sexta-feira, 25 de maio de 2012
Machado de Assis, a mulher, o amor
e já que antes falei de Capitu - e o exercício da dúvida -- eis como Machado via (e enaltecia) as mulheres
Desde o início de sua criação ficcional em
prosa, Machado traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações
entre os homens e as mulheres, mormente depois do denominado romance de
transição Iaiá Garcia, em que o poder
de observação psicológica dos personagens se acentua — captando, de forma
expressiva, o conceito freudiano do
desejo inconsciente. Machado foi
muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e
naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade : criou um estilo de literatura não apenas de
observação das pessoas mas sobretudo
de interpretação, expondo das pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes, um outro lado , que muitas vezes
aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente.
Machado sempre foi um autor
interessado em prospectar as paixões dos
homens, em dissecar-lhes as intimidades, em levantar questões e em tomá-las
públicas pela voz de seus personagens.
Sobretudo percebia, com clareza, o lado trágico das relações humanas. Este lado trágico, já presente em
Shakespeare e Sófocles, p. ex.- duas das principais leituras de Machado,durante
toda a vida –passa pelo permanente mal-entendido dos encontros
humanos, de um ser humano permanentemente acossado pelo outro, num processo
originado,determinado e dinamizado//materializado pelo ciúme e a desconfiança implícita, pela
traição e pela infidelidade, de resto temas
constantes na vida literátia
de Machado.Muito da temática e da
tramática machadianas gira em torno do ciúme e do perdão – vale dizer, do
binômio freudiano de ‘culpa e perdão’. Foi ele o autor brasileiro que
introduziu a perspectiva crítica, fazendo da dúvida, do
questionamento e da argumentação, ‘a la Freud ’, uma constante em sua obra.[1]
A temática essencial de Machado de
Assis consistia, sob a correta disposição da forma, em expressar as sutilezas
do mecanismo psicológico no deflagrar de ações,emoções,expressões e reações no
comportamento humano . Tinha em vista um prisma polêmico: superar as
simplificações mecanicistas praticada pelos epígonos do Naturalismo no final do
século XIX, propondo radical e consistente denúncia contra mistificações e
imposturas. Possuía uma maneira própria
de ver,representar e interpretar o mundo, a começar por seu peculiar
processo de criação ficcional, as elaboradas transposições temáticas,tramáticas
e de linguagem criando e intertextualizando intricado que de resto não se ajusta às definições
comuns dos gêneros literários, como por exemplo no caso a ‘indefinição’
genética de Queda que as mulheres têm
para os tolos.
Afrânio Coutinho destaca que “o grupo mais
extenso e de maior ressonância entre os assuntos machadianos seja os que
traduzem o sentimento trágico da existência humana”[2] – até
porque em Machado pela primeira vez na literatura brasileira de então o
narrativo e o descritivo dava lugar ao psicológico, ao íntimo, à alma – num
processo que o conduziu, por vezes, a um certo amoralismo, buscando acima de
tudo atingir a essência do ser humano, transcendendo o visível , o corpóreo, o
material, num mergulho na contemplação das inúmeras e distintas perspectivas da
alma humana
Especialmente em sua segunda fase, a obra
machadiana segue a linha da literatura psicoJógica , seus heróis e
heroínas com seus eternos conflitos,
complexos, dúvidas e hesitações. A
análise rigorosa e fria de Machado deixa a nu, de forma calculadamente
espontânea, as cruezas e mazelas do ser humano, apresentado
em seus mais comezinhos desejos, das
situações mais inesperadas e mesquinhas.
A literatura de Machado – nos moldes de Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz -- traz, juntamente com Freud, para o centro das discussões, a questão da
sexualidade feminina. Nos romances machadianos surge uma mulher que quer poder escolher a forma de
sentir e amar, apesar de, algumas vezes, ao não poder dizer de seu desejo — a
maioria das mulheres da época, vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua
principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse amor, melhor, mas não era o
principal,pois a questão do amor era secundária, era um luxo que muitas
mulheres não tinham, prioritários eram as conveniências pecuniárias, o
interesse econômico, a ascensão social : Machado,fiel à ‘ideologia’ das décadas
de 1850-60, assim o trata em Ressureição
, em A mão e luva, mas redime o amor
em Memorial de Aires, numa
“recomposição com a vida” — fazer convergir para o corpo o protesto da sua
sexualidade insatisfeita. [e sabemos o quanto
Freud já preconizava a infidelidade como uma saída “não neurótica” para a infelicidade matrimonial vigente na
sociedade burguesa mundial no século XIX].
E no contexto ainda ‘moralista’ da
década de 1870 , Machado de Assis
publicava, em 1880, em capítulos na Revista Brasileira, as Memórias
póstumas de Brás Cubas, tratando
aberta e claramente da traição feminina,
ainda que sob um irresistível tom de humor e cinismo. Trabalhar sobre o
tema do adultério não era nada fácil,, visto que, ainda dominados pela moral
preconizada pelas Ordenações, a
sociedade do século XIX via o adultério
feminino como algo abominável.
Se Freud criou a psicanálise porque
estava atento às necessidades e expectativas femininas quanto à sexualidade, ao
desejo – por extensão à histeria--
Machado "estava muito ciente de que
escrevia para um público majoritariamente feminino (...).Esse esforço de
produzir uma literatura que estimulasse as mulheres brasileiras é um dos traços
mais importantes da carreira desse suposto retraído"[3]
Nenhum escritor de seu tempo — Joaquim Manuel de Macedo(de A Moreninha e em inúmeros contos), José
de Alencar( notadamente na trilogia urbana Senhora,
Diva e Lucíola, além dos contos A
viuvinha, Cinco minutos, das novelas
A pata da gazela, Sonhos d'ouro,
Encarnação), nem Taunay (em Inocência),
Bernardo Guimarães (e sua Escrava Isaura),
Domingos Olímpio ( com Luzia Homem),
nem Lima Barreto (de suas Clara e
Castorina em Clara dos Anjos , Olga e Edgarda em Triste fim de
Policarpo Quaresma , Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário
íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; etc., das
instigantes crônicas em torno do tema “Não as matem!”) — ‘edificou’ tanto a mulher como personagem
capital e leitmotiv básico de seus
textos como Machado de Assis. Ele
escrevia sobre mulheres e para mulheres : desde sua primeira obra publicada, Queda
que as mulheres têm para os tolos
, passando pelos primeirissimos romances Ressurreição,
A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, na imensa maioria de seus contos , na excepcional novela Casa
velha, chegando a Memórias póstumas
de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memorial de
Aires, as mulheres sâo as protagonistas, as personagens primordiais, o
elemento central em torno das quais
desenrola-se a trama e a narrativa.
Machado sempre preferiu escrever em publicações cujo público
predominante era feminino, primeiro no Jornal
das Famílias -- no qual inclusive publicou, de 1864 a 1876, em sua fase
dita ‘romântica’, à qual se filiam também seus primeiros romances, os 8 contos
enfeixados sob o título de “Histórias românticas” -- e a partir de 1879 em
A Estação . Sua
obra, de modo geral, encena vários tipos femininos, com histórias povoadas de
muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que as mulheres
se defrontam na vida: assim é com Lívia
de Ressurreição, Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Virgília e Marcela de Brás Cubas, Sofia de Quincas Borba, Capitolina de Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das
protagonistas de inúmeros contos, notadamente em “Missa do galo”, “Capítulo dos chapéus”,
“Singular ocorrência” ,”Uma senhora”, “Trina e una”, “Primas de Sapucaia!”,
“Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”, “Uns braços”, “D. Paula”, que
encenam vários tipos femininos e situações com as quais as mulheres se
defrontam na vida comum – podendo mesmo serem catalogado como ‘estudos sobre a mulher”, ao revelarem de
forma soberba a mais aguda sensibilidade
de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética, preconceito
social, autoritarismo, amor e ciúme
Os
amores e frustrações femininos eram temas constantes, inclusive o
adultério e a prostituição - anteriormente inaceitáveis na literatura. Um
verdadeiro modernista, Machado não acreditava na honra baseada na castidade,
tendo nas linhas e entrelinhas de seus contos, romances, e também de suas
crônicas , chamado atenção para as
necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras :
argumentava que a mulher devia receber instrução e não ficar completamente
confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à liberdade.
Suas
mulheres ficcionais -- orgulhosas ou
tímidas, calculistas ou levianas, singelas ou complexas -- “com seus contornos
roliços, seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, são
criaturas feitas de capricho e de carne, sobretudo de carne, tudo instinto, sem
nenhum raciocínio”.E nesse privilegiar a mulher como personagem primordial de
sua ficção, desde os primeiros romances,Machado
trabalhou o psicológico como nenhum outro escritor de seu tempo,
preocupado com climas, ambientes, situações existenciais sutis e delicadas: as
mulheres surgem como personagens de grande densidade psicológica, alimentando
de forma rica e sugestiva a temática preferida do mestre brasileiro: a traição.
Traição era a uma preocupação permanente em Machado, desde Ressurreição, atingindo o clímax ‘explícito’ em Dom
Casmurro – ciúmes e traição. E o tema da traição
feminina está sempre intimamente ligado , freudianamente, aos desejos edipiano
– e aí a interseção de Machado com Freud.
Na
maioria dos romances, a mulher é o elemento forte, traz o homem dependente de
si, ela é o esteio, a base da relação. Há matriarcas que dominam e comandam
propriedades e a família, viúvas que não mais casam, em que se percebe que a
figura masculina é, por vezes, desnecessária (Machado chega a reduzir o homem a
um nada - sem a mulher,
nada vale .: em Memorial de Aires,
por exemplo, D. Carmo segue a linha da mulher totalmente dedicada à família, e
que firmemente controla não só o espaço doméstico, como, e principalmente, o
marido. Daí a famosa frase: "Aguiar
sem Carmo é nada" ).
Pretenderia Machado de Assis o matriarcado?, especulam muitos dos estudiosos de sua obra,
para os quais Machado era mesmo
‘feminista’ -- e a cada leitura de sua
obra nos damos conta da sutileza e da
abrangência desse feminismo. Sobretudo por seu explícito, e corajoso, reconhecimento
das necessidades emocionais, econômicas e
sexuais da mulher – de que, além do exposto em romances e contos, há
claras evidências em dois textos publicados em 1881 : o soneto
"Dai à obra de Marta um pouco de Maria", que aparece na Poliantéia comemorativa da inauguração das
aulas para o sexo feminino do Imperial Liceu de Arte e Ofícios e no artigo
"Cherchez la femme" que celebrava o mesmo evento em A
Estação.
Importante
notar, como que a reciclagem de um processo
desenvolvido por longos 36 anos (desde Ressurreição, em 1872), em seu último romance,sua obra conclusiva
– Memorial
de Aires -- a par de continuar a
privilegiá-las, valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as
mulheres : não mais a figura sensual que impulsionada pelo desejo pode chegar à
traição – como Capitu, Virgilia, Sofia, Guiomar, Valéria, Marcela, mulheres
pérfidas mais diretamente envolvidas com
o pecado -- mas a mulher proba,
que pode ser amada e admirada, distante e alheia à tentação, ‘salvas do pecado’,como
Fidelia e Carmo. Não mais as
machadianas adúlteras, sedutoras, ambiciosas, impuras, dissimuladas,traidoras —
antes de tudo, fúteis e fugazes, a ponto de preferirem os tolos ao invés dos
homens de espírito...
A meu juízo, sem dúvidas em Machado
o feminino confirma-se como uma categoria literária. Obssessivamente
observador, a aguda e profunda visão machadiana das “cousas deste mundo” o fez
constatar o quanto a mulher na sociedade imperial brasileira—reclusa e
dominada, doméstica e servil-- era ‘anulada’ por sua própria condição feminina
: se o mundo da mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar
do ócio social da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas
personagens.
terça-feira, 15 de maio de 2012
Em torno de Capitu e o exercício machadiano da dúvida.
Machado
sempre cultivou a dúvida como instrumento de reflexão, e evitava o maniqueísmo
de personagens por não aflorar os questionamentos.. Uma das expressões de sua
evolução literária foi a narração. O narrador machadiano muda. Existem as
expressões cunhadas no estudo machadiano do narrador confiável e do narrador
não-confiável; o narrador não-confiável se sobressaindo a partir da segunda
fase, iniciada em 1880. Esse tipo de narrador é quem coloca dúvidas sobre as
coisas. Nesse particular, costuma-se conferir importância desmesurada àquela
grande questão do romance Dom Casmurro: Capitu traiu ou não traiu?
– o que é absolutamente descartável e desprezível. E aqui peço licença para
abrir um longo parênteses e me estender
nesse assunto, que é importante para caracterizar um elemento fundamental, um
dos fulcros capitais de toda a ficção machadiana. A tola discussão se Capitu
traiu ou não traiu é o que menos -- na verdade, nada – importa :Machado faz de Dom Casmurro -- a meu juízo, a maior
obra da literatura brasileira, anos-luz acima de qualquer outra, comparável às
maiores obras-primas da literatura universal -- um transcendental exercício da
dúvida, um ensaio sobre a dúvida, que de resto permeia toda sua ficção :
evoca-se,nesse romance, o
'shakespearianismo' [sic : neologismo meu...] do ciúme e traição a la Otelo \Desdêmona, mas o que existe mesmo, assim entendo,é
uma conotação 'hamletiana', vale dizer o 'ser ou não ser', que seria traduzido,
sob a égide do exercício machadiano da dúvida,pelo 'traiu ou não traiu'
inerente a Capitu -- aliás, a mais complexa e bem construída protagonista
feminina da literatura brasileira , a suma da mulher machadiana criada e
fomentada em toda sua ficção . Nesse ‘teor hamletiano’ reside toda a ficção
machadiana, mormente na seara contística : é o 'fez\nãofez',''disse\não disse',
' saiu\não saiu', 'roubou\não roubou', 'recaiu\não recaiu' (caso do primoroso
conto "Singular ocorrência"), e por aí vai. E o narrador é o agente
dessas dúvidas .Examinado, ou lido, pela ótica, ou na órbita do ciúme
--'oteliano': e Shakespeare foi a maior
influência sobre Machado, suas referência e citação prediletas, mil vezes
referenciado em contos e crônicas -- Capitu é julgada infiel pelo narrador
Bentinho, um ciumento nato e hereditário,doentio,e dissimulado -- e aqui entra
outra grande influência de Machado : Freud , pois fomenta a pseudo-traição de
Capitu como processo de transferência de sua atração pela mulher de Escobar. Bentinho
é o narrador da história: e aqui
chegamos ao âmago da coisa, no âmbito da análise literária, que creio 'mata' a
questão : o narrador-em–primeira- pessoa machadiano, mormente pós-1880 é um
narrador não-confiável, que de resto Machado adotou em muitos dos textos ficcionais
desse período -- justo os mais importantes e impactantes -- ao contrário do
narrador confiável de antes, que se expressa pelo chamado narrador-em
terceira-pessoa (embora Machado tenha também criado um ‘falso’
narrador-em-terceira-pessoa, mas isso faz parte de outra digressão) . Se o
narrador de Dom Casmurro
fosse este, distanciado e isento
tanto quanto possível, haveria campo para se cogitar de Capitu infiel,
adúltera , mas não : sendo em primeira-pessoa, nada a declarar, ou melhor nada
a discutir. Dom Casmurro surgiu cerca
de 3 ou 4 anos depois de Madame Bovary,
de Flaubert, e de O primo Basilio, de
Eça de Queiroz, dois 'parentes' sanguíneos ,literariamente, do romance de
Machado, mas neles o narrador –em- terceira-pessoa não deixa dúvidas quanto à
infidelidade de Ema Bovary e de Luisa , que são personagens
'chapados',definidos, mulheres praticantes nitidamente da infidelidade --não
cabe aqui discutir quais os motivos que as levaram, ainda que saibamos ter sido
o abandono por parte dos maridos ou a insatisfação com o casamento, etc :
aliás, a infidelidade que Machado insinua em suas protagonistas, ao longo de
sua ficção, é exatamente motivada ou gerada por esse comportamento dos homens,
vide como exemplo emblemático disso o conto "Uma partida',neste livro que
ora publico. Capitu não, não é nada 'chapada', é primorosamente construída como
figura literária , sua grandeza ficcional é comparável á de Ana Karenina, e por
aí vai.
Machado
ao longo de sua ficção levantava ,incentivava, insuflava e cultuava todas essas
dúvidas, praticava quase que permanentemente esse exercício, e as colocava no leitor. Então, ao mesmo
tempo em que Machado
moldava, e mutava, sua trama e seus protagonistas, também moldava e mutava narradores e,
conseqüentemente, leitores. Esse culto ao questionamento passou para o leitor,
que começou a ler, ou pelo menos deveria ler – o que é mais do válido para o
leitor de hoje, também -- as histórias
de Machado de forma diferente. E nisso está plenamente demonstrada a
genialidade de um autor : na evolução literária de Machado, alteram-se formas e
ritmos narrativos (condimentados de ironia e humor,adquirem um tom mais
coloquial e de certa forma intimista), transformam-se protagonistas,
transmutam-se narradores e leitores. Mutações e transformações, dos
protagonistas, que se manifestam também em
transmutação do narrador e da voz narrativa e a criação de um ‘novo’ leitor, o leitor- modelo em
contraponto ao leitor-empírico. Machado construiu em seu texto, e por meio
dele, um novo “leitor-modelo” — definido
este conforme a conceituação de “leitor-modelo’ e “leitor-empírico” de Umberto
Eco. Machado formou seus leitores recorrendo a estratégias
temáticas,tramáticas,narrativas,estilísticas que ,como poucos, tinha e sabia
usar -- entre essas estratégias ,as digressões,fragmentações
narrativas,retardamentos de fatos anunciados ou prometidos ao leitor,
metamorfoses de vozes narrativas, de forma e de linguagem .Machado
descondicionou o leitor empírico do leitor-modelo, como ninguém na literatura
brasileira, 'desconstruiu' essa relação,
embora via de regra seja ela utilizada para que o leitor chegue aonde o autor
deseja. Contudo, não satisfeito,na
esteira desse 'dissídio' fez o leitor(o empírico) oscilar em
"grave"-- que espera algo mais do que um 'simples texto', ou um 'puro
romance', ou uma 'obra correta',um leitor que deseja reflexões de caráter mais
realista-- e "frívolo"-- que espera impactos e emoções no texto ou na
obra,um leitor de tipo romântico ; ora
graves ora frívolos, esses leitores são por assim dizer 'transportados' para
dentro dos romances e para a maioria dos contos pós-1880 : na obra machadiana, o leitor empírico é o
‘frívolo’, e ‘grave’ é o leitor-modelo. Até
o final da década de 1870, os romances e
contos , atendiam ao leitor empírico\frívolo ,
como aliás não poderia deixar de ser,
condicionado e formado no âmbito do Romantismo e seus valores ; ao passo
que o grave mantinha-se em
‘surdina’. As metamorfose ao longo do
tempo, a partir da década de 1860, deram-se concomitantes : na medida da
evolução literária machadiana,o leitor empírico\frívolo vai ‘cedendo espaço’ ao
leitor-modelo (inclusive um novo,criado por Machado)\grave, ao mesmo tempo em
Machado 'camufla' as diferenças existentes entre injunções ficcionais e reais ,incentiva
o leitor a acreditar no fictício,ou embuste\artimanha, e o induz a ilusões
interpretativas, simplesmente fomentando um narrador de pouca,ou nenhuma,
confiabilidade, uma espécie de 'narrador volúvel' que habita e conduz muitos de
seus contos. E o leitor situa-se como um ‘espelho’ desse narrador. No fim ,
ainda que sob o controle do autor, ou do narrador cabe ao leitor,quase que exclusivamente, o acesso a unidade dentro da imensa e
complexa obra ficcional de Machado – que nisso parece contrariar Nietzsche\Zaratustra
: “Alguém que conhece o leitor, nada fará
por ele...”
Vale
lembrar que desde seu primeiro livro publicado,em 1861 , Queda que as mulheres têm para os tolos – que título instigante,
provocador ! – Machado fomenta o enigma, o mistério, o disfarce,o subterfúgio:
porque persiste a dúvida histórica de ser uma tradução ou uma criação original
dele – de que teci especulações reflexivas em artigo específico sobre esse
texto. Cá entre nós e para nós, a versão de ser criação original é muito
mais,digamos,’charmosa’, muito mais – não há dúvida alguma — ao estilo e
espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado -- a par de outras
igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra
de Machado. Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em
sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou
não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’— e é esse teor ‘hamletiano’, a ligá-lo e
referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores
admirações e citação constante .Dele, Machado assimilou e incorporou à sua obra ficcional a temática do ciúme,
aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ –
presente e atuante em romances como Ressurreição, A mão e a luva, sobretudo em Dom
Casmurro , e em inúmeros contos : binômio que remete a
Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...— os elementos e
conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina,
estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a
psicanálise, desde as primeiras obras,
mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de
maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25
anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de
Édipo’”.
O
certo é que Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução
é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é, primeiro, sua
própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua
indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração
para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada
por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressurreição (1872), e finalmente na opera-mater,
a grandiosa Dom Casmurro.(1899) . Queda que as mulheres
têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe
serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia,
de seu primeiro romance, e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora..
Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” -- traduzida ou não por
Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da
incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve
fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num
dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
MR.
segunda-feira, 14 de maio de 2012
Machado de Assis tradutor
-- antes, no poema "Minha mãe" [abaixo] falei de Machado como um “senhor tradutor”,
então :
Machado
de Assis tem em seu ‘curriculo’, 48
textos traduzidos entre 1856 e
1894 : estreando com o poema “On the receipt of my mother’s picture”
[“Minha mãe”], publicado como “uma imitação de William Cowper”, e logo depois com o texto “A literatura durante
a Restauração”, de Lamartine,em 1857,seguiram-se 16 peças de teatro (a primeira, “La chasse au lion”, de Vattier et De
Najac ), 24 poemas, 3 ensaios, 2 romances, 1 conto , 1 fábula e até 1 canção — sendo 39 textos oriundos do
francês,4 do inglês, 3 do alemão, 1 texto cada do italiano e do espanhol. — de
autores, entre outros, como Lamartine, Dante Alighieri, Alexandre Dumas Filho,
Chateaubriand, Racine, La
Fontaine , Alfred de Musset, Molière, Victor Hugo,
Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Schiller e Heine
(ambos a partir de versões francesas)
— p. ex.
o Canto XX do “Inferno”, da Divina
Comédia , de Dante , monólogo de Hamlet
“To be or not to be”, de William Shakespeare
, Os trabalhadores do mar, de
Victor Hugo, parte de Oliver Twist. ,
de Charles Dickens, “Suplício de uma mulher”, de Alexandre Dumas Filho e Emile
de Girardin , “Prólogo do Intermezzo”, de Heinrich Heine, “O corvo”, de Edgar Allan Poe.
Há
de se considerar que, no contexto cultural do Rio de Janeiro, durante as
décadas de 1850-70, a
atividade tradutória era quase que exclusivamente praticada para o teatro,
porquanto a esmagadora maioria das peças levadas a cena eram de origem
estrangeira — o teatro traduzido ocupando tanto os espaços públicos das casas
de espetáculos, quanto os saraus
literários privados . Ao mesmo tempo em que
também os denominados
romances-folhetim, oriundos sobretudo da França, nos primórdios do Romantismo entre nós, requeriam o tradutor .
Na
“Advertência” da coletânea de peças teatrais de Machado de Assis, anota Mario
de Alencar que entre 1860 e 1870 deu-se “a
época da mais fervorosa e duradoura fase da literatura dramática que já houve
no Brasil, quando a influência dos escritores franceses dominava como sempre em
primeira mão a literatura brasileira e o
êxito da nova escola de teatro em França estimulava os ensaios dramáticos entre
nós, tanto que quase não houve escritor brasileiro que não experimentasse a sua
vocação para o gênero. E quem não podia compor obra original contentava-se com
traduzir as recentes produções chegadas da Europa”. Ao mesmo tempo, Alencar
explica não ter incluído na coletânea, por darem-se como perdidas, as traduções
machadianas de “Os descontentes”, de
Racine – da qual “falava com muito louvor Artur Azevedo”—“Pipelet”, “O anjo da meia noite”, “O barbeiro de Sevilha”, “A
família Benoiton”, “Montjoye”, e em especial “O suplicio de uma mulher”, de
Alexandre Dumas Filho e Emile de
Gerardin — esta ,“atendendo à circunstância de estar riscado da cópia ,doada com outros
papéis à Academia Brasileira [de Letras], o nome do tradutor, o que pareceu indicar a intenção de Machado de
Assis de não dar a obra à publicidade em livro, ou talvez a sua opinião de não
a ter literariamente acabado”. Aí está outro plausível subterfúgio
machadiano, similar ao supostamente praticado em Queda que as mulheres têm para os tolos : nesta, omitiu o nome do
autor original, naquela omitiu o nome do tradutor (no caso, ele próprio).
Machado em sua ação tradutória não
compartilhava com seus contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido
dado pelo Romantismo – o etnocentrismo, o indigenismo, a paisagem natal como
elementos essenciais para se criar uma literatura nacional genuína” –
colocando-o em discordância com o momento cultural do País no século XIX. E ia
além, criando e praticando um conceito da tradução – na verdade, um processo
criador -- que, entre outros aspectos, incorporava em maior ou menor grau sua célebre “teoria do
molho” , segundo a qual "pode ir
buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua
fábrica" : vale dizer, embora bebesse nas fontes européias utilizadas como
‘comida para seus pensamentos’, ruminava
os diversos alimentos e os transformavam em pratos tipicamente machadianos,
pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que praticava
pioneiramente como ninguém -- reaplicada
e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas por ele próprio, em muitos aspectos antecipadora da
vertente atual dos estudos de Literatura Comparada
Vale
examinar aqui alguns aspectos da atividade de tradutor em Machado de Assis . Em
todas as traduções que fez, “se permitiu algumas licenças”, as quais demonstram
que, para ele, o traduzir não deveria ser um ofício de menor valor que qualquer
outro na carreira de um escritor, embora assim continue a ser considerado e,
respeitando o original, sem servilidade, exerceu essa atividade durante toda a
sua carreira literária ,de 1856 a 1908.
Por
subtração, ele elaborou uma teoria da tradução, que em muitos aspectos
assemelha-se às teorias de tradução desenvolvidas a partir da década de 1970 ,
notadamente com relação ao entendimento moderno de tradução proposto por
especialistas, “a ficção vista como nova fonte de teorização para a tradução”.
Tese
contemporânea confirmada pela importância da tradução para Teoria Literária e
Literatura Comparada conferida por ensaístas, críticos e teóricos – e que uma
citação do próprio Machado de Assis
serve para demonstrar o quanto seus
pressupostos teóricos para o exercício da tradução, formulados na
época,aproximam-se desse conceito atual
:
A literatura, como Proteu, troca
de formas, e nisso está a condição de sua
vitalidad
domingo, 13 de maio de 2012
mãe, por Machado de Assis
E para não dizerem que não falei de flores : já que é “Dia das mães”
Mãe... por Machado de Assis
justamente sua primeira tradução (Machado foi um senhor tradutor, dos melhores e mais criativos que a literatura brasileira já teve– saibam que em sua concepção avançadissima de tradução, praticou ,antecipador, a ‘transcriação’)
Minha mãe
(imitação de Cowper *)
Quanto eu, pobre de mim! quanto eu quisera
Viver feliz com minha mãe tambéml
C.A.de Sá
Quem foi que o berço me embalou da infância
Entre as doçuras que do empíreo vêm?
E nos beijos de célica fragrância
Velou meu puro sono? Minha mãe!
Se devo ter no peito uma lembrança
É dela que os meus sonhos de criança
Dourou: - é minha mãe!
Quem foi que no entoar canções mimosas
Cheia de um terno amor - anjo do bem
Minha fronte infantil - encheu de rosas
De mimosos sorrisos? - Minha mãe!
Se dentro do meu peito macilento
O fogo da saudade me arde lento
É dela: minha mãe.
Qual anjo que as mãos me uniu outrora
E as rezas me ensinou que da alma vêm?
E a imagem me mostrou que o mundo adora,
E ensinou a adorá-la? - Minha mãe!
Não devemos nós crer num puro riso
Desse anjo gentil do paraíso
Que chama-se uma mãe?
Por ela rezarei eternamente
Que ela reza por mim no céu também;
Nas santas rezas do meu peito ardente
Repetirei um nome: - minha mãe!
Se devem louros ter meus cantos d'alma
Oh! do porvir eu trocaria a palma
Para ter minha mãe!
__________________
* William Cowper(1731-1800), poeta inglês
in A Marmota Fluminense,2 setembro 1856
Mãe... por Machado de Assis
justamente sua primeira tradução (Machado foi um senhor tradutor, dos melhores e mais criativos que a literatura brasileira já teve– saibam que em sua concepção avançadissima de tradução, praticou ,antecipador, a ‘transcriação’)
Minha mãe
(imitação de Cowper *)
Quanto eu, pobre de mim! quanto eu quisera
Viver feliz com minha mãe tambéml
C.A.de Sá
Quem foi que o berço me embalou da infância
Entre as doçuras que do empíreo vêm?
E nos beijos de célica fragrância
Velou meu puro sono? Minha mãe!
Se devo ter no peito uma lembrança
É dela que os meus sonhos de criança
Dourou: - é minha mãe!
Quem foi que no entoar canções mimosas
Cheia de um terno amor - anjo do bem
Minha fronte infantil - encheu de rosas
De mimosos sorrisos? - Minha mãe!
Se dentro do meu peito macilento
O fogo da saudade me arde lento
É dela: minha mãe.
Qual anjo que as mãos me uniu outrora
E as rezas me ensinou que da alma vêm?
E a imagem me mostrou que o mundo adora,
E ensinou a adorá-la? - Minha mãe!
Não devemos nós crer num puro riso
Desse anjo gentil do paraíso
Que chama-se uma mãe?
Por ela rezarei eternamente
Que ela reza por mim no céu também;
Nas santas rezas do meu peito ardente
Repetirei um nome: - minha mãe!
Se devem louros ter meus cantos d'alma
Oh! do porvir eu trocaria a palma
Para ter minha mãe!
__________________
* William Cowper(1731-1800), poeta inglês
in A Marmota Fluminense,2 setembro 1856
quinta-feira, 3 de maio de 2012
Euclydes da Cunha e o sertanejo
para quem não sabe (ou olvidou), 3 de maio é Dia do Sertanejo. oportunidade para conhecer o quanto e como o homem do sertão foi objeto da pioneira interpretação étnica por parte de Euclydes da Cunha
A
etnia brasileira foi um dos temas
que mais mobilizaram Euclydes da Cunha para a formulação de reflexões sobre a
nacionalidade, per se um tópico já
excepcionalmente preponderante em seu
arcabouço intelectual – no que,entre outra considerações e proposições,preconizava “a definição exata e
o domínio franco (...) da nossa nacionalidade; aí está a nossa verdadeira
missão”.
No capítulo “O homem”,de Os sertões,expôs analiticamente as
origens do homem americano, a formação social do sertanejo,e em especial os
“malefícios da mestiçagem”: numa espécie de teoria étnica fatalista , admitia a
história brasileira ter sido construída por meio do choque entre etnias e
culturas condenadas ao desaparecimento -- rigorosamente de acordo, diga-se, com
as teorias do sociólogo austríaco Ludwig Gumplowicz(sociólogo austríaco , considerado um dos fundadores da sociologia
,estudioso e teórico de conflitos nacionais, raciais e sociais, formulador da
tese de a História guiada pela luta
entre raças): é obrigatóro, no entanto, considerar essas teorias e
postulados, a postura e o pensamento de Euclydes à luz dos conceitos étnicos da
época, obviamente diferentes dos de hoje.
A princípio, lastreado em Gumplowicz , Euclydes não julgava possível um único tipo étnico no Brasil -- “não temos unidade de raça,não a termos nunca; até porque nenhum país a tem igualmente, por toda parte os cruzamentos sucessivos impediram a conservação do tipo primitivo” – enquanto que “(...)a mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial(...)” sendo “(...) a mestiçagem extremada um retrocesso(...)”, uma vez que “(...) não se compreende que após divergirem extremamente através de largos períodos, entre os quais a história é um momento, possam dois ou três povos convergir, de súbito, combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo distinções resultantes de um longo trabalho seletivo. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem, não se acrescentam, subtraem-se ou se destroem, segundo os caracteres positivos e negativos em presença(...)”.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em
que reiterava a falta de “integridade étnica” do brasileiro, por exemplo em
trecho do artigo “Nativismo provisório” ,da coletânea Contrastes e confrontos “(...)falta-nos
integridade étnica que nos aparelhe de resistência diante dos caracteres de
outros povos.O Brasil não é como os Estados Unidos ou a Austrália, onde o
inglês, o alemão ou o francês alteram e cambiam as qualidades nativas ou as
refundem e refinam, originando um tipo novo e mais elevado do que os elementos
formadores. Está numa situação provisória de fraqueza, na franca instabilidade
de uma combinação incompleta de efeitos ainda imprevistos, em que a variedade
dos sangues, que se caldeiam, implica o dispersivo das tendências díspares, que
se entrelaçam(...)”; ou em “O Brasil mental”, publicado em O
Estado de S.Paulo,julho
1898, Euclydes obedecia à crença na
inferioridade dos não-brancos -- mas com uma nuance: explicando a guerra em
Canudos como resultado do choque entre os mestiços do sertão, oriundos de
brancos com índios, e os mestiços do litoral, originários de brancos com negros,
enaltecia o sertanejo que detinha
vantagens sobre o mulato litorâneo por força de seu isolamento que
propiciara evolução racial e
cultural mais estável – “o sertanejo é
antes de tudo um forte, não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços
neurastênicos do litoral”. Observa que “ao invés da inversão extravagante, que
se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a
órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno
desenvolvimento - nos sertões, a integridade orgânica do mestiço desponta
inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de evoluir,
diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos, porque é a sol
ida base física do desenvolvimento moral ulterior."
O ceticismo étnico euclidiano não
era contra o mestiço em si, mas contra o mestiço do litoral. O sertanejo,no
desenho literário-antropológico que construiu, era o resultado da convergência
e interação, formando uma ‘sub-raça superior’ (sic) , entre a bravura indígena
e a ousadia dos bandeirantes paulistas ,com seu “destino histórico de assaltar o deserto (...)cruzados destemerosos a
desencadear a atividade arroteadora e valorizadora dos espaços interiores do
território,integrando-os (...)”– difundindo aqui outro elemento até então inédito,
junto ao mito do sertanejo: o mito do bandeirante, depois absorvido e assumido
em estudos marcantes do ensaísmo brasileiro(em Taunay, Oliveira Viana,Vianna
Moog). Na verdade, Euclydes edificou a imagem do homem do sertão como um ser
autêntico, enraizado na terra, dotado de cultura e evolução próprias e
autônomas , capaz inclusive de criar o brasileiro do futuro – como “rocha viva
da nacionalidade”,inclusive comparando-o ao granito,composto de três minerais,
assim como o homem brasileiro ,advindo do branco,do índio e do negro.
Posteriormente, sob o
revisionismo pungente que elaborou, passou a ter o sertanejo -- segundo ele, um tipo étnico-social
diferenciado -- como o único elemento
de esperança de constituir no Brasil uma população homogênea , porquanto “as
vicissitudes históricas o libertaram,na fase
delicadíssima de sua formação,das exigências desproporcionais de uma
cultura de empréstimo”.
Revisionismo que ,de resto, à
reformulação das concepções étnicas euclidianas pós-Canudos se acresceria a
revisão advinda da vivência amazônica, em que a presença do homem e sua relação
com o meio era afirmada pela mestiçagem étnica , o mestiço amazônico não mais
visto como desenhara o sertanejo
nordestino -- biologicamente incapaz, assim tido antes de
Canudos,descrito no Diário de uma
expedição,não aquele sertanejo depois exposto em Os sertões --o Eucydes da Amazônia mais ‘evoluído’ ainda com
relação ao Euclydes dos sertões,que por sua vez já se diferenciava do Euclydes antes de Canudos.
raça e civilização,contra “a barbárie”
A rigor, as concepções e
considerações étnicas de Eucydes acoplam-se, interagem e se intertextualizam
com seus conceitos de civilização e o “movimento civilizador” que preconizava –
ou processo civilizatório para o qual a República teria sido um decisivo passo:
civilização,como citado, constituía um dos pólos de um dos ‘eixos binários euclidianos’.[raça-civilização].Desde
seus primeiros textos,com efeito, o termo e o conceito de “civilização” aparecem uma força histórica e
como uma lei natural, até porque inerentes ao ideário positivista e evolucionista,
a civilização como o modelo de desenvolvimento para a humanidade. : “a
civilização é o corolário mais próximo da atividade humana sobre o mundo; (...)
o seu curso, como está, é fatal, inexorável”. Não obstante surgir sob
certos ângulos como imposição
estrangeira, uma indesejável pressão exterior - num momento histórico de luta
intelectual pela construção de uma identidade nacional, que se queria livre de
fórmulas invasoras -- é taxativo : “Estamos
condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.” No entanto,
Euclydes ,sob as variações de seu pensamento, se apropriava da idéia de
civilização, tão alardeada nos círculos republicanos do período, como um termo
e uma noção de um lado basilar no que tange a ser o contraponto à sua antítese
- a “barbárie”, de outro, móvel,
porquanto a civilização que avançava sobre os sertões perpetrava um crime
de destruição e morte –a mesma civilização como modelo de organização,
como ordem social por excelência, era também produtora de violências.
[este texto integra meu livro Escritos de Euclydes da Cunha; política,ecopolítica,etnopolítica (PUC-Rio\Loyola, 2009)
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