sábado, 23 de agosto de 2014

Sobre Bienal,-- e novos modelos e formatos,modos e meios

 É tempo de  reflexões  inerentes a possíveis (para muitos, almejadas) vertentes não apenas especificamente para os  cenários editorial e livreiro, por extensão literários, do país no momento, mas também generica e essencialmente das práticas e  modos de leitura – tema sempre recorrente,imperioso na vida cultural de qualquer sociedade.

A cada ano, quando da realização de Bienal do Livro – como agora, de 22 a 30.08 em São Paulo – reportamo-nos às discussões e análises que ora se intensificam e desdobram  com relação a ela : marcante foi, e ainda repercute, a última edição de São Paulo,2012, que mostrou-se esvaziada,’fisicamente’  por parte e no seio do próprio meio editorial-livreiro, haja vista p. ex. grandes editoras estarem  ausentes,sob argumentação de "custos exorbitantes" e "parcos resultados", e conceitualmente por força do crescente  pensamento crítico quanto ao tradicional "modelão”,ou "formatão" da Bienal (assim são definidos pelos profissionais do ramo): deve-se observar que o mesmo cenário, pelas mesmíssimas razões, repete-se na presente Bienal na capital paulista.
Ao mesmo tempo em que as atenções se voltam cada vez mais para os eventos regionais, essa profusão (benéfica,digo eu) de festas e feiras pelo país: Belém, Fortaleza,Ouro Preto, Paraty, Porto Alegre,Passo Fundo (estas duas últimas bastante tradicionais, já de longa data).
Além da "Primavera dos Livros”, originariamente realizada no Rio de Janeiro mas que já tem, há dois anos consecutivos, sua edição paulistana -- a congregar editoras não entre as maiores  mas por certo algumas das mais operosas; e especificamente no Rio, a FLUPP- Festa Literária Internacional das UPPs” ,com debates, performances, música e leituras, trazendo em si conotações e características diferenciadas e bastante significativas, em especial proposta a se consolidar como importante vetor de exposição,informação e difusão da agora denominada “literatura\ cultura  da periferia”.
E mais : “Fliaraxá - Festival Literário de Araxá, abrigando encontros  com vários escritores outros);  a já tradicional “Fliporto --  Festa Literária  Internacional de Pernambuco,  agora em sua 9ª. edição  --  que comporta  inclusive um Congresso Literário , a reunir escritores nacionais e internacionais em painéis com palestras, entrevistas e debates.
Todos eles a transcender o  escopo de um evento de exposição e venda de livros para se constituir em notável cenáculo temático, tendo – em painéis,palestras,diálogos,depoimentos – a Leitura,seus fomento,estímulo e prática, e o Livro, suas formas,formatos e significados, como tema,mote e leitmotiv.
 Com efeito, as  diversas festas e feiras literárias regionais e específicas que se multiplicam pelo país a cada ano, constituem-se  claramente em  geradores de  elementos de reflexão acerca de eventos literários e de novos cenários, ou novas vertentes dos cenários editorial e livreiro,por extensão literários, do país – a proliferação de eventos e feiras de livros contrapostos,  por suas estruturas,escopo,focos e enfoques, ‘conceitualmente’ à  Bienal e seu formato tradicional.
Persiste  o intento – falo com conhecimento de causa -- entre editores, livreiros e profissionais do setor, de fortalecimento e incremento a esses eventos regionais , os quais -- tanto por suas próprias concepções como pelas efetivas programações realizadas até aqui --têm oferecido os elementos de estimulante  reflexão  conceitual sobre festas literárias : com efeito oferecem  o que faz parte das proposições preconizadas para  reformulação conceitual da Bienal.

Para início de conversa, em minha opinião: ainda vejo extrema validade na bienal -- mesmo sob as formas de seus  'modelão e formatão, frequentada pelos contingentes daqueles parcos e raros leitores para os quais todas as pesquisas apontam a média de leitura de ...  2 livros por ano (!); ainda que com as características de ‘feirão’, etc  -- evidentemente admitindo, e concordando plenamente, com a necessidade de certas alterações, ajustes e adaptações. A validade que sustento tem em vista o chamado 'grande público', por força do comprovado fato de a bienal representar a contrapartida real,concreta, a um tipo de comportamento desse '(não)leitor comum': sua relação com a livraria, tida e vista por ele como uma espécie de 'templo sagrado', espaço de sacralização -- apesar de tudo em termos de atrativo,utilidade, conforto, etc que as livrarias oferecem hoje (café,poltronas,ambientes de leitura,etc) -- a inibi-lo e refrear sua possibilidade de chegar ao livro.
Na Bienal, justamente por seu ‘modelão’ -- que de resto permite uma exposição mais abrangente quase completa, do conjunto dos acervos de editoras -- por seus cenários 'populares' e descontraídos[sic], propicia um sensível processo de dessacralização.Ainda mais se propostas,como tem ocorrido gradativamente (mas ainda  incipiente),expandir alguns focos no temático,como de resto anotei.

Só que... .
entendo que o assunto, e a questão, vão muito além, a exigir reflexões,meditações amplas e profundas,reformulações de pensamentos e concepções,e sobretudo ações concretas de superação de incompreensões e distorções conceituais. Especificamente a requerem considerações e observações justamente acerca do livro e da leitura no país.

Até porque ....
por  outro lado -- ou acima de todos os lados -- um espectro ronda (alvissareiramente, saúdo eu) a bienal e as livrarias, por extensão as editoras, a totalidade do mundo editorial-livreiro: o e-commerce, notável em sua propriedade (benfazeja,enfatizo) de mudar a relação do leitor,e do produtor e do revendedor, com o livro -- dinamizando-a,enriquecendo-a,valorizando-a, aprimorando-a.

lê-se mais, no Brasil hoje, que as (incompletas) estatístcas apontam  

Bem, referi-me aos “(...) parcos e raros leitores para os quais todas as pesquisas apontam a média de leitura de ... 2 livros por ano[!]”: talvez alguns dos que aqui me lerem  venham a contra-argumentar  -- até mesmo com fortes reações -- que na verdade o índice de leitura do brasileiro,apontado pela recente pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” – e registrado no livro sob mesmo título(org.Zoara Failla;edição IPL e Imprensa Oficial.) – é na verdade de 4(quatro) livros por ano,e não 2. Observam meus  pacientes leitores – que assim me agraciam – que, sim, o número em ‘estado bruto’ é esse, mas excluídas as obras indicadas pelas escolas e aquelas compradas pelo governo para distribuição à rede escolar e bibliotecas, e considerada apenas a leitura espontânea chegamos à  lamentável  marca que registrei.
 Em minha opinião, até mesmo pelo latente ceticismo com relação às estatísticas de modo geral, (já houve quem dissesse: “números são como biquínis femininos: mostram muito mas escondem o essencial...”), ainda mais as formuladas cá no Brasil, questiono esses cenários de um modo geral . Todos os levantamentos,pesquisas e computações retratam,reportam-se e registram, no tocante a índices de leitura, de produção, de vendas, de faturamento, etc, única e exclusivamente os dados inerentes a livros impressos – sem catalogar, até porque não existem ainda mecanismos para tal [por indolência e ‘inércia’,por certo relutância (sic) de editores,livreiros,etc , face a suas respectivas posturas diante do elemento a que vou me referir a seguir], esses mesmos  dados para os livros digitais e todas as formas e meios de leitura intensamente,e irreversivelmente, presentes hoje, nos tablets,iPads,iPhones,portais,sites, diversos links pela internet e demais plataformas digitais.
       Vou adiante para uma desafiadora conclusão: lê-se mais que as (incompletas) estatísticas apontam; e produz-se e vende-se muito mais hoje no Brasil, e em todas  faixas etárias e todos os tipos de textos.

O que quero dizer :
        o digital faz crescer os índices de leitura no Brasil ! quando sustento que lê-se muito mais no meio digital do que revelam as simples(e simplórias) estatísticas sobre vendas , e leitura, de e-books, se já não bastasse citar o quanto de textos,obras e narrativas literárias que se abrigam,e são consultadas e 'downlonizadas' por milhares de pessoas diariamente, nos portais e sites de literatura, nos blogs, nas redes sociais, na internet como um todo . Um exemplo marcante : a coletânea Geração subzero (org. Felipe Pena;editora Record.), reunindo textos veiculados exclusivamente no twitter -- com um subtítulo bastante significativo, “20 autores congelados pela crítica, mas adorados pelos leitores” – e entre eles alguns ‘campeões de vendas’ no mercado (formal)  livreiro, como  Thalita Rebouças, André Vianco. Outro exemplo :  a editora Intrínseca veiculou  diariamente, em seu twitter, o texto “Caixa preta”, da americana Jennifer Egan, escrito originalmente em bloquinhos de até 140 caracteres -- no que,aliás, Claudio Soares fora pioneiro, ao 'tuitar', ainda em 2006, fragmentada em posts, sua (excelente) obra Santos Dumont número 8. Além dos exemplos das (já) centenas de obras convertidas em versões de aplicativos para iPad e iPhone.
      As ações e realizações em blogs, no Facebook, no twitter , em diversas plataformas constituem exemplos claros, taxativos, do que vem sendo chamado de narrativas digitais, literatura eletrônica ou narrativas em rede, uma 'literatura eletrônica" caracterizada basicamente por interatividade, hipertextualidade,não- linearidade, multimídia -- contundente,e inquestionável prova de como o criar textos literários - ficcionais e não-ficcionais - construir narrativas,contar histórias vem sendo remodelado com e pelas novas tecnologias,gerando em especial novos,e nunca tão dinâmicos na história cultural,modos,meios e formas de leitura,conhecimento.aprendizado,entretenimento, lazer e de novos comportamentos. Isto é :  obras e textos em mídias, veículos e suportes outros que não aqueles metódica e estatisticamente computados.  .

e-books : claras inverdades e ... realidades nítidas

Nem é preciso consultarmos e nos valermos dos levantamentos, pesquisas e  estatísticas agora regularmente efetuadas – inclusive pela  Câmara Brasileira do Livro- CBL, pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros- SNEL – para constatar  o crescimento da produção e vendas de e-books, num processo vertiginoso de aceleração (quantitativa e qualitativa) – um estrondoso ganho de  volume, de proliferação temática e genérica e diversificação autoral, com lançamentos simultâneos nos meios físico e on-line. Por fim, livrarias, notadamente grandes do ramo, como  Cultura, Travessa,  Saraiva,   adaptaram-se, e competentemente, diga-se, à realidade, até porque estão auferindo resultados compensadores : definitivamente incorporaram e-books a seus acervos e catálogos, e os oferecem e promovem com toda ‘pompa e circunstância’, e muita eficiência.
                                               ___________

Então (sem chegar a ser uma conclusão, porquanto temos de avançar vigorosamente em todas as reflexões possíveis e praticar todas as ações necessárias), dispostos uns, subjacentes outros, encontram-se muitos elementos, tópicos e questões a permear indissoluvelmente o livro, e inerente a ele, a leitura no país. Que, de um lado, a Bienal,as festas literárias regionais e  aquelas dotadas de especificidades ,auspiciosamente proliferantes hoje, expressivas de uma alentada reconceituação de eventos ; de outro, o meio e a mídia digital a proporem e propiciarem notáveis perspectivas de difusão da matéria literária e de circulação do conteúdo do livro e,por extensão das extensões, oportunidades,possibilidades e fomento da leitura --- tudo isso seja efetivamente incorporado,crescente e consistentemente, na agenda de todos os setores e searas  educacionais-culturais,editoriais,livreiras, literárias,intelectuais e mesmo sociais.






sexta-feira, 15 de agosto de 2014

um conto inédito de Arthur Azevedo

do e-book CONTOS INÉDITOS DE ARTHUR AZEVEDO [Foglio\Objetiva; ago 2014; $5,00]
http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=1423
[conjunto de especiais características: 15 contos inéditos de Arthur Azevedo – nunca publicados em livro ou obra impressa ou em outros meio e suporte que não a veiculação original em periódicos de diversas épocas e distintas etapas da vida literária do escritor (e da história política,institucional, social e cultural brasileiras). 
 reveste-se de notável relevância histórico-bibliográfico pelo duplo atributo de , a par do aludido ineditismo , poder contribuir para dar a público, e difundir, o contista Arthur Azevedo – muito mais conhecido e difundido como teatrólogo , mas ainda insuficientemente editado, publicado e estudado. Arthur Azevedo tem cerca de 25 por cento das mais de duas de centenas de contos que escreveu ainda inéditos, apesar de 8 - a principais -- coletâneas impressas publicadas ( suas crônicas – caso pior ainda – têm nada menos do que 85% delas inéditas em livro ou outra forma impressa ou digital .
- imprescindível é que um autor – um multi-autor, como ele -- não seja devidamente estudado,inclusive academicamente, editado,publicado,difundido,reconhecido como um dos grandes 'retratistas' e intérpretes da cidade do Rio de Janeiro, por extensão do Brasil,do final século XIX -início do século XX..
- incompreensível como um dos escritores brasileiros mais criativos e populares de todos os tempos, que em suas criações e escritos aliou expressiva quantidade a significativa qualidade, ainda tem grande parte de sua produção intelectual inédita
-
absolutamente indispensável recuperar e tornar conhecido esse relevante material --- a que me dedico, para recolher , organizar, editar e dar a público tanto os contos quanto as crônicas de um dos mais criativos, fecundos e valiosos escritores brasileiros de todos os tempos

um exemplo concreto (e insinuante) da irônica verve azevediana

------------------
Bolina por bolina
                                                                                I
Naquela tarde, o Medeiros, que morava numa das ruas transversais do Catete, estava no seu gabinete de trabalho, a ler uma folha da tarde,esperando a hora do jantar, quando d. Therezinha, sua esposa, chegou da rua, e foi ter com ele visivelmente agitada.
-- Que tens ?... aconteceu-te alguma coisa?
-- Estou furiosa!
-- Por que?
-- Fui bolinada!
--Bolinada?
-- Sim, no bonde... ainda agora, por um de teus amigos...
-- Qual deles? Perguntou o marido, erguendo-se de um salto.
-- Espera, deixa-me tomar fôlego, disse d. Therezinha, tirando o chapéu e sentando-se numa cadeira.
E erguendo a voz:
-- Eulália!
-- Senhora! acudiu a criada lá de dentro.
-- Dá cá um copo d’água, d. Therezinha suspirou ruidosamente e comentou:
-- Hoje, depois que saíste, fui à cidade comprar umas coisas que me faltavam para acabar um vestido que estou fazendo. Pouco me demorei. Estive na rua do Ouvidor... no largo de S. Francisco de Paula... e voltei ao largo da Carioca para tomar o bonde... Ele estava parado no largo olhando muito para mim...
-- Mas ele quem ?
-- Não me lembro o nome... Aquele sujeito de barba à Ando e monóclio, que me apresentaste um dia no Parque...Aquele?... Sabes?...
-- Não sei.
-- Ora, aquele foi advogado da Ernestina Rocha quando esta se divorciou.
-- Ah! o Moniz!
-- Moniz – é isso mesmo!
-- Não estarás enganada? Olha que o Moniz é um rapaz sério.
-- Sério? Vais ver a sua seriedade! – Como já te disse,ele estava parado no largo, a olhar com muita insistência para mim...
-- Mas tu não podias reparar que ele olhava com muita insistência para ti, se não olhasses com muita insistência para ele...
-- Pode ser, e foi talvez animado pelos meus olhares inocentes que o patife entrou no bonde e se sentou ao meu lado.
-- Falou-te?
-- Cumprimentou-me com muita amabilidade. Quis entabular conversa, disse-me que estava fazendo muito calor, que íamos ter mudança de tempo – mas como eu só lhe respondia por monossílabos imperceptíveis, calou-se. Quando chegamos perto do Passeio Público, senti o seu joelho encostado ao meu. Julguei que fosse por distração. Afastei o joelho... Ele insistiu... Medi-o de alto a baixo com um olhar repreensivo, mas o desavergonhado não se deu por vencido.
-- Miserável! Rosnou o Medeiros.
-- Quando o bonde fazia a volta da Lapa, o homenzinho encostou resolutamente a coxa na minha coxa! A primeira idéia que me acudiu foi bater-lhe com o leque na cara, mas recuei diante do escândalo...
-- E não fizeste nada?
--Levantei-me, fiz parar o bonde,desci, tomei um carro que passava, e vim para casa. Manda pagar ao cocheiro, que está esperando.

O Medeiros saiu do gabinete e mandou despedir o carro. Quando voltou, já d. Therezinha ali não estava: tinha ido para o seu quarto de toilette mudar de roupa.
Ele foi ter com ela, e disse-lhe:
-- Estou perplexo! Tinha o Moniz em conta de homem escrupuloso, incapaz de semelhante procedimento!
-- Pois aí tens.
-- E ele é casado.
--É. Com uma senhora muito mais bonita que eu. E dizem que tem cabelinho na venta! Ah! se ela soubesse...
-- Há de sabê-lo!
-- Hein?
-- Oh! o tratante pagará capital e juros! Afianço-te que tão cedo não se mete a outra!
-- O melhor é evitar o escândalo!
-- Ele que o evitasse!
-- Olha o que vais fazer!
-- Não te assustes!
-- Já estou arrependida de te haver contado o que se passou!
-- Fizeste bem; não te arrependas: as senhoras honestas assim procedem.
-- Pretendi apenas que conhecesses o grande amigo que tens.
-- Achas então que não devo fazer nada?
-- Deixe de cumprimentá-lo: é quanto basta.
-- Veremos. Anda daí! Vamos jantar que são oito horas.
O Medeiros e d. Therezinha jantaram alegremente, e não se falou mais no caso do bonde.
                                                                         II
D. Therezinha não deixava de ter razão: uma vez que ela protestara contra a audácia do reles bolina, e contara tudo ao marido, era desnecessário entre os dois uma explicação, da qual poderia resultar um escândalo público; bastava realmente que eles nunca mais se falassem, mas conquanto não tivesse a alma impetuosa de um corso, pensava o Medeiros que a vingança não era um prazer exclusivamente reservado aos deuses, e começou a ruminar um plano terrível de desagravo.

O acaso veio de encontro ao desejo.
Poucos dias depois do incidente que deixei narrado, o Medeiros, tomando ao sair de casa um bonde que ia para a cidade, descobriu, sentada a um canto, a esposa do Moniz.

Sentou-se ao lado dela, cumprimentou-a com muita afabilidade, e daí a pouco, enchendo-se de coragem, suspirou e pisou-lhe delicadamente um pé.

Ele esperava que ela se zangasse; desculpar-se-ia, dizendo-lhe: - Faço a vossa excelência o mesmo que seu marido fez à minha mulher; mas, oh surpresa! a dama abaixou o rosto e sorriu, lançando ao Medeiros um olhar de soslaio, um olhar que prometia, que dava quanto pedia um bolina!
A vingança do Medeiros foi muito mais completa que ele desejava, e, passados tempos, quando d. Therezinha lhe perguntou se havia tomado algum desforço contra o Moniz:
-- Tomei, filha, tomei; isto é, eu te digo: para falar a verdade, quem tomou não fui eu, foi a senhora.
                                                                                                                                              A.A.
                                                                                                                      [O Século 18 março 1907]
Foto: do e-book "CONTOS INÉDITOS DE ARTHUR AZEVEDO" [Foglio\Objetiva; ago 2014; $5,00]
http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=1423

um exemplo concreto (e insinuante) da irônica verve azevediana
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Bolina por bolina

                                                      I
Naquela tarde, o Medeiros, que morava numa das ruas transversais do Catete, estava no seu gabinete de trabalho, a ler uma folha da tarde,esperando a hora do jantar, quando d. Therezinha, sua esposa, chegou da rua, e foi ter com ele visivelmente agitada.
-- Que tens ?... aconteceu-te alguma coisa?
-- Estou furiosa!
-- Por que?
-- Fui bolinada!
--Bolinada?
-- Sim, no bonde... ainda agora, por um de teus amigos...
-- Qual deles? Perguntou o marido, erguendo-se de um salto.
-- Espera, deixa-me tomar fôlego, disse d. Therezinha, tirando o chapéu e sentando-se numa cadeira.
E erguendo a voz:
-- Eulália!
-- Senhora! acudiu a criada lá de dentro.
-- Dá cá um copo d’água, d. Therezinha suspirou ruidosamente e comentou:
-- Hoje, depois que saíste, fui à cidade comprar umas coisas que me faltavam para acabar um vestido que estou fazendo. Pouco me demorei. Estive na rua do Ouvidor... no largo de S. Francisco de Paula... e voltei ao largo da Carioca para tomar o bonde... Ele estava parado no largo olhando muito para mim...
-- Mas ele quem ?
-- Não me lembro o nome... Aquele sujeito de barba à Ando e monóclio, que me apresentaste um dia no Parque...Aquele?... Sabes?...
-- Não sei.
-- Ora, aquele foi advogado da Ernestina Rocha quando esta se divorciou.
-- Ah! o Moniz!
-- Moniz – é isso mesmo!
-- Não estarás enganada? Olha que o Moniz é um rapaz sério.
-- Sério? Vais ver a sua seriedade! – Como já te disse,ele estava parado no largo, a olhar com muita insistência para mim...
-- Mas tu não podias reparar que ele olhava com muita insistência para ti, se não olhasses com muita insistência para ele...
-- Pode ser, e foi talvez animado pelos meus olhares inocentes que o patife entrou no bonde e se sentou ao meu lado.
-- Falou-te?
-- Cumprimentou-me com muita amabilidade. Quis entabular conversa, disse-me que estava fazendo muito calor, que íamos ter mudança de tempo – mas como eu só lhe respondia por monossílabos imperceptíveis, calou-se. Quando chegamos perto do Passeio Público, senti o seu joelho encostado ao meu. Julguei que fosse por distração. Afastei o joelho... Ele insistiu... Medi-o de alto a baixo com um olhar repreensivo, mas o desavergonhado não se deu por vencido.
-- Miserável! Rosnou o Medeiros.
-- Quando o bonde fazia a volta da Lapa, o homenzinho encostou resolutamente a coxa na minha coxa! A primeira idéia que me acudiu foi bater-lhe com o leque na cara, mas recuei  diante do escândalo...
-- E não fizeste nada?
--Levantei-me, fiz parar o bonde,desci, tomei um carro que passava, e vim para casa. Manda pagar ao cocheiro, que está esperando.

O Medeiros saiu do gabinete e mandou despedir o carro. Quando voltou, já d. Therezinha ali não estava: tinha ido para o seu quarto de toilette mudar de roupa.
Ele foi ter com ela, e disse-lhe:
-- Estou perplexo! Tinha o Moniz em conta de homem escrupuloso, incapaz de semelhante procedimento!
-- Pois aí tens.
-- E ele é casado.
--É. Com uma senhora muito mais bonita que eu. E dizem que tem cabelinho na venta! Ah! se ela soubesse...
-- Há de sabê-lo!
-- Hein?
-- Oh! o tratante pagará capital e juros! Afianço-te que tão cedo não se mete a outra!
-- O melhor é evitar o escândalo!
-- Ele que o evitasse!
-- Olha o que vais fazer!
-- Não te assustes!
-- Já estou arrependida de te haver contado o que se passou!
-- Fizeste bem; não te arrependas: as senhoras honestas assim procedem.
-- Pretendi apenas que conhecesses o grande amigo que tens.
-- Achas então que não devo fazer nada?
-- Deixe de cumprimentá-lo: é quanto basta.
-- Veremos. Anda daí! Vamos jantar que são oito horas.
O Medeiros e d. Therezinha jantaram alegremente, e não se falou mais no caso do bonde.

                                               II
D. Therezinha não deixava de ter razão: uma vez que ela protestara contra a audácia do reles bolina, e contara tudo ao marido, era desnecessário entre os dois uma explicação, da qual poderia resultar um escândalo público; bastava realmente que eles nunca mais se falassem, mas conquanto não tivesse a alma impetuosa de um corso, pensava o Medeiros que a vingança não era um prazer exclusivamente reservado aos deuses, e começou a ruminar um plano terrível de desagravo.

O acaso veio de encontro ao desejo.
Poucos dias depois do incidente que deixei narrado, o Medeiros, tomando ao sair de casa um bonde que ia para a cidade, descobriu, sentada a um canto, a esposa do Moniz.

Sentou-se ao lado dela, cumprimentou-a com muita afabilidade, e daí a pouco, enchendo-se de coragem, suspirou e pisou-lhe delicadamente um pé.

Ele esperava que ela se zangasse; desculpar-se-ia, dizendo-lhe: - Faço a vossa excelência o mesmo que seu marido fez à minha mulher; mas, oh surpresa! a dama abaixou o rosto e sorriu, lançando ao Medeiros um olhar de soslaio, um olhar que prometia, que dava quanto pedia um bolina!
A vingança do Medeiros foi muito mais completa que ele desejava, e, passados tempos, quando d. Therezinha lhe perguntou se havia tomado algum desforço contra o Moniz:
-- Tomei, filha, tomei; isto é, eu te digo: para falar a verdade, quem tomou não fui eu, foi a senhora.
                                                                           A.A. 
                                                    [O Século 18 março 1907]
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