sexta-feira, 25 de maio de 2012

Machado de Assis, a mulher, o amor


e já que antes falei de Capitu - e o exercício da dúvida -- eis como  Machado via (e enaltecia) as mulheres

        Desde o início de sua criação ficcional em prosa, Machado traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as mulheres, mormente depois do denominado romance de transição Iaiá Garcia, em que o poder de observação psicológica dos personagens se acentua — captando, de forma expressiva, o conceito freudiano  do desejo in­consciente. Machado  foi muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade :  criou um estilo de literatura não apenas de observação das  pessoas mas sobretudo de  interpretação, expondo das  pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes,  um outro lado , que  muitas vezes  aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente.

          Machado sempre foi um autor interessado em prospectar as  paixões dos homens, em dissecar-lhes as intimidades, em levantar ques­tões e em tomá-las públicas pela voz de seus personagens.  Sobretudo percebia, com clareza, o lado trágico das relações  humanas. Este lado trági­co, já presente em Shakespeare e Sófocles, p. ex.- duas das principais leituras de Machado,durante toda a vida –passa  pelo permanente mal-entendido dos encontros humanos, de um ser humano permanentemente acossado pelo outro, num processo originado,determinado e dinamizado//materializado pelo  ciúme e a desconfiança implícita, pela traição e pela infidelidade, de resto temas  constantes  na vida literátia de  Machado.Muito da temática e da tramática machadianas gira em torno do ciúme e do perdão – vale dizer, do binômio freudiano de ‘culpa e perdão’. Foi ele o autor brasileiro que introduziu a perspectiva  crítica, fazendo da dúvida, do questionamento e da argumentação, ‘a la Freud’, uma constante em sua obra.[1]   
           A temática essencial de Machado de Assis consistia, sob a correta disposição da forma, em expressar as sutilezas do mecanismo psicológico no deflagrar de ações,emoções,expressões e reações no comportamento humano . Tinha em vista um prisma polêmico: superar as simplificações mecanicistas praticada pelos epígonos do Naturalismo no final do século XIX, propondo radical e consistente denúncia contra mistificações e imposturas. Possuía uma maneira própria  de ver,representar e interpretar o mundo, a começar por seu peculiar processo de criação ficcional, as elaboradas transposições temáticas,tramáticas e de linguagem criando e intertextualizando intricado  que de resto não se ajusta às definições comuns dos gêneros literários, como por exemplo no caso a ‘indefinição’ genética de Queda que as mulheres têm para os tolos. 
 Afrânio Coutinho destaca que “o grupo mais extenso e de maior ressonância entre os assuntos machadianos seja os que traduzem o sentimento trágico da existência humana”[2] até porque em Machado pela primeira vez na literatura brasileira de então o narrativo e o descritivo dava lugar ao psicológico, ao íntimo, à alma – num processo que o conduziu, por vezes, a um certo amoralismo, buscando acima de tudo atingir a essência do ser humano, transcendendo o visível , o corpóreo, o material, num mergulho na contemplação das inúmeras e distintas perspectivas da alma humana
 Especialmente em sua segunda fase, a obra machadiana segue a linha da litera­tura psicoJógica , seus heróis e heroínas  com seus eternos conflitos, complexos, dúvidas e hesitações. A  análise rigorosa e fria de Machado deixa a nu, de  forma calculadamente espontânea, as cruezas e mazelas do ser humano, apresentado em  seus mais comezinhos de­sejos, das situações mais inesperadas e mesquinhas.
        A literatura de  Machado – nos moldes de  Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz --  traz, juntamente com Freud,  para o centro das discussões, a questão da sexualidade feminina. Nos romances machadianos surge  uma mulher que quer poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de, algu­mas vezes, ao não poder dizer de seu desejo — a maioria das mulheres da época, vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse amor, melhor, mas não era o principal,pois a questão do amor era secundária, era um luxo que muitas mulheres não tinham, prioritários eram as conveniências pecuniárias, o interesse econômico, a ascensão social : Machado,fiel à ‘ideologia’ das décadas de 1850-60, assim o trata em Ressureição , em A mão e luva, mas redime o amor em Memorial de Aires, numa “recomposição com a vida” — fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita. [e sabemos o quanto  Freud já preconizava a infidelidade como uma saída “não neurótica” para  a infelicidade matrimonial vigente na sociedade burguesa mundial no século XIX].
         E no contexto ainda ‘moralista’ da década de 1870 ,  Machado de Assis publicava, em 1880, em capítulos na Revista Brasileira, as Memórias póstumas de Brás Cubas,  tratando aberta e claramente da  traição femini­na, ainda que sob um irresistível tom de humor e cinismo. Trabalhar sobre o tema do adultério não era nada fácil,, visto que, ainda dominados pela moral preconizada pelas Ordenações,  a sociedade do século XIX via  o adultério femini­no como algo abominável. 
          Se Freud criou a psicanálise porque estava atento às necessidades e expectativas femininas quanto à sexualidade, ao desejo – por extensão à  histeria-- Machado "estava muito ciente de que escrevia para um público majoritariamente feminino (...).Esse esforço de produzir uma literatura que estimulasse as mulheres brasileiras é um dos traços mais importantes  da carreira desse suposto  retraído"[3]
           Nenhum escritor de seu tempo  — Joaquim Manuel de Macedo(de A Moreninha e em inúmeros contos),  José de Alencar( notadamente na trilogia urbana Senhora, Diva e Lucíola, além dos contos A viuvinha, Cinco minutos, das novelas A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação), nem Taunay (em Inocência), Bernardo Guimarães (e sua Escrava Isaura), Domingos Olímpio ( com Luzia Homem), nem  Lima Barreto (de suas Clara e Castorina em Clara dos Anjos , Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma , Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; etc., das instigantes crônicas em torno do tema “Não as matem!”) —   ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis. Ele  escrevia sobre mulheres e para mulheres : desde sua primeira obra publicada, Queda que as mulheres têm para os tolos , passando pelos primeirissimos romances Ressurreição, A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, na imensa maioria de  seus contos , na excepcional  novela Casa velha, chegando a Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memorial de Aires, as mulheres sâo as protagonistas, as personagens primordiais, o elemento central em torno  das quais desenrola-se a trama e a narrativa.
           Machado sempre preferiu escrever em publicações cujo público predominante era feminino, primeiro no Jornal das Famílias -- no qual inclusive publicou, de 1864 a 1876, em sua fase dita ‘romântica’, à qual se filiam também seus primeiros romances, os 8 contos enfeixados sob o título de “Histórias românticas” -- e a partir de 1879 em A Estação . Sua obra, de modo geral, encena vários tipos femininos, com histórias povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que as mulheres se defrontam na vida: assim é com  Lívia de Ressurreição,  Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Virgília e Marcela de Brás Cubas, Sofia de Quincas Borba, Capitolina de Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das protagonistas de inúmeros contos, notadamente em  “Missa do galo”, “Capítulo dos chapéus”, “Singular ocorrência” ,”Uma senhora”, “Trina e una”, “Primas de Sapucaia!”, “Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”, “Uns braços”, “D. Paula”, que encenam vários tipos femininos e situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum – podendo mesmo serem catalogado como   ‘estudos sobre a mulher”, ao revelarem  de forma soberba a mais aguda sensibilidade  de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética, preconceito social, autoritarismo, amor e ciúme
        Os  amores e frustrações femininos eram temas constantes, inclusive o adultério e a pros­tituição - anteriormente inaceitáveis na literatura. Um verdadeiro modernista, Machado não acreditava na honra baseada na castidade, tendo nas linhas e entrelinhas de seus contos, romances, e também de suas crônicas , chamado atenção para  as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras : argumentava que a mulher devia receber instrução e não ficar com­pletamente confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à li­berdade.
         Suas mulheres ficcionais -- orgulhosas ou tímidas, calculistas ou levianas, singelas ou complexas -- “com seus contornos roliços, seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, são criaturas feitas de capricho e de carne, sobretudo de carne, tudo instinto, sem nenhum raciocínio”.E nesse privilegiar a mulher como personagem primordial de sua ficção, desde os primeiros romances,Machado  trabalhou o psicológico como nenhum outro escritor de seu tempo, preocupado com climas, ambientes, situações existenciais sutis e delicadas: as mulheres surgem como personagens de grande densidade psicológica, alimentando de forma rica e sugestiva a temática preferida do mestre brasileiro: a traição. Traição era a uma preocupação permanente em Machado, desde Ressurreição, atingindo o clímax ‘explícito’ em Dom Casmurro – ciúmes e traição. E o tema da traição feminina  está sempre intimamente  ligado , freudianamente, aos desejos edipiano – e aí a interseção de Machado com Freud.
         Na maioria dos romances, a mulher é o elemento forte, traz o homem dependente de si, ela é o esteio, a base da relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, viúvas que não mais casam, em que se percebe que a figura masculina é, por vezes, desnecessária (Machado chega a reduzir o homem a um nada - sem a mulher, nada vale .: em Memorial de Aires, por exemplo, D. Carmo segue a linha da mulher totalmente dedicada à famí­lia, e que firmemente controla não só o espaço doméstico, como, e prin­cipalmente, o marido. Daí a famosa frase: "Aguiar sem Carmo é nada" ).
         Pretenderia Machado de Assis o matriarcado?,  especulam muitos dos estudiosos de sua obra, para os quais  Machado era mesmo ‘feminista’  -- e a cada leitura de sua obra  nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo. Sobretudo por seu explícito, e corajoso, reconhecimento das necessidades emocionais, econômicas e  sexuais da mulher – de que, além do exposto em romances e contos, há claras  evidências  em dois textos publicados em 1881 : o soneto "Dai à obra de Marta um pouco de Maria", que aparece na Poliantéia comemorativa da inauguração das aulas para o sexo feminino do Imperial Liceu de Arte e Ofícios e no artigo "Cherchez la femme" que celebrava o mesmo evento em A Estação.
         Importante notar, como que a reciclagem de um processo  desenvolvido por longos 36 anos (desde Ressurreição, em 1872), em seu último romance,sua obra conclusiva –  Memorial de Aires --  a par de continuar a privilegiá-las, valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as mulheres : não mais a figura sensual que impulsionada pelo desejo pode chegar à traição – como Capitu, Virgilia, Sofia, Guiomar, Valéria, Marcela, mulheres pérfidas mais diretamente  envolvidas com o pecado -- mas a mulher proba, que pode ser amada e admirada, distante e alheia à tentação, ‘salvas do pecado’,como Fidelia e Carmo. Não mais as machadianas adúlteras, sedutoras, ambiciosas, impuras, dissimuladas,traidoras — antes de tudo, fúteis e fugazes, a ponto de preferirem os tolos ao invés dos homens de espírito...
           A meu juízo, sem dúvidas em Machado o feminino confirma-se como uma categoria literária. Obssessivamente observador, a aguda e profunda visão machadiana das “cousas deste mundo” o fez constatar o quanto a mulher na sociedade imperial brasileira—reclusa e dominada, doméstica e servil-- era ‘anulada’ por sua própria condição feminina : se o mundo da mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.





[1] Sigmund Freud. Escritores criativos e devaneios. , Rio de Janeiro : Imago, 1980
[2] Afrânio Coutinho. “Machado de Assis na literatura brasileira”, in Cadernos da Academia. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1997
[3] John Gledson, Machado de Assis: impostura e realismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.


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