sábado, 23 de agosto de 2014
Sobre Bienal,-- e novos modelos e formatos,modos e meios
A cada ano, quando da realização
de Bienal do Livro – como agora, de 22 a 30.08 em São Paulo – reportamo-nos às discussões e análises que ora se
intensificam e desdobram com relação a
ela : marcante foi, e ainda repercute, a última edição de São Paulo,2012, que
mostrou-se esvaziada,’fisicamente’ por parte
e no seio do próprio meio editorial-livreiro, haja vista p. ex. grandes
editoras estarem ausentes,sob
argumentação de "custos exorbitantes" e "parcos
resultados", e conceitualmente por força do crescente pensamento crítico quanto ao tradicional
"modelão”,ou "formatão" da Bienal (assim são definidos pelos
profissionais do ramo): deve-se observar que o mesmo cenário, pelas mesmíssimas
razões, repete-se na presente Bienal na capital paulista.
Ao mesmo tempo em que as atenções
se voltam cada vez mais para os eventos regionais, essa profusão (benéfica,digo
eu) de festas e feiras pelo país: Belém, Fortaleza,Ouro Preto, Paraty, Porto
Alegre,Passo Fundo (estas duas últimas bastante tradicionais, já de longa
data).
Além da "Primavera dos
Livros”, originariamente realizada no Rio de Janeiro mas que já tem, há dois
anos consecutivos, sua edição paulistana -- a congregar editoras não entre as
maiores mas por certo algumas das mais
operosas; e especificamente no Rio, a “FLUPP- Festa
Literária Internacional das UPPs” ,com debates, performances, música e
leituras, trazendo em si conotações e características diferenciadas e bastante
significativas, em especial proposta
a se consolidar como importante vetor de exposição,informação e difusão da
agora denominada “literatura\ cultura da
periferia”.
E mais : “Fliaraxá - Festival Literário de Araxá, abrigando
encontros com vários escritores
outros); a já tradicional “Fliporto
-- Festa Literária Internacional de Pernambuco, agora em sua 9ª. edição -- que
comporta inclusive um Congresso
Literário , a reunir escritores nacionais e internacionais em painéis com
palestras, entrevistas e debates.
Todos eles a transcender o escopo de um evento de exposição e venda de
livros para se constituir em notável cenáculo temático, tendo – em
painéis,palestras,diálogos,depoimentos – a Leitura,seus fomento,estímulo e
prática, e o Livro, suas formas,formatos e significados, como tema,mote e leitmotiv.
Persiste o intento – falo com conhecimento de causa -- entre editores, livreiros e
profissionais do setor, de fortalecimento e incremento a esses eventos
regionais , os quais -- tanto por suas próprias concepções como pelas efetivas
programações realizadas até aqui --têm oferecido os elementos de
estimulante reflexão conceitual sobre festas literárias : com efeito
oferecem o que faz parte das proposições
preconizadas para reformulação
conceitual da Bienal.
Para início de conversa, em minha
opinião: ainda vejo extrema validade na bienal -- mesmo sob as formas de
seus 'modelão e formatão, frequentada
pelos contingentes daqueles parcos e raros leitores para os quais todas as
pesquisas apontam a média de leitura de ...
2 livros por ano (!); ainda que com as características de ‘feirão’,
etc -- evidentemente admitindo, e
concordando plenamente, com a necessidade de certas alterações, ajustes e
adaptações. A validade que sustento tem em vista o chamado 'grande público',
por força do comprovado fato de a bienal representar a contrapartida
real,concreta, a um tipo de comportamento desse '(não)leitor comum': sua relação
com a livraria, tida e vista por ele como uma espécie de 'templo sagrado',
espaço de sacralização -- apesar de tudo em termos de atrativo,utilidade,
conforto, etc que as livrarias oferecem hoje (café,poltronas,ambientes de
leitura,etc) -- a inibi-lo e refrear sua possibilidade de chegar ao livro.
Na Bienal, justamente por seu
‘modelão’ -- que de resto permite uma exposição mais abrangente quase completa,
do conjunto dos acervos de editoras -- por seus cenários 'populares' e
descontraídos[sic], propicia um sensível processo de dessacralização.Ainda mais
se propostas,como tem ocorrido gradativamente (mas ainda incipiente),expandir alguns focos no
temático,como de resto anotei.
Só que... .
entendo que o assunto, e a
questão, vão muito além, a exigir reflexões,meditações amplas e
profundas,reformulações de pensamentos e concepções,e sobretudo ações concretas
de superação de incompreensões e distorções conceituais. Especificamente a
requerem considerações e observações justamente acerca do livro e da leitura no
país.
Até porque ....
por outro lado -- ou acima de todos os lados --
um espectro ronda (alvissareiramente, saúdo eu) a bienal e as livrarias, por
extensão as editoras, a totalidade do mundo editorial-livreiro: o e-commerce, notável em sua propriedade
(benfazeja,enfatizo) de mudar a relação do leitor,e do produtor e do
revendedor, com o livro -- dinamizando-a,enriquecendo-a,valorizando-a,
aprimorando-a.
lê-se mais, no Brasil hoje, que as (incompletas) estatístcas
apontam
Bem, referi-me aos “(...) parcos e raros leitores
para os quais todas as pesquisas apontam a média de leitura de ... 2 livros por
ano[!]”: talvez alguns dos que aqui me lerem
venham a contra-argumentar -- até
mesmo com fortes reações -- que na verdade o índice de leitura do brasileiro,apontado
pela recente pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” – e registrado no livro
sob mesmo título(org.Zoara Failla;edição IPL e Imprensa Oficial.) – é na verdade de 4(quatro) livros por ano,e não
2. Observam meus pacientes
leitores – que assim me agraciam – que, sim,
o número em ‘estado bruto’ é esse, mas excluídas as obras indicadas pelas
escolas e aquelas compradas pelo governo para distribuição à rede escolar e
bibliotecas, e considerada apenas a leitura
espontânea chegamos à lamentável marca que registrei.
Vou adiante para uma desafiadora
conclusão: lê-se mais que as (incompletas) estatísticas apontam; e produz-se e vende-se muito mais
hoje no Brasil, e em todas faixas
etárias e todos os tipos de textos.
O que quero dizer :
o digital faz crescer os índices de
leitura no Brasil ! quando sustento que lê-se muito mais no meio digital do que
revelam as simples(e simplórias) estatísticas sobre vendas , e leitura, de e-books, se já não bastasse citar o
quanto de textos,obras e narrativas literárias que se abrigam,e são consultadas
e 'downlonizadas' por milhares de pessoas diariamente, nos portais e sites de literatura, nos blogs, nas redes sociais, na internet
como um todo . Um exemplo marcante : a coletânea Geração subzero (org. Felipe Pena;editora Record.), reunindo textos
veiculados exclusivamente no twitter
-- com um subtítulo bastante significativo, “20 autores congelados pela
crítica, mas adorados pelos leitores” – e entre eles alguns ‘campeões de
vendas’ no mercado (formal) livreiro,
como Thalita Rebouças, André Vianco.
Outro exemplo : a editora Intrínseca
veiculou diariamente, em seu twitter, o texto “Caixa preta”, da
americana Jennifer Egan, escrito originalmente em bloquinhos de até 140
caracteres -- no que,aliás, Claudio Soares fora pioneiro, ao 'tuitar', ainda em
2006, fragmentada em posts, sua
(excelente) obra Santos Dumont número 8.
Além dos exemplos das (já) centenas de obras convertidas em versões de
aplicativos para iPad e iPhone.
As ações e realizações em blogs, no Facebook, no twitter , em
diversas plataformas constituem exemplos claros, taxativos, do que vem sendo
chamado de narrativas digitais, literatura eletrônica ou narrativas em rede,
uma 'literatura eletrônica" caracterizada basicamente por interatividade,
hipertextualidade,não- linearidade, multimídia -- contundente,e inquestionável
prova de como o criar textos literários - ficcionais e não-ficcionais -
construir narrativas,contar histórias vem sendo remodelado com e pelas novas
tecnologias,gerando em especial novos,e nunca tão dinâmicos na história
cultural,modos,meios e formas de
leitura,conhecimento.aprendizado,entretenimento, lazer e de novos
comportamentos. Isto é : obras e textos
em mídias, veículos e suportes outros que não aqueles metódica e estatisticamente
computados. .
e-books : claras inverdades e ... realidades nítidas
Nem é preciso consultarmos e nos
valermos dos levantamentos, pesquisas e
estatísticas agora regularmente efetuadas – inclusive pela Câmara Brasileira do Livro- CBL, pelo Sindicato
Nacional dos Editores de Livros- SNEL – para constatar o crescimento da produção e vendas de e-books, num processo vertiginoso de
aceleração (quantitativa e qualitativa) – um estrondoso ganho de volume, de proliferação temática e genérica e
diversificação autoral, com lançamentos simultâneos nos meios físico e on-line. Por fim, livrarias, notadamente
grandes do ramo, como Cultura,
Travessa, Saraiva, adaptaram-se, e competentemente, diga-se, à
realidade, até porque estão auferindo resultados compensadores :
definitivamente incorporaram e-books
a seus acervos e catálogos, e os oferecem e promovem com toda ‘pompa e
circunstância’, e muita eficiência.
___________
Então (sem chegar a ser uma conclusão, porquanto temos de avançar
vigorosamente em todas as reflexões possíveis e praticar todas as ações
necessárias), dispostos uns, subjacentes outros, encontram-se muitos elementos,
tópicos e questões a permear indissoluvelmente o livro, e inerente a ele, a
leitura no país. Que, de um lado, a Bienal,as festas literárias regionais
e aquelas dotadas de especificidades
,auspiciosamente proliferantes hoje, expressivas de uma alentada reconceituação
de eventos ; de outro, o meio e a mídia digital a proporem e propiciarem
notáveis perspectivas de difusão da matéria literária e de circulação do
conteúdo do livro e,por extensão das extensões, oportunidades,possibilidades e
fomento da leitura --- tudo isso seja efetivamente incorporado,crescente e
consistentemente, na agenda de todos os setores e searas educacionais-culturais,editoriais,livreiras,
literárias,intelectuais e mesmo sociais.
sexta-feira, 15 de agosto de 2014
um conto inédito de Arthur Azevedo
do e-book CONTOS INÉDITOS DE ARTHUR AZEVEDO [Foglio\Objetiva; ago 2014; $5,00]
http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=1423
[conjunto de especiais características: 15 contos inéditos de Arthur Azevedo – nunca publicados em livro ou obra impressa ou em outros meio e suporte que não a veiculação original em periódicos de diversas épocas e distintas etapas da vida literária do escritor (e da história política,institucional, social e cultural brasileiras).
reveste-se de notável relevância histórico-bibliográfico pelo duplo atributo de , a par do aludido ineditismo , poder contribuir para dar a público, e difundir, o contista Arthur Azevedo – muito mais conhecido e difundido como teatrólogo , mas ainda insuficientemente editado, publicado e estudado. Arthur Azevedo tem cerca de 25 por cento das mais de duas de centenas de contos que escreveu ainda inéditos, apesar de 8 - a principais -- coletâneas impressas publicadas ( suas crônicas – caso pior ainda – têm nada menos do que 85% delas inéditas em livro ou outra forma impressa ou digital .
- imprescindível é que um autor – um multi-autor, como ele -- não seja devidamente estudado,inclusive academicamente, editado,publicado,difundido,reconhecido como um dos grandes 'retratistas' e intérpretes da cidade do Rio de Janeiro, por extensão do Brasil,do final século XIX -início do século XX..
- incompreensível como um dos escritores brasileiros mais criativos e populares de todos os tempos, que em suas criações e escritos aliou expressiva quantidade a significativa qualidade, ainda tem grande parte de sua produção intelectual inédita
- absolutamente indispensável recuperar e tornar conhecido esse relevante material --- a que me dedico, para recolher , organizar, editar e dar a público tanto os contos quanto as crônicas de um dos mais criativos, fecundos e valiosos escritores brasileiros de todos os tempos
um exemplo concreto (e insinuante) da irônica verve azevediana
------------------
Bolina por bolina
I
Naquela tarde, o Medeiros, que morava numa das ruas transversais do Catete, estava no seu gabinete de trabalho, a ler uma folha da tarde,esperando a hora do jantar, quando d. Therezinha, sua esposa, chegou da rua, e foi ter com ele visivelmente agitada.
-- Que tens ?... aconteceu-te alguma coisa?
-- Estou furiosa!
-- Por que?
-- Fui bolinada!
--Bolinada?
-- Sim, no bonde... ainda agora, por um de teus amigos...
-- Qual deles? Perguntou o marido, erguendo-se de um salto.
-- Espera, deixa-me tomar fôlego, disse d. Therezinha, tirando o chapéu e sentando-se numa cadeira.
E erguendo a voz:
-- Eulália!
-- Senhora! acudiu a criada lá de dentro.
-- Dá cá um copo d’água, d. Therezinha suspirou ruidosamente e comentou:
-- Hoje, depois que saíste, fui à cidade comprar umas coisas que me faltavam para acabar um vestido que estou fazendo. Pouco me demorei. Estive na rua do Ouvidor... no largo de S. Francisco de Paula... e voltei ao largo da Carioca para tomar o bonde... Ele estava parado no largo olhando muito para mim...
-- Mas ele quem ?
-- Não me lembro o nome... Aquele sujeito de barba à Ando e monóclio, que me apresentaste um dia no Parque...Aquele?... Sabes?...
-- Não sei.
-- Ora, aquele foi advogado da Ernestina Rocha quando esta se divorciou.
-- Ah! o Moniz!
-- Moniz – é isso mesmo!
-- Não estarás enganada? Olha que o Moniz é um rapaz sério.
-- Sério? Vais ver a sua seriedade! – Como já te disse,ele estava parado no largo, a olhar com muita insistência para mim...
-- Mas tu não podias reparar que ele olhava com muita insistência para ti, se não olhasses com muita insistência para ele...
-- Pode ser, e foi talvez animado pelos meus olhares inocentes que o patife entrou no bonde e se sentou ao meu lado.
-- Falou-te?
-- Cumprimentou-me com muita amabilidade. Quis entabular conversa, disse-me que estava fazendo muito calor, que íamos ter mudança de tempo – mas como eu só lhe respondia por monossílabos imperceptíveis, calou-se. Quando chegamos perto do Passeio Público, senti o seu joelho encostado ao meu. Julguei que fosse por distração. Afastei o joelho... Ele insistiu... Medi-o de alto a baixo com um olhar repreensivo, mas o desavergonhado não se deu por vencido.
-- Miserável! Rosnou o Medeiros.
-- Quando o bonde fazia a volta da Lapa, o homenzinho encostou resolutamente a coxa na minha coxa! A primeira idéia que me acudiu foi bater-lhe com o leque na cara, mas recuei diante do escândalo...
-- E não fizeste nada?
--Levantei-me, fiz parar o bonde,desci, tomei um carro que passava, e vim para casa. Manda pagar ao cocheiro, que está esperando.
O Medeiros saiu do gabinete e mandou despedir o carro. Quando voltou, já d. Therezinha ali não estava: tinha ido para o seu quarto de toilette mudar de roupa.
Ele foi ter com ela, e disse-lhe:
-- Estou perplexo! Tinha o Moniz em conta de homem escrupuloso, incapaz de semelhante procedimento!
-- Pois aí tens.
-- E ele é casado.
--É. Com uma senhora muito mais bonita que eu. E dizem que tem cabelinho na venta! Ah! se ela soubesse...
-- Há de sabê-lo!
-- Hein?
-- Oh! o tratante pagará capital e juros! Afianço-te que tão cedo não se mete a outra!
-- O melhor é evitar o escândalo!
-- Ele que o evitasse!
-- Olha o que vais fazer!
-- Não te assustes!
-- Já estou arrependida de te haver contado o que se passou!
-- Fizeste bem; não te arrependas: as senhoras honestas assim procedem.
-- Pretendi apenas que conhecesses o grande amigo que tens.
-- Achas então que não devo fazer nada?
-- Deixe de cumprimentá-lo: é quanto basta.
-- Veremos. Anda daí! Vamos jantar que são oito horas.
O Medeiros e d. Therezinha jantaram alegremente, e não se falou mais no caso do bonde.
II
D. Therezinha não deixava de ter razão: uma vez que ela protestara contra a audácia do reles bolina, e contara tudo ao marido, era desnecessário entre os dois uma explicação, da qual poderia resultar um escândalo público; bastava realmente que eles nunca mais se falassem, mas conquanto não tivesse a alma impetuosa de um corso, pensava o Medeiros que a vingança não era um prazer exclusivamente reservado aos deuses, e começou a ruminar um plano terrível de desagravo.
O acaso veio de encontro ao desejo.
Poucos dias depois do incidente que deixei narrado, o Medeiros, tomando ao sair de casa um bonde que ia para a cidade, descobriu, sentada a um canto, a esposa do Moniz.
Sentou-se ao lado dela, cumprimentou-a com muita afabilidade, e daí a pouco, enchendo-se de coragem, suspirou e pisou-lhe delicadamente um pé.
Ele esperava que ela se zangasse; desculpar-se-ia, dizendo-lhe: - Faço a vossa excelência o mesmo que seu marido fez à minha mulher; mas, oh surpresa! a dama abaixou o rosto e sorriu, lançando ao Medeiros um olhar de soslaio, um olhar que prometia, que dava quanto pedia um bolina!
A vingança do Medeiros foi muito mais completa que ele desejava, e, passados tempos, quando d. Therezinha lhe perguntou se havia tomado algum desforço contra o Moniz:
-- Tomei, filha, tomei; isto é, eu te digo: para falar a verdade, quem tomou não fui eu, foi a senhora.
A.A.
[O Século 18 março 1907]
[conjunto de especiais características: 15 contos inéditos de Arthur Azevedo – nunca publicados em livro ou obra impressa ou em outros meio e suporte que não a veiculação original em periódicos de diversas épocas e distintas etapas da vida literária do escritor (e da história política,institucional, social e cultural brasileiras).
reveste-se de notável relevância histórico-bibliográfico pelo duplo atributo de , a par do aludido ineditismo , poder contribuir para dar a público, e difundir, o contista Arthur Azevedo – muito mais conhecido e difundido como teatrólogo , mas ainda insuficientemente editado, publicado e estudado. Arthur Azevedo tem cerca de 25 por cento das mais de duas de centenas de contos que escreveu ainda inéditos, apesar de 8 - a principais -- coletâneas impressas publicadas ( suas crônicas – caso pior ainda – têm nada menos do que 85% delas inéditas em livro ou outra forma impressa ou digital .
- imprescindível é que um autor – um multi-autor, como ele -- não seja devidamente estudado,inclusive academicamente, editado,publicado,difundido,reconhecido como um dos grandes 'retratistas' e intérpretes da cidade do Rio de Janeiro, por extensão do Brasil,do final século XIX -início do século XX..
- incompreensível como um dos escritores brasileiros mais criativos e populares de todos os tempos, que em suas criações e escritos aliou expressiva quantidade a significativa qualidade, ainda tem grande parte de sua produção intelectual inédita
- absolutamente indispensável recuperar e tornar conhecido esse relevante material --- a que me dedico, para recolher , organizar, editar e dar a público tanto os contos quanto as crônicas de um dos mais criativos, fecundos e valiosos escritores brasileiros de todos os tempos
um exemplo concreto (e insinuante) da irônica verve azevediana
------------------
Bolina por bolina
I
Naquela tarde, o Medeiros, que morava numa das ruas transversais do Catete, estava no seu gabinete de trabalho, a ler uma folha da tarde,esperando a hora do jantar, quando d. Therezinha, sua esposa, chegou da rua, e foi ter com ele visivelmente agitada.
-- Que tens ?... aconteceu-te alguma coisa?
-- Estou furiosa!
-- Por que?
-- Fui bolinada!
--Bolinada?
-- Sim, no bonde... ainda agora, por um de teus amigos...
-- Qual deles? Perguntou o marido, erguendo-se de um salto.
-- Espera, deixa-me tomar fôlego, disse d. Therezinha, tirando o chapéu e sentando-se numa cadeira.
E erguendo a voz:
-- Eulália!
-- Senhora! acudiu a criada lá de dentro.
-- Dá cá um copo d’água, d. Therezinha suspirou ruidosamente e comentou:
-- Hoje, depois que saíste, fui à cidade comprar umas coisas que me faltavam para acabar um vestido que estou fazendo. Pouco me demorei. Estive na rua do Ouvidor... no largo de S. Francisco de Paula... e voltei ao largo da Carioca para tomar o bonde... Ele estava parado no largo olhando muito para mim...
-- Mas ele quem ?
-- Não me lembro o nome... Aquele sujeito de barba à Ando e monóclio, que me apresentaste um dia no Parque...Aquele?... Sabes?...
-- Não sei.
-- Ora, aquele foi advogado da Ernestina Rocha quando esta se divorciou.
-- Ah! o Moniz!
-- Moniz – é isso mesmo!
-- Não estarás enganada? Olha que o Moniz é um rapaz sério.
-- Sério? Vais ver a sua seriedade! – Como já te disse,ele estava parado no largo, a olhar com muita insistência para mim...
-- Mas tu não podias reparar que ele olhava com muita insistência para ti, se não olhasses com muita insistência para ele...
-- Pode ser, e foi talvez animado pelos meus olhares inocentes que o patife entrou no bonde e se sentou ao meu lado.
-- Falou-te?
-- Cumprimentou-me com muita amabilidade. Quis entabular conversa, disse-me que estava fazendo muito calor, que íamos ter mudança de tempo – mas como eu só lhe respondia por monossílabos imperceptíveis, calou-se. Quando chegamos perto do Passeio Público, senti o seu joelho encostado ao meu. Julguei que fosse por distração. Afastei o joelho... Ele insistiu... Medi-o de alto a baixo com um olhar repreensivo, mas o desavergonhado não se deu por vencido.
-- Miserável! Rosnou o Medeiros.
-- Quando o bonde fazia a volta da Lapa, o homenzinho encostou resolutamente a coxa na minha coxa! A primeira idéia que me acudiu foi bater-lhe com o leque na cara, mas recuei diante do escândalo...
-- E não fizeste nada?
--Levantei-me, fiz parar o bonde,desci, tomei um carro que passava, e vim para casa. Manda pagar ao cocheiro, que está esperando.
O Medeiros saiu do gabinete e mandou despedir o carro. Quando voltou, já d. Therezinha ali não estava: tinha ido para o seu quarto de toilette mudar de roupa.
Ele foi ter com ela, e disse-lhe:
-- Estou perplexo! Tinha o Moniz em conta de homem escrupuloso, incapaz de semelhante procedimento!
-- Pois aí tens.
-- E ele é casado.
--É. Com uma senhora muito mais bonita que eu. E dizem que tem cabelinho na venta! Ah! se ela soubesse...
-- Há de sabê-lo!
-- Hein?
-- Oh! o tratante pagará capital e juros! Afianço-te que tão cedo não se mete a outra!
-- O melhor é evitar o escândalo!
-- Ele que o evitasse!
-- Olha o que vais fazer!
-- Não te assustes!
-- Já estou arrependida de te haver contado o que se passou!
-- Fizeste bem; não te arrependas: as senhoras honestas assim procedem.
-- Pretendi apenas que conhecesses o grande amigo que tens.
-- Achas então que não devo fazer nada?
-- Deixe de cumprimentá-lo: é quanto basta.
-- Veremos. Anda daí! Vamos jantar que são oito horas.
O Medeiros e d. Therezinha jantaram alegremente, e não se falou mais no caso do bonde.
II
D. Therezinha não deixava de ter razão: uma vez que ela protestara contra a audácia do reles bolina, e contara tudo ao marido, era desnecessário entre os dois uma explicação, da qual poderia resultar um escândalo público; bastava realmente que eles nunca mais se falassem, mas conquanto não tivesse a alma impetuosa de um corso, pensava o Medeiros que a vingança não era um prazer exclusivamente reservado aos deuses, e começou a ruminar um plano terrível de desagravo.
O acaso veio de encontro ao desejo.
Poucos dias depois do incidente que deixei narrado, o Medeiros, tomando ao sair de casa um bonde que ia para a cidade, descobriu, sentada a um canto, a esposa do Moniz.
Sentou-se ao lado dela, cumprimentou-a com muita afabilidade, e daí a pouco, enchendo-se de coragem, suspirou e pisou-lhe delicadamente um pé.
Ele esperava que ela se zangasse; desculpar-se-ia, dizendo-lhe: - Faço a vossa excelência o mesmo que seu marido fez à minha mulher; mas, oh surpresa! a dama abaixou o rosto e sorriu, lançando ao Medeiros um olhar de soslaio, um olhar que prometia, que dava quanto pedia um bolina!
A vingança do Medeiros foi muito mais completa que ele desejava, e, passados tempos, quando d. Therezinha lhe perguntou se havia tomado algum desforço contra o Moniz:
-- Tomei, filha, tomei; isto é, eu te digo: para falar a verdade, quem tomou não fui eu, foi a senhora.
A.A.
[O Século 18 março 1907]
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