,  um novo “leitor-modelo” — definido este conforme a conceituação de “leitor-modelo’ e “leitor-empírico” de Umberto Eco. Machado formou seus leitores recorrendo a estratégias temáticas,tramáticas,narrativas,estilísticas que ,como poucos, tinha e sabia usar -- entre essas estratégias ,as digressões,fragmentações narrativas,retardamentos de fatos anunciados ou prometidos ao leitor, metamorfoses de vozes narrativas, de forma e de linguagem .Machado descondicionou o leitor empírico do leitor-modelo, como ninguém na literatura brasileira,  'desconstruiu' essa relação, embora via de regra seja ela utilizada para que o leitor chegue aonde o autor deseja. Contudo,  não satisfeito,na esteira desse 'dissídio' fez o leitor(o empírico) oscilar em "grave"-- que espera algo mais do que um 'simples texto', ou um 'puro romance', ou uma 'obra correta',um leitor que deseja reflexões de caráter mais realista-- e "frívolo"-- que espera impactos e emoções no texto ou na obra,um leitor de tipo romântico ;  ora graves ora frívolos, esses leitores são por assim dizer 'transportados' para dentro dos romances e para a maioria dos contos pós-1880 :   na obra machadiana, o leitor empírico é o ‘frívolo’, e ‘grave’ é o leitor-modelo.  Até o final da década de 1870, os  romances e contos , atendiam ao leitor empírico\frívolo ,  como aliás não poderia deixar de ser,  condicionado e formado no âmbito do Romantismo e seus valores ; ao passo que  o grave mantinha-se em ‘surdina’.  As metamorfose ao longo do tempo, a partir da década de 1860, deram-se concomitantes : na medida da evolução literária machadiana,o leitor empírico\frívolo vai ‘cedendo espaço’ ao leitor-modelo (inclusive um novo,criado por Machado)\grave, ao mesmo tempo em Machado  'camufla'  as diferenças existentes  entre injunções ficcionais e reais ,incentiva o leitor a acreditar no fictício,ou embuste\artimanha, e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando um narrador de pouca,ou nenhuma, confiabilidade, uma espécie de 'narrador volúvel' que habita e conduz muitos de seus contos. E o leitor situa-se como um ‘espelho’ desse narrador. No fim , ainda que sob o controle do autor, ou do narrador  cabe ao leitor,quase que exclusivamente,  o acesso a unidade dentro da imensa e complexa obra ficcional de Machado – que nisso parece contrariar Nietzsche\Zaratustra : “Alguém que conhece o leitor, nada fará por ele...”
Vale lembrar que desde seu primeiro livro publicado,em 1861 , Queda que as mulheres têm para os tolos – que título instigante, provocador ! – Machado fomenta o enigma, o mistério, o disfarce,o subterfúgio: porque persiste a dúvida histórica de ser uma tradução ou uma criação original dele – de que teci especulações reflexivas em artigo específico sobre esse texto. Cá entre nós e para nós, a versão de ser criação original é muito mais,digamos,’charmosa’, muito mais – não há dúvida alguma — ao estilo e espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado -- a par de outras igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado. Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’— e é esse teor ‘hamletiano’, a  ligá-lo e  referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores admirações e citação constante .Dele, Machado assimilou e incorporou  à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’  – presente e atuante  em romances como Ressurreição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos : binômio que remete a Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...— os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e  pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise,  desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz  ,Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”.
O certo é que Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é, primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressurreição (1872), e finalmente na opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.(1899) .  Queda que as mulheres têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia, de seu primeiro romance, e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora.. Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” -- traduzida ou não por Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
Em Dom Casmurro a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês: Machado embebeu-se nas lições shakespeareanas e delas impregnou seu romance mais lido e estudado, conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo,  e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose, inclusive, Machado como que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigente no âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX — proposta por especialista, “a ficção vista  como  nova fonte de teorização para a tradução”, a  tradução  aparecendo como  fio condutor e meio operandi , quer tendo sido feita realmente em Queda que as mulheres têm para os tolos , quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro, e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida literária de Machado.Um elo a ligar  ‘primeiras obras’ — a pioneira publicada, o exercício teatral inicial, o romance precursor — com aquela que é a síntese, corolário, consolidação. Elo que se alonga mais  ,  visto por outros aspectos e ângulos: vai  a Esaú e Jacó e atinge o corolário final em Memorial de Aires. Nos dois derradeiros trabalhos, Machado opta por um expediente ficcional — dentre os vários que utiliza ao longo de sua obra – atribuindo a um morto a autoria desses romances, deslocando-se para uma condição ambígua de editor e crítico de si mesmo, fingindo abrir mão da autoria de seu texto –-  ambiguidade gerada e conduzida pelo mesmíssimo vetor que o fez, nos primórdios, assumir a também condição ambígua de ‘tradutor’ em Queda...  e da mesma forma abrir mão da autoria de seu texto.
 MR.






segunda-feira, 14 de maio de 2012

Machado de Assis tradutor


-- antes, no poema "Minha mãe" [abaixo] falei de Machado  como um “senhor tradutor”, então :

Machado de Assis tem em seu ‘curriculo’, 48  textos traduzidos  entre 1856 e 1894 :  estreando com o poema “On the receipt of my mother’s picture” [“Minha mãe”], publicado como “uma imitação de William Cowper”, e  logo depois com o texto “A literatura durante a Restauração”, de Lamartine,em 1857,seguiram-se 16  peças de teatro (a primeira, “La chasse au lion”, de Vattier et De Najac ), 24 poemas, 3 ensaios, 2 romances, 1 conto ,  1 fábula e até  1 canção — sendo 39 textos oriundos do francês,4 do inglês, 3 do alemão, 1 texto cada do italiano e do espanhol. — de autores, entre outros, como Lamartine, Dante Alighieri, Alexandre Dumas Filho, Chateaubriand, Racine, La Fontaine, Alfred de Musset, Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Schiller e Heine (ambos a partir de  versões francesas) —  p. ex.  o Canto XX do “Inferno”, da Divina Comédia , de Dante , monólogo de Hamlet “To be or not to be”, de William Shakespeare  , Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, parte de Oliver Twist. , de Charles Dickens, “Suplício de uma mulher”, de Alexandre Dumas Filho e Emile de Girardin , “Prólogo do Intermezzo”, de Heinrich Heine, “O corvo”, de  Edgar Allan Poe.

Há de se considerar que, no contexto cultural do Rio de Janeiro, durante as décadas de 1850-70, a atividade tradutória era quase que exclusivamente praticada para o teatro, porquanto a esmagadora maioria das peças levadas a cena eram de origem estrangeira — o teatro traduzido ocupando tanto os espaços públicos das casas de espetáculos, quanto os  saraus literários privados . Ao mesmo tempo em que  também os denominados  romances-folhetim, oriundos sobretudo da França, nos primórdios do  Romantismo entre nós, requeriam  o tradutor .

Na “Advertência” da coletânea de peças teatrais de Machado de Assis, anota Mario de Alencar que entre 1860 e 1870 deu-se “a época da mais fervorosa e duradoura fase da literatura dramática que já houve no Brasil, quando a influência dos escritores franceses dominava como sempre em primeira mão  a literatura brasileira e o êxito da nova escola de teatro em França estimulava os ensaios dramáticos entre nós, tanto que quase não houve escritor brasileiro que não experimentasse a sua vocação para o gênero. E quem não podia compor obra original contentava-se com traduzir as recentes produções chegadas da Europa”. Ao mesmo tempo, Alencar explica não ter incluído na coletânea, por darem-se como perdidas, as traduções machadianas de  “Os descontentes”, de Racine – da qual “falava com muito louvor Artur Azevedo”—“Pipelet”, “O anjo da meia noite”, “O barbeiro de Sevilha”, “A família Benoiton”, “Montjoye”,  e em especial “O suplicio de uma mulher”, de Alexandre Dumas Filho e Emile  de Gerardin —  esta ,“atendendo à circunstância de estar riscado da cópia ,doada com outros papéis à Academia Brasileira [de Letras], o nome do tradutor, o que pareceu indicar a intenção de Machado de Assis de não dar a obra à publicidade em livro, ou talvez a sua opinião de não a ter literariamente acabado”. Aí está outro plausível subterfúgio machadiano, similar ao supostamente praticado em Queda que as mulheres têm para os tolos : nesta, omitiu o nome do autor original, naquela omitiu o nome do tradutor (no caso, ele próprio).

 Machado em sua ação tradutória não compartilhava com seus contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo – o etnocentrismo, o indigenismo, a paisagem natal como elementos essenciais para se criar uma literatura nacional genuína” – colocando-o em discordância com o momento cultural do País no século XIX. E ia além, criando e praticando um conceito da tradução – na verdade, um processo criador -- que, entre outros aspectos, incorporava  em maior ou menor grau sua célebre “teoria do molho” , segundo a qual  "pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica" : vale dizer, embora bebesse nas fontes européias utilizadas como ‘comida para seus pensamentos’,  ruminava os diversos alimentos e os transformavam em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que praticava pioneiramente como ninguém --  reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas por ele  próprio, em muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada

Vale examinar aqui alguns aspectos da atividade de tradutor em Machado de Assis . Em todas as traduções que fez, “se permitiu algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o traduzir não deveria ser um ofício de menor valor que qualquer outro na carreira de um escritor, embora assim continue a ser considerado e, respeitando o original, sem servilidade, exerceu essa atividade durante toda a sua carreira literária ,de 1856 a 1908.
Por subtração, ele elaborou uma teoria da tradução, que em muitos aspectos assemelha-se às teorias de tradução desenvolvidas a partir da década de 1970 , notadamente com relação ao entendimento moderno de tradução proposto por especialistas, “a ficção vista como nova fonte de teorização para a tradução”.

Tese contemporânea confirmada pela importância da tradução para Teoria Literária e Literatura Comparada conferida por ensaístas, críticos e teóricos – e que uma citação do próprio  Machado de Assis serve para  demonstrar o quanto seus pressupostos teóricos para o exercício da tradução, formulados na época,aproximam-se desse conceito atual  :
            A literatura, como Proteu, troca de formas, e nisso está a condição de  sua vitalidad         

domingo, 13 de maio de 2012

mãe, por Machado de Assis

E para não dizerem que não falei de flores : já que é “Dia das mães” 

Mãe... por Machado de Assis
justamente sua primeira tradução (Machado foi um senhor tradutor, dos melhores e mais criativos que a literatura brasileira já teve– saibam que em sua concepção avançadissima de tradução, praticou ,antecipador, a ‘transcriação’)

Minha mãe
(imitação de Cowper *)
                Quanto eu, pobre de mim! quanto eu quisera
                Viver feliz com minha mãe tambéml
                                           C.A.de Sá

Quem foi que o berço me embalou da infância
Entre as doçuras que do empíreo vêm?
E nos beijos de célica fragrância
Velou meu puro sono? Minha mãe!
Se devo ter no peito uma lembrança
É dela que os meus sonhos de criança
Dourou: - é minha mãe!

Quem foi que no entoar canções mimosas
Cheia de um terno amor - anjo do bem
Minha fronte infantil - encheu de rosas
De mimosos sorrisos? - Minha mãe!
Se dentro do meu peito macilento
O fogo da saudade me arde lento
É dela: minha mãe.

Qual anjo que as mãos me uniu outrora
E as rezas me ensinou que da alma vêm?
E a imagem me mostrou que o mundo adora,
E ensinou a adorá-la? - Minha mãe!
Não devemos nós crer num puro riso
Desse anjo gentil do paraíso
Que chama-se uma mãe?

Por ela rezarei eternamente
Que ela reza por mim no céu também;
Nas santas rezas do meu peito ardente
Repetirei um nome: - minha mãe!
Se devem louros ter meus cantos d'alma
Oh! do porvir eu trocaria a palma
Para ter minha mãe!
__________________
* William Cowper(1731-1800), poeta inglês
in A Marmota Fluminense,2 setembro 1856

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Euclydes da Cunha e o sertanejo


para quem não sabe (ou olvidou), 3 de maio é Dia do Sertanejo. oportunidade para conhecer o quanto e como o homem do sertão foi objeto da pioneira interpretação étnica por parte de Euclydes da Cunha 

A  etnia brasileira foi um dos temas  que mais mobilizaram Euclydes da Cunha  para a formulação de reflexões sobre a nacionalidade, per se um tópico já excepcionalmente preponderante  em seu arcabouço intelectual – no que,entre outra considerações e  proposições,preconizava “a definição exata e o domínio franco (...) da nossa nacionalidade; aí está a nossa verdadeira missão”.
No capítulo “O homem”,de Os sertões,expôs analiticamente as origens do homem americano, a formação social do sertanejo,e em especial os “malefícios da mestiçagem”: numa espécie de teoria étnica fatalista , admitia a história brasileira ter sido construída por meio do choque entre etnias e culturas condenadas ao desaparecimento -- rigorosamente de acordo, diga-se, com as teorias do sociólogo austríaco Ludwig Gumplowicz(sociólogo austríaco , considerado um dos fundadores da sociologia ,estudioso e teórico de conflitos nacionais, raciais e sociais, formulador da tese de a  História guiada pela luta entre raças): é obrigatóro, no entanto, considerar essas teorias e postulados, a postura e o pensamento de Euclydes à luz dos conceitos étnicos da época, obviamente diferentes dos de hoje.
A princípio, lastreado em Gumplowicz , Euclydes não julgava possível um único tipo étnico no Brasil -- “não temos unidade de raça,não a termos nunca; até porque nenhum país a tem igualmente, por toda parte os cruzamentos sucessivos impediram a conservação do tipo primitivo” – enquanto que  “(...)a  mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial(...)” sendo “(...) a mestiçagem extremada um retrocesso(...)”, uma vez que “(...) não se compreende que após divergirem extremamente através de largos períodos, entre os quais a história é um momento, possam dois ou três povos convergir, de súbito, combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo distinções resultantes de um longo trabalho seletivo. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem, não se acrescentam, subtraem-se ou se destroem, segundo os caracteres positivos e negativos em presença(...)”.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que reiterava a falta de “integridade étnica” do brasileiro, por exemplo em trecho do artigo “Nativismo provisório” ,da coletânea Contrastes e confrontos “(...)falta-nos integridade étnica que nos aparelhe de resistência diante dos caracteres de outros povos.O Brasil não é como os Estados Unidos ou a Austrália, onde o inglês, o alemão ou o francês alteram e cambiam as qualidades nativas ou as refundem e refinam, originando um tipo novo e mais elevado do que os elementos formadores. Está numa situação provisória de fraqueza, na franca instabilidade de uma combinação incompleta de efeitos ainda imprevistos, em que a variedade dos sangues, que se caldeiam, implica o dispersivo das tendências díspares, que se entrelaçam(...)”; ou em “O Brasil mental”, publicado em O Estado de S.Paulo,julho 1898,  Euclydes obedecia à crença na inferioridade dos não-brancos -- mas com uma nuance: explicando a guerra em Canudos como resultado do choque entre os mestiços do sertão, oriundos de brancos com índios, e os mestiços do litoral, originários de brancos com negros, enaltecia o sertanejo que  detinha vantagens sobre o mulato litorâneo por força de seu isolamento que propiciara  evolução racial e cultural  mais estável – “o sertanejo é antes de tudo um forte, não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. Observa que “ao invés da inversão extravagante, que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento - nos sertões, a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de evoluir, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos, porque é a sol ida base física do desenvolvimento moral ulterior."
O ceticismo étnico euclidiano não era contra o mestiço em si, mas contra o mestiço do litoral. O sertanejo,no desenho literário-antropológico que construiu, era o resultado da convergência e interação, formando uma ‘sub-raça superior’ (sic) , entre a bravura indígena e a ousadia dos bandeirantes paulistas ,com seu “destino histórico de assaltar o deserto (...)cruzados destemerosos a desencadear a atividade arroteadora e valorizadora dos espaços interiores do território,integrando-os (...)”– difundindo aqui outro elemento até então inédito, junto ao mito do sertanejo: o mito do bandeirante, depois absorvido e assumido em estudos marcantes do ensaísmo brasileiro(em Taunay, Oliveira Viana,Vianna Moog). Na verdade, Euclydes edificou a imagem do homem do sertão como um ser autêntico, enraizado na terra, dotado de cultura e evolução próprias e autônomas , capaz inclusive de criar o brasileiro do futuro – como “rocha viva da nacionalidade”,inclusive comparando-o ao granito,composto de três minerais, assim como o homem brasileiro ,advindo do branco,do índio e do negro.
Posteriormente, sob o revisionismo pungente que elaborou, passou a ter o sertanejo --  segundo ele, um tipo étnico-social diferenciado -- como o único elemento de esperança de constituir no Brasil uma população homogênea , porquanto “as vicissitudes históricas o libertaram,na fase  delicadíssima de sua formação,das exigências desproporcionais de uma cultura de empréstimo”.
Revisionismo que ,de resto, à reformulação das concepções étnicas euclidianas pós-Canudos se acresceria a revisão advinda da vivência amazônica, em que a presença do homem e sua relação com o meio era afirmada pela mestiçagem étnica , o mestiço amazônico não mais visto como desenhara o sertanejo  nordestino -- biologicamente incapaz, assim tido antes de Canudos,descrito no Diário de uma expedição,não aquele sertanejo depois exposto em Os sertões --o Eucydes da Amazônia mais ‘evoluído’ ainda com relação ao Euclydes dos sertões,que por sua vez já  se diferenciava do Euclydes antes de Canudos.

raça e civilização,contra “a barbárie”

A rigor, as concepções e considerações étnicas de Eucydes acoplam-se, interagem e se intertextualizam com seus conceitos de civilização e o “movimento civilizador” que preconizava – ou processo civilizatório para o qual a República teria sido um decisivo passo: civilização,como citado, constituía um dos pólos de um dos ‘eixos binários euclidianos’.[raça-civilização].Desde seus primeiros textos,com efeito, o termo e o conceito de  “civilização” aparecem uma força histórica e como uma lei natural, até porque inerentes ao ideário positivista e evolucionista, a civilização como o modelo de desenvolvimento para a humanidade.  : “a civilização é o corolário mais próximo da atividade humana sobre o mundo; (...) o seu curso, como está, é fatal, inexorável”. Não obstante surgir sob certos ângulos como  imposição estrangeira, uma indesejável pressão exterior - num momento histórico de luta intelectual pela construção de uma identidade nacional, que se queria livre de fórmulas invasoras -- é taxativo : “Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.” No entanto, Euclydes ,sob as variações de seu pensamento, se apropriava da idéia de civilização, tão alardeada nos círculos republicanos do período, como um termo e uma noção de um lado basilar no que tange a ser o contraponto à sua antítese -  a “barbárie”, de outro, móvel, porquanto a civilização que avançava sobre os sertões perpetrava um crime de  destruição e morte –a  mesma civilização como modelo de organização, como ordem social por excelência, era também produtora de violências.
[este texto integra meu livro Escritos de Euclydes da Cunha; política,ecopolítica,etnopolítica (PUC-Rio\Loyola, 2009)