quarta-feira, 7 de maio de 2014

Região portuária, Conceição e Livramento : Aproximações e vizinhanças geográficas,urbanas e literárias em torno de Machado de Assis e os portugueses

nos próximos dias  09 e 10.05, o FIM - Fim de Semana do Livro estará de portas, ou de páginas, abertas no morro da Conceição. estive presente no primeiro, em 2012, que foi magnífico, daí acreditar e projetar vir a ser este de agora melhor ainda.
então, a propósito :
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Não fossem em geral com a cidade do Rio de Janeiro como um todo – por certo, alguns locais e bairros mais do que outros : sua obra literária o mostra sobejamente  – Machado de Assis guarda  estreitas, ‘íntimas’ relações,  em  diversas ordens e escalas, com a região portuária, ampla área urbana delimitada geográfica-geologicamente pelos morros de São Bento, do Livramento e da Conceição – este, marco da ocupação inicial da cidade do Rio de Janeiro pelos portugueses,  constituía  com os morros do Castelo, de Santo Antônio e de São Bento um quadrilátero onde a cidade cresceu por três séculos,a partir da sua fundação em 1565.
Relações – diga-se melhor: interações – machadianas com essa área da cidade criadas e delineadas ainda em sua origem natal : nasceu (a 21 junho 1839), batizado de Joaquim Maria,  e cresceu no morro do Livramento, então vasta área bucólica e  agrícola,  calmo e tranqüilo, com plantações, animais, carros-de-boi (importante frisar, a dirimir os equívocos interpretativos no sentido de conferir ao local características menos nobres...), na  chácara (estendida por toda a área da colina, a oeste até o atual Ministério do Exército, na Central, quase tocando o Campo da Aclimação – hoje Campo de Santana, a leste se prolongando até a baía, por pouco chegando à praia do Valongo, ponto de desembarque dos navios negreiros), de propriedade de Maria José de Souza e Silva, feita sua madrinha (o Maria do nome de escritor vem dela), onde viviam como agregados (então estado e condição corrente, nada demérita ou pejorativa, entre cidadãos), seus pais Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado, casados 11 meses antes do nascimento do filho.
Passando e transmutando a  outras órbita e esfera – a  literária,  Machado tornado escritor desde 1855 (ele com 16 anos) – a região portuária carioca ambientou, por via da  Gamboa, Saúde, Santo Cristo, Prainha, praia Formosa, diversos de seus contos  -- como, p. ex., “O caso da vara”, “Anedota pecuniária”, “A cartomante”, “A igreja do diabo”, “Noite de almirante”, “Conto de escola”, “O cônego ou a metafísica de estilo”, “Missa do galo” , “O lapso”, “Pai contra mãe” ( nesses dois  aparece também o Valongo) , “Suje-se, gordo !” (em que a ladeira da Conceição é quase personagem...) – e  os romances “A mão e a luva”, “Memórias póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba”.
Particularmente, os portugueses assumem papel crucial na sinergia de Machado com a região: primeiro, pela própria condição dos lusitanos como “formadores’ da região, originários habitantes do morro da Conceição no século XV, seus descendentes e novos grupos etários como moradores,também no morro de São Bento, no séculos subseqüentes, trabalhando como empregados ou empregadores (considerável,  até hoje, o número de negociantes e empresários lusos agrupados na atual rua do Acre e suas adjacências) nos estabelecimentos comerciais circundantes ; em especial, em outra órbita, pela integração machadiana nas esferas literária, intelectual e pessoal com escritores e literatos lusos no Rio de Janeiro das décadas de 1850 a 1880.
Em 1855 encontravam-se na cidade carioca cerca de 30 mil portugueses, a  maioria dedicada ao comércio,varejista e atacadista, mas que mantinham e  praticavam a ‘flama da literatura’, exercendo durante o dia a função de empregado ou de caixeiro e ao fim da tarde e à noite entregando-se a uma “liberdade poética” e atividades literárias : nos anos 1850, reunidos no Grêmio Literário Português -- que em 1858 publicou luxuoso álbum, com poemas e escritos por caixeiros, acerca do centenário do poeta português Bocage -- em 1862 no dissidente Retiro Literário Português, ambas sociedades abrigando tanto comerciantes e empregados no comércio quanto escritores e literatos, entre eles Machado.
Estritamente nos prismas cultural e intelectual, decisiva foi a participação e a atuação dos portugueses, vale dizer dos literatos aqui estabelecidos, nas formação, constituição, vida e obra literárias de Machado.
 Os estudiosos (e estudantes) de Machado de Assis e os estudiosos (e estudantes) de Literatura Comparada, também os leitores e ledores de modo geral, não desconhecem o quanto as formação e constituição literárias machadianas, de resto, válido para todos os escritores brasileiros, se fizeram por meio e via das influências e orientações recebidas de textos, obras e autores , entre clássicos ou não, entre contemporâneos, quer  nacionais quer estrangeiros : entre estes, os franceses (preponderantes), os ingleses, alemães, gregos, latinos, italianos, espanhóis – e os portugueses. Não obstante a preponderância dos franceses nesse cenário de influências estrangeiras, nenhum contingente marcou tanto Machado como os portugueses – não apenas na seara propriamente dita da literatura mas também no embasamento político-ideológico-filosófico. Nenhum escritor ou literato brasileiro, à época, aproximou-se e identificou-se de tal forma, e essência, junto aos portugueses, como ele.
A solidez e a característica genuína dos vínculos machadianos com os portugueses são nitidamente expressas por elementos que se estendem de  sua própria origem familiar aos fortes e intensos laços de amizade com lusitanos então residentes no Rio de Janeiro, de seu casamento às  leituras que lhe acompanharam por toda a vida ,fosse nos acervos públicos por ele regularmente freqüentados fosse nos livros em sua biblioteca pessoal, de sua formação literária e cultural às inúmeras (e significativas) citações,alusões, referências e recorrências a autores e obras lusitanos em sua ficção e não-ficção.
Extenso, como extremamente significativo, é o elenco de fraternas amizades cultivadas, desde sua juventude, com escritores portugueses recém transferidos para o Rio de Janeiro desde 1837,  afastando-se do levante do Porto e atraídos pelo ambiente acolhedor e boas condições de atividade  cultural..
Pelos anos 1850 já se encontravam radicados no Rio de Janeiro literatos como Francisco Gonçalves Braga, Augusto Emílio Zaluar, Carlos Augusto de Sá, Faustino Xavier de Novais, Francisco Ramos Paz, Ernesto Cybrão, Reinaldo Carlos Montoro, Manuel de Melo, José Feliciano de Castilho, Antônio Feliciano de Castilho : todos de alguma influência nas rodas literárias e nos ambientes letrados da capital brasileira.
Relacionamentos, convivências e atividades intelectuais em comum exercidos e praticados em torno, primeiramente da Sociedade Petalógica (criada e incentivada por Paula Brito),em  1854-55, na qual estavam Braga,Zaluar e Garção; em seguida no escritório de Caetano Filgueiras, onde constituiu-se o denominado “Grupo dos Cinco”, composto de Filgueiras,Braga,.os brasileiros Casimiro de Abreu,Cândido Macedo Junior,e Machado, em  1857; depois, um novo grupo,unidos por traços ideológicos comuns de elementos democráticos e liberais, a fornecerem o fermento para uma nova postura política de Machado (que a  sustentaria daí por diante, ao longo do tempo), no qual  estreitou seu relacionamento com Augusto Emilio Zaluar, Reinaldo Carlos Montoro,Francisco Ramos Paz, Remigio de Sena Pereira. Também exercidos, os relacionamentos e convivências, nos saraus literários; nas reuniões no Grêmio Literário Português, no Retiro Literário Português , na Arcádia Fluminense ; e  ao ensejo de dois eventos bastante significativos : o centenário (aliás, mais comemorado no Brasil que em Portugal) de nascimento de  Bocage, em 1865, e o tricentenário de nascimento de Camões, 1880, iniciativa do Gabinete Português de Leitura.
Como os portugueses marcaram literariamente o Machado escritor ? Primeiramente, por meio dos autores e obras clássicos, quer antigos e canônicos quer contemporâneos a ele, dos quais foi Machado um persistente leitor, entre aqueles  armazenados em sua biblioteca e aqueles consultados, uns regularmente outros especifica e episodicamente, nos acervos públicos e privados que freqüentava.
O papel e  influências de poetas portugueses  na formação de Machado de Assis, inserido  de resto na própria  tradição poética luso-brasileira da época, têm exemplos cristalinos em Camões,Garret e Castilho, que  marcaram forte e intensamente a poética machadiana, bem como  Francisco Gonçalves Braga , a quem Machado designou como “meu primeiro mestre”; a se destacar também as influências significativas de Alexandre Herculano – ao lado de Garret, considerado por Machado como modelo na prosa -- e João de Barros na constituição de seu conhecimento histórico.
Almeida Garret, mister enfatizar, a par da acentuada influência temática e estilística na poética machadiana, teve seu “Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa”, de 1827 ( estudo fundamental para a história da literatura no Brasil, a apontar caminhos da emancipação literária – o que viria a se constituir na égide do movimento deflagrado na década de 1830 por Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, em prol de um “nacionalismo literário brasileiro”)como  forte inspiração para as reflexões de Machado acerca da literatura brasileira, expressas nos ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira”(1858), “Instinto de nacionalidade”(1873) e “A nova geração”(1879), e sua obra Viagens da minha terra como uma das peças que moldaram,no teor da sátira menipéica-luciânica (ao lado das obras de Sterne,Diderot e Xavier de Maistre),  a célebre inflexão machadiana no início da década de 1880.
A se arrolar ainda Camilo Castelo Branco, que inspirou Machado em certos recursos narrativos, como as digressões metaliterárias, as interferências do narrador em diálogo com o leitor, o uso da ironia (já foram apontados elementos da novela  Coração ,cabeça e estômago: uma estética da ambiguidade, de Camilo, em Memórias póstumas de Brás Cubas).
Machado e os portugueses, Machado e a região portuária;  o morro da Conceição – ‘berço’ da colônia lusitana no Rio – o ‘irmanado’  geologicamente morro do Livramento – nascedouro de um escritor brasileiro de estatura universal -- feitos epicentros de uma corrente histórico-geografico- literário- cultural da cidade do Rio de Janeiro e do País, desde sempre e para sempre.

“(...) Portugal não teve apenas influência, ele está presente [no Brasil]. Os portugueses suscitam desdobramentos delicados (...) ;são eles próprios engrenagens vivas e sensíveis. Trata-se de recolher os elementos que permitirão escrever a história interatlântica do mundo lusofalante no século XIX.. As duas literaturas vivem em simbiose.”( J.M-Massa)

[excertos e partes de meu estudo "Machado de Assis e os portugueses : influências, intertextualidades, amizades", a ser livro]