quarta-feira, 26 de março de 2014
Machado de Assis, a mulher, o amor
ainda em pleno "mês da Mulher" -- não apenas março, mas que devem ser todos.
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Nenhum escritor de seu tempo —
Joaquim Manuel de Macedo (de A Moreninha
e em inúmeros contos), José de Alencar( notadamente na trilogia
urbana Senhora, Diva e Lucíola, além das
novelas Cinco minutos e A viuvinha, e A
pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação),
nem Taunay (em Inocência), Bernardo
Guimarães (e sua Escrava Isaura),
Domingos Olímpio ( com Luzia Homem),
nem Lima Barreto (de suas Clara e
Castorina em Clara dos Anjos , Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo
Quaresma , Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário
íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; etc., das
instigantes crônicas em torno do tema “Não as matem!”) — ‘edificou’ tanto a
mulher como personagem capital e
elemento básico de sua
ficção como Machado de Assis.
Tinha a mulher
não apenas como principal, capital protagonista de seus romances e contos,
muito mais que isso, verdadeiro leitmotiv
--sempre chamando a atenção, nas linhas
e entrelinhas de seus textos, para as
necessidades e os direitos da vida afetivo-social, e mesmo sexual, da mulher :
argumentava que a mulher devia receber instrução e não ficar completamente
confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à liberdade.
Dava-a
também como sua leitora predileta:
Machado sempre escreveu sobre mulheres e para as mulheres e não era
segredo – pelo menos até 1881,quando consolidou a longa e profícua atuação nas
páginas da Gazeta de Notícias -- preferir colaborar em publicações cujo público predominante era
feminino, primeiro no Jornal das Famílias , de 1864 a 1876, e de 1879 a 1885, e em 1892 e
1894 em A Estação.
Desde o primeiro livro publicado, Queda que as mulheres têm para os tolos, passando pelos primeiros
romances na década de 1870, , na imensa maioria dos contos , na
excepcional novela Casa velha(1885), chegando
aos romances dos anos 1880 e 1900, sua obra, de modo geral, encena vários tipos
feminino, mulheres
ficcionais, orgulhosas ou tímidas,
calculistas ou levianas, singelas ou complexas, “com seus contornos roliços,
seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, criaturas feitas de capricho e de carne,
sobretudo de carne, tudo instinto, sem nenhum raciocínio”-- com histórias
povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que
as mulheres se defrontavam (e defrontam-se, quase sempre) na vida: assim é
com Lívia de Ressurreição, Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia,
Virgília e Marcela de Brás Cubas,
Sofia de Quincas Borba, Capitolina de
Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das
protagonistas de inúmeros contos, como estes aqui expostos, que abrigam vários tipos femininos e
situações vivenciadas pelas mulheres –
fossem no século XIX sejam hoje (por certo, sob escalas distintas) -- podendo
mesmo serem catalogados como ‘estudos
sobre a mulher”, ao revelarem de forma soberba a mais aguda
sensibilidade de Machado no trato de
questões que envolvem amor, ciúme, casamento, moral, ética, preconceito social,
autoritarismo, patriarcado.
O amor
é o grande tema, central e capital, na contística de Machado -- essencialmente, os amores e frustrações femininos como temas
constantes -- o amor visto, tido e exposto como a única
comunicação possível entre pessoas,quaisquer que sejam suas natureza,
caracteres, etnia,classe social, e o casamento– e seu derivativo mordaz, o
ciúme – são os elementos basilares de
Machado, presentes sem exceção em todos os
contos, vez por outra inserindo assuntos difíceis de serem tratados à
época ,mas sempre em defesa da base moral do amor -- como relações afetivas e
conjugais entre pessoas de classes sociais diferentes, incompatibilidades e
embustes sentimentais,dissimulações e disfarces , etc.
No privilegiar a mulher como personagem primordial
de sua ficção, Machado trabalhou o psicológico como nenhum outro escritor de
seu tempo, preocupado com climas, ambientes, situações existenciais sutis e
delicadas: as mulheres surgem como personagens
de grande densidade psicológica, alimentando de forma rica e sugestiva sua
temática preferida.
Especialmente a partir do final da década de 1870,
sua obra traz,
para o centro das discussões, a questão da afetividade feminina : na ficção machadiana surge uma mulher que aspira poder escolher a forma de sentir e amar,
apesar de, quase sempre , não poder dizer de seu desejo.
No
assimilar e incorporar à sua obra
ficcional os elementos de sexualidade feminina e de desejo inconsciente ,
Machado remete a Freud, estabelecendo como nenhum outro escritor
brasileiro de seu tempo vetores e pontos
de interseção entre a literatura e a psicanálise : desde
o início de sua criação ficcional em prosa, Machado traçou caminhos
próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as
mulheres, indo muito além da visão ingênua dos românticos,
do discurso dos realistas e naturalistas, criando um estilo de literatura não
apenas de observação das pessoas mas
sobretudo de interpretação, expondo das pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes, um outro lado , que muitas vezes
aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente. Como sentencia
Roberto Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25
anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de
Édipo’”. Machado de Assis é o grande
autor do romance psicológico brasileiro do século XIX e do início do
século XX.
Trazendo
para o centro das discussões a questão da sexualidade feminina, Machado faz
surgir nos romances e na maior parte dos
contos uma mulher que quer poder
escolher a forma de sentir e amar, apesar de, algumas vezes, ao não poder
dizer de seu desejo — a maioria das mulheres da época vivia reclusa, tinha
pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse
amor, melhor, mas não era o principal, pois a questão do amor era secundária,
era um luxo que muitas mulheres não tinham .
Especialmente a partir do final da década de 1870, seguindo a linha da literatura psicológica , seus
heróis e heroínas com seus eternos
conflitos, complexos, dúvidas e hesitações, na ficção machadiana surge uma mulher que aspira poder escolher a forma de sentir e amar,
apesar de, quase sempre , não poder dizer de seu desejo.
Importante notar, como que a reciclagem de
um processo desenvolvido por longos 36
anos (desde Ressurreição, em 1872),
em seu último romance,sua obra conclusiva –
Memorial de Aires -- a par de continuar a privilegiá-las,
valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as mulheres : não mais a
figura impulsionada pela emoção, a ponto de preferirem os
tolos ao invés dos homens de espírito , mas a mulher proba, que pode ser amada e
admirada.
A tríade tolo -- mulher --homem de espírito, que permeia a ficção machadiana, sob uma teia
dramatúrgica presente em contos e romances ao longo do tempo e de sua evolução literária,transportada para muitas
das obras ficcionais posteriores a 'ideologia' da obra Queda que as mulheres têm para os tolos -- seu
primeiro livro publicado, em 1861, intensamente gerador de controvérsias e especulações, de
imediato quanto ao gênero indefinido, de resto propulsor de acentuada polêmica
desde sempre quanto a ser tradução ou criação original de Machado (o que eu sempre sustentei, por fatores
vários que apontei e discorri em ensaio que escrevi a respeito : “Machado de
Assis,o subterfúgio,o feminino,a transcendência literária”), recentemente
dada como tradução segundo Jean-Michel Massa com base no panfleto publicado
anonimamente em 1859, com o título “De l'amour des femmes pour
les sots”, atribuído depois ao belga Victor Henaux .
A
trindade habita intensamente a maioria dos
contos do ciclo 1860 -79 , está nos romances Ressurreição, A mão e a luva e Helena
, anuncia-se em certa metamorfose na
transição representada por Iaiá Garcia,
transmuta-se inteiramente em Memórias
póstumas de Brás Cubas e em Quincas Borba
, reaparece sob enfática perspectiva em Dom Casmurro ),
por fim chega a seu ocaso nos derradeiros romances Esaú e Jacó e Memorial de
Aires, neste a seara da redenção
total da mulher machadiana(protagonizada por Carmo), definitivamente apartada
da preferência pelo tolo ao invés e em vez do homem de espírito. os tolos –
para quem as mulheres têm acentuada queda (pelo menos no início...) -- são, via
de regra, estroínas, praticam as fórmulas socialmente estabelecidas, sua
linguagem assemelha-se à retórica romântica dos folhetins, ostentam
autoconfiança, são determinados e objetivos nas ações afetivas, até mesmo
fingindo sentimentos e aparentando paixões com o fito exclusivo de conquistar a
mulher. Exatamente ao contrário dos homens de espírito, que fracassam e são excluídos por não se coadunarem com os padrões de
postura, convenções e relacionamento
sociais e por acreditarem numa vida além
e acima do jogo estratégico de aparências falsas e artificiais – mas saibam que
, numa espécie de aprendizado pelo fracasso, irão amadurecer,assumir uma atitude de reflexão sobre a
"realidade aética da vida" vis-a- vis com a desilusão com as
possibilidades da vida moral e
transmutar-se no cético. a transformação do homem de espírito se dá no
cenário das metamorfoses processadas na criação ficcional machadiana.
Apesar do ‘aviso’ dado em Queda... ,
alertando para o insucesso do romanticismo, praticado em diferentes níveis e
objetivos, Machado indica, nas obras iniciais, o amor romântico como solução
—embora o narrador insinue ser um meio ingênuo – para depois trilhar caminhos
mais audaciosos, o casamento por interesse ou conveniência como forma de
ascensão social (tema presente nos três primeiros romances e na maioria dos
contos no decênio 1860-70) passando a ser não apenas um empecilho à
concretização desse amor romântico mas a
mola propulsora da destruição, o problema – mais do que inerente a relações de
ordem social -- passando a ser encarado sob a ótica mais ampla e universal da própria condição humana.
Não
por acaso na marcante década de 1870, pressentindo os novos tempos,convencido
da necessidade crucial de mudança,já
alterando seu enfoque, sua temática,sua linguagem,seu estilo, sua
estética literária, Machado começa a
apontar para o superficialismo das relações humanas, as pessoas (homens e
mulheres) tendo de viver sujeitos a valores sociais que lhes são impostos e dos
quais somente poderão se libertar com mudanças radicais de consciência, de
atitude e de atos, dando início a um processo de reflexão que será plenamente
desenvolvido nas obras posteriores – processo que o autor\narrador protagoniza
no homem de espírito-personagem, que passa do
alheamento e distanciamento,da
desesperança e da desilusão às gradativas adaptação e interação com a
realidade , daí assumindo postura reflexiva e consciente, por fim
transformando-se no cético ; no entanto,
se o homem de espírito muda, amadurece, recusando terminante e objetivamente as
mulheress que fingem e ostentam, a ‘nova’ mulher machadiana deplora a
frivolidade do tolo e passa a se inclinar para o homem de espírito , o
tolo continua com sua frivolidade e
estoicismo, servil das convenções sociais e atado ainda à retórica
romântica.
Machado,
como supremo criador, atento e obediente aos ditames sociais dos novos
tempos, convoca o leitor à acurada
reflexão sobre a preferência da mulher – quer a antiga quer a atual – e
deixa-lhe a responsabilidade do
julgamento conclusivo..
Transformam-se
protagonistas, transmutam-se narradores e leitores, alteram-se formas e ritmos
narrativos -- mudanças da mesma forma se dão na ‘ideologia’ temática : antes de
1880, os contos e os romances de Machado se centravam no namoro,paixão e
casamento o casamento,feliz ou infeliz,
consumado ou não, bem-sucedido ou não, por sentimento ou interesse , ao passo
que no pós-1880 aparecem com mais nitidez formas e situações de fragmentação e
diluição do casamento : há mulheres que flertam com a idéia da infidelidade,
mas acabam não o consumando : o mais importante a observar é que intencionada
ou não, fomentada ou não, incentivada ou não, quase sempre platônica, a
infidelidade afetiva feminina é sempre
contraposta, e redimida, na redenção
pelo amor -- o grande e central tema da
ficção machadiana ; todos os sentimentos impuros e espúrios,proibidos e reprováveis,
se idealizados , ou cogitados,em nome dele são no final por ele
regenerados.
A
aguda e profunda visão machadiana das “coisas deste mundo” o fez constatar o
quanto a mulher na sociedade imperial brasileira—reclusa e dominada, doméstica
e servil-- era ‘anulada’ por sua própria condição feminina : se o mundo da
mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social
da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.
O certo, porém, é que em todos os aspectos, a cada
leitura de sua obra nos damos conta da sutileza e da abrangência, sob todos os
sentidos, do feminino confirmando-se como uma verdadeira, real categoria
literária.
domingo, 16 de março de 2014
José de Alencar e a Mulher: ode aos perfis femininos
ainda pelo "mês da Mulher" -- que não é apenas março, mas devem ser todos.
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Ao lado de Coelho Neto e Olavo Bilac (e um tanto de
Joaquim Manuel de Macedo), José de Alencar é um dos mais ‘injustiçados’ autores
brasileiros , apesar de seu excepcional
valor literário ( inclusive quanto à
criação e defesa de uma “língua literária brasileira”, inserida no grande
projeto de nacionalidade cultural dos românticos do século XIX).
Mas em tempos recentes, felizmente, denota-se um merecidíssimo,
e obrigatório, reconhecimento. Importante que, inclusive – e essencialmente --
se reporte a Alencar neste 2014 de seus
185 anos de nascimento (1.º maio 1829).
Nenhum escritor brasileiro foi (e é) tão versátil e
eclético como Alencar, autor de romances (urbanos, indianistas, históricos, de
costumes ), novelas, teatro, poesia, ensaios, artigos jornalísticos,
memorialística. Nenhum escritor elevou o Romantismo literário brasileiro a escalas
quantitativas e qualitativas como ele. E quase nenhum de seus
contemporâneos (obviamente à exceção, preponderante, de Machado de Assis)
soube, qual Alencar, captar e retratar tão bem o tempo
histórico-político-social-cultural do
século XIX, no País.
A vasta obra ficcional de Alencar abarca toda a realidade
brasileira : o indianismo , presente O guarani,
Iracema e Ubirajara ; o urbanismo, retratado por A viuvinha, Cinco minutos, Lucíola, A pata da gazela, Diva, Sonhos d'ouro, Encarnação, Senhora ; o regionalismo, expresso em O gaúcho, Tronco do ipê, Til , O sertanejo;
o ao romance histórico, com As minas de
prata, A guerra dos mascates,
Alfarrábios.
Sobremodo a se destacar o quanto seus”perfis de mulher”, em Cinco minutos e A Viuvinha --
suas primeiras obras ficcionais, publicadas respectivamente em 1856 e 1857 -- Lucíola,
Diva, Senhora, A pata da gazela, Sonhos d'ouro — deram nova vida ao
romance urbano brasileiro.
Nas duas novelas iniciais Alencar põe mais alta a
essência da feminilidade, mas traçando o
perfil da “mulher cordial,romântica, idílica”, distinto da “mulher cerebral”,
depois desenhado em Lucíola e mais adiante com rigor e plenitude em Senhora --- para mim o melhor romance alencarino e uma das grandes obras da
literatura brasileira.
Com Cinco minutos
e A viuvinha, Alencar inaugurou a
série de obras em que buscava retratar (e questionar) o modo de vida na Corte,
construindo um painel da vida burguesa oitocentista -- costumes, moda, regras
de etiqueta -- tudo entremeado por enredos onde amor e casamento são a tônica,
neles circulando padrinhos interesseiros, agiotas, negociantes espertos, irmãs
abnegadas e outros tipos coadjuvantes nos dramas de amor enfrentados pelo par
amoroso central; em todos, a presença constante do dinheiro, provocando
desequilíbrios que complicam a vida afetiva dos personagens e conduzindo
basicamente a dois desfechos: a realização dos ideais românticos ou a
desilusão, numa sociedade em que ter vale muito mais do que ser : em Senhora, o exemplo perfeito e magistral , a heroína
arrisca toda sua grande fortuna na compra de um marido; Emitia, a protagonista
de Diva, busca incansavelmente um
marido mais interessado em amor que em dinheiro; em Sonhos d'ouro, o dinheiro representa o instrumento que permitiria
autonomia de Ricardo e seu casamento com Guida; em Lucíola, a prostituição como
tema e mote mostra a degradação a que o
dinheiro pode conduzir o ser humano.
Também no teatro Alencar tratou da mulher – e no caso de
modo polêmico: em 1858, três dias após a estréia, a peça “As asas de um anjo” foi
proibida pela censura, que a considerou imoral : tendo como personagem central
uma prostituta regenerada pelo amor [p.s.: no mesmo ano, mas três meses antes,
Machado publicava no – importantíssimo ( sabem todos do meu estudo e pesquisa
obstinada a respeito) – jornal O
Parahyba, de Petrópolis, o histórico poema “Vem!”, pioneiro no presumir a
regeneração da prostituição pelo amor], o enredo ofendeu a sociedade ainda
provinciana de então. (o paradoxal é que o tema era popular e aplaudido no
teatro da época, em muitas peças estrangeiras; Alencar reagiu, acusando a censura de proibir
sua obra pelo simples fato de ser ''. . . produção de um autor brasileiro. .
.''-- mas sua reação mais concreta viria quatro anos mais tarde, com Lucíola,em
que o tema é retomado).
A reverência exigida por Alencar e sua obra expressam-se
nas sábias palavras de Machado de Assis :
"Quando entrei
na adolescência, fulgiam os raios daquele grande engenho: vi-os depois em tanta
cópia e com tal esplendor, que eram já um sol quando entrei na mocidade.
Gonçalves Dias e os homens do seu tempo estavam feitos; Álvares de Azevedo,
cujo livro era a Boa Nova dos poetas, falecera antes de revelado ao mundo.
Todos eles influíam profundamente no ânimo juvenil, que apenas balbuciava
alguma coisa; mas a ação crescente de Alencar dominava as outras. A sensação
que recebi no primeiro encontro pessoal com ele foi extraordinária: creio ainda
agora que não lhe disse nada, contentando-me de fitá-lo com os olhos
assombrados do menino Oleine ao ver passar Napoleão. A fascinação não diminuiu
com o trato do homem e do artista. Quem o lê agora, em dias e horas de escolha,
e nos livros que mais lhe aprazem, não tem idéia da fecundidade extraordinária
que revelou tão depressa entrou na vida.
José de Alencar
escreveu as páginas que todos lemos, e que há de ler a geração futura. O futuro
não se engana.”
segunda-feira, 10 de março de 2014
Lima Barreto e a mulher
em pleno mês da Mulher -- que não é apenas março mas devem ser todos
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Feminista, emancipacionista; mas realista
Articulista, escritor, pensador, nunca silencioso sobre seu tempo, Lima
Barreto não poderia pois ficar alheio à
situação da mulher na realidade social brasileira do início do século XX, época
de tantas e profundas transformações na sociedade. Retratou e a fez personagem
em contos e romances e escreveu sobre a mulher em artigos e crônicas,
publicadas em jornais e revistas — sob um caráter de ambigüidade, ora a
criticando, por vezes atacando, ora a defendendo, muitas vezes enaltecendo:
diz-se “antifeminista”, põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas
defende a necessidade de instrução para a mulher; repele o ingresso da mulher
no serviço público (“.rendosos cargos
para as mulheres das classes sociais mais favorecidas : e as reivindicações das
operárias ?...”), mas defende o divórcio e
justifica com vigor o adultério feminino (ambos forma de revolta contra
um homem opressor e uma concepção de
casamento instituída pela sociedade); imbuído da moral do seu tempo,
retrata a mulher pela ótica comum, mas denuncia sua “absurda” situação de
dependência aos homens.
Evidentemente que sua posição ‘pendular’ no enfoque da mulher
brasileira do início do século XX é resultado e reflexo do momento histórico em
que vivia, pleno de oscilações e mutações.
Longe,
muito longe da falsa, equivocadissima acusação de misoginia, posicionava-se na
realidade não contra a mulher em si, ou ao feminismo como movimento defensor e
propugnador dos direitos da mulher, mas sim contra o feminismo então praticado
por “lideranças medíocres e interesseiras”, um feminismo da moda, “feminismo
bastardo, feminismo burocrático, feminismo de secretaria”, e sobretudo contra os signos do progresso republicano : a
rigor, insurge-se contra um feminismo de caráter elitista, que não propugnava
por transformações sociais e visava apenas a interesses particulares dos
setores privilegiados da sociedade. Lima Barreto era, antes de tudo, crítico da mulher
burguesa, esnobe, e ao contrário simpático à mulher proletária, suburbana.
Nesse sentido, um dos maiores enganos – para não dizer, bobagens -- que
se possam cometer é considerar Lima Barreto como contrário aos movimentos e
ações emancipacionistas da mulher – não foi em hipótese alguma , realçando que
“(...) Não me move nenhum ódio às
mulheres, mesmo porque não tenho fome de carne branca; mas o que quero é que
essa coisa de emancipação da mulher se faça claramente, após um debate livre, e
não clandestinamente, por meio de pareceres de consultores e auditores,
acompanhados com os berreiros de dona Berta e os escândalos de dona Daltro. É
preciso que isso se faça claramente, às escâncaras. Cada um, então, que dê sua
opinião.(...)”[crônica “O nosso feminismo”]
Para ele o movimento feminista de então não propunha ou lutava pela
defesa da mulher, era “frágil, inconsistente, inócuo, só se preocupava com
perfumarias,acessórios e inutilidades” ;
desprezava a mulher operária e
reivindicações trabalhistas e sociais, divorciava-se da questão do
ensino e da educação para a mulher ;
desvinculava-se dos problemas afetivos e conjugais da mulher e da degradação do casamento imposto pelos homens
e pela sociedade ; mantinha-se
completamente omisso diante do uxoricismo.
sexo forte,sexo frágil
Lima
sempre conferiu à mulher espaço
significativo em sua obra ficcional e não-ficcional – retratando e comentando a situação da mulher perante o
casamento, a moral que lhe era imposta
pelo homem e pela sociedade, a desigualdade de julgamento do adultério masculino
e do feminino, a viuvez; as
oportunidades educacionais e profissionais; a prostituição; o início do
movimento feminista no Brasil.Se, de um lado, no conjunto de artigos e crônicas
-- quer sobre feminismo, movimento feminino, voto feminino, direitos femininos,
literatura feminina, quer em especial sobre mundanismo, moda, comportamento,
hábitos femininos -- Lima destila permanente ironia crítica, de outro o retrato
das mulheres elaborado em seus textos ficcionais mostra-as dependentes dos
homens e submissas a ‘normas’ sociais da época, sim, mas em muitíssimas vezes –
em outras, não -- com atitude e comportamento progressistas : são elas superiores aos homens, exemplos de
Olga em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara
dos Anjos; Edgarda em Numa e a ninfa ,Efigênia em O
cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia, Lívia
e outras em contos. .
“tema de Carmen”
Vale ressaltar, porém, que o suposto ‘antifeminismo’ barretiano tem sua
contrapartida significativa: numa série de artigos e crônicas – a que ele
denominou “tema de Carmen”[sic] -- a
propósito de julgamentos de crimes ditos passionais : neles, Lima Barreto defende veementemente a mulher e ataca os
homens, os advogados e juízes que “se atribuem direitos sobre a vida das
mulheres, direitos reconhecidos por júris que os absolvem”, denunciando crimes de uxoricídio nos quais
homens matavam “mulheres infiéis”— e pior eram absolvidos por “legítima defesa
da honra” -- e alardeando
intransigentemente os direitos da mulher “que são,como todos nós,
sujeitas, às influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas
amizades, os seus gostos, os seus amores".
De modo geral, Lima interpretava,
denunciando, a atitude
violenta dos homens por força de
eles se sentirem donos, proprietários das mulheres com as quais se relacionavam,
não admitindo ser preteridos.Defendia com vigor a mulher e clamava que as deixem amar à vontade, “não as matem,
pelo amor de Deus !"(crônica “Não as matem”).
Incondicionalmente sustentava que devia-se, isto sim, “condenar o matador conjugal”, que
conforme a nefasta concepção dos crimes executados “em nome de uma honra
familiar,lava- a matando a mulher",
a qual face à opressão de que via de regra era vítima,pelo homem e pelas ‘regras’
da sociedade, tem todo o direito de não
amá-lo mais. Repudiava veementemente
este tipo de crime -- crime muito mais
grave do que o adultério era o do assassinato , ato premeditado, não movido por
um impulso de momento -- pois "as constantes absolvições de uxoricidas dão
a entender que a sociedade nacional, por um dos seus mais legítimos órgãos, a
admite como normal e necessária" – em sessões nas quais era julgada não a
atitude criminosa do homem mas a conduta
sexual da mulher, que de vítima tornava-se ré : defendia-se o uxoricida atacando a honra feminina,acusada a mulher de “desavergonhada”.Acusava essa prática que
além do mais funcionava como um estímulo
para que tais crimes continuassem ocorrendo: para ele, o julgamento de crimes
de uxoricídio deveriam ser desvinculados da apreciação da conduta sexual
feminina e da ideologia dominante que exigia do sexo feminino a fidelidade
absoluta -- o que deveria ser sentenciado era o assassínio em si.
a mulher e a sociedade
A rigor, esses textos barretianos devem ser compreendidos a partir da
posição de Lima face ao casamento e ao adultério – visto este como forma de revolta da mulher contra a sociedade
que lhe apresenta um homem como dotado de predicados excepcionais; para ele, não proveniente de motivação física, sexual, e sim originário da
concepção de casamento instituída pela sociedade, cuja única vítima é a mulher , impossibilitada de
realizar nele a sua natureza sentimental, vendo-se obrigada, fora dos canais
convencionais, a procurar o homem que deseja e a realize.
Lima Barreto, convém frisar,
respeitava o casamento e o entendia como o meio quase único de
realização plena do sexo feminino – cita o alemão Krafft-Ebbing, “a profissão
da mulher é o casamento”(crônica “A amanuense”): insistia na imperiosidade da relação franca e elevada que
deveria regular a vida matrimonial --“entre os dois só deve haver a máxima
lealdade, todos os dois devem entrar na sociedade conjugal com a máxima boa
vontade e admiração um pelo outro”-- em prol dos valores que caminhavam para o
desaparecimento ou deterioração na sociedade burguesa da época.
Não deixava, contudo, de ater-se à realidade concreta do que era o
casamento nessa sociedade republicana burguesa: para o homem, uma espécie de
“transação comercial”, reduzindo a mulher, em última instância, a uma “escala
para subir” – como Numa Pompílio de Castro, que só se casara com d. Edgarda
Cogominho para poder ascender na
carreira política, já que o pai dela era um dos proeminentes políticos no meio
nacional (novela Numa e a ninfa); em
contrapartida, a mulher procuraria encontrar sua realização e dedicar-se a um ‘homem superior’ – que a sociedade definia
ser o doutor, ela via de regra se
deixando levar por essa equivocada conceituação, gerando,em certos casos, a
decepção, que a induzia à busca de ‘alternativas’ : ao ter a revelação da face
real do marido, desiludida no casamento, decepcionada, procurava fora do
matrimônio alguém ‘superior’ a quem pudesse dedicar sua natureza sentimental insatisfeita. -- caso de d. Laura (conto “O
filho de Gabriela”), casada com o conselheiro Calaça.
Lima entendia ser o amor eterno praticamente impossível, sabia ser
intrínseco à condição e natureza humanas a mutação dos sentimentos – e em especial, responsável
pelas transformações sentimentais, sensoriais e afetivas femininas. Daí
enxergava a temporalidade do casamento, sua ‘não eternidade’, e preconizava o
direito feminino de interrompê-lo, em ter
liberdade de escolha, buscar outro amor ao ter o casamento fracassado(ao
contrário de d. Laura, quem vai encontrar no amante,dr. Benevenuto, “o que lhe
exigiram a imaginação e a inteligência”, o homem superior que não há no marido
é justo Edgarda, em Numa e a ninfa) e com isso praticar o adultério – não aceito e
punido pela sociedade, sem merecer no entanto vir a ser assassinada....
A defesa barretiana da mulher não se limitava à explicação da raiz do
adultério: ia mais além, propondo a instituição do divórcio – como nas crônicas
“No ajuste de contas” e “Como
budistas....” -- e uma reformulação jurídica da instituição do casamento , com
propostas que, convertidas em lei, atingiriam no cerne todas as deformações
implícitas no matrimônio, propiciariam a libertação da mulher do estado
degradante que lhe era imposto e eliminariam o direito consuetudinário e quase
legal de o marido poder praticar o uxoricídio em caso de adultério.
feminismo
Casamento, adultério feminino, divórcio, uxoricídio constituem
pressupostos à suposta - e equivocada - posição ‘anti-feminista’ de Lima
Barreto. Opunha-se, isso sim, às forma,métodos,práticas e posturas do movimento
feminista da época.
O movimento feminista brasileiro, iniciado no fim da década de dez
séculos, antes de surgir como um bloco coeso, dividiu-se já em suas origens em
algumas ramificações cada uma delas com líderes próprios e com algumas
reivindicações idênticas e outras particulares, verdadeiras bandeiras das
facções ou, como dizia Lima Barreto, das
“igrejas” ou “seitas”. Eram quatro: a de Mme Chrysanthème que “quer, para a
mulher, a plena liberdade do seu coração, dos seus afetos, enfim dos seus
sentimentos” (crônica “No ajuste de contas”); a liderada por Leolinda Daltro,
denominada “Partido Republicano Feminino”, propugnando pelo direito da mulher; a
de Berta Lutz, sob o nome de “Liga pela
Emancipação Intelectual da Mulher Brasileira” que tinha como bandeira a luta
pelo ingresso da mulher na burocracia; e a facção conhecida por “Legião da
Mulher Brasileira” que nomeara como presidente de honra a esposa do Presidente
da República, d. Mary Saião Pessoa, contando também com o apoio da Igreja
Católica. A principal reivindicação que as unia era a extensão do direito de
voto à mulher.
Lima Barreto reduzia as facções a duas: o feminismo sufragista e o
feminismo burocrático; o primeiro de “propriedade” de Leolinda Daltro (que aparece como Deolinda
nas crônicas; e na novela Numa e a ninfa,
como a personagem Florinda Seixas) e o segundo de Berta Lutz ; à entidade de Mme
Chrysanthème não dava muita importância e quanto à “Legião da Mulher
Brasileira” se restringia a ironizar o caráter oficial da entidade.
Leolinda (ou Deolinda) Daltro e
Adalberta Lutz, que capitaneavam as posições feministas da época, eram
os maiores objetos das críticas – contundentes, irreversíveis – de Lima. Com
tais ‘lideranças’, dizia Lima, as
reivindicações feministas de sua entidade não estavam a propugnar por uma
elevação da mulher, mas voltadas unicamente para elas,preocupadas apenas em pleitear o direito de voto para que uma faixa da elite pudesse usufruir
das vantagens que estavam limitadas à cúpula política masculina. Até porque
Lima não via no voto um elemento por meio do qual pudesse ser reformada a
situação na Republica Velha – portanto o que as feministas pleiteavam pouco significava,
era mera acomodação ao sistema montado,
ao qual ele nunca deixou de se opor. A denúncia de Lima contra o movimento
feminista centrava-se em sua conivência com as práticas políticas de então, em
termos de corrupção, favorecimento,
clientelismo, oportunismo.
Além do mais,e isso para Lima constituía questão crucial, o feminismo,
como então praticado, esquecia-se totalmente da mulher pobre e da mulher negra
– ambas, aliás, observava ele, tendo já conquistado lugar de operária, sem
movimentos feminista, nas fábricas de tecidos e nas livrarias como
empacotadoras de livros.(“Pergunto: esta
mulher [uma velha negra] precisou do feminismo burocrata para trabalhar, e não
trabalha ainda, apesar de sua adiantada velhice?”- crônica “Voto
feminino”).
Neste particular, vale realçar que Lima
não só acatava a profissionalização da mulher -- mas causava-lhe aversão ser ela realizada com intuitos
interesseiros, circunscrita a benefícios para poucos e no
proteger os já privilegiados; acusava “a maneira irregular e ilegal que tem presidido o provimento desses
cargos,por moças e senhoras” (crônica “Voto feminino”) -- não lhe negando capacidade e condições de exercer um cargo
público, por exemplo; como também propunha o aumento do número de Escolas
Normais para que as mulheres tenham melhor educação e com isso pudessem desempenhar papel importante na formação da
criança, quer na escola, quer em casa (cf. crônicas do grupo “Educação
feminina” e em “A poliantéia das burocratas”)..
Desse modo, segundo ele, as proposições profissionalizantes e
eleitoreiras dos movimentos feministas apenas tinham em vista dar
possibilidades de realização aos atributos menos importantes da mulher e como bandeira a aspiração do menos elevado,
fazendo a mulher simplesmente obter igualdade aos medíocres que compunham o
sistema.Para Lima, e sua concepção tão
elevada da mulher, ela atuando junto ao homem, as exigências do feminismo só
podiam ser encaradas como rebaixamento da condição feminina, portanto,
censuráveis.
Em outro viés, enfatizando a deterioração do casamento como motivo do
aviltamento da mulher, só reconheceria grandeza no movimento feminista da época
se atacasse esse problema central: não o fazia,
ignorava-o. – “(...) contra tão
desgraçada situação de nossa mulher, edificada com a estupidez burguesa e a
superstição religiosa, não se insurgem os borra-botas feministas que há por aí (...).-crônica
“Voto feminino”).
Lima Barreto não via no
movimento feminista nada de grandioso, de heróico, de superior, mas sim uma
articulação feminina burguesa para meramente conseguir, por meios não legais,
cargos públicos, onde a mulher, em lugar de realizar a sua natureza mais nobre,
iria ter a possibilidade de exercitar o seu lado, segundo ele, mais vulgar. Via
o movimento como eminentemente elitista, que nada mais buscava além de estender
às mulheres os privilégios de que gozavam os medíocres que compunham o sistema.
Sem o mínimo pendor social, limitava-se tão somente a reivindicar direito a voto e a cargos públicos,
constituía-se em aglutinação para tentar obter a extensão às mulheres das
regalias de que gozavam os membros masculinos dos grupos dominantes.
De notável e inquestionável consciência social, avesso a qualquer forma
de autoritarismo, intransigente
denunciante do drama das minorias no Brasil do final do século XIX
-- negros e mestiços excluídos do
mercado de trabalho no período pós-abolição, a exploração dos operários – Lima
Barreto tratou com vigor a opressão contra as mulheres, não as que ele chamava
“burguesa republicana alienada”,mas principalmente as humildes, pobres, algumas
delas mulatas, submetidas a uma sociedade machista e injusta, submissas a pais
ou padrastos ou irmãos, ou maridos ou noivos ou namorados dominadores e
agressivos, a patrões e senhores exploradores,e em especial carentes de
oportunidades de educação e limitadas a formação educacional e cultural
insuficiente, alijadas de círculos sociais.
educação da mulher
Especial era o olhar que Lima dedicava à formação escolar da mulher e ao processo
educativo a elas estabelecido. Foi acerbado crítico da carência de
oportunidades educacionais às mulheres, e veemente defensor da obrigatoriedade
de serem a elas conferidas melhores possibilidades de educação – o que, de
resto, apenas confirmava a posição analítico-reflexiva que dispensava à mulher
em sua ficção e nãoficção .
Na verdade, a maioria das mulheres do início do século via a educação simplesmente como um meio para
se fazerem mais agradáveis a seus companheiros ; não buscavam por uma
emancipação intelectual – o que justamente levava Lima a propugnar por melhores oportunidades educacionais para
o sexo feminino. As mulheres,via de regra, mantinham-se circunscritas à esfera
do lar, refletindo os padrões culturais da época: predominava
o conceito de ser a mulher mais sentimental e amorosa do que intelectiva
e filosófica. Segundo Lima, era essa essencialmente a causa de infelicidade
existencial e conjugal da mulher. Além disso, estudavam ,em sua maioria, em
colégios religiosos, o que era acentuadamente criticado por ele, sugerindo para
as mulheres uma educação mais aberta, mais completa, mais eficiente.
Lima sustentava que somente por meio de uma instrução mais aprimorada a
mulher, como ‘alicerce da família’, poderia abrir seus horizontes e dispor
da competência necessária para educar os
filhos com discernimento. Para ele, a instrução feminina contribuía de forma
decisiva para a do homem e seu engrandecimento enquanto cidadão: da educação
dada aos filhos dependia o destino das gerações e conseqüentemente da sociedade.
mr
sábado, 8 de março de 2014
Quem tem medo da literatura feminina / feminista ?
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Preconizada por Virginia Woolf, na década de 1930
[Virginia, irônica e realista, em conferência para jovens universitárias
inglesas no Giron College, estabelecia as condições mínimas para que as
mulheres atravessassem a fronteira física e psíquica da criação literária, ao
declarar : “tendo um quarto para si e renda própria” -- ditames abrigados no
livro A Room of One’s Own (Um quarto todo seu.) ], defendida pelas feministas européias de 1970, uma ‘escrita feminina’
ganhou corpo (e forma) na literatura .
Mulheres escritoras (ficcionais e não-ficcionais) passaram
a ter – ou adquiriram, por ‘méritos próprios de qualidade e personalidade -- voz própria, estilo próprio, linguagem
própria, temática própria, longe de “simplesmente reproduzirem modelos
falocêntricos, caracterizados por racionalismos e pragmatismos” acentua a ensaísta Luce Irigaray:
Qual seria afinal
uma ‘linguagem feminina’, como se expressa
um discurso essencialmente
‘feminino’? existe afinal uma voz
especificamente feminina ?
Apesar das (para alguns, incontornáveis) dificuldades
para uma definição precisa, entendo -- e
sustento, convicto -- existir uma linguagem literária feminina com elementos,
valores e vetores próprios, nitidamente percebidos na prosa ficcional, na
poesia e no teatro, e que só fazem
acrescentar e enriquecer a Literatura (e a Cultura, em geral) – linguagem marcada
pela subjetividade, por uma escrita mais sensorial e sensível, mais poética,
lírica , uma escritura com ‘o corpo e a alma’.
Na ficção feminina, o (originariamente ditado pelos
cânones românticos) amor -- condimentado pelo erotismo, por vezes intenso --
deixa de ser tema absoluto para ceder espaço a sondagens existenciais, e até ao
questionamento político e filosófico. Tudo isso traduzido e materializado em
experiências formais e estilísticas : fragmentação narrativa, o ritmo
‘labiríntico’ no lugar da estrutura
linear, intertextualidade, tendência a impregnar a escrita com elementos
de oralidade, foco narrativo
múltiplo, intenso fluxo-de-consciência..
Certamente pode-se encontrar desses elementos na
denominada ‘literatura masculina’– e efetivamente encontra-se: como negar serem
essencialmente ‘femininas’ a linguagem literária, o estilo, a escrita de Marcel
Proust, de Flaubert, de Balzac, ou muitas passagens de Tolstoi, e mesmo de
Shakespeare, para citar gigantes da literatura universal – o que,de algum modo,
desmistificaria esse tipo de distinção acentuada, da qual, enfatizo, não sou
partidário. Gratifica-me bastante acentuar que a escrita feminina, marcante
como é, ostenta suas características próprias, peculiares, plena de,digamos,
‘personalidade literária’, assim como a possui,em sua devida proporção, a
‘literatura masculina’.
E no que enfatizo as
concretas existência e expressão de uma literatura feminina,vis a vis com uma ‘literatura masculina’ [sic -- longe muito longe de ratificar, conforme
certas críticas de contingentes assumidamente feministas, uma indesejável,digna
de repúdio, “divisão de sexos”-- ao
contrário justamente confiroe identidade própria e plena personalidade às
linguagem,escrita e estilo praticados literariamente pela mulher.
A meu juízo, valorizo-as, enalteço-as, dignifico-as.
MR
.
_______________
uma escrita feminina brasileira, sim
Muitos constataram — e
comprovaram — a influência negativa da literatura em relação à posição da
mulher na sociedade, "os literatos, romancistas e poetas explorando a
concuspicência, a imoralidade e a luxúria que chamam amor; e naturalmente como
nas relações entre senhor e escrava só pode haver obscenidade, os homens de
talento produziram montanhas de livros onde a patologia mundana do amor é
rebuscada ao mais íntimo e profundo limite." Com o tempo e a evolução dos
conceitos sociais, almejada uma efetiva
mudança na sociedade, tornou-se imperativo repensar a condição feminina,
enxergando a mulher, não como um complemento da família, mas como importante
agente de mudanças pela função que exerce na sociedade.
No Brasil, o surgimento de mulheres
escritoras ocorre principalmente a partir do século XIX, no contexto da
crescente importância da imprensa e do início de movimentos em prol dos
direitos das mulheres. Quando as questões relativas à emancipação feminina
começaram a aparecer na imprensa, as mulheres se organizavam associativamente e
passaram a reivindicar maior participação na sociedade em mudança. Ocorreram
então os primeiros movimentos organizados tendo como principal objetivo a
melhoria das condições de vida da mulher — desde que orientada pela ótica
masculina. [afinal, na constituição da
família brasileira sempre imperou o pater
familias, ou seja, o poder nas mãos
do homem, responsável não só por seus escravos e agregados como também por sua
mulher, filhos e netos — a família patriarcal como a célula mais importante da
formação da sociedade; este poder social do homem advinha do direito
consuetudinário e as próprias leis brasileiras asseguravam-lhe autoridade : os
direitos civis no Brasil, basicamente, até 1890, eram uma extensão dos de
Portugal, isto é, eram regidos pelas Ordenações Filipinas — o primeiro Código
Civil Brasileiro só vigorou a partir de 1917. Na família monogâmica, criada
para preservar o poderio econômico dentro de um mesmo grupo sangüíneo,
exigia-se que a sexualidade feminina fosse rigorosamente controlada, pois era a
única forma de que o homem dispunha para assegurar a paternidade e a herança
familiar. ]
O que não impediu, porem, a
formação de uma linhagem de mulheres militantes dentro da literatura (como
personagens ou como autoras) e da sociedade (na militância política, por meio
sobretudo do veículo jornalístico) que desenvolveram trabalho emancipatório
preparador das condições que propiciariam, no século XX, a implementação e
solidificação de um movimento que se poderia
chamar de estética feminista.
Na literatura brasileira,
considera-se o romance Úrsula (1859),
da maranhense Maria Firmina dos Reis, a primeira narrativa de autoria feminina.
O romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a
donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da
história. Contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da
protagonista, vítima da sanha do cruel perseguidor.
No entanto, de modo geral
a escrita praticada por mulheres esteve
ausente dos anos decisivos para a formação da literatura brasileira durante o
século XIX , na vigência do Romantismo – o que soa algo inusitado, porquanto
justamente a mulher como leitora foi o grande,crucial, basilar
elemento,primeiro pela
prática de leitura no país, responsável pela existência e proliferação de
escritores e da própria literatura
brasileira. Se não totalmente ausente do mercado, restrita a
colaborações em periódicos de vida curta ou de público definido pela circulação
no espaço doméstico (o que, de resto, significa em meados dos 1800 uma confirmação antecessora
à interpretação de Virgina Woolf,
da década de 1930).. As primeiras manifestações de escrita feminina levadas
oficial e intensamente ao público externo vieram no final do século XIX, já na
‘vigência’ do Realismo na literatura brasileira [paradoxal ? seria o
Romantismo ‘mais apropriado’ para a
expressão da écriture féminine?,
reflito...]
Loas, todas as loas,
portanto, para as pioneirissimas Rita
Joana de Souza, Ângela do Amaral Rangel, Barbara Heliodora, Maria Josefa
Barreto, Beatriz Francisca de Assis Brandão, Maria Clemência Silveira, Delfina
Benigna da Cunha, Ildefonsa Laura Cesar, Ana Euridice de Barandas, Nisia
Floresta, Violante de Bivar e Velasco, Alta de Souza, Clarinda da Costa
Siqueira, Joana Paula de Noronha, Ana Luisa de Azevedo Castro, Maria Firmina
dos Reis, Adelia Fonseca, Maria Benedita de Oliveira Barbosa (Zaira Americana),
Maria Angélica Ribeiro, Isabel Gondim, Maria do Carmo de Melo Rego, Rita Barém
de Melo, Joaquina Meneses de Lacerda, Ana Ribeiro, Julia da Costa, Amália
Figueiroa, Luciana de Abreu, Serafina Rosa Pontes, Adelina Vieira, Josefina
Álvares de Azevedo, Carmem Dolores, Narcisa Amália, Gabriela de Andrada, Maria
Benedita Bormann, Inês Sabino, Anália Franco, Delminda Silveira, Adelaide de
Castro Guimarães, Honorata Carneiro de
Mendonça, Carmen Freire, Emilia Freitas, Vitalina de Camargo Queirós, Ana Facó,
Francisca Izidora da Rocha, Maria Carolina Corcoroca de Souza, Ana Autran, Corina
Coaraci, Luísa Leonardo, Alexandrina Couto dos Santos, Ana Aurora do Amaral
Lisboa, Revocata Heliosa de Melo, Anna Alexandrina Cavalcanti de Albuquerque.
Até entrarmos o século XX com Júlia Lopes de Almeida, chegar a Gilka Machado e
Maria Lacerda de Moura.
[ sob o terrível risco de não
elencar aqui todas as escritoras de hoje, o que seria praticamente impossível,contemporaneamente
a escrita feminina brasileira encontra
expoentes, entre outras, em: Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria
Alice Barroso, Maria Helena Cardoso,Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles,
Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César ,Hilda Hist, Adélia Prado, Lya
Luft,Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Nilma
Gonçalves Lacerda, Maria Adelaide Amaral, Luzilá Gonçalves Ferreira, Myriam
Campelo. E entre as mais novas, Heloisa Seixas, Patricia Melo, Fernanda Young ;
e nas novissimas, Carmen Oliveira, Adriana Lisboa, Maria Conceição Góes, Clarah
Averbuck, Cíntia Moscovich , Leticia Wierzchowski. O ensaísmo abriga Flora
Sussekind, Heloisa Buarque de Holanda, Leyla Perrone-Moisés, Walnice Nogueira
Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Nelly Novaes Coelho, Marisa Lajolo,
Marilena Chuaí, Marilene Felinto, Eliane Vasconcelos, Beatriz Resende. E outras e outras e outras,
muitas outras...]
os homens e as mulheres
Naquele século XIX e na primeira quadra do século XX,
no entanto, não foram apenas elas que escreveram ‘sobre elas ou para elas’:
quatro escritores-homens se destacaram
por voltar-se, em graus e enfoques diferentes, para as mulheres.: Joaquim
Manuel de Macedo descreveu-a e tratou-a como “donzela de irrepreensíveis
pendores” em especial em A Moreninha e em
inúmeros contos. José de Alencar traçou o mais completo
retrato da mulher ‘urbana’ da corte, no Brasil pós-Independência, no auge do
romantismo, notadamente na trilogia Senhora, Diva e Lucíola, além de
nas novelas Cinco minutos e
A
viuvinha ,e nos romances A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação.
Há de se destacar, porém, Lima
Barreto: debruçou-se como ninguém sobre a mulher ‘republicana’ : primeiro na
década de 1910, ao desenvolver o “tema de Carmen” , uma série de artigos e
crônicas em jornais e revistas nas quais a propósito de crimes ou
julgamentos, ataca os homens “que se
atribuem direitos sobre a vida das mulheres”, denunciando crimes de uxoricídio,
nos quais homens matavam “mulheres infiéis”— e pior eram absolvidos nos
julgamentos por “legítima defesa da honra”; e ao longo de toda sua produção
croniquesca em jornais e revistas tratar de questões como movimento feminino,
voto feminino, direitos femininos.
A rigor, Lima Barreto , que
nunca silenciou sobre seu tempo, não poderia mesmo ficar alheio à situação da mulher na
realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas
transformações na sociedade. Retratou e a fez personagem em contos e romances, escreveu sobre a mulher em
artigos e crônicas, publicadas em jornais e revistas — sob um caráter de ambigüidade,ora a criticando, por
vezes atacando, ora a defendendo, muitas vezes enaltecendo : diz-se
“antifeminista”, põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas
defende a necessidade de instrução para a mulher ; repele o ingresso da mulher
no serviço público (“... rendosos cargos
para as mulheres das classes sociais mais favorecidas : e as reivindicações das
operárias ?...”), mas defende o divórcio ; imbuído da moral do seu tempo,
retrata a mulher pela ótica comum, Lima
destila sua ácida ironia crítica sobre a
mulher ,mas denuncia sua “absurda” situação de dependência aos homens . Longe,
muito longe da falsa, equivocada acusação de
misoginia, posicionado na realidade contra o movimento feminista
brasileiro — o que ele denominava “feminismo bastardo, burocrata”— não contra
as mulheres,e sim como ojeriza aos signos do progresso republicano, Lima
Barreto sempre dá à mulher espaço significativo em sua obra ficcional e
não-ficcional : nos romances, contos, artigos e crônicas, apontamentos e notas,
comenta a situação da mulher perante o casamento; a viuvez; as oportunidades
educacionais e profissionais; a moral que lhe é imposta pelo duplo valor; a
desigualdade de julgamento do adultério masculino e do feminino; o mundo da
prostituição e o início do movimento feminista no Brasil — e sobretudo defende
intransigentemente a mulher “que são “como todos nós, sujeitas, às influências
várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos,
os seus amores". Uma ambigüidade implícita e explícita em seus artigos não
permeia o retrato da mulher elaborado em seus romances, novelas e contos, em
que elas têm sempre atitude e
comportamento progressista, são superiores aos maridos (exemplos de Olga e
Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara
dos Anjos; Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário
íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; muitas outras em
contos, etc)
Porém, nenhum escritor
brasileiro do período ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como
Machado de Assis. Ele escrevia sobre
mulheres e para mulheres. Amores e frustações femininos eram temas constantes,
sempre presentes o ciúme, o adultério, a prostituição, e as personagens
femininas ocupam lugar privilegiado, lugar de destaque em todos os romances e
na maioria dos contos.E mais :Machado sempre escreveu para periódicos cujo
público era predominantemente feminino, primeiro no Jornal das Famílias ,depois em A
Estação.
Nas entrelinhas de seus contos,
romances, e também de suas crônicas, Machado sempre chamou atenção para as
necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras: argumentava
que a mulher devia receber instrução e não ficar confinada à vida doméstica,
tendo direito ao amor e à liberdade -- daí, seus temas mais constantes: o ciúme
e o adultério. Machado trouxe à luz a questão da sexualidade feminina ,a
exemplo de Flaubert, Balzac, Eça, e mais tarde Freud . [aliás, como Roberto Schwarz
diz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25
anos depois” -- nos romances, principalmente da ‘segunda fase’, Machado capta
de forma aguda, a la Freud, as
sutilezas do ‘discurso do desejo inconsciente’,
descreve conflitos e enfatiza o inconsciente, sua obra como o principal
elemento/vetor de pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise ; a
percepção acentuada do funcionamento do psiquismo humano na verdade vem desde
as primeiras obras.]
Na maioria dos romances, a
mulher é o elemento forte, põe o homem dependente, é também o esteio, a base da
relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, a
figura masculina sendo até desnecessária; é comum no romance machadiano, que retrata a
sociedade de seu tempo, mulheres fortes, viúvas que não mais casam, como em Iaiá Garcia, Dom Casmurro, Casa Velha,
Memorial de Aires. Em toda sua obra,
Machado enfatizou o personagem feminino: mesmo em sua primeira fase, Livia,
Guiomar, Helena, Iaiá Garcia, Lalau já dominavam; na segunda fase, as mulheres --
Marcela, Virgília, Sofia, Capitu, Fidélia, Carmo --são personagens de grande
densidade psicológica
Um número surpreendente de
contos são o que pode ser catalogado como
‘estudos sobre a mulher’: “Singular ocorrência”; “Capítulo dos chapéus”;
“Primas de Sapucaia!”; “Uma senhora”; “Trina e una”; “Noite de almirante”; “A senhora do Galvão”;
“Missa do galo”; “D. Paula”, encenam vários tipos femininos e situações com as
quais as mulheres se defrontam na vida comum . Em todos, estão presentes os
elementos básicos da ficção machadiana: ciúme, adultério, e prostituição.
Para muitos estudiosos, Machado
era mesmo ‘feminista’ (eu, particularmente, não chego a tanto...)-- e a cada
leitura de seus contos, romances e
crônicas nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo.
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mço.2014
segunda-feira, 3 de março de 2014
Carnaval e Futebol
pelo olhar crítico de Lima Barreto -- que a ambos, carnaval e futebol, dados como "paixões brasileiras",repudiava não por eles em si mas pelas injunções e incidências de elementos sociais e ideológicos.
na crônica de 7 fevereiro 1922, ambas as manifestações já bastante popularizadas e devida e solidamente implementados na sociedade e na vida prática carioca, recebem de Lima dupla e integrada menção, destilada sua contumaz ironia crítica, no cenário de seu amado subúrbio.
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na crônica de 7 fevereiro 1922, ambas as manifestações já bastante popularizadas e devida e solidamente implementados na sociedade e na vida prática carioca, recebem de Lima dupla e integrada menção, destilada sua contumaz ironia crítica, no cenário de seu amado subúrbio.
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Bailes e divertimentos suburbanos
Gazeta de Notícias, 07.02.1922.
Há
dias, na minha vizinhança, quase em frente à minha casa, houve um baile. Como tinha passado um mês enfurnado na
minha modesta residência, que para enfezar Copacabana denominei "Vila
Quilombo", pude perceber todos os preparativos da festa doméstica: a
matança de leitões, as entradas das caixas de doces, a ida dos assados para a
padaria, etc.
Na noite do baile, fui deitar-me
cedo, como sempre faço quando me resolvo a descansar a sério. Às 9 horas, por
aí assim, estava dormindo a sono solto. O baile já havia começado e ainda com
algumas polcas repinicadas ao piano. Às 2 e meia, interrompi o sono e estive acordado
até às 4 da madrugada, quando acabou o sarau. A não ser umas barcarolas
cantadas em italiano, não ouvi outra espécie de música, a não ser polcas
adoidadas e violentamente sincopadas, durante todo esse tempo.
O dia veio se fazer inteiramente. Levantei-me da cama e, dentro em breve, tomava o café matinal em companhia de meus irmãos.
Perguntei a minha irmã, provocado pela monótona musicaria do baile da vizinhança, se nos dias presentes não se dançavam mais valsas, mazurcas, quadrilhas ou quadras, etc. Justifiquei-lhe o motivo da pergunta.
- Qual! - disse-me ela. - Não se gosta mais disso... O que apreciam os dançarmos de hoje, são músicas apolcadas, tocadas "a la diable", que servem para dançar o tango, fox-trot, rang-time, e...
- "Cake-walk"? - perguntei.
- Ainda não se dança, ou já se dançou; mas agora, está aparecendo um tal de "shimmy".
Nunca vi dançar tal coisa, nem me tenta vê-lo; mas a informação me fez lembrar do que era um baile familiar há vinte anos passados. O baile, não sei se é, era ou foi, uma instituição nacional, mas tenho certeza de que era profundamente carioca, especialmente suburbano.
Na escolha da casa, presidia sempre a capacidade da sala de visitas para a comemoração coreográfica das datas festivas da família. Os construtores das casas já sabiam disso e sacrificavam o resto da habitação à sala nobre. Houve quem dissesse que nós fazíamos casa, ou as tínhamos para os outros, porque a melhor peça dela era destinada a estranhos.
Hoje, porém, as casas minguam em geral, e especialmente, na capacidade dos seus aposentos e cômodos. Nas salas de visitas das atuais mal cabem o piano e uma meia mobília, adquirida a prestações. Meia dúzia de pessoas, numa delas, estão ameaçadas de morrer asfixiadas com as janelas abertas. Como é que elas podem comportar um baile à moda antiga, em que dançavam dúzias de pares? Evidentemente, não. Isto acontece com as famílias remediadas; com as verdadeiramente pobres, a coisa piora. Ou moram em cômodos ou em casitas de avenidas, que são um pouco mais amplas do que a gaiola dos passarinhos.
Por isso entre a gente média os bailes estão quase desaparecendo dos seus hábitos; e, na gente pobre, eles ficaram reduzidos ao mínimo de um concerto de violão ou a um recibo de sócio de um clube dançante na vizinhança, onde as moças vigiadas pelas mães possam pirutear em salão vasto.
O meu amigo Sussekind de Mendonça, no seu interessante livro O esporte está deseducando a mocidade brasileira , refere-se à licenciosidade das danças modernas.
Hei de falar mais detidamente sobre esse vigoroso livro: agora, porém, cabe só uma observação. Mendonça alude ao que se passa no "set" carioca; mas pelo que me informam, o subúrbio não lhe fica atrás. Nos tempos idos, essa gente verde das nossas elegâncias - verde é sempre uma espécie de argot - sempre mutável e variável de ano para ano, - desdenhava o subúrbio e acusava-o falsamente de dançar maxixe; hoje, não há diferença: todo o Rio de Janeiro, de alto a baixo, incluídos os Democráticos e o Music-Club das Laranjeiras, o dança.
Há uma coisa a notar: é que esse maxixe familiar não foi dos "Escorregas" de Cascadura para o Acchilleon do Flamengo; ao contrário, veio deste para aquela.
O meu estimado Mendonça atribui o "andaço" dessas danças desavergonhadas ao futebol. O sr. Antônio Leão Veloso achou isso exagerado. Pode haver exagero - não ponho em dúvida tal coisa - mas o tal de futebol pos tanta grosseria no ambiente, tanto desdém pelas coisas de gosto, e reveladoras de cultura, tanta brutalidade de maneiras, de frases e de gestos, que é bem possível não ser ele isento de culpa no recrudescimento geral, no Rio de Janeiro, dessas danças luxuriosas que os hipócritas estadunidenses foram buscar entre os negros e os apaches. Convém notar que, entre esses retardados exemplares da nossa humanidade, quando em estado selvagem, semelhantes danças não têm a significação luxuriosa e lasciva que se julga. Fazem parte dos rituais dos seus Deuses, e com elas invocam a sua proteção nas vésperas de guerras e em outras ocasiões solenes.
Passando para os pés dos civilizados, elas são deturpadas, acentuadas na direção de um apelo claro à atividade sexual, perdem o que significavam primitivamente e se tornam intencionalmente lascivas, provocantes e imorais.
Isto, porém, não nos interessa, porque não interessa tanto ao subúrbio como ao "set" carioca, que dançam "one-step" e o tango argentino, e nessas bárbaras danças se nivelam. O subúrbio civiliza-se, diria o saudoso Figueiredo Pimentel, que era também suburbano; mas de que forma, santo Deus?
Quando fui morar naquelas paragens não havia noite em que voltando tarde para casa, não topasse no caminho com um baile, com um chôro, como se dizia na gíria do tempo. Havia famílias que davam um por mês, fora os extraordinários, e havia também cavalheiros e damas que não faltavam a eles, além de irem a outros de famílias diferentes.
Eram célebres nos subúrbios, certos rapazes e moças, como tipos de dançarinos domésticos. Conheci alguns, e ouvi muitos falar neles. Lembro-me bem, dentre eles, de uma moça que, às vezes, atualmente ainda encontro, gordinha, com dois ou três filhos que lhe dão um imenso trabalho para acomodar nos bondes. Chamavam-na Santinha, e tinha uma notoriedade digna de um poeta de "Amor" ou de um gatimanhas de cinematógrafo. Não' era bonita na rua, longe disso. A sua aparência era de uma moça como muitas outras, de feições miúdas, sem grande relevo, cabelos abundantes e sedosos. Tinha, porém, um traço próprio, pouco vulgar nas moças. A sua testa era alta e reta, testa de deusa a pedir um diadema. Era estimada como discipula de Terpsícore burguesa. A sua especialidade estava na valsa americana que dançava como ninguém. Não desdenhava as outras contradanças, mas a valsa era a sua especialidade. Dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, só nos dias de luto da semana santa e no de finados, não dançava. Em todos os mais, Santinha valsava até de madrugada. Dizia a todos que, por tanto dançar não tinha tempo de namorar. De fato, sempre requestada para esta e aquela contradança, via tantos e tantos cavalheiros, que acabava não vendo nenhum ou não firmando a fisionomia de nenhum.
Se não era bela na rua, em atitude comum de passeio, valsando ficava outra, tomava um ar de sílfide, de divindade aérea, vaporosa e adquiria um ar esvoaçante de visão extra-real. Fugia ao solo e como que pairava no espaço...
Os que a viram dançar e me falam dela, até hoje não escondem a profunda impressão que a moça, ao valsar, lhes causou; e quando hoje, por acaso, a encontro atrapalhada com os filhos, penso de mim para mim: para que essa moça se cansou tanto? Chegou afinal ao ponto em que tantas outras chegam com muito menos esforço...
O "pendant" masculino de Santinha era o seu Gastão. Baile em que não aparecia seu Gastão, não merecia consideração. Só dançava de "smoking", e o resto do vestuário de acordo. Era um rapaz de boa altura, simpático, grandes e bastos bigodes, de uma delicadeza exagerada; A sua especialidade não era a valsa; era o "pas-de-quatre", que dançava com ademanes de dança antiga, de minueto ou de coisa parecida. Fazia cumprimentos hieráticos e dava os passos com a dignidade e convicção artística de um Vestris. Seu Gastão ainda existe, e prosperou na vida. Quando rei suburbano do "pas-de-quatre" era empregado de um banco ou de um grande escritório comercial. Hoje é diretor-gerente de uma casa bancária, está casado, tem filhos, mora em Conde de Bonfim, numa vasta casa, mas raramente dá bailes. Dançou para a vida inteira e também pelos filhos e filhas.
Nesses bailes suburbanos, o mártir era o dono da casa: Seu Nepomuceno começava por não conhecer mais da metade da gente que, transitoriamente, abrigava, porque Cacilda trazia Nenê e esta o irmão que era namorado daquela - a única cuja família tinha relações com a do Seu Nepomuceno; e, assim, a casa se enchia de desconhecidos. Além destes subconvidados, ainda existiam os penetras. Chamava-se assim certos rapazes que, sem nenhuma espécie de convite, usavam deste ou daquele truque, para entrar nos bailes - penetrar.
Em geral, apesar da multidão dos convidados, essas festas domésticas tinham um grande cunho de honestidade e respeito. Eram raros os excessos e as danças, com o intervalo de um hora, para uma ceia modesta, se prolongavam até o clarear do dia sem que o mais arguto do sereno pudesse notar uma discrepância nas atitudes dos pares, dançando ou não. Sereno, era chamado o agrupamento de curiosos que ficavam na rua a espiar o baile. Quase sempre era formado de pessoas das vizinhanças e outras que não haviam sido convidadas e lá se postavam para ter assunto em que baseassem a sua despeitada crítica.
Esses bailes burgueses não eram condenados pela religião. Se algumas nada diziam, calavam-se. Outras até elogiavam. O puritanismo era francamente favorável a eles. Afirmava ele, pela boca de adeptos autorizados, que essas reuniões facilitavam a aproximação dos moços de dois sexos, cuja vida particular a cada um deles se fazia isoladamente, sem terem ocasião de trocar impressões, sem comunicarem mutuamente quais os seus anelos, quais os seus desgostos, favorecendo tudo isso os saraus familiares.
Estou certo de que os positivistas, hoje, julgariam que os atuais bailes aproximam por demais os sexos, e... "anathema sit".
O pequeno povo porém ainda não sabe o "fox-trot", nem o "shimmy". Nos seus clubes, ao som do piano ou de estridulantes charangas, dança ainda à antiga; e, no recesso do lar com um terno de flauta, um cavaquinho e violão ou sob o compasso de um prestativo gramofone, ainda volteia a sua valsa ou requebra uma polca, extraordinariamente honesta em comparação com os tais "steps" da moda.
Sem receio de errar, entretanto, pode-se dizer que o baile familiar e burguês, democrático e efusivo, está fora da moda, nos subúrbios. A carestia da vida, a exigüidade das casas atuais e a imitação da alta burguesia desfiguraram-no muito e tendem a extingui-lo.
O violão e a modinha que Catulo, com sua tenacidade, com o seu talento e a sua obediência cega a um grande ideal, dignificou e tornou capaz da atenção dos intelectuais, vão sendo mais prezados e já se fazem encantos dos saraus burgueses em que, pelas causas apontadas, as danças mínguam. É pena que para um Catulo, artista honesto, sob todos os pontos de vista, haja uma dezena de Casanovas disponíveis, que, maus de natureza e sem talento algum, se servem da arte reabilitada pelo autor de Sertanejo, a fim de, por intermédio de horríveis cantarolas, levarem a desgraça a lares pobres e perder moças ingênuas e inexperientes. Há por lá monstros desses que contam tais proezas às dezenas. É o caso de imitar o outro e escrever: "O Código Penal e a inutilidade das leis".
Uma outra diversão que, antigamente, os suburbanos apreciavam muito e hoje está quase morta, era a do teatrinho de amadores. Quase todas as estações tinham mantido um Clube. O do Riachuelo, teve a sua meia hora de celebridade; possuía um edifício de razoáveis proporções; mas desapareceu, e, atualmente, foi transformado em escola municipal. O que havia de característico na vida suburbana, em matéria de diversão, pouco ou quase nada existe mais. O cinema absorveu todas elas e, pondo de parte o Mafuá semi-eclesiástico, é o maior divertimento popular da gente suburbana.
Até o pianista, o célebre pianista de bailes, ele arrebatou e monopolizou.
Nada tem, porém, de próprio ao lugar, é tal e qual outro e qualquer cinema do centro ou qualquer parte da cidade em que haja pessoas cujo gosto de se divertir no escuro arrasta a ver-lhes as fitas durante hora e tanto.
O futebol flagela também aquelas paragens como faz ao Rio de Janeiro inteiro. Os clubes pululam e os há em cada terreno baldio de certa extensão.
Nunca lhes vi uma partida, mas sei que as suas regras de bom-tom em nada ficam a dever às dos congêneres dos bairros elegantes.
A única novidade que notei, e essa mesma não me parece ser grave, foi a de festejarem a vitória sobre um rival, cantando os vencedores pelas ruas, com gambitos nus, a sua proeza homérica com letra e música da escola dos cordões carnavalescos. Vi isto só uma vez e não garanto que essa hibridação do samba, mais ou menos africano com o futebol anglo-saxônio, se haja hoje generalizado nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto afiançar.
Resta-nos o Carnaval; é ele, porém, tão igual por toda a parte, que foi impossível, segundo tudo faz crer, ao subúrbio dar-lhe alguma coisa de original. Lá, como na Avenida, como em Niterói, como em Maxambomba, como em todo este Brasil inteiro, são os mesmos cordões, blocos, grupos, os mesmos versos indignos de manicômio, as mesmas músicas indigestas e, enfim, o Carnaval em que como lá diz Gamaliel de Mendonça, no seu último livro - Revelação: - Os homens são jograis; as mulheres, bacantes. -
O subúrbio não se diverte mais. A vida é cara e as apreensões muitas, não permitindo prazeres simples e suaves, doces diversões familiares, equilibradas e plácidas. Precisa-se de ruído, de zambumba, de cansaço, para esquecer, para espançar as trevas que em torno da nossa vida, mais densas se fazem, dia para dia, acompanhando "pari-passu" as suntuosidades republicanas.
Ele não mais se diverte inocentemente; o subúrbio se atordoa e se embriaga não só com o álcool, com a lascívia das danças novas que o esnobismo foi buscar no arsenal da hipocrisia norte-americana. Para as dificuldades materiais de sua precária existência, criou esse seu paraíso artificial, em cujas delícias transitórias mergulha, inebria-se minutos, para esperar, durante horas, dias e meses, um aumentozinho de vencimentos...
O dia veio se fazer inteiramente. Levantei-me da cama e, dentro em breve, tomava o café matinal em companhia de meus irmãos.
Perguntei a minha irmã, provocado pela monótona musicaria do baile da vizinhança, se nos dias presentes não se dançavam mais valsas, mazurcas, quadrilhas ou quadras, etc. Justifiquei-lhe o motivo da pergunta.
- Qual! - disse-me ela. - Não se gosta mais disso... O que apreciam os dançarmos de hoje, são músicas apolcadas, tocadas "a la diable", que servem para dançar o tango, fox-trot, rang-time, e...
- "Cake-walk"? - perguntei.
- Ainda não se dança, ou já se dançou; mas agora, está aparecendo um tal de "shimmy".
Nunca vi dançar tal coisa, nem me tenta vê-lo; mas a informação me fez lembrar do que era um baile familiar há vinte anos passados. O baile, não sei se é, era ou foi, uma instituição nacional, mas tenho certeza de que era profundamente carioca, especialmente suburbano.
Na escolha da casa, presidia sempre a capacidade da sala de visitas para a comemoração coreográfica das datas festivas da família. Os construtores das casas já sabiam disso e sacrificavam o resto da habitação à sala nobre. Houve quem dissesse que nós fazíamos casa, ou as tínhamos para os outros, porque a melhor peça dela era destinada a estranhos.
Hoje, porém, as casas minguam em geral, e especialmente, na capacidade dos seus aposentos e cômodos. Nas salas de visitas das atuais mal cabem o piano e uma meia mobília, adquirida a prestações. Meia dúzia de pessoas, numa delas, estão ameaçadas de morrer asfixiadas com as janelas abertas. Como é que elas podem comportar um baile à moda antiga, em que dançavam dúzias de pares? Evidentemente, não. Isto acontece com as famílias remediadas; com as verdadeiramente pobres, a coisa piora. Ou moram em cômodos ou em casitas de avenidas, que são um pouco mais amplas do que a gaiola dos passarinhos.
Por isso entre a gente média os bailes estão quase desaparecendo dos seus hábitos; e, na gente pobre, eles ficaram reduzidos ao mínimo de um concerto de violão ou a um recibo de sócio de um clube dançante na vizinhança, onde as moças vigiadas pelas mães possam pirutear em salão vasto.
O meu amigo Sussekind de Mendonça, no seu interessante livro O esporte está deseducando a mocidade brasileira , refere-se à licenciosidade das danças modernas.
Hei de falar mais detidamente sobre esse vigoroso livro: agora, porém, cabe só uma observação. Mendonça alude ao que se passa no "set" carioca; mas pelo que me informam, o subúrbio não lhe fica atrás. Nos tempos idos, essa gente verde das nossas elegâncias - verde é sempre uma espécie de argot - sempre mutável e variável de ano para ano, - desdenhava o subúrbio e acusava-o falsamente de dançar maxixe; hoje, não há diferença: todo o Rio de Janeiro, de alto a baixo, incluídos os Democráticos e o Music-Club das Laranjeiras, o dança.
Há uma coisa a notar: é que esse maxixe familiar não foi dos "Escorregas" de Cascadura para o Acchilleon do Flamengo; ao contrário, veio deste para aquela.
O meu estimado Mendonça atribui o "andaço" dessas danças desavergonhadas ao futebol. O sr. Antônio Leão Veloso achou isso exagerado. Pode haver exagero - não ponho em dúvida tal coisa - mas o tal de futebol pos tanta grosseria no ambiente, tanto desdém pelas coisas de gosto, e reveladoras de cultura, tanta brutalidade de maneiras, de frases e de gestos, que é bem possível não ser ele isento de culpa no recrudescimento geral, no Rio de Janeiro, dessas danças luxuriosas que os hipócritas estadunidenses foram buscar entre os negros e os apaches. Convém notar que, entre esses retardados exemplares da nossa humanidade, quando em estado selvagem, semelhantes danças não têm a significação luxuriosa e lasciva que se julga. Fazem parte dos rituais dos seus Deuses, e com elas invocam a sua proteção nas vésperas de guerras e em outras ocasiões solenes.
Passando para os pés dos civilizados, elas são deturpadas, acentuadas na direção de um apelo claro à atividade sexual, perdem o que significavam primitivamente e se tornam intencionalmente lascivas, provocantes e imorais.
Isto, porém, não nos interessa, porque não interessa tanto ao subúrbio como ao "set" carioca, que dançam "one-step" e o tango argentino, e nessas bárbaras danças se nivelam. O subúrbio civiliza-se, diria o saudoso Figueiredo Pimentel, que era também suburbano; mas de que forma, santo Deus?
Quando fui morar naquelas paragens não havia noite em que voltando tarde para casa, não topasse no caminho com um baile, com um chôro, como se dizia na gíria do tempo. Havia famílias que davam um por mês, fora os extraordinários, e havia também cavalheiros e damas que não faltavam a eles, além de irem a outros de famílias diferentes.
Eram célebres nos subúrbios, certos rapazes e moças, como tipos de dançarinos domésticos. Conheci alguns, e ouvi muitos falar neles. Lembro-me bem, dentre eles, de uma moça que, às vezes, atualmente ainda encontro, gordinha, com dois ou três filhos que lhe dão um imenso trabalho para acomodar nos bondes. Chamavam-na Santinha, e tinha uma notoriedade digna de um poeta de "Amor" ou de um gatimanhas de cinematógrafo. Não' era bonita na rua, longe disso. A sua aparência era de uma moça como muitas outras, de feições miúdas, sem grande relevo, cabelos abundantes e sedosos. Tinha, porém, um traço próprio, pouco vulgar nas moças. A sua testa era alta e reta, testa de deusa a pedir um diadema. Era estimada como discipula de Terpsícore burguesa. A sua especialidade estava na valsa americana que dançava como ninguém. Não desdenhava as outras contradanças, mas a valsa era a sua especialidade. Dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, só nos dias de luto da semana santa e no de finados, não dançava. Em todos os mais, Santinha valsava até de madrugada. Dizia a todos que, por tanto dançar não tinha tempo de namorar. De fato, sempre requestada para esta e aquela contradança, via tantos e tantos cavalheiros, que acabava não vendo nenhum ou não firmando a fisionomia de nenhum.
Se não era bela na rua, em atitude comum de passeio, valsando ficava outra, tomava um ar de sílfide, de divindade aérea, vaporosa e adquiria um ar esvoaçante de visão extra-real. Fugia ao solo e como que pairava no espaço...
Os que a viram dançar e me falam dela, até hoje não escondem a profunda impressão que a moça, ao valsar, lhes causou; e quando hoje, por acaso, a encontro atrapalhada com os filhos, penso de mim para mim: para que essa moça se cansou tanto? Chegou afinal ao ponto em que tantas outras chegam com muito menos esforço...
O "pendant" masculino de Santinha era o seu Gastão. Baile em que não aparecia seu Gastão, não merecia consideração. Só dançava de "smoking", e o resto do vestuário de acordo. Era um rapaz de boa altura, simpático, grandes e bastos bigodes, de uma delicadeza exagerada; A sua especialidade não era a valsa; era o "pas-de-quatre", que dançava com ademanes de dança antiga, de minueto ou de coisa parecida. Fazia cumprimentos hieráticos e dava os passos com a dignidade e convicção artística de um Vestris. Seu Gastão ainda existe, e prosperou na vida. Quando rei suburbano do "pas-de-quatre" era empregado de um banco ou de um grande escritório comercial. Hoje é diretor-gerente de uma casa bancária, está casado, tem filhos, mora em Conde de Bonfim, numa vasta casa, mas raramente dá bailes. Dançou para a vida inteira e também pelos filhos e filhas.
Nesses bailes suburbanos, o mártir era o dono da casa: Seu Nepomuceno começava por não conhecer mais da metade da gente que, transitoriamente, abrigava, porque Cacilda trazia Nenê e esta o irmão que era namorado daquela - a única cuja família tinha relações com a do Seu Nepomuceno; e, assim, a casa se enchia de desconhecidos. Além destes subconvidados, ainda existiam os penetras. Chamava-se assim certos rapazes que, sem nenhuma espécie de convite, usavam deste ou daquele truque, para entrar nos bailes - penetrar.
Em geral, apesar da multidão dos convidados, essas festas domésticas tinham um grande cunho de honestidade e respeito. Eram raros os excessos e as danças, com o intervalo de um hora, para uma ceia modesta, se prolongavam até o clarear do dia sem que o mais arguto do sereno pudesse notar uma discrepância nas atitudes dos pares, dançando ou não. Sereno, era chamado o agrupamento de curiosos que ficavam na rua a espiar o baile. Quase sempre era formado de pessoas das vizinhanças e outras que não haviam sido convidadas e lá se postavam para ter assunto em que baseassem a sua despeitada crítica.
Esses bailes burgueses não eram condenados pela religião. Se algumas nada diziam, calavam-se. Outras até elogiavam. O puritanismo era francamente favorável a eles. Afirmava ele, pela boca de adeptos autorizados, que essas reuniões facilitavam a aproximação dos moços de dois sexos, cuja vida particular a cada um deles se fazia isoladamente, sem terem ocasião de trocar impressões, sem comunicarem mutuamente quais os seus anelos, quais os seus desgostos, favorecendo tudo isso os saraus familiares.
Estou certo de que os positivistas, hoje, julgariam que os atuais bailes aproximam por demais os sexos, e... "anathema sit".
O pequeno povo porém ainda não sabe o "fox-trot", nem o "shimmy". Nos seus clubes, ao som do piano ou de estridulantes charangas, dança ainda à antiga; e, no recesso do lar com um terno de flauta, um cavaquinho e violão ou sob o compasso de um prestativo gramofone, ainda volteia a sua valsa ou requebra uma polca, extraordinariamente honesta em comparação com os tais "steps" da moda.
Sem receio de errar, entretanto, pode-se dizer que o baile familiar e burguês, democrático e efusivo, está fora da moda, nos subúrbios. A carestia da vida, a exigüidade das casas atuais e a imitação da alta burguesia desfiguraram-no muito e tendem a extingui-lo.
O violão e a modinha que Catulo, com sua tenacidade, com o seu talento e a sua obediência cega a um grande ideal, dignificou e tornou capaz da atenção dos intelectuais, vão sendo mais prezados e já se fazem encantos dos saraus burgueses em que, pelas causas apontadas, as danças mínguam. É pena que para um Catulo, artista honesto, sob todos os pontos de vista, haja uma dezena de Casanovas disponíveis, que, maus de natureza e sem talento algum, se servem da arte reabilitada pelo autor de Sertanejo, a fim de, por intermédio de horríveis cantarolas, levarem a desgraça a lares pobres e perder moças ingênuas e inexperientes. Há por lá monstros desses que contam tais proezas às dezenas. É o caso de imitar o outro e escrever: "O Código Penal e a inutilidade das leis".
Uma outra diversão que, antigamente, os suburbanos apreciavam muito e hoje está quase morta, era a do teatrinho de amadores. Quase todas as estações tinham mantido um Clube. O do Riachuelo, teve a sua meia hora de celebridade; possuía um edifício de razoáveis proporções; mas desapareceu, e, atualmente, foi transformado em escola municipal. O que havia de característico na vida suburbana, em matéria de diversão, pouco ou quase nada existe mais. O cinema absorveu todas elas e, pondo de parte o Mafuá semi-eclesiástico, é o maior divertimento popular da gente suburbana.
Até o pianista, o célebre pianista de bailes, ele arrebatou e monopolizou.
Nada tem, porém, de próprio ao lugar, é tal e qual outro e qualquer cinema do centro ou qualquer parte da cidade em que haja pessoas cujo gosto de se divertir no escuro arrasta a ver-lhes as fitas durante hora e tanto.
O futebol flagela também aquelas paragens como faz ao Rio de Janeiro inteiro. Os clubes pululam e os há em cada terreno baldio de certa extensão.
Nunca lhes vi uma partida, mas sei que as suas regras de bom-tom em nada ficam a dever às dos congêneres dos bairros elegantes.
A única novidade que notei, e essa mesma não me parece ser grave, foi a de festejarem a vitória sobre um rival, cantando os vencedores pelas ruas, com gambitos nus, a sua proeza homérica com letra e música da escola dos cordões carnavalescos. Vi isto só uma vez e não garanto que essa hibridação do samba, mais ou menos africano com o futebol anglo-saxônio, se haja hoje generalizado nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto afiançar.
Resta-nos o Carnaval; é ele, porém, tão igual por toda a parte, que foi impossível, segundo tudo faz crer, ao subúrbio dar-lhe alguma coisa de original. Lá, como na Avenida, como em Niterói, como em Maxambomba, como em todo este Brasil inteiro, são os mesmos cordões, blocos, grupos, os mesmos versos indignos de manicômio, as mesmas músicas indigestas e, enfim, o Carnaval em que como lá diz Gamaliel de Mendonça, no seu último livro - Revelação: - Os homens são jograis; as mulheres, bacantes. -
O subúrbio não se diverte mais. A vida é cara e as apreensões muitas, não permitindo prazeres simples e suaves, doces diversões familiares, equilibradas e plácidas. Precisa-se de ruído, de zambumba, de cansaço, para esquecer, para espançar as trevas que em torno da nossa vida, mais densas se fazem, dia para dia, acompanhando "pari-passu" as suntuosidades republicanas.
Ele não mais se diverte inocentemente; o subúrbio se atordoa e se embriaga não só com o álcool, com a lascívia das danças novas que o esnobismo foi buscar no arsenal da hipocrisia norte-americana. Para as dificuldades materiais de sua precária existência, criou esse seu paraíso artificial, em cujas delícias transitórias mergulha, inebria-se minutos, para esperar, durante horas, dias e meses, um aumentozinho de vencimentos...
[Lima Barreto cita, pela
primeira vez, o escritor Carlos Sussekind de Mendonça , em 1921 editor do
jornal A Época, do Rio de Janeiro — ano em que com apenas 19 anos de
idade publicou o livro O sport está deseducando a mocidade brasileira
(Empresa Brasil Editorial, Rio de Janeiro, 1921),com o subtítulo “dedicado a
Lima Barreto”, hoje obra raríssima . Sussekind
de imediato, ainda em 1919, incorporou-se à luta de Lima Barreto contra
o futebol, que ele considerava entre outros aspectos “micróbio de corrupção e
imbecilidade”, “estrangeirismo estéril e inútil”. Propunha sobretudo combater ,
de todas as formas, a “nefasta defesa do futebol” feita por intelectuais e
escritores — rejeitando, inclusive, qualquer teoria de que “o esporte possa
manter alguma relação com a razão e o intelecto” — e denunciar as “verdadeiras
atrocidades,até dentro dos próprios clubs” promovidas pelo futebol: como
Lima Barreto, enfatizava o “blefe de
regeneração social” contido no futebol e os malefícios “físicos,
sanitários,sociais e culturais” de sua disseminação “que só pode ser bocado de
feitiçaria” em campos “onde se apinham centenas de ociosos assistindo inertes,
a transpirar, os vinte e dois heróis de maxambona ou caixa pregos” .Lima Barreto veio ainda a
publicamente agradecer e fazer comentários ao livro de Sussekind em abril de 1922.]
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