sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O cinema vai à literatura (e a literatura se vale do cinema)

Abrem-se as cortinas e projeta-se na tela mais uma premiação do Oscar cinematográfico. 
Independentemente de festas,festivais  e premiações , o cinema sempre  é  objeto  do foco, das luzes ,  sempre presente no imaginário e no real cotidiano de praticamente todas as pessoas no mundo. .
Excelente oportunidade para examinar as relações entre cinema e literatura
                                                                                                                                             Eventos como a ‘festa’ do Oscar -- e de resto, festivais regularmente realizados em distintas cidades,temáticas e enfoques etc -- são excelentes por  permitir uma reflexão sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções, confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos  contrastam- se; são  sempre  difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário -- originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.

A par das diferenças, entre a  página e a tela há laços  estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador  por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um  ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.

Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.

Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão --  meios que privilegiam a linha narrativa — também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, , James Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto."

“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ em parceria com o Globo Universidade para ministrar uma disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV. Para ele,  as relações entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a tela, apontando três outros importantes pontos de encontro. O primeiro seria os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam os exemplos : agora mesmo Clint Eastwood confirma seu projeto de uma biografia fílmica de Mark Twain ;outro, seria o uso estrutural ou incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta indubitavelmente a ocorrência maior, de que Stanley Kubrick, p. ex.,é um dos maiores artífices ; e também  o encontro da literatura e do cinema poderia se dar através de referências como alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado,  Johnson critica  enfaticamente  a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser  muito comum entre os espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. “A questão da adaptação como um problema só ocorre em determinadas circunstâncias, não ocorre, por exemplo, quando a obra literária não é conhecida” . A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo. O conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se na discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no original.

Esse  freqüente discurso da fidelidade,diz o professor, “carrega insinuações de um pudor vitoriano e se baseia na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à idéia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme secundário -- além evidentemente do “pensamento dicotonômico de que cinema e literatura são rivais a partir da crença na idéia de que o filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro”.A dicotomia,portanto,não existiria, porquanto “a linguagem escrita sempre esteve no cinema, desde os filmes mudos com as cartelas que continham as falas e pensamentos dos personagens, não sendo uma arte melhor nem pior que a outra”, conclui Johnson.

Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus pontos de partida – haja vista, sabemos, o quanto os já à época denominados “filmes de arte” (essencialmente franceses) do início do século XX procuravam se legitimar como obras sérias e eruditas a partir de textos clássicos e intérpretes teatrais. As relações entre o cinema e a literatura são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos literários anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse modo, a narrativa cinematográfica já se encontrava latente em alguns textos narrativos literários e o surgimento do cinema no final do século XIX foi apenas a “descoberta da tecnologia que permitiu concretizar o modo narrativo que enfatiza a visualização perceptiva da imagem de uma cena”, sentencia Jorge Urrutia em  “El cine filológico”( in  Discursos, n. 11-12.Coimbra: Coimbra: Universidade, 1998).
E desde então, a relação logo passou a trilhar indissolúvel (sic)  mão dupla, quando literatos e dramaturgos começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em  poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada linguagem --- ísto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em 1950, etc ) : e o  momento histórico de cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um de seus produtos.

Essa intrínseca, dialógica e dinâmica relação nasce no momento em que o cinema descobre seu potencial digamos literário , ao absorver o modelo narrativo do romance do século XIX a subsidiá-lo para melhor contar histórias – malgrado podermos hoje levantar a reflexão em plena  era da imagem digital em que vivemos : o cinema  continuaria ‘preso’ a um modelo narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria literatura? Em 2003, o (excepcional) cineasta inglês Peter Greenaway disse, numa entrevista, que “a maior parte do cinema feito hoje é uma ilustração de romances do século XIX” .Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?

O certo é que naquele tempo era “a arte dos novos tempos, arte de e para as massas”, com o nascimento de um novo olhar sobre um novo homem nascido na virada de um século para outro, um novo homem que precisava de uma nova forma de expressão – e nada como a sedução da imagem para tal.  O escritor e cineasta africano Ousmane Sembene declarou que, quando a palavra não atingia seu público, ele usava o cinema para enviar sua mensagem. O cinema, para ele, não é um meio em si, mas um veículo, como o livro. Não importa o suporte, mas a mensagem. E assim, a forma é sacrificada pelo conteúdo. A clareza é uma das regras básicas para a sedução no cinema, o que fere as regras da própria sedução, que é cheia de desvios, sombras e não-ditos. Talvez Sembene não seja o melhor exemplo, pois seu cinema, apesar de ser usado como suporte, não faz parte do grande sistema, daquilo que se convencionou chamar “cinema industrial”. Mas, o que nos interessa aqui é ver um escritor, que  é também cineasta, dizer que o que produz são idéias e não importa o meio em que elas chegarão ao seu público -- desde que possam ser compreendidas.
Em muitos casos, o cinema não é um suporte apenas, mas é a própria mensagem do realizador, e nenhum outro suporte poderia substituí-lo.

Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo da narrativa, em sua já longa  história, o cinema não sofreu muitas variações – malgrado certas exceções, como experimentos  ‘de vanguarda’ – e vem à mente, por aproximação etimológica, a  “Nouvelle Vague” da década de 1960 , que se propunha a romper  com a lógica linearizante da estética e da narrativa fílmica de até então, inspirada num congênere da seara literária, o “nouveau roman”—ambas dialogando entre si pelas respctivas técnicas narrativas, num movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.

Convém não esquecer,entretanto, que sob a égide de suas  afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já consagrados da narrativa literária – levando  Jorge Luis Borges  a  observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar  as limitações formais e “não procurando  ordenar o caos”, ao contrário, o caos tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”,p. ex., queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que os caminhos são múltiplos; e por fim  aquilo que Jean Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar, pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta e um papel.

Contudo, há de se atentar para um outro viés ,uma espécie de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de publicação de  livros motivados... pelo cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração de filmes(making-of), edição ou reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos iconográficos  que remetem para os filmes realizados a partir da adaptação da obra para  o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura.  De resto, uma tendência à qual avolumam-se questionamentos sobre até que ponto  sinaliza tanto  ‘perda de prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’ da matéria  literária, como sobretudo ‘dessacralização’ da literatura,  tênues que se tornam cada vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens culturais que circulam pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.

Na década de 60 do século passado, McLuhan chamava a atenção para o fenômeno de interpenetração entre diferentes mídias, destacando que, para a indústria cinematográfica hollywoodiana, um best seller era como um “jorro de petróleo ou indício de ouro”, isto é, os banqueiros de Hollywood farejavam, neste tipo de livro, grandes lucros para o cinema, uma garantia de sucesso de bilheteria. Além de já ter sido aprovado pelo gosto popular, o best seller ainda emprestaria ao meio cinematográfico a “superioridade do meio livresco”. É dessa época e desse processo a intensificação da arregimentação de escritores norte-americanos – dos melhores e mais significativos de suas gerações – não só como ‘fornecedores e alimentadores’ da produção cinematográfica hollywoodiana mas também como roteiristas ‘intensivos’.
Das mesmas forma e diapasão e desse processo decorrente, deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX,por parte e ação do setor  editorial ,a  contrapartida à incorporação da obra literária,fosse best seller ou não – muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o relançamento de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros .
Neste particular, a relação entre texto literário e roteiro é assinalada pelo escritor argentino  Ricardo Piglia , ao   afirmar que a novela do século XIX está hoje no cinema e  “quem quiser narrar como Balzac ou Zola deve fazer cinema”, acrescentando,  que “quem quer narrar como Dumas deve escrever roteiros”. Para ele, o roteirista seria uma espécie de versão moderna do escritor de folhetins, porque escreve por encomenda e por dinheiro e a toda velocidade uma história para um público bem preciso que está encarnado no produtor ou no diretor, ou nos dois. A observação de Piglia, referindo-se à transferência da narrativa de ficção do suporte impresso do jornal, na forma de folhetim, para as telas, faz lembrar o fenômeno, iniciado na década de 1940 nos EUA, do incremento dos escritores roteiristas, que se “alugam para sonhar” ,reportando-nos ao título “Me alugo para sonhar” de um  conto de Gabriel García Márquez, de 1992.
Toda a literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um filme, e na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o espaço do livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações derivadas de filmes.

No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto --relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou inferidos\induzidos, alguns elementos como  : a) uma obra literária de grande repercussão é meio caminho andado para gerar um filme de grande repercussão – e alguns cineastas, Kubrick p.ex.sobressaía-se nisso,  são exímios em  realizar filmes-evento, inscritos na agenda cultural de seu tempo; b) mas ´por vezes os componentes de um grande romance podem ser impróprios para a realização de um filme baseado nele – a corroborar a sentença de Kubrick “livro é livro, filme é filme”.

No viés contrário, também se dá a influência do cinema sobre a literatura. Henry Miller, talvez ironicamente, chega a saudar a substituição da literatura pelo cinema: “O cinema é o mais livre de todos os meios de comunicação, pode-se realizar maravilhas com ele. De fato, eu iria saudar o dia em que os filmes substituíssem a literatura, quando não houvesse mais necessidade de ler”(in Os Escritores- 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1989).Mas tanto ele quanto nós todos sabemos,a par da integração mútua, da ‘independência’ entre ambas  e que jamais uma poderá substituir a outra.
                                                           
Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico -- e menos literário. E além disso, mesmo que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam  lidar  com o onírico, o  sonho , e com o psicológico -- que é, sabemos,  elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles  antes e acima  de tudo pessoas do cinema.

Quase sempre  nesses exercícios literários de cineastas e realizadores cinematográficos ocorre que

·      a narrativa se faz em quadros, planos (longos , médios, curtos) e fotogramas , como num filme -- e qual angulações e diferentes tomadas, utilizam  mudanças de foco narrativo ( de resto, recurso também comum e genericamente usado na literatura)
·      a narração geralmente corre veloz, fatos se dão e são relatados quase que a galope , denota-se certo açodamento : só que  no cinema  a ação  é rápida e a passagem de tempo ‘invisível’ para o espectador -- mas não o é  para um leitor; nos escritos de cineastas, de uma seqüência chega-se a outra sem intermediações, nem explicações , contando  com a imaginação do leitor
·      na maioria dos casos,os personagens são desenhados superficialmente, sem o esmero e detalhamento descritivo comum à literatura -- mas como no cinema, um retratar rápido e sumário (já que o espectador vê) como se o leitor os estivesse vendo em imagem, numa tela de cinema ou de tv, e não delineando-os na imaginação; os personagens são moldados, agem e comportam-se como atores, que são vistos na tela, prontos, sem necessitar de muita elaboração
·      assim também com as situações, fatos e com a própria  ação : mesmo as reflexões e indagações que por exemplo um  narrador faça, a respeito da natureza e do comportamento de personagens,
·      como que a analisá-los, aparecem como que anotações geralmente feitas em meio ou à margem do texto de roteiro cinematográfico.

Ora, em literatura tudo há de ser elaborado de acordo com os métodos próprios e intrínsecos à escrita ficcional. Na maioria das vezes, o texto literário de gente do cinema carece, em sua construção, de uma ‘personalidade’ própria, ficando a meio-caminho entre o cinematográfico e o literário : entre altos e baixos, persegue uma certa ilusão de fusão de formas, meios e  linguagens.“O romance , na verdade,  sempre foi uma forma literária propensa ao diálogo com outras linguagens”, ensina o professor Flávio Carneiro, da UERJ, autor de  Da matriz ao beco e depois, e o cruzamento da literatura com outras  formas  artísticas tomou um novo rumo, na década de 1980 , com a produção de obras que “ incorporam ao universo romanesco a linguagem do cinema, da televisão”.

Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O caso é que um diretor de cinema ou de tv  quando vai à literatura  leva com ele uma bagagem da linguagem  -- o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador -- e assim  comete  pecados e pecadilhos marcantes ( veja-se por exemplo Patrícia Melo, que de roteirista de tv impõe em seus livros uma narrativa toda cinematográfica, e ainda recebe elogios orquestrados da mídia... ). Ao contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre -- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood ,e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo no cinema europeu.

Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias  atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate -- literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme (e vale lembrar que  para Autran Dourado “não existe livro filmado, existe filme baseado em livro” ), mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.

Desejariam cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, responder a Stanley Kubrick -- para quem “ tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” --  provando que ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito?’...
[Mauro Rosso ,pesquisador de literatura,ensaísta,escritor; amante do cinema]

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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

MODERNISMO, 90 ANOS – IV

-- o Modernismo começou bem antes de 1922 e a verdadeira ‘revolução’ se  deu depois 

 Futebol: uma (grande) contradição dos modernistas
 Embora por volta de 1905 o futebol ainda fosse desconhecido para a ampla maioria dos brasileiros, em São Paulo já atraía grande interesse popular — tanto que até Monteiro Lobato, então acadêmico de direito, que numa carta a Godofredo Rangel, em 11.07.1904, escrevia: "(...) E cá estou de novo em São Paulo, mas ainda atribulado. Mudei-me para um quarto de frente na  rua Araújo 26, com um lampião de rua bem junto à minha janela. Tenho luz de graça. E defronte há uma vizinha janeleira que já piscou. Em vez de namorá-la, meti-me no futebol –‘Palmeiras !’ Joguei vários dias seguidos e fiquei mais derreado que com as léguas do sertão. Estou cheio de pisaduras e dodóis. Isto deve ser o que na Vida intensa o Th. Roosevelt quer. O futebol empolgou-me de alma e corpo; escrevo crônicas de futebol e jogo. Diz o Tito que é mania - e diz-lhe o Raul:’Jacques, tu es un âne’. Seja como for,  asseguro-te que o futebol apaixona e contunde".O mesmo Lobato de um discurso fervoroso em 1905 após assistir a jogos entre paulistanos e ingleses: "(...) Essa luta tinha para a população de São Paulo um significado moral dez vezes maior do que a eleição para um presidente do Estado (...) O último goal do Paulistano provocou a maior tempestade de aplausos jamais conhecida em São Paulo (...) É desta espécie de homens que precisamos. Menos doutores, menos parasitas, menos bajuladores, e mais struggle-for-life. Mais homens, mais nervos, mais corpúsculos vermelhos, para que um Camilo Castelo Branco não possa repetir que ele tem sangue corrompido nas veias e farinha de mandioca nos ossos".

Apesar disso, não conseguia suscitar grandes paixões que extrapolassem o âmbito esportivo.  Intelectuais e escritores -- caso de Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, Hilário Tácito -- apenas esparsa  e timidamente o registravam em seus escritos:  quando muito admitiam e exaltavam a plasticidade do jogo, a elasticidade das jogadas, a empolgação dos que praticam e assistem as partidas . Mais tarde, já pelo final da década de 1910 e início de 1920   em São Paulo dava-se a dedicação documental-historiográfica de Antonio Figueiredo e Leopoldo Santana , um relativo envolvimento de Menotti Del Picchia -- registrando-o em poemas, nos roteiros dos dois primeiros filmes do cinema brasileiro sobre futebol, “Alvorada de glória” e “Campeão de futebol”,ambos em 1931,  e na frase “o Corinthians é um fenômeno sociológico a ser estudado em profundidade” -- referências de Cassiano Ricardo, a simpatia de Raul Bopp  -- em artigo sobre o “élan magnético” que o atraía para o futebol -- e sobretudo o ‘fervor’ de Alcântara Machado --não só pelo famoso conto “Corinthians (2) vs. Palestra(1)”, e pela crônica “Notas sobre a visita do Bologna F.C” , mas por uma relação direta com a difusão dos esportes no Brasil, fundador da primeira Liga Atlética Acadêmica do Brasil, entidade poliesportiva  -- o completo envolvimento de Francisco Rebolo -- artista plástico e jogador de futebol, autor de “Jogadores de futebol” (1936)  , e um dos pioneiros na luta pela incorporação do negro no futebol brasileiro -- a motivação de Candido Portinari --  em duas séries de trabalhos “Futebol em Brodósqui” (1933) -- dos artistas Rodolfo Chambelland (“Menino com bola”, 1914), Ismael Nery (“Em caminho do goal”,1917), André Lhote (“Football”,  1933) , Djanira (“Futebol”, 1948),  Antônio Gomide (“Futebol no morro”, 1959).

O futebol posteriormente encontraria acolhida  em muitos contos de João Antonio, Ignácio de Loyolla Brandão; ‘receptividade’ em escritos de Sergio Milliet, de Sergio Buarque de Holanda, Paulo Emilio Salles Gomes. – e especialmente em dois grandes intelectuais, Anatol Rosenfeld e Vilém Flusser. O alemão Rosenfeld em fins da década de 1930 auto-exilou-se  no Brasil devido às perseguições sofridas na Alemanha hitlerista e aqui deu continuidade a sua vasta produção intelectual, escrevendo contos, poesias e crônicas, além de opinar sobre arte, sobre o pensamento europeu, sobre teatro, imprensa, rádio, filosofia, política ,antropologia — e sobre o futebol:  no texto “O futebol no Brasil”, publicado originalmente em alemão no Anuário do Instituto Hans Staden em 1956, comenta sua introdução no país, preocupou-se em analisar os elementos sócio-econômicos do futebol, da ascensão das massas aos componentes típicos dos jogos de bola - o torcedor, o ídolo, o clube, explicando ao público germânico que “em terras brasileiras (...) entre os negros, mulatos e brancos pobres, havia um grande número de jogadores de primeira classe, seja porque os ajudava o talento natural, seja porque a ´sucção de subida´ e o remoinho das chances do futebol os envolvia e canalizava, seja porque eles não eram estudantes de medicina ou direito e freqüentemente não tinham uma profissão, podiam lançar toda a sua paixão no jogo; em suma, porque levavam o jogo a sério e ´não tinham nada a perder´. (...) Dar pontapés numa bola era um ato de emancipação(...)”. Flusser, filófoso tcheco, radicado em São Paulo na década de 1940, debruçou-se sobre o futebol por via do tema da alienação, que inclusive intitulou brilhante ensaio no qual contrapõe-se  ao  conceito de que o futebol exerceria somente uma função evasiva da realidade,  ao contrário, vindo a constituir-se num  elemento, isso sim, de engajamento por ter o futebol extravasado de sua seara original, como esporte e prática esportiva, para praticamente todas escalas -- sociais, culturais, antropológicas,sociológicas, políticas, econômicas ; chegou a formular o conceito de  “um novo homem brasileiro, um homo ludens”.

Intelectuais paulistanos, paulistas e migrantes/radicados — como Décio de Almeida Prado, Nicolau Sevcenko, Waldenir Caldas, José Sérgio Leite Lopes, Francisco Costa, Luiz Henrique de Toledo, Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes — que se dispuseram a buscar uma compreensão do futebol construíram uma percepção do esporte como uma ágil e poderosa forma de expressão do caráter nacional; uma codificação positivista da estrutura social brasileira: o indivíduo, valendo-se de características muito peculiares, sobressairia-se a quaisquer empecilhos à sua sobrevivência e/ou ao relacionamento social, e assim alcançaria o sucesso e aceitação coletiva.
O futebol  interpretado sob a ótica da representatividade nacional, uma forma de se chegar a concepções sobre a brasilidade,  colocando- o  também no terreno da cultura popular, sob o projeto  de construção de símbolos nacionais, que a música popular e o folclore já haviam tornado possíveis e que, naquele momento, por meio de uma ‘brasilidade esportiva’, o futebol também facultava. Refletiam e retratavam emblematicamente as tradução e  decodificação sofridas pelo futebol ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, metamorfoseando-se de esporte elitista estrangeiro em esporte nacional-popular.

Relevante observar especificamente o relacionamento dos intelectuais modernistas com o futebol, recebido de modo diametralmente oposto na primeira, na segunda e na terceira fase (assim Afrânio Coutinho caracterizava o ciclo modernista). O fenômeno futebolístico no Brasil dos anos de 1920 passou muito ao largo das preocupações missionárias dos primeiros, o esporte visto como “subproduto de importação, a adoção de mais um artigo de luxo, com sua linguagem integralmente inglesa e seu vestuário britânico desconhecido, provindo de uma matriz européia transplantada por uma elite anglófila e francófila, ávida por novidades e exotismos, típico da dependência cultural brasileira”; depois, já na década de 1930, o futebol interpretado sob a questão da representatividade nacional, uma forma de se chegar às suas concepções sobre a brasilidade; e no decênio seguinte, ao entrar em cena os regionalistas oriundos do Nordeste, a interpretação modernista colocando o futebol também no terreno da cultura popular, retomando o projeto modernista de construção de símbolos nacionais, que a música popular e o folclore já haviam  tornado possíveis e que, naquele momento, por meio de uma ‘brasilidade esportiva’, o futebol também facultava. Gilberto Freyre, por exemplo, em consonância com a noção de antropofagia desenvolvida por Oswald de Andrade em seu manifesto de 1928, identificou no futebol um exemplo indubitável da capacidade do brasileiro de transplantar, de assimilar e de reinterpretar os inúmeros produtos que historicamente vinham importados e impingidos da Europa.

O modernismo pareceu à primeira vista lidar com certa cautela e muitas reservas,  quando não, com explícita antipatia, diante do crescente e contagiante processo de popularização de um esporte de origem e teor eminentemente europeus. Mas a tradução e a decodificação sofrida pelo futebol ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, metamorfoseando-se de esporte elitista estrangeiro em esporte nacional-popular,  possibilitou aos escritores modernistas da segunda fase uma paulatina alteração no enfoque do fenômeno, ainda que não de uma maneira unânime e consensual.

De  Mário de Andrade e Oswald de Andrade o futebol recebeu imediatamente crítica e repúdio – mas em ambos amenizando-se ao longo do tempo, muito mais em Oswald , sem nunca alcançar porém o engajamento empolgado . Mario de Andrade o  via como “uma moda fútil entre tantas que aportam da Europa” em Paulicéia desvairada, “uma praga” em Macunaíma, não deixa de realçar em algumas crônicas a violência e o teor elitista do futebol permeado de expressões estrangeiras (a la Lima Barreto), embora na crônica “Brasil-Argentina”, em 1939, acentue a transformação verificada em torno do futebol, o processo de apropriação pela identidade da nação[ a relação dos esportes com a identidade da nação tornara-se decisiva , acionando a idéia de uma unidade nacional que tinha a seleção brasileira como uma das instâncias principais de representação simbólica, coincidindo com um projeto de configuração do Estado-nação de Getulio Vargas nas décadas de 1930 e 1940], chegando a adquirir – em uníssono com a tese de Oswald – um caráter antropofágico onde se afirmava a capacidade brasileira de deglutição, bem como de assimilação das influências estrangeiras e de sua transformação em expressões genuinamente nacionais.

Oswald de Andrade, por sua vez, referiu-se  com uma  certa simpatia – carregada de  ironia – nos versos do poema “E a Europa curvou-se ante o Brasil”, em que refere-se à excursão do Paulistano à Europa,em 1925, e em “Bungalow das rosas e dos pontapés”, sarcástico sobre a violência do futebol;  a rigor, sempre combateu o futebol, como “veículo de alienação”, “ópio do povo”, inclusive elegendo para este confronto de idéias (reprisando o espírito de polêmica de Lima Barreto x Coelho Neto)  José Lins do Rego– embora mais  tarde  fosse ligar-se a Mario Filho e a Candido Portinari justamente por causa do futebol...
        
Impõe-se, de resto, a especulação reflexiva sobre duas instâncias do mesmo núcleo de questão: primeira, por que o futebol em São Paulo, a cidade natal do introdutor do futebol  no Brasil, a cidade onde fundou-se  o primeiro clube de futebol do País, onde realizou-se o primeiro campeonato organizado de futebol, a cidade berço do ‘futebol de rua, de terreno baldio’, a cidade que produziu o primeiro craque do futebol brasileiro, não teve já em seus primórdios ,por parte de seus intelectuais, a mesma acolhida entusiástica como, por exemplo,  no Rio de Janeiro? E depois, como avaliar o comportamento dos modernistas — da “primeira, segunda e terceira fases”  — com relação ao futebol ? Entende-se que os modernistas da primeira fase tenham visto no futebol, em seu início de implantação no Brasil, um elemento elitista, “burguês e estrangeirista, alheado dos aspectos considerados essenciais e originais da cultura brasileira”—mas por que, depois da avassaladora popularização do futebol, transformado a partir da década de 1930 (o ano de 1938 como taxativo ponto de inflexão) em ‘símbolo de identidade nacional’, não se engajaram em sua aceitação, com o entusiasmo esperado, como elemento essencialmente ligado a seus ideais de nacionalidade, ou pelo menos não o encararam devidamente como um instrumento para chegar às suas concepções sobre a brasilidade, a exemplo do que tinham feito ao acolher, por exemplo, o folclore e a música popular ? O futebol tinha tudo para cair nas graças também dos modernistas da primeira fase (muito além dos registros de Alcântara, Menotti, Bopp,Cassiano) lado a lado com os da segunda fase (os do nordeste) e da terceira fase , e mesmo dos ‘pós-modernistas’ — mas deu-se apenas na efêmera simpatia de ordem plástico-estética de Mario de Andrade e na contestação de cunho ideológico de Oswald de Andrade. Oswald de Andrade ainda combatia a popularidade do futebol no Brasil, sob o tema da “alienação”, o “futebol como ópio do povo”, já levantado por Lima Barreto e Graciliano Ramos, elegendo para este confronto de idéias José Lins do Rego (reprisando o espírito da célebre  polêmica de Lima Barreto x Coelho Neto).


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

modernismo, 90 anos – III

-- o Modernismo começou bem antes de 1922 e a verdadeira ‘revolução’ se  deu depois –

Revolução’ ,mesmo, somente  em 1924.

O nacionalismo, a mais marcante característica do Modernismo, iria separar ideologicamente os adeptos do movimento, opondo os grupos “Pau-Brasil”,e depois “Antropofágico”(que incorporava o comunismo, o freudianismo e o matriarcalismo), de  Oswald de Andrade , Raul Bopp e Tarsila do Amaral , e  o “Verde-Amarelismo , de Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Estudiosos sustentam que a verdadeira ‘revolução’ modernista se deu mesmo em 1924 – há exatos 80 anos ,portanto – ano do rompimento de Graça Aranha  com a Academia Brasileira de Letras, ano do “Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, anos de dois textos fundamentais de Mario de Andrade : A escrava que não é Isaura — a ‘teoria’ do modernismo compendiada — e seu  livro mais ousado, em termos formais, Losango caqui.

Há de se enfatizar o interesse dos intelectuais, escritores e artistas do Modernismo pela psicanálise e pelas teorias então insurgentes de Freud : ao longo da década de 1920 os modernistas exploram as teses freudianas nos principais textos e revistas do movimento, e em muitos de seus textos de ficção (além de Mana Maria,por exemplo,o romance Salomé, de  Menotti del Piccha , é nitidamente inspirado de Estudos sobre a histeria,de Bleuer e Freud ;  os conceitos de pulsão, consciente e subconsciente, e sexualidade aparecem  em Paulicéia desvairada, em  Amar, verbo intransitivo  e em  Macunaíma , de Mário de Andrade; de Oswald de Andrade —leitor “compulsivo”, segundo ele, de Totem e tabu e de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud —encontram-se referências à doutrina freudiana não só na Revista de Antropofagia mas também nos manifestos "Pau Brasil" e "Antropófago",e em Um homem sem profissão e em Memórias sentimentais de João Miramar; e a primeira tradução brasileira de um texto de Freud. "Cinco lições de Psicanalise", feita pelo psiquiatra mineiro chamado Hilario Pimentel, apareceu em A Revista, editada por Carlos Drummond de Andrade no final da década de 1930).
Segundo os estudiosos, nada mais coerente pois os modernistas “estavam todos voltados para as vanguardas européias", e a  Semana de 22 vingou rapidamente porque “da mesma maneira que as idéias de Freud , era libertadora e correspondeu a um espírito daquele período". No começo da década de 1920, observa Nicolau Sevcenko , “os intelectuais paulistas parecem divididos entre o desejo de modernidade e a crença no progresso e no futuro de um lado e, o medo, a angustia e a incerteza de outro, daí a enorme curiosidade sobre as teorias de Freud e sobre temas como sexualidade, agressividade, misticismo, feminismo , tratados  à luz da psicologia social e da psicanálise” .

Escusados os elementos de cunho claramente ideológicos,  o confronto entre as duas correntes se dá no plano estético-artístico em torno de concepções como “cosmopolitismo x regionalismo”, entre outros aspectos.Contrapõem-se , por exemplo, o esforço de Mário de Andrade para superar a concepção geográfica do espaço em Macunaína(1928)  à “geografização da realidade” presente em Martim Cererê(1926), de Cassiano Ricardo , em que “a epopéia bandeirante realiza a ‘paulistanização’ do Brasil”. Para os verde-amarelos, São Paulo se apresenta como o cerne da nacionalidade brasileira, justamente pela sua configuração geográfica, foi São Paulo que deu início ao processo nacionalizador, “cabe a São Paulo, portanto, coordenar todas as vozes regionais, assegurando a comunhão brasileira”. São Paulo corporificaria a própria idéia de nação.

Deflagrada a efervescência de 1922, pode-se afirmar que a verdadeira ‘revolução’ modernista se deu mesmo em 1924 – há exatos 80 anos ,portanto – ano do rompimento de Graça Aranha  com a Academia Brasileira de Letras, ano do “Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, anos de dois textos fundamentais de Mario de Andrade : A escrava que não é Isaura — a ‘teoria’ do modernismo compendiada — e seu  livro mais ousado, em termos formais, Losango caqui.

Adiante, o ano de 1928 representou uma ‘encruzilhada’ decisiva : revelou-se uma certa impotência da corrente antropofágica para promover a grande transformação implícita em seus princípios  no que se propunha a fazer, enquanto o “Verde-amarelismo” prenunciou e ativou as divisões políticas que viriam na década de 1930. Foi em 1928 que se deu a publicação de Macunaíma,  máxima obra literária do movimento, excepcional romance-retrato do Brasil de grande miscigenação cultural — as tradições culturais indígenas dos primórdios ao lado da modernidade europeizada dos centros urbanos brasileiros da época — e a publicação de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, inaugurando o ensaio de cunho ao mesmo tempo histórico e sociológico que abriria caminho para o grande ciclo de “interpretações do Brasil”..À renovação estética modernista,na década de 1920, alia-se na década  seguinte  o ensaio de interpretação e crítica social, que tenta recontar o processo de formação histórica do país: a procura da identidade social passa igualmente pela busca premente de uma ponte entre uma completa renovação cultural e a reforma da sociedade, uma ponte entre a modernidade e a modernização do país .

O ano de 1930 é a época de instauração do Estado Novo, que se ‘apropria’ ideológica e retoricamente  do Modernismo — Getulio Vargas declarava  em seu  discurso de posse: “As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do Modernismo na literatura brasileira  foram as mesmas que precipitaram no campo social e político a Revolução de 1930 (seguindo uma sugestão formulada por Cassiano Ricardo) — mas inicia um período de intensa fermentação política, social  e cultural. É na primeira metade dessa década  que nascem as primeiras tentativas de interpretação de conjunto da história, da economia e da sociedade brasileira.Sobretudo a  prosa literária se desenvolve, ficcionalmente no romance e no conto, que retratam decadência da aristocracia rural, a formação do proletariado urbano, a luta do trabalhador, o êxodo rural, as cidades em rápida transformação — os cenários para a expansão e proliferação dos ensaios de interpretação do País, de Gilberto Freyre , Paulo Prado (Retrato do Brasil),  Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) ,Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo), todos lastreados pela ‘índole’ modernista em busca da síntese explicativa dos múltiplos aspectos da vida social brasileira e de seu desenvolvimento histórico.

Acima de tudo um processo de mudança cultural , em direção a uma nova reconstrução sócio-política da identidade nacional, o Modernismo “difunde-se no tempo, balizando grande parte dos sequentes debates intelectuais, espalha-se no espaço, o poderoso ímã da literatura interferindo com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil”, sentencia Antonio Candido.Irradiante , difuso e difusor, o Modernismo modelou substancialmente a literatura brasileira no século e desdobrou-se pelas décadas seguintes em  irreversível processo de  amadurecimento : uma terceira fase  do movimento,na busca de uma nova linguagem, que expressasse os anseios de renovação do pós-guerra, veio na denominada “geração de 1945”, depois, na Poesia Concreta, da mesma forma na Poesia-Práxis , na atual narrativa em prosa —   caracterizada esta por novas formas de  linguagem , ora intensa e ágil, ‘cinematográfica’ , ora densa e introspectiva, ‘filosófica’,e pela preponderante ambiência urbana retratando “a vivência vertiginosa nas grandes cidades”, confluiu no último decênio do século XX e no despontar deste Terceiro Milênio para o irreversível despontar  de uma nova geração de escritores, que abre espaço na literatura brasileira..






terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

MODERNISMO, 90 ANOS – II

-- o Modernismo começou bem antes de 1922 e a verdadeira ‘revolução’ se  deu depois –



Modernismo,  “destruidor” e criador

Nos primeiros anos do século XX, quando novas correntes artísticas começaram a circular pela Europa, a maior parte do mundo ocidental encontrava-se em meio a transformações sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e culturais que alteraram radicalmente a forma de viver e de sentir o mundo. Invenções revolucionárias como o rádio, o telefone, o automóvel e o cinema passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, cada vez mais urbanizadas. A industrialização modificara a economia das potências, e os lucros acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados garantiam  tamanha sensação de conforto, segurança e otimismo em relação ao futuro, que o período ficou conhecido como belle époque — uma época de efervescência artística sem precedentes. Mas no extremo oposto,para as classes trabalhadoras o tempo era de lutas por melhores condições de vida e, no plano internacional um conjunto de fatores econômicos e políticos levaram à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. O Brasil vivia então  período de grandes mudanças,  com a urbanização e a adoção de novas tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário das grandes cidades, e que pareciam alterar a percepção do mundo. O intenso crescimento urbano e industrial ,acelerado desde o começo do século, e a chegada em massa de imigrantes, principalmente italianos, muitos dos quais haviam vivido a experiência da luta de classes em seus países, propiciando inclusive a difusão de   idéias anarquistas e socialistas, fizeram com que o proletariado crescesse  e se  organizasse

É nesse contexto  que surgiram as correntes de vanguarda (do francês avant-garde, "o que marcha à frente"), entre elas  o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo, recebidas com entusiasmo por escritores que procuravam renovar as formas de expressão artística. Muito antes de 1922 os artistas participantes da Semana já produziam obras influenciadas pelas novas correntes européias.

No caso particular de São Paulo — então com cerca de 240 mil habitantes na passagem do século XIX para XX, em radical mudança de perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes,  passa a ser executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu, eivada de academicismo art-nouveau.

A realização da Semana de 22 apenas reuniu e apresentou a um público bastante restrito - e escandalizado - alguns dos artistas que já vinham cultivando modernas formas de expressão, entre eles  Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho e Menotti del Picchia, além de Graça Aranha, na época autor consagrado e membro da Academia Brasileira de Letras, que usou seu prestígio para apresentar os jovens modernistas. Também participaram da Semana o músico Villa-Lobos, a pintora Anita Malfatti e o escultor Victor Brecheret, entre outros.

Fica para a História o depoimento de Mário de Andrade:
"A Semana de Arte Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos dissolvia nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E vivemos uns oito anos até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história do país registra. (...) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor.".

 A "destruição" tinha como objetivo, em um primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas — em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico , os poetas modernistas valorizavam a incorporação de gírias e de sintaxe irregular, e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da sociedade brasileira— e mais : a preparação de um terreno onde se pudesse reconstruir a cultura brasileira, sobre bases nacionais, a realização de uma revisão crítica da história e das tradições culturais do país.

 Eram unânimes no combate às estéticas parnasiana, realista e romântica. .O parnasianismo é descartado enquanto gênero literário ultrapassado por aprisionar a linguagem nos cânones rígidos da métrica e da rima. A liberdade de expressão é a bandeira de luta do movimento, que reivindica a criação de uma nova linguagem, capaz de exprimir a modernidade.Também o realismo é criticado, na medida em que incidiria sobre valores tidos como retrógrados, tais como o cientificismo — a utopia é uma dimensão do real, porque não é apenas sonho, mas também um protesto. Assim, o ideal figurativo, a extremada ênfase no realismo são considerados barreiras à criação artística : associa-se  realismo a pessimismo, observando que os autores realistas dão sempre uma visão distorcida do nacional. Distorcida por sobrecarregar seus aspectos negativos, gerando sentimentos de derrota e incapacidade.

A objeção ao romantismo incide na ênfase que este dá ao sentimento, na sua tendência à tragédia e à morbidez. combate-se o romantismo argüindo a necessidade de atualização do ser nacional. No entanto, esta atualização assume um tom às vezes dramático e dilacerante quando sente-se
“(...) uma necessidade instintiva de apunhalar (...) esse quase duende (...) que, de
quando em quando, surge à tona do (seu) ser atualizado para relembrar o país
sempre intimamente sonhado da cisma e da sentimentalidade”
                     [Menotti del Picchia, "Uma carta", Correio Paulistano, 1 julho  1922]

Na crítica ao romantismo e a todo seu corolário de valores (devaneio, escapismo,culto à natureza, boemia) esboça-se a ética do homem empreendedor, ideologia típica dos países europeus no começo do processo de industrialização. Por isso,ao mesmo tempo,exige-se uma nova consciência social capaz de refletir a complexidade do mundo moderno

Duplo vértice histórico, a  Semana de Arte Moderna de 1922 faria o Brasil integrar-se definitivamente  no contexto filosófico-estético-cultural do século XX  e inserir-se nas coordenadas culturais, políticas e socioeconômicas dos novos tempos —o mundo da técnica, o mundo mecânico e mecanizado, com “a estabilização de uma consciência criadora nacional, preocupada em expressar a realidade brasileira ; a atualização intelectual com as vanguardas européias; o  direito permanente de pesquisa e criação estética.”. A partir de 1922 caminha o movimento modernista  em busca de padrões autônomos e formas autênticas para a criação estética nacional —e não somente no âmbito artístico : da mesma forma no campo do pensamento social, os intelectuais procuravam estabelecer novos modos de se tratar e compreender a cultura e a história do Brasil, estabelecendo novas interpretações e valores para a  identidade nacional e dando início à consolidação institucional do pensamento sociológico brasileiro.Gerou sobretudo um estado permanente, latente , criativo, estimulante, instigante, de inquietação intelectual, e  iniciou um processo de unificação cultural sem precedentes no Brasil.

Adotando como preceitos e princípios, “a desintegração da linguagem tradicional , adoção de linguagem coloquial e liberdade de expressão; a incorporação do cotidiano e busca da expressão nacional ; a assimilação das conquistas das vanguardas e inovações técnicas como o verso livre” , os modernistas "passaram por cima das distinções entre os gêneros, injetando poesia e insólito na narrativa em prosa, abandonando as formas poéticas regulares, misturando documento e fantasia, lógica e absurdo, recorrendo ao primitivismo do folclore e ao português deformado dos imigrantes, chegando a usar como exemplo extremo contra a linguagem oficial certas ordenações sintáticas tomadas a línguas indígenas". Os autores do Modernismo procuraram no índio e no negro o primitivismo,  elemento primordial da cultura brasileira que proporcionaria a reconstrução da realidade nacional, e procuraram retratar a mistura de culturas e raças existente no País. Criaram uma nova versão sobre  nossa formação étnica diversa da clássica teoria da "trindade racial" composta pelo branco, o negro e o índio.

A visão  que escritores como Mário de Andrade, Oswald Andrade, Alcântara Machado, por exemplo, têm da presença italiana na Paulicéia é  importantíssimo de ser analisado  à medida que o movimento modernista propunha que se passasse a extrair temas da realidade concreta, do folclore e da cultura brasileiras, em seu sentido mais amplo. Os escritos literários, de prosa e  poesia modernista, além de crônicas, cartas, apontam elementos de fusão étnico-cultural em que realidade e ficção se fundem — o humano resgatado das ruas de uma São Paulo em transformação constante para povoar as páginas de uma produção literária igualmente em processo de transformação.
                
E não se pode deixar de considerar  uma das peças mais sutis já escritas sobre a cidade, na saudação emocionado, ‘de corpo presente’, do poeta franco-suiço Blaise Cendrars em meados da década de 1920, em contato estreito com os futuros modernistas — são lendários seus encontros, suas tertúlias intelectuais, as viagens a Minas Gerais, às cidades históricas, à Amazônia.Ele era naquele momento o poeta mais importante no contexto da arte moderna (membro do grupo de artistas associados ao circulo de Picasso, ele e Apollinaire haviam criado a poesia cubista; após a Grande Guerra ligou-se a Jean Cocteau, Fernand Léger, Darius Milhaud e aos Balés Russos de Diaghilev, empolgando a cena parisiense e o mundo da cultura). Segundo Nicolau Sevcenko, que ele tenha se apaixonado por São Paulo, para onde voltou várias vezes , “diz muito e talvez o essencial sobre o sentido histórico da cidade” — e de sua inserção, não apenas ambiental, no Modernismo brasileiro e historicamente,desde seu primórdio, na própria História e na cultura do País.

 "Eu adoro esta cidade.
 São Paulo é como o meu coração
 Aqui nenhuma tradição
Nenhum preconceito
Nem antigo nem moderno                                                                
Só contam esse apetite furioso essa confiança absoluta
Esse otimismo essa audácia esse trabalho esse esforço
Essa especulação que faz construir dez casas por hora
De todos os estilos ridículos grotescos belos grandes pequenos

Norte e sul egípcio yankee cubista
Sem outra preocupação que a de seguir as estatísticas
Prever o futuro o conforto a utilidade a mais-valia e
Atrair uma enorme imigração
Todos os países\Todos os povos
 Eu amo isso..."

mr  

domingo, 12 de fevereiro de 2012

MODERNISMO, 90 ANOS – I

    -- o Modernismo começou bem antes de 1922 e a verdadeira ‘revolução’ se  deu depois –

Um precursor, anunciador,antecipador no início do século XX.
Um ‘visualizador” no século XIX



Exatos 18 anos. Em 1904. O Modernismo começou com Lima Barreto, na confecção dos romances Recordações do escrivão Isaias Caminha e Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá, escritos simultaneamente a partir desse ano (ele preferiu - por razões que ora eu estudo- publicar aquele primeiro, em 1907; este, somente em 1919) ao expressar, ainda incipientes, os primeiros elementos-indícios depois assimilados pelos modernistas, manifestos tanto na concepção ‘filosófico-literária’ quanto na linguagem das duas obras, ambas carregados de muitas intertextualidades temáticas, ambas representando, emblematizando e sintetizando decisiva guinada de concepção ficcional e a própria evolução literária barretiana.


Vale notar, ainda, que Isaias Caminha e Gonzaga de Sá estão, por sua vez e cada um deles, ‘ligados’ a “Clara dos Anjos”,obra que aparece na obra ficcional de Lima Barreto, sob o mesmo título, em três versões, defasadas no tempo, e distintas entre si,nem tanto pelo enredo em si,este mantido essencialmente o mesmo mas pelos focos e enfoques temáticos que Lima imprimiu ao longo do tempo : a primeira versão é de 1904, um romance inacabado, com apenas quatro capítulos, inserido em Diário íntimo; a segunda, um conto publicado em 1919 e incluído na coletânea Histórias e sonhos ; a terceira, um romance ‘acabado’,veiculado postumamente em 1923-34, em folhetins na Revista Souza Cruz.e publicado em livro somente em 1947. Tanto Clara..., em suas três versões, como Isaias Caminha e Gonzaga de Sá expressam crucial desvio de uma intenção inicial de enfoque temático nas questões de negritude e situação do negro no país – a concepção inicial da novela (de obra sobre preconceito racial a obra psicológica,existencial, denunciadora de discriminação social-racial) e o projeto historicista de elaboração de uma “História da escravidão no Brasil” -- para o romanesco (a de 1907 e a de 1919,ambas obras crítico-satíricas ao mundo jornalístico e literário),mas de cunho político,com foco no cenário institucional e na sociedade brasileiros (assim foi nos romances que vieram depois e nos contos), assumindo a observação crítica, demolidora, da vida política e institucional inerentes à República.Na construção ficcional tanto de “Clara dos Anjos”, em suas três versões, como de Isaias Caminha- e de Gonzaga de Sá,- Lima ‘descobriu’ o caminho a seguir em sua ficção.


As três obras, mais do que a evolução literária, sintetizam a própria evolução filosófico-ideológica de Lima Barreto -- e , no desvio do foco étnico em favor do mundo romanesco,sem no entanto valer-se da superficialidade ou da “palavra oca,inócua”, deve-se apor a esse processo a conotação tolstoiana (de Tolstoi,e seu célebre ensaio "O que é a Arte ?", e “percepção religiosa da arte”), de resto autor da maior,e crucial, influência absorvida por Lima do começo ao fim de sua obra,em especial no que tange à transformação de ideais literários e o imprimir de um novo rumo à sua temática ficcional, e a seus conceito e pregação da “literatura como missão”.


Guinada, para reflexão e discussão do país e da sociedade, da concepção de literatura e também – e significativamente – da escrita e da linguagem literária,de resto elementos que se revelariam,desdobrariam e influiriam no Modernismo.


Lima Barreto e modernistas


Lima Barreto impôs na ficção e na nãoficção — com seu estilo simples, direto e objetivo, baseada na oralidade, contrária ao rebuscamento estéril que caracterizava a época, que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc -- os prenúncios do Modernismo logo a seguir rompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana. Não à toa despertou interesse e respeito por parte de Mario de Andrade, do alto de sua ‘autoridade’ de contista e teórico da construção ficcional, e levou p. ex. Sergio Milliet a escrever “(...) Lembro-me da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. Alguns entre nós, como Alcântara Machado, andavam obcecados .O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres” (artigo “Noticiário’, in O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11.11.1948); concomitantemente, nas páginas da então incipiente revista Klaxon (1921), os modernistas paulistas se propunham também a “descoelhonetizar”(ref. a Coelho Neto) a literatura brasileira, rompendo com os cânones acadêmicos., objetivos bastante semelhantes da revista Floreal, que Lima criara em 1907 e só durou quatro números


Importante lembrar que a época era dominada por duas vogas literárias, de um lado o parnasianismo, inócuo, oco e ressonante, de outro, a linguagem empolada, o ‘clássico’ calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos estilísticos — ambas, uma literatura impregnada de vocábulos garimpados, do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da frivolidade dominante.No Rio de Janeiro, os intelectuais e literatos,de certa forma alheios às contradições, logo se integraram ao processo de construção e aceitação dos novos ideais republicanos — no que, delinearam o movimento literário da chamada Belle Èpoque carioca, definida por “uma produção narcisista, descompromissada, escapista, aristocraticamente (pseudo-)refinada, de temática elitista,de muito epigonismo, exercícios academicistas, vocabulário rebuscado e sintaxe preciosa, ornamentações lingüísticas , a estética do brilho\luxo na atitude de épater le bourgeois”, tendo como escritores típicos, entre outros, Olavo Bilac, Coelho Neto, João do Rio, Afrânio Peixoto, Elisio de Carvalho,Figueiredo Pimentel (é dele a conhecida frase “o Rio de Janeiro civiliza-se!”), Medeiros e Albuquerque. Praticava-se um estilo mundano, meio jornalístico, pretensamente sofisticado,como apregoado por Afrânio Peixoto e sua ‘yese’ de a literatura como “sorriso da sociedade”.


No pólo oposto ao aristocratismo da escrita de então e aos nefelibatas da linguagem, tinha-se em Lima Barreto um registro da língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente nacional que prenunciava a linguagem modernista”. Como realça Nicolau Sevcenko, “chama muito à atenção quando se lê a obra do Lima Barreto, a atualidade dessa obra não só em termos de linguagem — uma linguagem bastante acessível, bastante próxima até da oralidade — pela qual foi muito criticado pelos seus pares e intelectuais da época. Mas não só por essa linguagem mas também pelos temas de que ele trata e pelo modo como os trata . Pode-se ir além porque muitos problemas de Brasil que ele pensa naquela época, que ele critica, e que ele, enfim, desenvolve como reflexão, permanecem absolutamente atuais”.


Convictamente decidido a romper com o figurino estilístico e literário vigente, sua escrita simples, direta e objetiva nada tinha a ver com a pompa, o floreio da retórica de então, Lima Barreto era o anti-acadêmico por excelência. Contrariamente à maioria de seus contemporâneos, praticantes dessa escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil, conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo,de uma nação, da humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com objetivo concreto e definido : as idéias contidas no artigo “Amplius!”( publicado originalmente no primeiro número da Floreal , em 25.10.1907 , depois em A Época, em 18.02.1916, e incorporado como abertura da coletânea de contos Histórias e sonhos ), expressam suas concepções sobre a arte literária.


E a propósito do Prémodrnismo : Lima, como sua figura literária maior e seu epígono,só confirma a condição,taxativa, de ser este um ciclo efetivo da historiografia literária brasileira,com características e elementos peculiares próprios, ao contrário do que sustentam alguns estudiosos,que o dizem ‘apenas uma extensão[sic] do Realismo”; e contraria a interpretação de Sergio Micceli, que diz ter sido a denominação “inventada” pelos modernistas,com um sentido de ‘diminuir’ e para,isto sim,valorizar e enfatizar o Modernismo,classificando o que o antecedeu de ‘preliminar’. Mas,em outro viés, Lima Barreto, prenunciador,anunciador e antecipador do Modernismo, por via dos elementos precursores aqui apontados, corrobora justamente o quanto o Prémodernismo,,com suas manifestações específicas e marcantes, foi um verdadeiro ciclo e,mais : verdadeiramente ‘preparador do Modernismo – este, iniciando-se portanto nele,bem antes de 22.[e vale lembrar : 2012, 90 anos do Modernismo; 90 anos da morte de Lima –01.11.1922]
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Antes, um ‘visualizador’ no século XIX...


Mas para concluir estas anotações antecipatórias do Modernismo, vou mais longe, mais atrás no tempo : vou a ... Machado de Assis – que, ainda no século XIX, refletia e punha em discussão a relação do país com a tradição nacional e as influências estrangeiras, de resto, idéia-baluarte da concepção de “cultura brasileira” sustentada,preconizada e postulada pelos modernistas – não somente na prática da absorção de influências,obras e autores estrangeiros, na traduções que realizou e em centenas de citações,referências,recorrências e intertextualidades em toda sua obra,ficcional e nãoficcional (tema que pauta e compõe meu estudo “Machado de Assis e Literatura Comparada : os franceses,os ingleses,os portugueses,os alemães,os gregos, os espanhóis,italianos e latinos” – a ser publicado), como em especial em seus célebres ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira”( A Marmota, 1858), “Notícias sobre a atual literatura brasileira : Instinto de nacionalidade”(New World, 1873) e “A nova geração” (Revista Brazileira,1879).