segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
2014, um ano de ‘entradas na posteridade’— IV
significativo, histórico este ano – nele se dá
o 175º. aniversário de nascimento da maior figura da literatura brasileira. predestinado foi Machado de Assis naquele 21 junho 1839 quando vindo ao mundo
dos homens, na chácara do Livramento no Rio de Janeiro, abria as portas da
posteridade que se configuraria pelo supremo quilate de sua obra.
_______________
Machado de Assis, esfinge de transcendência literária
“Decifra-me – mas não te devoro”[sic] : parece dizer Machado de Assis,
dirigindo-se ao leitor.
Brincadeira, talvez... – mas
expressa uma espécie de lema machadiano a pautar as relações com aquele que o
lê.; Machado, na verdade, ‘brinca’ (no bom sentido), essencialmente na
crônica,no conto, até no romance, com aquele que o lê. Em seus textos, às
características de leveza de tom , fluência textual e estilística muito
próxima da oralidade, ironia satírica e pilhéria, metáfora e paródia, alia-se a
presença incisiva dos admiráveis elementos machadianos do disfarce, da
dissimulação, do subterfúgio, da sutileza, postos como desafios ao leitor..
A nem sempre linear narrativa,
ficcional ou não-ficcional – na crônica, por exemplo, nela predominante a “arte
das transições”, levada a extremos no unir tópicos aparentemente distintos, um
parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um
resultado surpreendente; no conto,
oferecidas explícitas ou veladas armadilhas retóricas e significados ocultos -- tem seu
trajeto ‘amenizado’ para o leitor
, primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e
reintegrando-o,numa espiral de circularidade muitas vezes nem percebida de
todo. Machado esconde ou disfarça uma
parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir -- o
conhecido narrador machadiano, o ‘narrador volúvel’, presente tanto na ficção
quanto na não-ficção..
Sua
obra parece sempre ‘pronta’ a oferecer e
revelar surpresas – não fosse ele autêntico mestre do subterfúgio, da
dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma, inclusive por meio de
outras de suas peculiaridades, o uso do anonimato e do pseudônimo: foram quase
40 assinaturas em contos (como eram publicados em folhetins, por vezes uma
assinatura diferente para cada capítulo) e em crônicas.
Um, ou o, Machado ‘misterioso’ fez
seu debut literário, por assim dizer, logo em seu primeiro livro publicado, Queda que as mulheres têm pelos tolos,
em 1861 (antes, nesse mesmo ano,
veiculado em folhetins em A
Marmota ). Obra de extrema representatividade histórico-literária na
produção machadiana, revestida de características especiais de definição
genérica, conotação autoral, geradora de polêmica entre machadianos e de
fundamental, crucial relevância pelo que contém, e projeta, de elementos e
concepções que pautariam toda sua ficção literária.
Além
de abrigar um conjunto de peculiaridades que a fazem única e diferenciada.A
primeira de suas peculiaridades refere-se ao fato de ter despertado ao longo do tempo – não tanto
quando de sua publicação – dúvidas, daí uma salutar (culturalmente falando)
polêmica, quanto à sua condição de criação original ou tradução de Machado de
Assis,contendo em si, portanto, uma conotação de mistério,dúvida e polêmica,
que de resto apenas corroboram, por assim dizer, o ‘espírito’ machadiano de
fazer literatura.
Outra das particularidades --que se percebe de imediato – reside em
não constituir-se em um gênero definido, difícil de classificar nos
moldes tradicionais, aproximando-se mais de uma sátira e menos de um ensaio,
muito longe de ser um romance,uma novela, um conto ou uma crônica.
Sobretudo a multiplicidade da representatividade
histórica de Queda que as mulheres têm
para os tolos expressa-se em especial por deflagrar um elo de interações, afinidades e
intertextualidades , prenunciando,anunciando, antecipando e consubstanciando em
sua forma,linguagem,estilo e conteúdo muito
do que viria a seguir na lavra ficcional do autor. Que elos de
intertextualização são esses ? a)
como suposta tradução, inserida na
produção machadiana, constitui manifestação pioneira do conceito da tradução, a
incorporar a célebre “teoria do molho” ,
reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo
elaboradas por ele próprio, em muitos
aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada ; b) a ‘teoria amorosa’ desenvolvida em
“Desencantos”, em Ressurreição, e chegando a Dom Casmurro –
o livro inaugural interagindo com a
primeira peça teatral, com o primeiro romance e
com a opera-mater : em todas
elas, a ‘ideologia’ da dubiedade,
da ambigüidade, da dicotomia ; c) a mulher como protagonista
primordial da ficção machadiana ,que
traz para o centro das discussões, o feminino e a questão da sexualidade feminina : nenhum escritor de seu tempo ‘edificou’ tanto a mulher como personagem
capital e leitmotiv básico de seus textos
como Machado ,que escrevia sobre mulheres e para mulher ; d)
a tríade tolo -- mulher -- homem de espírito , que
permeia toda a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente em
contos e romances ao longo do tempo e da evolução literária de Machado
,transportando a 'ideologia' de Queda que
as mulheres têm para os tolos para
muitas das obras posteriores.
Em se tratando de Machado,
sabemos tudo ser possível – o feito pelo não-feito, o criado pelo traduzido, o
escrito pelo não-escrito. A alimentarem
especulações, ilações e interpretações em torno não apenas de Queda que as mulheres têm pelos tolos, a
rigor, um prenúncio do que se desenrolaria na produção literária de
Machado, mas de várias outras obras,
entre dúvidas , sutilezas e enigmas, disfarces
e subterfúgios -- que não faltam na obra e na carreira literária machadiana.
‘Mistérios’, subterfúgios,
disfarces, ‘jogos com o leitor’ à parte,
na verdade, sempre existiu em Machado um notável e meticuloso experimentador
-- mutável na utilização de
formas,estilos e modelos -- mas
absolutamente seguro,determinado e consciente.. Ao longo do tempo, sempre preocupou-se com configurações para sua obra –
essencialmente, tanto o conto quanto a crônica foram notáveis e eficazes
terrenos de experimentações narrativas, nelas se revelando uma seqüência
notável de exercícios formais,estilísticos, de linguagem e de enfoque ao longo
de sua produção e evolução literárias..
Evolução literária machadiana que
desenvolveu-se ao longo de sua vida
literária (e pessoal) como um todo coerente e consistente – obediente a escalas
e estágios – mediado por um período de marcante inflexão que antecede o que se
convencionou denominar ‘o grande salto’, a grande mudança -- que tanto instiga
estudiosos, pesquisadores,historiadores, críticos ; e leitores, claro. Inflexão
que, a par de contribuir positivamente para a análise e interpretação adequadas
da trajetória machadiana, em
contrapartida serve para sedimentar um conceito, ou avaliação, de muitas
formas discutível : a divisão da obra --
ficcional e não-ficcional -- de Machado em duas fases ,o ‘aprendizado’ versus a ‘maturidade’, a ‘formação’ versus a ‘radicalização’.
Para de uma vez por todas reformular
o conceito estabelecido sobre tal
dicotomia : a obra machadiana submete-se
a estruturas básicas que se superpõem, se interligam e se renovam “como um todo coerentemente organizado(...) à
medida que seus textos se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias
e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas
diferentes,mais complexas e mais sofisticadas”, sentencia Silviano
Santiago. Na verdade, a estética ficcional e não-ficcional e o pensamento literário machadianos não podem
nem devem ser tão facilmente encaixados
nesses dois blocos distintos, até porque
se desenvolvem e se coadunam concomitantemente,seguindo, ambos, vis a vis,a
mesma linha no decorrer de toda sua carreira,apenas sedimentando-se e
amadurecendo consistentemente pós-1880 e nas obras seqüentes -- o romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e a coletânea de contos Papéis avulsos (1882), como
incontestáveis epígonos da transformação.
Nítida
e lídima é a relação-interação entre a
mudança do contexto político-social do Brasil do século XIX – notadamente a
partir de 1871 -- e as transformações formais e de conteúdo da obra machadiana,
em cujo cerne encontrava-se o pensamento político-histórico sobre o Brasil --
haja vista a extrema ‘presença’ da política,e do lúcido olhar para ela -- que
permeou e sedimentou a totalidade quer da
ficção quer da não-ficção, numa espécie de espinha-dorsal, no decorrer
de todas as ‘fases’ e estágios de sua trajetória literária.Machado percebeu
nitidamente a necessidade de fazer algo mais diferenciado – no plano estritamente literário, tanto do Romantismo
ainda vigente (para ele, já “acabado”) quanto do Realismo-Naturalismo, que então impunha
narrativas e descrições ao mesmo tempo minuciosas e contundentes da vida real (
via de regra surpreendendo,e muitas vezes ‘assustando’, o público-leitor); no plano histórico, em função da própria mutação política e
social que o país experimentava .
‘Dinâmico’ na construção e
sedimentação de sua vida literária,
obediente a um consciente,coerente e
consistente processo evolutivo, de ‘camadas’
superpostas, interligadas e re-articuladas ; ‘misterioso’, ‘enigmático’,
disfarces e subterfúgios postos a serviço e uso da criação ficcional e
não-ficcional – sempre ‘pronta’ a revelar surpresas(e inéditos...)-- Machado de
Assis e sua magnífica obra exemplificam e emblematizam à perfeição a sentença
do crítico e ensaísta Alcides Villaça: “é
papel da Literatura dar expressão ao que não a tem, revelar disfarçadamente o
que se disfarça de fato”. A relativização de valores constituía-se numa
estratégica de Machado para levar adiante seu projeto literário, e certa
contundência de suas relativizações, não
conclusivas em si mesmas,
propicia e estimula de resto reflexões e interpretações que servem para
valorizar e enriquecer mais e mais,através dos tempos, sua grandiosa obra literária.
Na qual evidencia-se e
sedimenta-se o vaticínio que ele mesmo formulou:
“A literatura, como Proteu, troca de
formas, e nisso está a condição de sua
vitalidade.”
domingo, 21 de dezembro de 2014
2014, UM ANO DE ‘ENTRADAS NA POSTERIDADE’—III
As outras facetas de Coelho Neto
Coelho Neto (1864-1934) abriga duas marcas de efemérides, neste 2014 : sesquicentenário de seu nascimento (1864), 80 anos de morte (1934).
* [por essa dupla significância, publico pela Academia Brasileira de Letras a coletânea de contos , na verdade quase crônicas, A cidade maravilhosa, rigorosamente a última obra ficcional do escritor, de edição original pode-se dizer rara pois publicada apenas em 1928; do mesmo modo, algo inusitada, pois revela em Coelho Neto um afastamento definitivo das linhas do naturalismo e do regionalismo que conferiu e com as quais pautou e pontuou os contos escritos em períodos e fases imediatamente anteriores a estes: nos contos denotam-se nitidamente, uns mais outros menos, claros vieses e cunhos essencialmente reflexivos, mais discursivos e dialéticos e menos descritivos, sob um fluxo algo filosófico de expressão e formalização de pensamentos, interpretações, especulações intelectuais -- ainda que exibam e sejam permeados por manifestações do ‘parnasianismo’ marcantes genericamente de sua escrita , desde sempre ].
Ao pesquisar e estudar Coelho Neto para o livro que publiquei em 2010, acerca do antagonismo com Lima Barreto, já tivera a atenção despertada – sem poder então dedicar-me e aprofundar-me nisso – para as crônicas do escritor, bem mais conhecido (e pouco valorizado) por romances,contos,teatro e mesmo artigos na imprensa pautados, pelos estilo e escrita que tão ‘ácidos’ comentários críticos,desairosos mesmo, provocaram p. ex. em Lima Barreto durante a ‘convivência’ dos dois – década de 1910 (e os dois primeiros anos dos 20,uma vez Lima ter morrido em 1922) – nos modernistas,a partir da década de 1920, e nos analistas e leitores de hoje.
O que pouco, muito pouco se conhece – até porque raramente divulgado e estudado—é justamente o Coelho Neto cronista, ‘fértil’ cronista diga-se, pois bastante alentado o acervo de sua produção em jornais e revistas ao longo de quase 50 anos.
E o que menos,muito menos ainda se sabe, é o quanto ,e como, Coelho Neto tratou, em determinadas séries de crônicas, da... política de seu tempo. Registrou e legou importante testemunho textual sobre momentos e processos de grande importância na história brasileira do final do século XIX e primeiras décadas do século XX – e relevante observar : face a seu grande poder de comunicação,por via de uma linguagem assimilável pelo leitor e mercê do prestígio que foi angariando no decorrer dos anos, procurou levar a camadas de público normalmente distantes dos fatos políticos não apenas registros e retratos mas sobretudo comentários pessoais sobre a realidade então vigente. Coelho Neto, a propósito, expressou em entrelinhas logo na primeira das séries seu entendimento de que somente pela crônica – deixava então de se dedicar apenas à ficção (antes, publicara alguns contos no mesmo veículo no qual se iniciaria na crônica) poderia levar a literatura a “um meio despreparado para recebê-la e entendê-la,face ao atraso e ignorância de um público distante das letras” [sic], ao mesmo tempo fazendo da crônica um canal direto de intervenção social. .
Basicamente, são quatro os conjuntos cronísticos nos quais Coelho Neto tratou de temas e questões políticas poemas e contos de verdadeiros libelos contra a escravidão e a favor da República: a par de muitas considerações e apreciações passíveis – e necessárias – de a eles se fazerem, esses conjuntos cronísticos , com seus respectivos enfoques político e social , afastam-se sensivelmente das características mais marcantes da prosa de Coelho Neto.
De um modo geral, os estudiosos da literatura brasileira concordam em que ninguém como Coelho Neto encarnou “mais dramaticamente” o problema da forma. Romântico por inclinação e formação natural, realista em algumas obras, simbolista em outras, sobretudo parnasiano na essência da maioria de seus escritos, a Coelho Neto na verdade nunca faltou capacidade criadora, mas ele próprio a relegou a segundo plano em sua obsessão da escrita de efeito, obsessão que o levou a procurar seguir todas as correntes literárias das épocas em que viveu : somente no fim da vida rebelou-se contra a moda e os modismos.
Coelho Neto incorporou e personificou como nenhum outro múltiplas, e indubitavelmente conflitantes, características e propósitos , “querendo ser primitivo e heleno, colher motivos em lendas nórdicas e orientais, exprimir a natureza de sua terra e a gente contemporânea, fazendo isso tudo menos por curiosidade intelectual do que pelo prazer de ouvir soarem vocábulos exóticos ou onamotopaicos”, sentenciou Lúcia Miguel Pereira.
Por força do culto ao virtuosismo, “deixou-se dominar pela palavra, em lugar de dominá-la”,observou ela em artigo publicado na Gazeta de Notícias, de 9 de dezembro de 1934, exatos 10 dias depois da morte do escritor : “Sua obra visava à fruição estética e, mesmo quando incluía um conteúdo social pendia para o artificialismo, porque tomou o meio pelo fim, confundiu expressão e idéia; suas fases prolixas, difusas, onde a função do adjetivo é muito mais importante que a do substantivo, revelam a tendência a impressionar-se excessivamente com os detalhes, a sentir mais o aspecto exterior das coisas que a sua essência, ao mesmo tempo em que seus vocábulos raros traduzem o gosto pelo bonito, pelo brilhante; a força interior, a obedecer enfim a todas as exigências da moda”.
Coelho Neto (1864-1934) abriga duas marcas de efemérides, neste 2014 : sesquicentenário de seu nascimento (1864), 80 anos de morte (1934).
* [por essa dupla significância, publico pela Academia Brasileira de Letras a coletânea de contos , na verdade quase crônicas, A cidade maravilhosa, rigorosamente a última obra ficcional do escritor, de edição original pode-se dizer rara pois publicada apenas em 1928; do mesmo modo, algo inusitada, pois revela em Coelho Neto um afastamento definitivo das linhas do naturalismo e do regionalismo que conferiu e com as quais pautou e pontuou os contos escritos em períodos e fases imediatamente anteriores a estes: nos contos denotam-se nitidamente, uns mais outros menos, claros vieses e cunhos essencialmente reflexivos, mais discursivos e dialéticos e menos descritivos, sob um fluxo algo filosófico de expressão e formalização de pensamentos, interpretações, especulações intelectuais -- ainda que exibam e sejam permeados por manifestações do ‘parnasianismo’ marcantes genericamente de sua escrita , desde sempre ].
Ao pesquisar e estudar Coelho Neto para o livro que publiquei em 2010, acerca do antagonismo com Lima Barreto, já tivera a atenção despertada – sem poder então dedicar-me e aprofundar-me nisso – para as crônicas do escritor, bem mais conhecido (e pouco valorizado) por romances,contos,teatro e mesmo artigos na imprensa pautados, pelos estilo e escrita que tão ‘ácidos’ comentários críticos,desairosos mesmo, provocaram p. ex. em Lima Barreto durante a ‘convivência’ dos dois – década de 1910 (e os dois primeiros anos dos 20,uma vez Lima ter morrido em 1922) – nos modernistas,a partir da década de 1920, e nos analistas e leitores de hoje.
O que pouco, muito pouco se conhece – até porque raramente divulgado e estudado—é justamente o Coelho Neto cronista, ‘fértil’ cronista diga-se, pois bastante alentado o acervo de sua produção em jornais e revistas ao longo de quase 50 anos.
E o que menos,muito menos ainda se sabe, é o quanto ,e como, Coelho Neto tratou, em determinadas séries de crônicas, da... política de seu tempo. Registrou e legou importante testemunho textual sobre momentos e processos de grande importância na história brasileira do final do século XIX e primeiras décadas do século XX – e relevante observar : face a seu grande poder de comunicação,por via de uma linguagem assimilável pelo leitor e mercê do prestígio que foi angariando no decorrer dos anos, procurou levar a camadas de público normalmente distantes dos fatos políticos não apenas registros e retratos mas sobretudo comentários pessoais sobre a realidade então vigente. Coelho Neto, a propósito, expressou em entrelinhas logo na primeira das séries seu entendimento de que somente pela crônica – deixava então de se dedicar apenas à ficção (antes, publicara alguns contos no mesmo veículo no qual se iniciaria na crônica) poderia levar a literatura a “um meio despreparado para recebê-la e entendê-la,face ao atraso e ignorância de um público distante das letras” [sic], ao mesmo tempo fazendo da crônica um canal direto de intervenção social. .
Basicamente, são quatro os conjuntos cronísticos nos quais Coelho Neto tratou de temas e questões políticas poemas e contos de verdadeiros libelos contra a escravidão e a favor da República: a par de muitas considerações e apreciações passíveis – e necessárias – de a eles se fazerem, esses conjuntos cronísticos , com seus respectivos enfoques político e social , afastam-se sensivelmente das características mais marcantes da prosa de Coelho Neto.
De um modo geral, os estudiosos da literatura brasileira concordam em que ninguém como Coelho Neto encarnou “mais dramaticamente” o problema da forma. Romântico por inclinação e formação natural, realista em algumas obras, simbolista em outras, sobretudo parnasiano na essência da maioria de seus escritos, a Coelho Neto na verdade nunca faltou capacidade criadora, mas ele próprio a relegou a segundo plano em sua obsessão da escrita de efeito, obsessão que o levou a procurar seguir todas as correntes literárias das épocas em que viveu : somente no fim da vida rebelou-se contra a moda e os modismos.
Coelho Neto incorporou e personificou como nenhum outro múltiplas, e indubitavelmente conflitantes, características e propósitos , “querendo ser primitivo e heleno, colher motivos em lendas nórdicas e orientais, exprimir a natureza de sua terra e a gente contemporânea, fazendo isso tudo menos por curiosidade intelectual do que pelo prazer de ouvir soarem vocábulos exóticos ou onamotopaicos”, sentenciou Lúcia Miguel Pereira.
Por força do culto ao virtuosismo, “deixou-se dominar pela palavra, em lugar de dominá-la”,observou ela em artigo publicado na Gazeta de Notícias, de 9 de dezembro de 1934, exatos 10 dias depois da morte do escritor : “Sua obra visava à fruição estética e, mesmo quando incluía um conteúdo social pendia para o artificialismo, porque tomou o meio pelo fim, confundiu expressão e idéia; suas fases prolixas, difusas, onde a função do adjetivo é muito mais importante que a do substantivo, revelam a tendência a impressionar-se excessivamente com os detalhes, a sentir mais o aspecto exterior das coisas que a sua essência, ao mesmo tempo em que seus vocábulos raros traduzem o gosto pelo bonito, pelo brilhante; a força interior, a obedecer enfim a todas as exigências da moda”.
2014, UM ANO DE ‘ENTRADAS NA POSTERIDADE’—II
Laurindo Rabello: ultra-romântico; “poeta lagartixa”; “o Bocage brasileiro”
“Que homem é esse?” assim exclamou, surpreendido, Antônio Álvares da Silva ao ver Laurindo Rabello pela primeira vez. E então observou : “língua desempeçada a cortar pelo mundo com um desembaraço ; com o maior sangue frio saltava por cima de certos respeitos e deferências, em uma linguagem que eu nunca tinha ouvido. O mais é que eu, tal era a minha comoção, não podia deixar de ouvi-lo, preso, encadeado, como me achava, a uma palavra rápida, correta, fluentíssima e cáustica que fascinava. “
Quem foi, enfim, Laurindo Rabello ?
Foi renomado poeta romântico -- embora no delineamento dos autores e obras representativos do romantismo literário brasileiro, normalmente não está incluído como dos grandes nomes, ao lado de Gonçalves Dias, Gonçalves Magalhães, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu, Castro Alves, por exemplo; mas deveria, sob todos os aspectos,sentidos e pontos de vista ter lugar honroso nos manuais canônicos de Literatura brasileira.
Laurindo foi dos mais famosos e estimados poetas brasileiros do seu tempo, mercê de acentuado teor de crítica social e diversidade temática nos variados estilos lírico, burlesco, épico, satírico, presentes em suas composições; notabilizando-se também pela habilidade para atacar e satirizar poeticamente as autoridades, e pelos exercícios poéticos de cunho obsceno -- nos “Poemas livres”, editados postumamente em 1882 , daí cognominado "o Bocage brasileiro", assim designado pela fértil acervo poético de cunho obsceno, erótico, pornográfico, fescenino, produzido mesmo em pleno romantismo literário brasileiro, de resto ‘púdico’, ‘sisudo’, rigorosamente balizado pela moral oitocentista.O autor desses impactantes poemas, vítima de leituras no mínimo incompletas de sua produção literária, teve esse grupo sumariamente expurgado das sucessivas edições de suas obras.
A par do próprio quilate de sua poética romântica, de grande , e qualitativa, diversidade temática nos variados estilos lírico, burlesco, épico, satírico, e erótico e obsceno , aliada a acentuado teor de crítica social, presentes em suas composições, o atributo que mais impressionava seus contemporâneos fosse o talento para os improvisos – repentista, compositor e cantor de modinhas e lundus , bem recebido e aclamado em todos os salões, “o desejado de todas as reuniões sociais e musicais”.
Laurindo Rabello tocava piano e violão, repentista, compositor e cantor de modinhas e lundus, sua popularidade estendendo-se por toda a cidade do Rio de Janeiro, era a figura principal da época, em torno de quem por cerca de 20 anos “girou o movimento harmonioso de nossas canções”.Daí carinhosamente apelidado “o poeta lagartixa”, pela maneira espontânea e alegre de viver, o jeito desengonçado de se trajar, andar e comportar.
Tamanha sua importância literária e intelectual que foi profunda e intensamente comentado por críticos proeminentes entre outros como Silvio Romero, José Veríssimo, Alfredo Bosi, Antonio Candido .Tal sua relevância bibliográfica, formidável é o volume de sua produção poética , seja assim propriamente dita, seja em composições musicais, publicadas, notadamente pos-mortem : são 13 obras poéticas, 11 antologias específicas, 1 seleta e 16 coletâneas de modinhas,lundus e canções -- além do conjunto fescenino , reunido nos “Poemas livres”.
Depois de morrer – em 1864, estamos pois no sesquicentenário de sua morte -- pouco a pouco, o nome de Laurindo Rabello embaçou-se e caiu no esquecimento, por vezes recebendo apenas menção de um estudioso, ou crítico, ou historiador da literatura brasileira.
* [ justamente por tal sesquicentenário, preparei duas obras (ainda a editar e publicar) : “Inéditos de Laurindo Rabello”, abrigando cinco poemas, um folhetim, uma modinha e um lundu, e “Laurindo Rabello fescenino”( este, na verdade o 1º. volume de um conjunto de obras e textos de mesmos teor, timbre e tom, escritos por renomados, consagrados, canônicos, ‘comportados’ escritores brasileiros clássicos), expondo 38 poemas “licenciosos, voluptuosos, obscenos”.
dupla homenagem,portanto : de um lado sejam dados ao conhecimento público os textos, até então inéditos em livro ou outro suporte, apenas publicados originalmente em periódicos de época; de outro, faça-se conhecer – e entreter -- os “Poemas livres”,publicados postumamente (1882) e de imediato colocada esta até então única e restrita edição no limbo das obras proibidas, censuradas, escondidas, confinadas aos porões do esquecimento literário.].
...................................
Eu possuo uma bengala
Eu possuo uma bengala
Da maior estimação,
É feita da melhor cana
E tem o melhor castão.
A minha bela caseira
Toda inteira se arrepia
Quando três vezes por dia
Dou bengaladas nela.
remate (refrão : Lhe ficando a bengalada...
-- lundu composto e cantado por Laurindo Rabello – e sempre pedido em suas apresentações e participações em salões, festas,eventos,etc; o remate, qual refrão, provocava na platéia “apartes picantes, imaginação lasciva e muita hilariedade...”
“Que homem é esse?” assim exclamou, surpreendido, Antônio Álvares da Silva ao ver Laurindo Rabello pela primeira vez. E então observou : “língua desempeçada a cortar pelo mundo com um desembaraço ; com o maior sangue frio saltava por cima de certos respeitos e deferências, em uma linguagem que eu nunca tinha ouvido. O mais é que eu, tal era a minha comoção, não podia deixar de ouvi-lo, preso, encadeado, como me achava, a uma palavra rápida, correta, fluentíssima e cáustica que fascinava. “
Quem foi, enfim, Laurindo Rabello ?
Foi renomado poeta romântico -- embora no delineamento dos autores e obras representativos do romantismo literário brasileiro, normalmente não está incluído como dos grandes nomes, ao lado de Gonçalves Dias, Gonçalves Magalhães, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu, Castro Alves, por exemplo; mas deveria, sob todos os aspectos,sentidos e pontos de vista ter lugar honroso nos manuais canônicos de Literatura brasileira.
Laurindo foi dos mais famosos e estimados poetas brasileiros do seu tempo, mercê de acentuado teor de crítica social e diversidade temática nos variados estilos lírico, burlesco, épico, satírico, presentes em suas composições; notabilizando-se também pela habilidade para atacar e satirizar poeticamente as autoridades, e pelos exercícios poéticos de cunho obsceno -- nos “Poemas livres”, editados postumamente em 1882 , daí cognominado "o Bocage brasileiro", assim designado pela fértil acervo poético de cunho obsceno, erótico, pornográfico, fescenino, produzido mesmo em pleno romantismo literário brasileiro, de resto ‘púdico’, ‘sisudo’, rigorosamente balizado pela moral oitocentista.O autor desses impactantes poemas, vítima de leituras no mínimo incompletas de sua produção literária, teve esse grupo sumariamente expurgado das sucessivas edições de suas obras.
A par do próprio quilate de sua poética romântica, de grande , e qualitativa, diversidade temática nos variados estilos lírico, burlesco, épico, satírico, e erótico e obsceno , aliada a acentuado teor de crítica social, presentes em suas composições, o atributo que mais impressionava seus contemporâneos fosse o talento para os improvisos – repentista, compositor e cantor de modinhas e lundus , bem recebido e aclamado em todos os salões, “o desejado de todas as reuniões sociais e musicais”.
Laurindo Rabello tocava piano e violão, repentista, compositor e cantor de modinhas e lundus, sua popularidade estendendo-se por toda a cidade do Rio de Janeiro, era a figura principal da época, em torno de quem por cerca de 20 anos “girou o movimento harmonioso de nossas canções”.Daí carinhosamente apelidado “o poeta lagartixa”, pela maneira espontânea e alegre de viver, o jeito desengonçado de se trajar, andar e comportar.
Tamanha sua importância literária e intelectual que foi profunda e intensamente comentado por críticos proeminentes entre outros como Silvio Romero, José Veríssimo, Alfredo Bosi, Antonio Candido .Tal sua relevância bibliográfica, formidável é o volume de sua produção poética , seja assim propriamente dita, seja em composições musicais, publicadas, notadamente pos-mortem : são 13 obras poéticas, 11 antologias específicas, 1 seleta e 16 coletâneas de modinhas,lundus e canções -- além do conjunto fescenino , reunido nos “Poemas livres”.
Depois de morrer – em 1864, estamos pois no sesquicentenário de sua morte -- pouco a pouco, o nome de Laurindo Rabello embaçou-se e caiu no esquecimento, por vezes recebendo apenas menção de um estudioso, ou crítico, ou historiador da literatura brasileira.
* [ justamente por tal sesquicentenário, preparei duas obras (ainda a editar e publicar) : “Inéditos de Laurindo Rabello”, abrigando cinco poemas, um folhetim, uma modinha e um lundu, e “Laurindo Rabello fescenino”( este, na verdade o 1º. volume de um conjunto de obras e textos de mesmos teor, timbre e tom, escritos por renomados, consagrados, canônicos, ‘comportados’ escritores brasileiros clássicos), expondo 38 poemas “licenciosos, voluptuosos, obscenos”.
dupla homenagem,portanto : de um lado sejam dados ao conhecimento público os textos, até então inéditos em livro ou outro suporte, apenas publicados originalmente em periódicos de época; de outro, faça-se conhecer – e entreter -- os “Poemas livres”,publicados postumamente (1882) e de imediato colocada esta até então única e restrita edição no limbo das obras proibidas, censuradas, escondidas, confinadas aos porões do esquecimento literário.].
...................................
Eu possuo uma bengala
Eu possuo uma bengala
Da maior estimação,
É feita da melhor cana
E tem o melhor castão.
A minha bela caseira
Toda inteira se arrepia
Quando três vezes por dia
Dou bengaladas nela.
remate (refrão : Lhe ficando a bengalada...
-- lundu composto e cantado por Laurindo Rabello – e sempre pedido em suas apresentações e participações em salões, festas,eventos,etc; o remate, qual refrão, provocava na platéia “apartes picantes, imaginação lasciva e muita hilariedade...”
sábado, 6 de dezembro de 2014
Humberto de Campos -- 80 anos depois
neste 05 dezembro, em 1934, morria Humberto de Campos, um dos mais ativos e profícuos escritores de seu tempo -- inclusive dono de uma verve satírica demolidora ,até mesmo contra seus pares e amigos literatos, e em especial de uma 'veia' fescenina (que na verdade era do Conselheiro XX, presente estará em meu livro com os fesceninos)
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As cruzes
As senhores grazinavam, como
periquitos em roçado, em torno da mesa do chá, quando Mme. Gama Simpson se
curvou, rindo com alarido, sobre a toalha de linho bordada de cegonhas
vermelhas, numa escandalosa explosão de alegria.
Segurando em uma das mãos a taça
de porcelana e na outra, fechadinha como um botão de rosa, uma torradinha cor
de ouro, a linda criatura ria despreocupadamente, agitando-se na cadeira,
quando, com o movimento do corpo, lhe saltou do colo de neve e rosa, pela
janela de seda do decote, a sua custosa cruz de brilhante, fugindo-lhe para o
ombro, com o risco de perder-se.
— Cuidado com a cruz, madame! —
avisou, atencioso, do outro lado da mesa, o conselheiro Atanásio, que
observava, sem perder um movimento do solo, as ondulações do Calvário e os
arredores da Jerusalém.
D. Lisete olhou o decote, apanhou
a cruz fugitiva, e, aconchegando-a à carnem rosada, queixou-se, risonha:
— Também, que idéia esta, de
inventar cruzes para o colo da gente!
— Vossa Excelência não sabe,
então, o que elas significam, na opinião de Tabarin?
As senhoras mostraram-se curiosas
de conhecer a origem daquele costume, e o antigo palaciano começou, medindo as
palavras:
— Na Idade Média, quando eram
deficientes os meios de comunicação de cidade para cidade, de aldeia para
aldeia, de um castelo para outro castelo, os monges, que dominavam nos países
barbarizados da Europa tomaram a si a incumbência de marcar os caminhos, cujas
direções eram assinaladas por meio de cruzes. Ao deparar, na mata ou na
montanha, um destes símbolos da cristandade, o viajante já sabia que não errara
o seu roteiro, e que a estrada era, mesmo, por ali...
— Mas... - interrompeu,
impaciente, Mme. Souza Batista.
— Espere... - implorou o
conselheiro.
E continuou:
— Mais tarde, com o advento das
modas femininas, e com o aproveitamento, por parte das mulheres, de todas as
conquistas do homem, entenderam elas de utilizar o mesmo símbolo, com a mesma
significação.
— A cruz no colo das mulheres
quer dizer, então, alguma coisa? — interrompeu, franzindo a testa, Mme.
Werther.
— Evidentemente, minha senhora! —
tornou o conselheiro.
E explicou:
— Elas estão dizendo, como nas
montanhas antigas, que... o caminho é por ali!
Quando o conselheiro terminou a
sua narrativa, Mme. Simpson procurou a sua cruz de brilhantes, e tomou um
susto. Com os seus modos estabanados, a cruz havia, de novo, abandonado o
decote, e fugido para trás...
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Ferrabrás
O coronel Otaviano de Meireles,
comandante de um batalhão da Guarda Nacional aquartelado em Niterói, era
conhecido em toda a cidade pela sua valentia, e, em especial, pela sua
intransigência em questões de honra. Casado com uma das senhoras mais formosas
do bairro, era tal o pavor infundido pelo seu nome, que ninguém se atrevia,
sequer, a levantar os olhos para a sua cara metade. Aquele que tal fizesse,
era, na opinião de toda a gente, um homem liquidado.
Foi por esse tempo, e quando mais
se acentuava, em toda a praia de Icaraí, a fama da coragem do coronel, que
passou a residir na vizinha capital o jovem advogado Dr. Otacílio Fernandes,
que não era coronel, nem major, nem capitão, nem tenente, mas fora, sempre, um
dos mais famosos namoradores de Niterói.
Proprietário do prédio em que o
coronel residia, não foi necessário grande esforço da parte do moço para travar
amizade com o inquilino; e esta foi tão rápida, e tão sincera, que, uma semana depois, era o Dr.
Otacílio convidado para um almoço, no primeiro domingo, na residência do brioso
militar.
Chegado o dia, lá estava, na
praia de Icaraí, o jovem capitalista. Risonho, amável, dissimulando com um
sorriso gentil a austeridade da sua fisionomia marcial, correu o dono da casa
ao portão, para receber o convidado e fazê-lo subir até à sala, onde madame já
o esperava, obsequiosa e linda, com o rosto a emergir, como uma grande rosa,
das espumas de neve do seu elegantíssimo "peignoir" de linho e renda.
— O Dr. Otacílio Fernandes —
apresentou o coronel.
E ao recém-chegado:
— Minha esposa...
Minutos depois, sentados à mesa
redonda, em que havia apenas três talheres, a palestra corria jovial, feliz,
entre petiscos saborosos e sorrisos significativos, quando o telefone tilintou.
Era o procurador do coronel que reclamava a sua presença, urgente, na estação
das barcas, para ultimação de um negócio inadiável.
— Diabo! — exclamou o bravo
militar. Tenho de ir, não há remédio!
E virando-se para o capitalista,
enquanto desamarrava o guardanapo:
— Esteja à vontade, doutor. É
questão de meia hora. Fique por aí; eu não demoro!
E para a esposa:
— Orminda, faze as honras da
casa; eu venho já!
Mal o coronel tomou o bonde, duas
taças se chocavam no ar, por cima da mesa, festejando ruidosamente aquele
encontro, há tanto desejado. E de tal forma foi a saudação, que, ao reentrar em
casa, o coronel foi encontrar os dois no seu gabinete, num colóquio de
excessiva intimidade. Apanhado em flagrante, o advogado pôs-se de pé, lívido.
Apoiado na porta, que empurrara, o coronel encarou-o trovejando:
— Sim, senhor, Sr. Dr. Fernandes!
Pálido, trêmulo, o advogado
lembrou-se da fama do coronel, e sentiu que chegara a última hora da sua vida.
— Sim, senhor! — tornou o
militar.
E abrandando a voz:
— Você não tem medo de uma
congestão?
Resposta difícil
Rosto em fogo, cabelos em
desalinho, Dr. Atanásio, que acaba de entrar da rua, passeia nervosamente de um
lado para outro no seu gabinete de trabalho, agitando nas mãos crispadas uma
carta que acabara de receber no escritório, e que fora, para ele, uma punhalada
no coração. À sua frente, no canapé de couro escuro, tauxiado de prata polida,
a jovem D. Eleonora esconde a face lavada de lágrimas nas duas conchas das mãos
cor de neve, soluçando de vergonha e de susto no horror daquela situação.
-- E dizer-se que eu confiava em
ti, tua honra, no teu amor, e que estava em S. Paulo tranqüilo, sereno, na certeza de que
procedias, aqui, com seriedade. com dignidade, com a correção que me havias
jurado, de joelhos, diante de Deus!... - geme, quase chorando, o pobre esposo
desesperado.
Madame procura, como um náufrago
na tormenta, uma frase com que inicie a desculpa impossível, mas o marido
atalha, agitado, com os olhos em chama, forçando-a a esconder, de novo, a
cabeça entre as mãos:
-- Que vergonha, meu Deus! que
vergonha, agora, para mim!... Nunca mais, na minha vida, poderei levantar o
rosto diante desta sociedade, que conhece, que sabe, que testemunhou,
impassível, o teu crime, a lama que atiraste sobre o meu nome!...
Enfiando os dedos na cabeleira
grisalha, passadas largas, o notável advogado mede, cada vez mais nervoso, a
extensão do gabinete, cujos tapetes lhe abafam os passos, quando, de repente,
pára, e reclama, cerrando os punhos:
-- Confessa-me. afinal: quando
foi que aquele miserável, abusando da tua fraqueza, e aproveitando a minha
ausência, penetrou nesta casa?
Adivinhando nessa pergunta um
caminho para a reconciliação, D. Eleonora levanta o lindo rosto ensopado de
lágrimas, e, fixando os grandes olhos úmidos nos olhos ardentes do marido,
indaga, apenas, pronta para uma explicação:
-- Qual?
Obediência
Mal saída do colégio, para onde
entrara ainda criança, isto é, desde que o pai, o comendador Anacleto,
enviuvara, foi a encantadora Maria Lúcia residir no palacete recentemente
alugado pelo velho capitalista em uma das ruas menos movimentadas de Botafogo.
Deslumbrada com a liberdade conquistada à força de estudo, de uma aplicação que
lhe granjeara o primeiro lugar na sua turma, apenas uma coisa a desgostou: foi
a recomendação que lhe fez o pai, severo e prudente:
-- Olha, minha filha; esta casa é
tua; governa-a como se fosses a dona. Uma coisa, apenas, eu te peço: vive
isolada, sem relações de amizade, e nunca, em hipótese alguma, incomodes os
vizinhos.
E beijando-lhe a testa clara.
coroada por uns lindos cabelos castanhos:
-- Muito juizinho; ouviu?
Duas semanas não se tinham
passado sobre a libertação de Maria Lúcia, quando uma quadrilha de ladrões,
vendo, uma tarde, sair as criadas, que a jovem patroa indultara naquele dia,
resolveu assaltar, pulando o muro dos fundos, o palacete do comendador.
Descalços, em mangas de camisa, chapéu em cima dos olhos, os miseráveis
penetraram na casa e, desrespeitando a fraqueza da moça, praticaram toda a
sorte de depredações, esvaziando as gavetas, arrombando os cofres de jóias, carregando,
enfim, com todas as coisas de valor que havia na residência do honrado
capitalista.
À noite, ao abrir a porta, de
regresso ao lar, o comendador teve um pressentimento triste, ao ver a casa às
escuras. Abertas, porém, as lâmpadas, recuou, horrorizado, para, em seguida,
precipitar-se, de compartimento em compartimento, chamando, aflito, pela
menina:
-- Maria Lúcia? Maria Lúcia? Onde
estás, minha filha?
No último quarto da casa,
esperava-o uma surpresa maior: sentada no leito, desgrenhada pálida, com as
vestes em desalinho, Maria Lúcia chorava, com a cabeça nas mãos.
-- Minha filha da minh'alma! -
gemeu o velho, atirando-se para ela. - Que foi isso?
-- Os ladrões!... - explicou a
moça, num gemido.
E enxugando os olhos;
-- Levaram tudo: as roupas, as jóias,
a louça, tudo, enfim. Depois...
-- Depois?... - rugiu o velho,
com os olhos esbugalhados.
-- Desgraçaram-me!... - concluiu
a moça, prorrompendo em soluços.
-- Desgraçaram-te?... - gritou o
velho, de dentes e punhos cerrados, com um rugido soturno, cavo, de fera
atingida no coração.
E após um instante de silencio
desesperado:
-- E como foi? Amarraram-te?
-- Não, senhor.
-- Subjugaram-te?
-- Não, senhor.
-- Taparam-te a boca?
-- Não, senhor.
-- E por que não gritaste? -
berrou o ancião, parando, de súbito, no meio do quarto.
E a moça, levantando para ele,
num soluço, os lindos olhos machucados de lágrimas:
-- Papai não disse que eu não
incomodasse os vizinhos?
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