quarta-feira, 23 de abril de 2008

brilhante !brilhante!


Juiz solta hackers, mas exige que leiam obras clássicas

Para conceder liberdade provisória a três jovens detidos sob a acusação de praticar crimes pela internet, um juiz federal do Rio Grande do Norte determinou uma condição inédita: que os rapazes leiam e resumam, a cada três meses, dois clássicos da literatura.As primeiras obras escolhidas pelo juiz Mário Jambo, 49, foram "A hora e a vez de Augusto Matraga", conto de Guimarães Rosa (1908-1967), e "Vidas Secas", de Graciliano Ramos (1892-1953).Os acusados Paulo Henrique da Cunha Vieira, 22, Ruan Tales Silva de Oliveira, 23, e Raul Bezerra de Arruda Júnior, 30, foram liberados no dia 17, após nove meses presos por envolvimento na Operação Colossus, da Polícia Federal. A operação, deflagrada em agosto de 2007, investiga uma suposta quadrilha que roubava senhas bancárias pela internet. Foram cumpridos 29 mandados de prisão no Rio Grande do Norte, São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Paraíba.Ao conceder a liberdade provisória aos três jovens, o juiz listou 12 condições, como não freqüentar casas de prostituição, lan houses e salas de bate-papo virtual. Jambo, que há três anos atua como juiz federal, disse que a Justiça precisa sair da "mesmice".Três condicionantes se relacionam à educação dos acusados: freqüentar instituição de ensino, comprovar presença e aproveitamento nas aulas, ler e resumir os textos indicados.Os três rapazes aceitaram as condições e já estão soltos. Como os jovens são peritos em internet, o magistrado determinou que os relatórios sobre as obras deverão ser feitos pelos jovens de próprio punho.Sobre a escolha das obras de Ramos e Rosa, o juiz destacou o caráter educativo. "Nada como ler um "Vidas Secas" para perceber o que é vida dura, o que é necessidade de dinheiro."Segundo Jefferson Witame Gomes Júnior, advogado de Oliveira, seu cliente ainda não se matriculou na faculdade, mas já comprou os livros. "a decisão [judicial] foi uma forma de integrá-los à sociedade e uma redenção, porque já não há educação no Brasil. Uma decisão dessas favorece jovens a utilizar a inteligência para fins positivos."

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Machado e Tiradentes


Neste “ano Machado de Assis”, em que todos reverenciamos o maior nome da literatura brasileira, vale saber da importante ilação que ele construiu com uma das figuras primordiais da história nacional : ilação pela qual Machado --quem diria !logo ele, monarquista -- acabou por criar um 'mito republicano' .
Talvez nenhum dos escritores do século XIX admirassem, reverenciassem e cultuassem Tiradentes tanto como Machado de Assis : um vínculo respeitoso ,que remonta à sua postura política durante a década de 1860 , pelo qual Machado investiu Tiradentes com algo semelhante “a aura cristã do martírio e sacrifício” . Só que justamente essa aura,de ‘martírio e sacrifício’, e a loa machadiana ao “homem do povo que sofrera por sua visão de um Brasil independente” foram os fatores, ou motes, determinantes ,cruciais para tornar Tiradentes um ‘símbolo republicano’ – suprema ironia : Machado de Assis, monarquista convicto e crítico da República, foi quem no fundo provocou a assunção do inconfidente a ícone anti-monarquista , dele ‘apropriando-se’ o novo regime e instituindo o dia 21 de abril como feriado nacional.
Machado fez de Tiradentes tema em algumas crônicas -- numericamente, não muitas ; mas textualmente, decisivas. A começar pelos ácidos comentários críticos à edificação da estátua de d. Pedro I no Largo do Rocio (atual praça Tiradentes, no centro da cidade do Rio de Janeiro), que se constituiu em um dos maiores conflitos políticos em torno da figura do alferes : no lugar onde fora enforcado ‘o mártir’, o governo imperial erguia uma estátua ao neto da rainha que o condenara à morte ; o líder liberal mineiro Teófilo Otoni chamou a estátua de “mentira de bronze”, e Machado participou intensamente dos protestos.
Na crônica de 1 abril de 1862, publicada no Diário do Rio de Janeiro, a propósito da festiva inauguração da estátua, Machado escreveu :
Está inaugurada a estátua eqüestre do primeiro imperador.
Os que a consideram como saldo de uma dívida nacional nadam hoje em júbilo e satisfação.
Os que, inquirindo a história, negam a esse bronze o caráter de uma legítima memória, filha da vontade nacional e do dever da posteridade, esses reconhecem-se vencidos, e, como o filósofo antigo, querem apanhar mas serem ouvidos.
Já é de mau agouro se à ereção de um monumento que se diz derivar dos desejos unânimes do país precedeu uma discussão renhida, acompanhada de adesões e aplausos.
O historiador futuro que quiser tirar dos debates da imprensa os elementos do seu estudo da história do império, há de vacilar sobre a expressão da memória que hoje domina a praça do Rocio.
A imprensa oficial, que parece haver arrematado para si toda a honestidade política, e que não consente aos cidadãos a discussão de uma obra que se levanta em nome da nação, caluniou a seu modo as intenções da imprensa oposicionista. Mas o país sabe o que valem as arengas pagas das colunas anônimas do Jornal do Comércio.
O que é fato, é que a estátua inaugurou-se, e o bronze lá se acha no Rocio, como uma pirâmide de época civilizada, desafiando a ira dos tempos.
O Rocio vestia anteontem galas e louçanias desusadas.
As ruas por onde passou o préstito estavam ornadas de bandeiras e colchas, e juncadas de folhas odoríferas, segundo as exigências oficiais.
Mas sabe o leitor quem teve grande influência na festa de anteontem? O adjetivo. Não ria, leitor, o adjetivo é uma grande força e um grande elemento . (......)
Foi o adjetivo quem fez as despesas das arengas escritas anteriormente em defesa da estátua.(.....)
Três anos depois, a 25 abril 1865, publicou também no Diário do Rio de Janeiro uma crônica que é uma verdadeira ode a Tiradentes , inclusive prenunciando e acabando por vir a formalizar,tempos depois, a mitificação do inconfidente – logo por Machado – e fomentar, depois de 1889, sua construção como signo da República :
“Os povos devem ter os seus santos. Aquele que os tem merece o respeito da história, e está armado para a batalha do futuro.
Também o Brasil os tem e os venera; mas, para que a gratidão nacional assuma um caráter justo e solene, é preciso que não esqueça uns em proveito de outros; é preciso que todo aquele que tiver direito à santificação da história não se perca nas sombras da memória do povo.
É uma grande data 7 de setembro; a nação entusiasma-se com razão quando chega êsse aniversário da nossa independência. Mas a justiça e a gratidão pedem que, ao lado do dia 7 de setembro, se venere o dia 21 de abril. E quem se lembra do dia 21 de abril? Qual é a cerimônia, a manifestação pública?
Entretanto, foi nesse dia que, por sentença acordada entre os da alçada, o carrasco enforcou no Rocio, junto à rua dos Ciganos, o patriota Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado o Tiradentes.
A sentença que o condenou dizia que, uma vez enforcado, lhe fosse cortada a cabeça e levada a Vila Rica, onde seria pregada em um poste alto, até que o tempo a consumisse; e que o corpo, dividido em quatro pedaços, fosse pregado em postes altos, pelo caminho de Minas.
Xavier foi declarado infame, e infames os seus netos; os seus bens (pelo sistema de latrocínio legal do antigo regime) passaram ao fisco e à câmara real.
A casa em que morava foi arrasada e salgada.
Ora, o crime de Tiradentes foi simplesmente o crime de Pedro I e José Bonifácio. Ele apenas queria apressar o relógio do tempo; queria que o século XVIII, data de tantas liberdades, não caísse nos abismos do nada, sem deixar de pé a liberdade brasileira.
O desígnio era filho de alma patriótica; mas Tiradentes pagou caro a sua generosa sofreguidão. A idéia que devia robustecer e enflorar daí a trinta anos, não estava ainda de vez; a metrópole venceu a colônia; Tiradentes expirou pelo baraço da tirania.
Entre os vencidos de 1792, e os vencedores de 1822, não há senão a diferença dos resultados. Mas o livro de uma nação não é o livro de um merceeiro; ela não deve contar só com os resultados práticos, os ganhos positivos; a idéia, vencida ou triunfante, cinge de uma auréola a cabeça em que ardeu. A justiça real podia lavrar essa sentença digna dos tempos sombrios de Tibério; a justiça nacional, o povo de 7 de setembro, devia resgatar a memória dos mártires e colocá-los no panteon dos heróis.
No sentido desta reparação falou um dos nossos ilustrados colegas, nestas mesmas colunas, há quatro anos. As palavras dele foram lidas e não atendidas; não ousamos esperar outra sorte às nossas palavras.
Entretanto, consignamos o fato: o dia 21 de abril passa despercebido para os brasileiros. Nem uma pedra, nem um hino, recordam a lutuosa tragédia do Rodo. A última brisa que beijou os cabelos de Xavier levou consigo a lembrança de tamanha imolação.
Pois bem, os brasileiros devem atender que este esquecimento é uma injustiça e uma ingratidão. Os deuses podem aprazer-se com as causas vencedoras: aos olhos do povo a vitória não deve ser o criterium da homenagem.
É certo que a geração atual tem uma desculpa na ausência da tradição; a geração passada legou-lhe o esquecimento dos mártires de 1792. Mas por que não resgata o êrro de tantos anos? Por que não faz datar de si o exemplo às gerações futuras?
Falando assim, não nos dirigimos ao povo, que carece de iniciativa.
Tampouco alimentamos a idéia de uma dissensão política; conservadores ou liberais, todos são filhos da terra que Tiradentes queria tornar independente. Todavia, há razão para perguntar ao partido liberal, ao partido dos impulsos generosos, se não era uma bela ação, tomar ele a iniciativa de uma reparação semelhante; em vez de preocupar-se com as questões de subdelegados de paróquia e de influências de campanário.
Em desespero de causa, não hesitamos em volver os olhos para o príncipe que ocupa o trono brasileiro.
Os aduladores hão de ter-lhe lembrado que Tiradentes queria a república; mas o imperador é um homem ilustrado, e há de ver como se distancia dos aduladores o heróico alferes de Minas. Se os ânimos recuam diante de uma idéia que julgam ofensiva à monarquia, cabe ao príncipe sufocar os escrúpulos, tomando êle próprio a iniciativa de um ato que seria uma das mais belas páginas do seu reinado. Um príncipe esclarecido e patriota não podia fazer uma ação mais nobre, nem dar uma lição mais severa.
Uma cerimônia anual, com a presença do chefe da nação, com assistência do povo e dos funcionários do Estado, - eis uma coisa simples de fazer-se, e necessária para desarmar a justiça da história.
Não sabemos até que ponto devemos confiar nesta esperança; mas, ao menos, deixamos consignada a idéia. Morro pela liberdade! disse Tiradentes do alto da forca: estas palavras, se o Brasil não reparar a falta de tantos anos, serão um açoite inexorável para os filhos do império.(......)

Machado e Tiradentes

Em 1892, a propósito do centenário de morte de Tiradentes, Machado fez questão de marcar , o início da importante série “A Semana”, publicadas na Gazeta de Notícias de 1892 a 1900, escrevendo em tom vibrante,pungente e patriótico no dia 24 abril :
“(......................)
Para não ir mais longe, Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tivemos esta semana o centenário do grande mártir. A ,prisão do heróico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra cousa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos Estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração de glória. Merecem, decerto, a nossa estima aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nêle, o enforcado, o esquartejado, o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos..
Um dos oradores do dia 21 observou que a Inconfidência tem vencido, os cargos iam. para os outros conjurados, não para o alferes.. Pois não é muito que, não tendo vencido, a história lhe dê a principal cadeira. A distribuição é justa. Os outros têm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um coro igual ao das Oceânides diante de Prometeu encadeado. Relede Ésquilo, amigo leitor. Escutai a linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é envolvido na conflagração geral das coisas. Mas, principalmente ouvi as palavras de Prometeu narrando os seus crimes às ninfas amadas : Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinará todas as artes". Foi o que nos fez Tiradentes. .
Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma cousa, a alcunha. Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião - dentista. Era o mesmo· herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião.(....)

Um mês depois, Machado torna a referir-se ao alferes , utilizando-se do tom mais irônico que sua contumaz verve satírica poderia conceber. Na crônica de 22 maio, estampada no mesmo jornal, o sarcasmo machadiano chega a criar uma fantasia – cheia de significados -- ao construir impagável narrativa, exemplar insofismável do alegórico, acerca de um embuste imaginário :
“Este Tiradentes, se não toma cuidado emr si, acaba inimigo público. Pessoa, cuje nome ignoro, escreveu esta semana algumas linhas com o fim de retificar a opinião que vingou, durante um longo século, acerca do grande mártir da Inconfidência. "Parece (diz o artigo no fim) parece injustiça dar-se tanta importância a Tiradentes, porque morreu logo, e não prestar a menor consideração aos que morreram de moléstias e misérias na costa d'África." E logo em seguida chega a esta conclusão: "Não será possível imaginar que, se não fosse a indiscrição de Tiradentes, que causou o seu suplício, e o dos outros, que o empregaram, teria realidade o projeto ?"
Daqui a espião de polícia é um passo. Com outro passo chega-se à prova de que ele nem mesmo morreu; o vice-rei mandou enforcar um furriel muito parecido com o alferes, e Tiradentes viveu até 1818 de uma pensão que lhe dava D. João VI. Morreu de um antraz, na antiga rua dos Latoeiros, entre as do Ouvidor e do Rosário, em uma loja de barbeiro, dentista e sangrador, que abriu em 1810, a conselho do próprio D. João, ainda príncipe regente, o qual lhe ·se (formais palavras):
- Xavier, já que não podes ser alferes, ,ma por ofício o que fazias antes por curioso ; vou mandar dar-te umas casas da rua ,os Latoeiros ...
- Oh ! meu senhor I
- Mas não digas quem és. Muda de nome, Xavier; chama-te Barbosa. Compreendes, não ? O meu fim é criar a lenda que tu é que foste o mártir e o herói da Inconfidência, e diminuir assim a glória de João Alves Maciel.
- Príncipe sereníssimo, não há dúvida que esse é que foi o chefe da detestável conjuração.
- Bem sei, Barbosa, mas é do meu real agrado passá-lo ao segundo plano, para fazer crer que, apesar dos serviços que prestou, das qualidades que tinha e das cartas de Jefferson, pouco valeu, e que tu é que vales tudo. É um plano maquiavélico, para desmoralizar a conjuração. Compreendes agora ?
- Tudo, meu senhor.
- Assim é bem possível que, se algum dia, quiserem levantar um monumento à Inconfidência, vão buscar por símbolo o mártir, dando assim excessiva importância ao alferes indiscreto, que pôs tudo de pernas para o ar, e a pretexto de haver morrido logo. Não abanes a cabeça; tu não conheces os homens. Adeus; passa pela ucharia, que te dêem um caldo de vaca, e pede por Sua Real Majestade e por mim nas tuas orações, Consinto que também rezes pelo furriel Como se chamava ? Esquece-me sempre o nome.
- Marcolino.
- Reza pelo Marcolino.
- Ah! Senhor, os meus cruéis remorsos nunca terão fim!
- Barbosa, têm sempre fim os remorso! de um leal vassalo!

E assim ficará retificada a história, antes de 1904 ou 1905, Tiradentes será apeadodo pedestal que lhe deu um sentimentalismo que se .lembra de glorificar um só porque morreu logo, como se não morresse sempre antes de outros, e demais, enforcado, que é morte Quanto ao esquartejamento e exposição da cabeça, está provado empírica cientificamente que cadáver não padece, e tanto faz cortar-lhe as pernas como dar-lhe calças. Mas ainda restará alguma coisa ao alferes ; pode-se-lhe expedir a patente de capitão honorário. Se está no céu, e se os mártires formam lá em cima, pode comandar uma companhia. Antes isso que nada. (.....)

E um ano depois, a 23 abril 1893, menciona Tiradentes e sua coragem e disposição para sacrificar a vida – ainda que graciosa e bem-humoradamente :
“(..........)
Para mistério, mistério e meio. Saí dali, corri à casa de um armeiro, onde comprei algumas espingardas e bastante cartuchame. Além disso, com o pretexto de saudar o dia 21 de abril, alcancei por empréstimo duas peças de artilharia. Assim armado, recolhi-me a 1 casa, jantei, digeri, e meti-me na cama. Naturalmente não dormi; mas também não vi a aurora, nem o sol de quinta-feira. Portas e janelas fechadas. Nenhum rumor em casa, comidas frias para não fazer fogo, que denunciasse pelo fumo a presença de refugiados. Ensinei à família a senha monástica; andávamos calados, interrompendo o silêncio de quando em quando para dizermos uns aos outros que era preciso morrer. Assim se passou a quinta-feira.
Na sexta-feira, pelas seis horas da manhã, ouvi tiros de artilharia. Ou é a salva de Tiradentes, disse à família, ou é a revolução que venceu. Saí à rua; era a salva. Perguntei pelos mortos. Que mortos ? Pelos acontecimentos. Que acontecimentos ? Nada houvera; toda a cidade vivera em paz. Assim se desvaneceram os sustos, filhos de boatos, filhos da imaginação. Assim se desvaneçam todos os demais ovos do marido de La Fontaine.
Só um fato se havia dado, como disse, o do coreto. Fui à praça ver os destroços, mas já não vi nada; achei a estátua e curiosos. Desandei, atravessei o largo de S. Francisco e desci pela rua do Ouvidor, ao encontro do préstito de Tiradentes. Soube que já não havia préstito. Era pena; esta cidade tem, para Tiradentes, não só a dívida geral da glorificação, como precursor da independência e mártir da liberdade, mas ainda a dívida particular do resgate. Ela festejou com pompa a execução do infeliz patriota, no dia 21 de abril de 1792, vestindo-se de galas e ouvindo cantar um Te-Deum.
Espiando para casa , lembrei-me que esse dia 21 era ainda aniversário de outra tentativa política. O povo desta cidade e os eleitores convocados revolucionariamente pelo juiz da comarca, reuniram-se na praça do Comércio e pediram ao rei a constituição espanhola, interinamente. A constituição foi dada na mesma noite, contra a vontade de algumas pessoas, e retirada no dia seguinte, depois de alguns lances próprios de tais crises, não por ser constituição, - visto que, dois anos depois, tínhamos outra -- mas naturalmente por ser espanhola. De Espanha só mulheres, guitarras e pintores.(......)

As referências e menções a Tiradentes – como de resto os comentários e alusões feitas a diversas personalidades históricas, assim como a cobertura dos fatos políticos de sua época – constituem provas e exemplos eloqüentes do quanto Machado de Assis participava ativamente da história (política,institucional, econômica, social) e em nada – ao contrário da equivocada interpretação, que exige de uma vez por todas sua revisão – era alheio às questões de seu tempo.
E certamente pelo uso do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza – e do disfarce e do enigma—Machado de Assis recebeu, indevidamente, a pecha de “despolitizado”, “alienado”.Ledo e puro engano. Machado de Assis foi um crítico ‘avassalador’ da sociedade e das instituições brasileiras, e escreveu – ou a elas se referiu -- em crônicas e artigos, mesmo em contos e romances e até na poesia. , sobre política (muito) [e,para surpresa de alguns, sobre economia (em menor monta)]. Machado de Assis tinha opiniões políticas — era um monarquista liberal, não apoiava a República, repudiava Floriano Peixoto (que ,apoiado em golpe de Estado em 1891, governava com poderes autoritários, levando o País à ditadura, à censura e à guerra civil) — e por meio de sua obra é possível observar a política brasileira de sua época através do olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio ) sentenciou que pode-se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra de Machado : tanto na não-ficção quanto na ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e textos , utilizando uma série de categorias políticas - escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura ,aparelho policial, autocracia absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua escritura literária, de uma crítica da ideologia brasileira e de uma teoria política avançada,que no campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos especialistas.
As crônicas e artigos tratando de política são justamente aquelas que registram opiniões nunca expressadas por Machado com tanta clareza e coerência.