quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A propósito de Camilo Castelo Branco,e um sesquicentenário


A propósito de  Camilo Castelo Branco,e um sesquicentenário
Estive presente, atento às palestras e falas de eméritos expositores, e com algumas intervenções aqui e ali,no “Congresso Internacional Camilo Castelo Branco e o Oitocentos: 150 anos de Amor de perdição”,realizado em 24 e 25.09 no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro (em 14 e 15 deu-se na USP). A ocasião, se já propícia e notável em si pelo sesquicentenário do romance camiliano – um dos mais conhecidos e lidos de sua lavra – tornou-se\torna-se extremamente relevante para a expansão (para quem pouco conhece: formação) e difusão de Camilo e de sua obra em geral. Particularmente no que se refere ao significativo viés das fortes, ‘veementes’, relações do escritor com o Brasil.

Camilo almejou intensamente vir para o Brasil, inclusive conseguindo em 1855, depois de obstinado empenho, sua nomeação para adido honorário à Legação portuguesa na corte do Rio de Janeiro – só que não a concretizou,diz-se que “frustrado e violentamente furioso”, por não ter direito a remuneração alguma nem acesso à carreira diplomática. Se não veio em pessoa, aqui chegou com impressionantes prestígio literário e popularidade junto ao leitor brasileiro, quase uma ‘devoção’.
 Mesmo sem aqui ter vindo ou estado, o Brasil é presença intensa na obra camiliana – por meio da figura do “brasileiro”, o português que volta a Portugal depois de ter emigrado para o Brasil: está em Vingança, em Coração,cabeça e estômago, em Os brilhantes do brasileiro, em O cego de Landim, em O filho natural, em Eusébio Macário, em A corja, em A brasileira de Prazins [este, o primeiro de Camilo que li, então com 11 anos – antes de Eça,Herculano, Garret, Pessoa,Sá-Carneiro,Ramalho Ortigão,Julio Dinis; mas depois de Camões e de Vieira...); além de ser ,o Brasil, cenário de alguns de seus  romances e novelas.
Trocou vasta correspondência com brasileiros – inclusive o imperador Pedro II(que em Lisboa pessoalmente visitou Camilo em 1872) – e com portugueses estabelecidos no Brasil – o mais notório, Faustino Xavier de Novais (irmão de Carolina, esposa de Machado de Assis – e um de seus  maiores amigos),quem mais divulgou e propagou aqui a obra camiliana,até pelas fraternais relações entre ambos : a obra  de Faustino,Novas poesias, publicada em 1858 no Porto, foi precedidas de um juízo crítico de Camilo Castelo Branco, quem também colaborou assiduamente no jornal O Futuro, fundado por Faustino em 1862, entre crônicas, ensaios  e narrativas como “O maior amigo de Luís de Camões”, “Conhecimentos úteis”,“Que destino!”, “Dous casamentos”, o romance “Agulha em palheiro”,em folhetins – e  Ana Augusta Plácido, companheira de Camilo, publicou o artigo “A desgraça da riqueza”.(Machado comentou,  em O Futuro,15.03.1863, seu  romance Luz coada por ferro).
A admiração de Camilo ao Brasil era tanta que fez questão, também com muito empenho, de doar sua rica biblioteca – ou “livraria”,como preferia dizer --e seu acervo epistolar ao Real Gabinete Português de Leitura, o que se deu em 1882: tive o prazer recentemente de conhecer in loco,e em detalhes,.esse relicário bibliográfico e documental. E o culto a Camilo, no seio da intelectualidade brasileira, pode ser exemplificado pelos quase 100 volumes de novelas,romances,teatro e ensaios do português na biblioteca pessoal de Ruy Barbosa (a qual, em torno de outras obras e autores, frequentemente visito para  pesquisas).
Um parêntese; em contrapartida, na biblioteca de Camilo encontravam-se três obras de machado   tu só tu puro amor, helena e memórias póstumas de brás cubas.
Nem tudo ‘foram flores’, porém: Camilo manteve irreversível e virulenta crítica, e polêmica, a José de Alencar – o que, segundo algumas interpretações, face à grande amizade e respeito do autor de Helena pelo criador de Senhora, explicaria um possível ‘distanciamento’,quanto a referências e alusões, de Machado com relação a Camilo (especula-se a existência de outros fatores e motivos). Suposto distanciamento, não obstante muitas, e retumbantemente significativas, similaridades e ‘parentescos’ literários entre eles.
Comparado, quantitativamente, a  outros autores lusos (conforme meu estudo “Machado de Assis e os portugueses”), a saber Camões, Almeida Garret, Alexandre Herculano, Bocage, Antonio Dinis de Cruz e Souza, Antonio Feliciano de Castilho, Antonio Vieira, Eça de Queiroz -- Camilo é  pouco citado nominalmente na obra machadiana (e nenhuma obra do escritor português constava da biblioteca pessoal de Machado; em contrapartida, na biblioteca de Camilo encontravam-se três obras machadianas, Tu só tu puro amor (teatro – aliás, escrita para as comemorações do tricentenário de Camões,em 1880; e mais os sonetos “Quando transposta a lúgubre morada”, “Quando torcendo a chave misteriosa”,“Tu quem és? Sou o século que passa” e “Um dia, junto à foz do brando e amigo”), Helena e Memórias póstumas de Brás Cubas);  porém foi notavelmente influente em Machado e o inspirou  incisivamente em certos recursos narrativos, como as digressões metaliterárias, a metanarrativa da ficção, as interferências do narrador em diálogo com o leitor, o ‘jogo autor-narrador-leitor’ – tudo, aliás, anteriormente a Sterne, dado como inspirador e ‘introdutor’ desses recursos na prosa de Machado, especificamente a partir de 1880 --  o uso da ironia : já foram apontados elementos da novela  Coração ,cabeça e estômago: uma estética da ambiguidade, de Camilo, explicitamente em Memórias póstumas de Brás Cubas, e de certo modo em Quincas Borba, mas também, e subrepticiamente, em vários contos, até mesmo,sabemos, omo uma espécie de ‘marca registrada’ machadiana..
Se de um lado rarefeitas, breves e episódicas, as alusões diretas a Camilo feitas por Machado – apenas 4 (consoante meu estudo) : os  romances  Agulha no palheiro (em crônica O Futuro, 15.01.1863)  e Coração, cabeça e estômago (em Brás Cubas), a peça teatral “Espinhos e flores” (em crônica  no Diário do Rio de Janeiro, 13.04.1860), a referência a pince-nez , ou a “luneta pênsil” que teria sido invenção de Camilo, em crônica na Gazeta de Notícias, 07.03.1889 -- de outro bastante marcante  é a ‘presença’ camiliana  em determinados temas, no próprio estilo narrativo em algumas passagens dos textos ficcionais de Machado,nos tons de ironia e ceticismo, no ‘desdém’ (contido) ao realismo\naturalismo; e ,de resto, são muitas as referencias literárias na obra de Camilo que, seriam fonte e mote para vários textos ficcionais de  Machado
É o que catalogo como leituras oblíquas, influencias subterrâneas, a nível macrotextual.









sábado, 15 de setembro de 2012

Machado de Assis e o fantástico


a propósito do evento Fantasticon 2012 – VI Simpósio de Literatura Fantástica (promovido pela  Biblioteca Viriato Corrêa - Temática em Literatura Fantástica, São Paulo, em (15 e 16.09 e 22 e 23.09. e para quem não sabe: Machado de Assis praticou,'avant la lettre', o gênero fantástico em 17 contos [vide http://www.facebook.com/pages/Di%C3%A1rio-das-Letras/394367320630177?notif_t=page_new_likes]

                                                           ________________________
aqui,  2 contos da coletânea que organizei e veiculei online em 2008.


O país das quimeras
(conto fantástico)
                            publicado originalmente  in O Futuro ,1862 [1]

Arrependera-se Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso romano tinha razão. Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas vezes funestos. Os feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, e é também por esta circunstância que se esquivam de navegar as almas pacatas, ou, para falar mais decentemente, os espíritos prudentes e seguros.
Mas, para justificar o provérbio que diz: debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a via terrestre não é absolutamente mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos de ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.
Absorto nestas e noutras reflexões estava o meu amigo Tito, poeta aos vinte anos, sem dinheiro e sem bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia silenciosamente uma vela.
Devo proceder ao retrato físico e moral do meu amigo Tito.
Tito não é nem alto nem baixo, o que equivale a dizer que é de estatura mediana, a qual estatura é aquela que se pode chamar francamente elegante na minha opinião. Possuindo um semblante angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz descendente legítimo e direto do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações de quinze e mesmo de vinte anos.
Como as medalhas, e como todas as coisas deste mundo de compensações, Tito tem um reverso. Oh! triste coisa que é o reverso das medalhas! Podendo ser, do colo para cima, modelo à pintura, Tito é uma lastimosa pessoa no que toca ao resto. Pés prodigiosamente tortos, pernas zambras, tais são os contras que a pessoa do meu amigo oferece a quem se extasia diante dos magníficos prós da cara e da cabeça. Parece que a natureza se dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e pô-lo na miserável e desconsoladora condição do pavão, que se enfeita e contempla radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as pernas e para os pés.
 Na moral Tito apresenta o mesmo aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem fraquezas de caráter que quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o enobrecem. É bom e tem a virtude evangélica da caridade; sabe, como o divino Mestre, partir o pão da subsistência e dar de comer ao faminto, com verdadeiro júbilo de consciência e de coração. Não consta, além disso, que jamais fizesse mal ao mais impertinente bicho, ou ao mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos curtos dias da sua vida. Pelo contrário, conta-se que a sua piedade e bons instintos o levaram uma vez a ficar quase esmagado, procurando salvar da morte uma galga que dormia na rua, e sobre a qual ia quase passando um carro. A galga, salva por Tito, afeiçoou-se-lhe tanto que nunca mais o deixou; à hora em que o vemos absorto em pensamentos vagos está ela estendida sobre  a mesa a contemplá-lo grave e sisuda.
Só há que censurar em Tito as fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são filhas mesmo das suas virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa, não por meio de uma permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de um filho de Apolo. As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por dinheiro os seus versos, o poeta perdia o direito da paternidade sobre essas produções. Só tinha um freguês; era um sujeito rico, maníaco pela fama de poeta, e que, sabendo da facilidade com que Tito rimava, apresentou-se um dia no modesto albergue do poeta e entabulou a negociação por estes termos:
-- Meu caro, venho propor-lhe um negócio da China.
— Pode falar, respondeu Tito.
— Ouvi dizer que você fazia versos... É verdade?
Tito conteve-se a custo diante da familiaridade do tratamento, e respondeu:
— É verdade.
— Muito bem. Proponho-lhe o seguinte: compro-lhe por bom preço todos os seus versos, não os feitos, mas os que fizer de hoje em diante, com a condição de que os hei de dar à estampa como obra da minha lavra. Não ponho outras condições ao negócio: advirto-lhe, porém, que prefiro as odes e as poesias de sentimento. Quer?
Quando o sujeito acabou de falar, Tito levantou-se e com um gesto mandou-o sair. O sujeito pressentiu que, se não saísse logo, as coisas poderiam acabar mal. Preferiu tomar o caminho da porta, dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me, deixa estar!”
O meu poeta esqueceu no dia seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se e as necessidades urgentes apresentaram-se à porta com o olhar suplicante e as mãos ameaçadoras. Ele não tinha recursos; depois de uma noite atribulada, lembrou-se do sujeito, e tratou de procurá-lo; disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o negócio; o sujeito, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode aos Polacos. Tito passou a noite a arregimentar palavras sem idéia, tal era seu estado, e no dia seguinte levou a obra ao freguês, que achou boa e dignou-se apertar-lhe a mão.
Tal é a face moral de Tito. A virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os dons de Deus; e ainda assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando se achou com a corda ao pescoço.
A mesa à qual Tito estava encostado era um traste velho e de lavor antigo; herdara-a de uma tia que lhe havia morrido fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave, algum papel, eis os instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama completavam a sua mobília. Já falei na vela e na galga.
À hora em que Tito se engolfava em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com violência, e os relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu deixavam ver o horizonte pejado de nuvens negras e túmi-das. Tito nada via, porque estava com a cabeça encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que não ouvisse, porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem os diferentes modos de viajar.
Mas qual o motivo destes pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou explicar à legitima curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de vinte anos, poetas e não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos pretos, um porte senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor, havia influído por tal modo no coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à beira da sepultura. O amor em Tito começou por uma febre; esteve três dias de cama, e foi curado (da febre e não do amor) por uma velha da vizinhança, que conhecia o segredo das plantas virtuosas, e que pôs o meu poeta de pé, com o que adquiriu mais um título à reputação de feiticeira, que os seus milagrosos curativos lhe haviam granjeado.
Passado o período agudo da doença, ficou-lhe este resto de amor, que, apesar da calma e da placidez, nada perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente apaixonado, e desde então começou a defraudar o freguês das odes, subtraindo-lhe algumas estrofes inflamadas, que dedicava ao objeto dos seus íntimos pensamentos, tal qual como aquele sr. d’Ofayel, dos amores leais e pudicos, com quem se pareceu, não na sensaboria dos versos, mas no infortúnio amoroso.
O amor contrariado, quando não leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à tragédia ou à asneira. Era nesta alternativa que se debatia o espírito do meu poeta. Depois de haver gasto em vão o latim das musas, aventurou uma declaração oral à dama dos seus pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele acabou de falar disse-lhe que era melhor voltar à vida real, e deixar musas e amores, para cuidar do alinho  da própria pessoa. Não presuma o leitor que a dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a língua. Era, pelo contrário, um modelo da mais seráfica pureza e do mais perfeito recato de costumes; recebera a educação austera de seu pai, antigo capitão de milícias, homem de incrível boa fé, que, neste século desabusado, ainda acreditava em duas coisas: nos programas políticos e nas cebolas do Egito.
Desenganado de uma vez nas suas pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer da memória a filha do militar: e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe no coração como um punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a lembrança, viva sempre, como ara de Vesta, trazia-lhe as fatais palavras ao meio das suas horas mais alegres ou menos tristes da sua vida, como aviso de que a sua satisfação não podia durar e que a tristeza era o fundo real dos seus dias. Era assim que os egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que a vida é transitória, e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade.
Quando, depois de voltar a si, Tito conseguiu encadear duas idéias e tirar delas uma conseqüência, dois projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de pusilânime; um concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste alternativa dos corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente deixar este mundo; o outro, limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar ou por terra, a fim de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava o primeiro por achá-lo sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos de conservação. Mas qual o meio de mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria por mar? Qualquer destes dois meios tinha seus inconvenientes. Estava o poeta nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar. Mas, ó pasmo! mal o poeta abriu a porta, eis que uma sílfide, uma criatura celestial, vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos louros do mais leve e delicado cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó Afrodite! eis que uma criatura assim invade o aposento do poeta e, estendendo a mão, ordena-lhe que feche a porta e tome assento à mesa.
Tito estava assombrado. Maquinalmente voltou ao seu lugar sem tirar os olhos da visão. Esta sentou-se defronte dele e começou a brincar com a galga que dava mostras de não usado contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do que a peregrina singular criatura cravando os seus olhos nos do poeta, perguntou-lhe com uma doçura de voz nunca ouvida:
— Em que pensas, poeta? Pranteias algum amor mal parado? Sofres com a injustiça dos homens? Dói-te a desgraça alheia, ou é a própria que te sombreia a fronte?
Esta indagação era feita de um modo tão insinuante que Tito sem inquirir o motivo de curiosidade, respondeu imediatamente:
— Penso na injustiça de Deus.
— É contraditória a expressão; Deus é a justiça.
— Não é. Se fosse teria repartido irmãmente a ternura pelos corações e não consentiria que um ardesse inutilmente pelo outro. O fenômeno da simpatia devia ser sempre recíproco, de maneira que a mulher não pudesse olhar com frieza para o homem, quando o homem levantasse olhos de amor para ela.
— Não és tu quem fala, poeta. É o teu amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas de que te servem as musas? Entra no santuário da poesia, engolfa-te no seio da inspiração, esquecerás aí a dor da chaga que o mundo te abriu.
 — Coitado de mim, respondeu o poeta, que tenho a poesia fria, e apagada a inspiração!
— De que precisas tu para dar vida à poesia e à inspiração?
— Preciso do que me falta... e falta-me tudo.
— Tudo? És exagerado. Tens o selo com que Deus te distinguiu dos outros homens e isso te basta. Cismavas em deixar esta terra?
 — É verdade.
 — Bem; venho a propósito. Queres ir comigo?
 — Para onde?
 — Que importa? Queres vir?
 — Quero. Assim me distrairei. Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?
 — Nem amanhã, nem por mar, nem por terra; mas hoje, e pelo ar.
 Tito levantou-se e recuou. A visão levantou-se também.
 — Tens medo? perguntou ela.
 — Medo, não, mas...
 — Vamos. Faremos uma deliciosa viagem.
 — Vamos.
 Não sei se Tito esperava um balão para a viagem aérea a que o convidava a inesperada visita; mas, o que é certo, é que os seus olhos se arregalaram prodigiosamente quando viu abrirem-se das espáduas da visão duas longas e brancas asas que ela começou a agitar e das quais caía uma poeira de ouro.
— Vamos, disse a visão.
 Tito repetiu maquinalmente:
 — Vamos!
E ela tomou-o nos braços, subiu com ele até o teto, que se rasgou, e passaram ambos, visão e poeta. A tempestade tinha, como por encanto, cessado; estava o céu limpo, transparente, luminoso, verdadeiramente celeste, enfim. As estrelas fulgiam com a sua melhor luz, e um luar branco e poético caía sobre os telhados das casas e sobre as flores e a relva dos campos.
Os dois subiram.
 Durou a ascensão algum tempo. Tito não podia pensar; ia atordoado, e subia sem saber para onde, nem a razão por quê. Sentia que o vento agitava os cabelos louros da visão, e que eles lhe batiam docemente na face, do que resultava uma exalação celeste que embriagava e adormecia. O ar estava puro e fresco. Tito, que se havia distraído algum tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas, contava que, naquele subir continuado, breve chegariam a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera. Engano dele! Subiam sempre, e muito, mas a atmosfera conservava-se sempre a mesma, e quanto mais ele subia melhor respirava. 
Isto passou rápido pela mente do poeta. Como disse, ele não pensava; ia subindo sem olhar para a terra. E para que olharia para a terra? A visão não podia conduzi-lo senão ao céu.
 Em breve começou Tito a ver os planetas fronte por fronte. Era já sobre a madrugada. Vênus, mais pálida e loura que de costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com a sua beleza. Tito teve um olhar de admiração para a deusa da manhã. Mas subia, subiam sempre. Os planetas passavam à ilharga do poeta, como se fossem corcéis desenfreados. Afinal penetraram em uma região inteiramente diversa das que haviam atravessado naquela assombrosa viagem. Tito sentia expandir-se-lhe a alma na nova atmosfera. Seria aquilo o céu? O poeta não ousava perguntar, e mudo esperava o termo da viagem. À proporção que penetravam nessa região ia-se a alma do poeta rompendo em júbilo; daí a algum tempo entravam em um planeta; a fada depôs o poeta e começaram a fazer o trajeto a pé.

Caminhando, os objetos, até então vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas reais. Tito pôde ver então que se achava em uma nova terra, a todos os respeitos estranha: o primeiro aspecto vencia ao que oferece a poética Istambul ou a poética Nápoles. Mais entravam, porém, mais os objetos tomavam o aspecto da realidade. Assim chegaram à grande praça onde estavam construídos os reais paços. A habitação régia era, por assim dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas, sem excluir a chinesa, sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa na estrutura do palácio.

Tito quis sair da ânsia em que estava por saber em que país acabava de entrar, e aventurou uma pergunta à sua companheira.

— Estamos no país das Quimeras, respondeu ela.

— No país das Quimeras?

— Das Quimeras. País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas tábuas da ciência.

Tito contentou-se com a explicação. Mas refletiu sobre o caso. Por que motivo iria parar ali? A que era levado? Estava nisto quando a fada o advertiu de que eram chegados à porta do palácio. No vestíbulo havia uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grosso cachimbo de escuma do mar, e que se embriagavam com outros tantos padixás, na contemplação dos novelos de fumo azul e branco que lhe saíam da boca. À entrada dos dois houve continência militar. Subiram pela grande escadaria, e foram ter aos andares superiores.

— Vamos falar aos soberanos, disse a companheira do poeta. Atravessaram muitas salas e galerias. Todas as paredes, como no poema de Dinis, eram forradas de papel prateado e lantejoulas.

Afinal penetraram na grande sala. O gênio das bagatelas, de que fala Elpino, estava sentado em um trono de casquinha, tendo de ornamento dois pavões, um de cada lado. O próprio soberano tinha por coifa um pavão vivo, atado pelos pés a uma espécie de solidéu, maior que os dos nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na cabeça por meio de duas largas fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos reais queixos. Coifa idêntica adornava a cabeça dos gênios da corte, que correspondem aos viscondes deste mundo e que cercavam o trono do brilhante rei. Todos aqueles pavões, de minuto a minuto, armavam-se, apavoneavam-se, e davam os guinchos do costume.

Quando Tito entrou na grande sala pela mão da visão, houve um murmúrio entre os fidalgos quiméricos. A visão declarou que ia apresentar um filho da terra. Seguiu-se a cerimônia da apresentação, que era uma enfiada de cortesias, passagens e outras coisas quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão. Não se pense que Tito foi o único a beijar a mão ao gênio soberano; todos os presentes fizeram o mesmo, porque, segundo Tito ouviu depois, não se dá naquele país o ato mais insignificante sem que esta formalidade seja preenchida.

Depois da cerimônia da apresentação perguntou o soberano ao poeta que tratamento tinha na terra, para dar-se-lhe cicerone correspondente.

— Eu, disse Tito, tenho, se tanto, uma triste Mercê.

— Só isso? Pois há de ter o desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós temos cá a Senhoria, a Excelência, a Grandeza, e outras mais; mas, quanto à Mercê, essa, tendo habitado algum tempo este país, tornou-se tão pouco útil que julguei melhor despedi-la.

A este tempo a Senhoria e a Excelência, duas criaturas empertigadas, que se haviam aproximado do poeta, voltaram-lhe as costas, encolhendo os ombros e deitando-lhe um olhar de través com a maior expressão de desdém e pouco caso.

Tito quis perguntar à sua companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas pessoas; mas a visão puxou-lhe pelo braço, e fez-lhe ver com um gesto que estava desatendendo ao Gênio das Bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como dizem os poetas antigos que se contraíam os de Júpiter Tonante.

Neste momento entrou um bando de moçoilas frescas, lépidas, bonitas e louras... oh! mas de um louro que se não conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram elas a correr, com a agilidade de andorinhas que voam; e depois de apertarem galhofeiramente a mão aos gênios da corte foram ao Gênio soberano, diante de quem fizeram umas dez ou doze mesuras.

Quem eram aquelas raparigas? O meu poeta estava de boca aberta. Indagou da sua guia, e soube. Eram as Utopias e as Quimeras que iam da terra, onde haviam passado a noite na companhia de alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.

As Utopias e as Quimeras foram festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e bater-lhes na face. Elas alegres e risonhas receberam os carinhos reais como coisa que lhes era devida; e depois de dez ou doze mesuras, repetição das anteriores, foram-se da sala, não sem abraçarem ou beliscarem o meu poeta, que olhava espantado para elas sem saber por que se tornara objeto de tanta jovialidade. O seu espanto crescia de ponto quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de máscaras: Eu te conheço!

Depois que saíram todas, o Gênio fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no soberano, a ver o que ia sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque o gracioso soberano apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o misero hóspede que daqui tinha ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos minutos, em virtude das mesuras, cortesias e beija-mão do estilo.

Os três, o poeta, a fada condutora e o cicerone, passaram à sala da rainha. A real senhora era uma pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa; trajava vestido de gaze e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras finas de todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara trazia posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo pincel da natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.

Tito não disfarçou a impressão que lhe causava um todo assim. Voltou-se para a companheira de viagem e perguntou como se chamava aquela deusa.

— Não a vê? respondeu a fada; não vê as trezentas raparigas que trabalham em torno dela? Pois então? é a Moda, cercada de suas trezentas belas, caprichosas filhas.

A estas palavras Tito lembrou-se do Hissope. Não duvidava já de que estava no país das Quimeras; mas, raciocinou ele, para que Dinis falasse de algumas destas coisas, é preciso que cá tivesse vindo e voltasse, como está averiguado. Portanto, não devo recear de cá ficar morando eternamente. Descansado por este lado, passou a atentar para os trabalhos das companheiras da rainha; eram umas novas modas que se estavam arranjando, para vir a este mundo substituir as antigas.

Houve apresentação com o cerimonial do estilo. Tito estremeceu quando pousou os lábios na mão fina e macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda um psyché, onde se mirava de momento em momento.

Impetraram os três licença para continuar a visita do palácio e seguiram pelas galerias e salas do alcáçar. Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres, algumas vezes mulheres e homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que estavam incumbidos pela lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Tito percorria essas diversas salas com o olhar espantado, estranhando o que via, aquelas ocupações, aqueles costumes, aqueles caracteres. Em uma das salas um grupo de cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa. Naturalmente este lugar é a ucharia, pensou Tito; estão preparando alguma iguaria singular para o almoço do rei. Indagou do cicerone se havia acertado. O cicerone respondeu:

— Não, senhor; estes homens estão ocupados em preparar massa cerebral para um certo número de homens de todas as classes: estadistas, poetas, namorados, etc.; serve também a mulheres. Esta massa é especialmente para aqueles que, no seu planeta, vivem com verdadeiras disposições do nosso país, aos quais fazemos presentes deste elemento constitutivo.

— É massa quimérica?

— Da melhor que se há visto até hoje.

— Pode ver-se?

O cicerone sorriu-se; chamou o chefe da sala, a quem pediu um pouco de massa. Este foi com prontidão ao depósito e tirou uma porção que entregou a Tito. Mal o poeta a tomou das mãos do chefe desfez-se a massa, como se fora composta de fumo. Tito ficou confuso; mas o chefe, batendo-lhe no ombro:

— Vá descansado, disse; nós temos à mão matéria-prima; é da nossa própria atmosfera que nos servimos; e a nossa atmosfera não se esgota.

Este chefe tinha uma cara insinuante, mas, como todos os quiméricos, era sujeito a abstrações, de modo que Tito não pôde arrancar-lhe mais uma palavra, porque ele, ao dizer as últimas, começou a olhar para o ar e a contemplar o vôo de uma mosca.

Este caso atraiu os companheiros que se chegaram a ele e mergulharam-se todos na contemplação do alado inseto.

Os três continuaram caminho.

Mais adiante era uma sala onde muitos quiméricos, à roda de mesas, discutiam os diferentes modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses homens tinham ares de finos e espertos. Havia ordem do soberano para não se entrar naquela sala em horas de trabalho; um guarda estava à porta. A menor distração daquele congresso seria considerada uma calamidade pública.

Andou o meu poeta de sala em sala, de galeria em galeria, aqui, visitando um museu, ali, um trabalho ou um jogo; teve tempo de ver tudo, de tudo examinar, com atenção e pelo miúdo. Ao passar pela grande galeria que dava para a praça, viu que o povo, reunido embaixo das janelas, cercava uma forca. Era uma execução que ia ter lugar. Crime de morte? perguntou Tito, que tinha a nossa legislação na cabeça. Não, responderam-lhe, crime de lesa-cortesia. Era um quimérico que havia cometido o crime de não fazer a tempo e com graça uma continência; este crime é considerado naquele país como a maior audácia possível e imaginável. O povo quimérico contemplou a execução como se assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre aplausos e gritos de prazer.

Entretanto era hora do almoço real. À mesa do gênio soberano só se sentavam o rei, a rainha, dois ministros, um médico e a encantadora fada que havia levado o meu poeta àquelas alturas. A fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a mercê de admitir Tito ao almoço; a resposta foi afirmativa; Tito tomou assento. O almoço foi o mais sucinto e rápido que é possível imaginar. Durou alguns segundos, depois do que todos se levantaram, e abriu-se mesa para o jogo das reais pessoas; Tito foi assistir ao jogo; em roda da sala havia cadeiras, onde estavam sentadas as Utopias e as Quimeras; às costas dessas cadeiras empertigavam-se os fidalgos quiméricos, com os seus pavões e as suas vestiduras de escarlate. Tito aproveitou a ocasião para saber como é que o conheciam aquelas assanhadas raparigas. Encostou-se a uma cadeira e indagou da Utopia que se achava nesse lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do costume, retirou-se a uma das salas com o poeta, e aí perguntou-lhe :

— Pois deveras não sabes quem somos? Não nos conheces?

— Não as conheço, isto é, conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque quisera tê-las conhecido há mais tempo.

— Oh! sempre poeta!

— É que deveras são de uma gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?

— Em tua própria casa.

— Oh!

— Não te lembras? À noite, cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo velas ao pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo. Nessa viagem acompanham-te algumas raparigas... somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.

Tito compreendeu afinal uma coisa que se lhe estava a dizer havia tanto tempo. Sorriu-se, e cravando os seus belos e namorados olhos nos da Utopia que tinha diante de si, disse:

— Ah! sois vós, é verdade! Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias e pesares. É no seio de vós que eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem! Conforta-me ver-vos a todas de face e embaixo de forma palpável.

— E queres saber, tornou a Utopia, quem nos leva a todas para tua companhia? Olha, vê.

O poeta voltou a cabeça e viu a peregrina visão, sua companheira de viagem.

— Ah! é ela! disse o poeta.

— É verdade. É a loura Fantasia, a companheira desvelada dos que pensam e dos que sentem.

A Fantasia e a Utopia entrelaçaram-se as mãos e olhavam para Tito. Este, como que enlevado, olhava para ambas. Durou isto alguns segundos; o poeta quis fazer algumas perguntas, mas quando ia falar reparou que as duas se haviam tornado mais delgadas e vaporosas. Articulou alguma coisa; porém, vendo que elas iam ficando cada vez mais transparentes, e distinguindo-lhes já pouco as feições, soltou estas palavras: — Então! que é isto? por que se desfazem assim? — Mais e mais as sombras desapareciam, o poeta correu à sala do jogo; espetáculo idêntico o esperava; era pavoroso; todas as figuras se desfaziam como se fossem feitas de névoa. Atônito e palpitante, Tito percorreu algumas galerias e afinal saiu à praça; todos os objetos estavam sofrendo a mesma transformação. Dentro de pouco Tito sentiu que lhe faltava apoio aos pés e viu que estava solto no espaço.

Nesta situação soltou um grito de dor.

Fechou os olhos e deixou-se ir como se tivesse de encontrar por termo de viagem a morte.

Era na verdade o mais provável. Passados alguns segundos, Tito abriu os olhos e viu que caía perpendicularmente sobre um ponto negro que lhe parecia do tamanho de um ovo. O corpo rasgava como um raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu, e cresceu até fazer-se do tamanho de uma esfera. A queda do poeta tinha alguma coisa de diabólica; ele soltava de vez em quando um gemido; o ar, batendo-lhe nos olhos, obrigava-o a fechá-los de instante a instante. Afinal, o ponto negro que havia crescido, continuava a crescer, até aparecer ao poeta com o aspecto da terra. É a terra! disse Tito consigo.

Creio que não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu aquela alma, perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta foi a alegria. Tito pensou, e pensou bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra seria para nunca mais levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante de si, e encomendou a alma a Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até que — milagre dos milagres! — caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele infernal salto.

A primeira impressão, quando se viu em terra, foi de satisfação; depois tratou de ver em que região do planeta se achava; podia ter caído na Sibéria ou na China; verificou que se achava a dois passos de casa. Apressou-se o poeta e voltar aos seus pacíficos lares.

A vela estava gasta; a galga, estendida sob a mesa, tinha os olhos fitos na porta. Tito entrou e atirou-se sobre a cama, onde adormeceu, refletindo no que lhe acabava de acontecer.

Desde então Tito possui um olhar de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos ou massa quimérica. Devo declarar que poucos encontram que não façam provisão desta última espécie. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu entro no número das pouquíssimas exceções. Em que pese aos meus desafeiçoados, não posso retirar a minha confiança de um homem que acaba de fazer tão pasmosa viagem, e que pôde olhar de face o trono cintilante do rei das Bagatelas.

FIM



[1] reescrito a partir de sua primeira versão, publicada com o mesmo título in  A Época 1875 


[1] reescrito e republicado,em 1866, com o título "Uma excursão milagrosa".

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

pelo ANO DE PORTUGAL NO BRASIL


oficial (e auspiciosamente) aberto neste 07.09 o "Ano de Portugal no Brasil",a mim motivo de regozijo e ,que muito me toca devido a minhas afetivas e efetivas ligações com Portugal. 
ligações de longa data em torno do apreço pela literatura,por extensão da cultura, portuguesa ;e no presente em torno da literatura luso-brasileira que ora se materializam na preparação de um livro,decorrente de estudo específico,acerca de "Machado de Assis e os portugueses",e na elaboração deste artigo 
"À volta de Machado de Assis e os  portugueses :  apontamentos para um estudo"



À volta de Machado de Assis e os  portugueses :  apontamentos para um estudo [1]
                                              
                                      “(...) Portugal não teve [apenas] influência, ele está presente [no Brasil]. Os portugueses suscitam desdobramentos delicados (...) ;são eles próprios engrenagens vivas e sensíveis. Trata-se de recolher os elementos que permitirão escrever a história interatlântica do mundo lusofalante no século XIX. Em conseqüência,o conhecimento do século XIX português e especialmente a transição do romantismo ao realismo serão bem esclarecidos,já que as duas literaturas vivem em simbiose.
                            J.M-Massa, A juventude de Machado de Assis, 1965
                                                                                                                                
A priori, convém frisar ter-me debruçado ao estudo das relações e interações luso-machadianas., per se nunca até então desenvolvido, nos termos e no  enfoque e sob o escopo deste que agora se propõe, movido pelo detectar da extrema, crucial, importância destes quer na vida pessoal quer nas  formação e constituição literárias e na construção da obra do escritor brasileiro; e mais : no embasamento e no engajamento político, na fundamentação de seu pensamento ideológico – este, na verdade, um aspecto pouquíssimo notado e conhecido, e raramente estudado.
Algumas dos elementos aqui expostos entendo serem de conhecimento, em maior ou menor grau, por parte de estudiosos, pesquisadores, cultores e admiradores das literaturas portuguesa e brasileira; procuro no entanto apresentar e enfatizar determinadas considerações,observações e comentários que, menos comum e frequentemente apontados,explanados e analisados no enfoque do presente tema , julgo extremamente relevantes  para o melhor discernimento e imprescindível enriquecimento de estudos a  respeito  dessas  relações e  interações..
Quais sejam – essencialmente expostos e enfatizados no estudo em tela, dotando-o de especial significância:
1.o porquê de  os portugueses terem exercido papel e relevância maiores e mais decisivos do que quaisquer outras influências e orientações estrangeiras – tanto nas formação e constituição literárias quanto,em especial, no embasamento político-ideológico de Machado de Assis;
2. o quanto autores, obras e textos  portugueses,agentes da formação de Machado de Assis, por ele foram ‘transferidos’ aos  leitores por via das inúmeras citações e alusões em seus escritos(pela primeira vez aqui recenseadas,mapeadas e formalizadas);  
3.uma reflexão acerca da postura ,contraditória e ambígua, dos primeiros românticos brasileiros -- exceção feita a Machado de Assis  -- empenhados então no projeto de afirmação da nacionalidade literária e cultural , com relação aos portugueses.


O aludido estudo insere-se no projeto  amplo, abrangente e genérico acerca das influências e orientações estrangeiras em Machado de Assis ( a par dos portugueses, os franceses, os ingleses, os alemães, os gregos, os latinos, espanhóis e italianos), a oferecer subsídios valiosos para os estudos de Literatura Comparada, um dos basilares approach que entendo devesse inexoravelmente imprimir a meus programas investigativos, analíticos e reflexivos de obras, textos e autores da literatura brasileira dita clássica , vale dizer, examiná-los e interpretá-los à luz das injunções e conexões de origem estrangeira  recebidas por eles e atuantes sobre suas produções literárias (outro dos vieses seria a História, sob as lentes e prismas da qual se submetem clamorosamente todas as manifestações e realizações de literatura, por extensão artísticas) – e nesse  cenário matricial constatei, ao chegar e aprofundar no exame dos lusos, a (não vacilo em dizer incomparável) relevância dos mesmos com relação a Machado de Assis. 

Cabe, nesse particular, uma digressão – fundamentada, por certo – no que tange às relações machadianas com os elementos de cultura estrangeira, de resto  preponderantes no Brasil oitocentista (e bastante atuantes pelos ciclos seguintes) : ainda que a eles tenha-se referido  como “invasões culturais”, Machado de Assis,  qual antecipador da antropofagia modernista de 1922 (reporte-se a Oswald de Andrade et allii) assimilou-os, ‘deglutiu-os’, ‘digeriu-os’ e ‘expeliu-os’ incorporando à sua obra, à sua escrita e à sua linguagem literária e dotando estas ao mesmo tempo (como sabemos) de brasilidade e universalidade, de localismo e universalismo.

Convém aqui esclarecer o quanto de significância para um ‘desenho’ de marcantes influências literárias, intelectuais e culturais quer para a  formação do escritor quer para efeito de seu contributo à formação de seu leitor (e para o leitorado brasileiro do século XIX )  detêm as leituras, fosse  nos livros de sua posse mantidos na biblioteca pessoal fosse nas consultas realizadas por ele em bibliotecas públicas e particulares,em gabinetes de leitura em entidades e instituições, bem como as citações e referências expressas em seus escritos. Os acurados, metódicos, rigorosos levantamento e mapeamento desses elementos tornam-se obrigatórios  para constituição informativa e reflexiva de cenários e vetores das  orientações estrangeiras em Machado de Assis – e foram devidamente (como não poderia ser de outro modo) utilizados e aplicados no caso luso-machadiano.

*

Notório fato: não obstante  a preponderância dos franceses nesse cenário de influências estrangeiras, os portugueses -- por seus autores e obras lidos e consultados por Machado, naqueles que com ele conviveram no Rio de Janeiro, naqueles intensamente citados, referenciados em sua obra -- foram absolutamente decisivos na vida, quer pessoal, social e conjugal, quer intelectual, em suas formação e constituição literárias e em sua obra, na edificação de sua linguagem, sua escrita e estilo narrativo, e – vale reiterar - no embasamento político-ideológico-filosófico de Machado de Assis.

A solidez e a característica genuína dos vínculos machadianos com os portugueses são nitidamente expressas por elementos que se estendem de  sua própria origem familiar aos fortes e intensos laços de amizade com lusitanos então residentes no Rio de Janeiro, de seu casamento às  leituras que lhe acompanharam por toda a vida,  de sua formação literária e cultural às inúmeras (e significativas) citações,alusões, referências e recorrências a autores e obras lusitanos em sua ficção e não-ficção.

No âmbito de seus vínculos familiares e conjugais, emerge a constatação do quanto mulheres  de origem portuguesa constituíram-se não apenas em objeto de especial afeto por parte de Machado – até porque exerceram marcante papel em diversos momentos de sua vida -- mas sobremodo contribuíram para a  construção de sua linguagem, no que tange a  prosódia, sintaxe,  léxico e semântica, o que por extensão incorporou-se à  própria linguagem literária machadiana.

Sob outro viés, vale a pena considerar que, em parte decorrente  desses originários vínculos familiares,  ao mesmo tempo guiado por um vetor sob o escopo maior de sua iniciação no embasamento literário-cultural, Machado desde cedo passou a conhecer autores e obras lusitanos, especialmente os clássicos da língua. Jovem, de parcos recursos financeiros, valeu-se na freqüência regular, contumaz a bibliotecas públicas e privadas, e de um acurado autodidatismo em suas leituras de formação, realizadas mormente  no (preponderante) Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro,  também no Liceu Literário Português, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Com o tempo, foi formando gradativamente – e consistentemente – sua biblioteca pessoal, na qual se não majoritários em quantidade autores e obras portugueses se fizeram notar por parâmetros de alta representatividade literário-bibliográfica.

No extenso painel de seus interesses literários e suas leituras, Machado de Assis constituiu-se, per se, em elo decisivo de contato entre as culturas brasileira e portuguesa na segunda metade do séc. XIX; e, acrescido pelos  vínculos familiares de origem, bem como os de eleição afetiva e de interesse intelectual que manteve ao longo da vida com membros da colônia portuguesa radicados no Rio de Janeiro,  faziam o escritor circular dentro de um ambiente luso-brasileiro,de marcantes  ecos em seus próprios escritos.

È extenso, como extremamente significativo, o elenco de fraternas amizades cultivadas, desde sua juventude, com escritores portugueses recém transferidos para o Rio de Janeiro (estima-se que em 1852, por exemplo, viviam  cerca de 30 mil na cidade), atraídos pelo ambiente acolhedor e de  alta efervescência cultural, mas também de cunho filosófico-ideológico, aqui criado desde 1837 por aqueles que, afastando-se do levante do Porto, inclusive fundaram o Real Gabinete Português de Leitura.

Pelos anos 1850 encontravam-se radicados no Rio de Janeiro literatos como Francisco Gonçalves Braga, Augusto Emílio Zaluar, Carlos Augusto de Sá, Faustino Xavier de Novais, Francisco Ramos Paz, Ernesto Cybrão, Reinaldo Carlos Montoro, Manuel de Melo, José Feliciano de Castilho, Antônio Feliciano de Castilho. Todos de alguma influência nas rodas literárias e nos ambientes letrados da capital brasileira – e todos de capital relevância na vida literária e intelectual de Machado.
.
Todos eles -- destaque absoluto  a Zaluar e Xavier de Novais, além de Antonio Feliciano de Castilho -- encontram-se de alguma forma presentes nos escritos de Machado, atestando estreita interlocução literária, o que, de resto, atesta o clamoroso fato de que nenhum escritor ou literato brasileiro, à época, aproximou-se e identificou-se de tal forma, e essência, como Machado de Assis junto aos portugueses.

Com efeito, foi exatamente por conta da fértil, profícua, intensa  convivência física com esses que Machado tinha como “amigos fraternos” que  realça e enfatiza – como se asseverou anteriormente – a importância crucial dos , muito maior do que a dos franceses,ingleses, só para citar dois exemplos de preponderantes influências em Machado
Relacionamentos, convivências e atividades intelectuais em comum exercidos e praticados em torno, primeiramente – ainda que em escala incipiente – da Sociedade Petalógica (criada e incentivada por Paula Brito),em  1854-55, na qual estavam Braga,Zaluar e Garção; em seguida, já em 1857, no escritório de Caetano Filgueiras -- que escreveria o famoso prefácio à 1ª. edição da coletânea poética Crisálidas, de Machado -- onde inclusive constituiu-se o denominado “Grupo dos Cinco”, composto de Filgueiras,Braga,.os brasileiros Casimiro de Abreu --que vivera bom tempo em Lisboa - Cândido Macedo Junior,e Machado ; depois, um novo grupo,unidos por traços ideológicos comuns,de elementos democráticos e liberais, a fornecerem o fermento para uma nova postura política de Machado (que a  sustentaria daí por diante, ao longo do tempo) –  tendo como figura central o proscrito francês Charles Ribeyrolles, e onde estreitou seu relacionamento com Augusto Emilio Zaluar, Reinaldo Carlos Montoro,Francisco Ramos Paz, Remigio de Sena Pereira (estes três iriam traduzir, ao lado de Machado e Manuel Antonio de Almeida, a obra de Ribeyrolles, sob supervisão e acompanhamento deste, Le Brèsil Pittoresque)-- todos mais tarde  participantes e atuantes, com Machado, no  (importantíssimo) jornal O Parahyba e no Correio Mercantil. [2]

Mas também exercidos, os relacionamentos e convivências, nos saraus literários; nas reuniões no Grêmio Literário Português, no Retiro Literário Português (uma dissidência do Grêmio), na Arcádia Fluminense (onde, em 1864, Machado apresentou sua peça “Os deuses de casaca”); e  ao ensejo de dois eventos bastante significativos : o centenário (aliás, mais comemorado no Brasil que em Portugal) de nascimento de  Bocage, em 1865, e o tricentenário de nascimento de Camões, 1880, iniciativa do Gabinete Português de Leitura (acontecimento inclusive de intensa participação popular no Rio de Janeiro) – quando Machado apresentou a peça,escrita especialmente para a ocasião, “Tu,só tu puro amor”

E, importante notar, em distintos jornais, de relevância – cada um por suas circunstâncias – no contexto das relações lusas de Machado: A Marmota, em 1855-56 (que publicava transcrições de obras portuguesas, como “Folhas caídas”, de Garret, poemas de João de Lemos e Antonio Dinis, e outros); O Parahyba, de Petrópolis, 1858-59 (jornal progressista, avançado para seu tempo, de relevância ímpar na história jornalística, editorial e literária brasileiras – até aqui não devidamente estudado), criado por Zaluar, editorialista e seu redator-chefe,e contando com Carlos Montoro, Ramos Paz e Machado ; Correio Mercantil,.1858-59, no qual  Machado conheceu Faustino Xavier de Novais, e publicou,entre outros textos, o  artigo “O Jornal e o Livro”, marco de um posicionamento dialético-político machadiano, cuja (escreveu ele) “idéia pertenceu ao sr. Reinaldo Carlos [Montoro]” –  artigo contendo  trecho de manifestação de  clara adesão aos princípios democratas e republicanos;[3] ; Diário do Rio de Janeiro, 1861-62 – nele (com Machado),  Ramos Paz e Sena Pereira ; O Futuro, 1862-63, criado e dirigido por Faustino Xavier de Novais, o primeiro – e pode-se dizer principal, se não único -- jornal explicita e essencialmente luso-brasileiro, de resto expresso formalmente no texto de  editorial de seu 1º.número, a  15.09.1862, e que  inclusive abrigou crônicas machadianas de teor político (e de outros timbres)

A rigor, toda esse período de cerca de oito anos na vida de Machado – desde meados da década de 1850, as atuações nos aludidos jornais, em todos eles ‘cercado’ de portugueses  – registra e retrata uma espécie de ‘pêndulo’ na postura,no pensamento, nas opiniões.comentários e manifestações literárias, oscilando entre a convivência e intimidade em grupos de literatos e o engajamento, entre participação efetiva,em termos de comentários incisivos, nos acontecimentos e a criação artística, procurando impor certa ‘personalidade filosófica’, uma independência de pensamento não submisso a doutrinas e dogmas. Sempre  em torno da convivência com os portugueses.

Como  portugueses marcaram literariamente  o Machado escritor ?

Primeiramente, por meio dos autores e obras clássicos, quer antigos e canônicos quer contemporâneos a ele, dos quais foi Machado um persistente leitor, entre 39 volumes   armazenados em sua biblioteca(ou do que restou dela, bastante diluída após sua morte) – como Almeida  Garret, Alexandre Herculano, Antonio F.de Castilho; José F. de Castilho,   Teophilo Braga, Alexandre Herculano,Oliveira Martins,João de Barros, Camões, Frei Amador Arrais,padre João Lucena, Garcia de Resende, Frei Luís de Sousa, João de Deus, Eça de Queirós, Almeida Garrett, Gomes de Amorim,  Rebelo da Silva,  Antero Figueiredo, D. Antonio Costa, fr. J.de Santa Rita Durão, J. P. Oliveira Martins, padre João Lucena. Vasco da Gama -- e aqueles consultados, uns regularmente outros especifica e episodicamente, nos acervos públicos e privados que freqüentava -- entre eles, Gil Vicente; Bernardim Ribeiro; Sá de Miranda; João de Barros; Fernão Mendes Pinto; Duarte Nunes de Leão; frei Luís de Sousa; Francisco Rodrigues Lobo ;padre Antônio Vieira ;padre Manuel Bernardes.

Às intensas e perenes leituras e consultas nas bibliotecas e acervos bibliográficos e à estreita e criativa convivência com literatos lusos estabelecidos no Rio de Janeiro, acoplam-se, por sua extrema significância no retrato dessas relações, as profusas  citações e recorrências aos portugueses em toda a obra machadiana (devidamente mapeadas e organizadas, no aludido estudo acerca das influências e orientações estrangeiras em Machado de Assis, em raisonnés – o que, mister  enfatizar, identificam os teores,graus e influências de autores,obras e textos lusos em sua  genealogia literária concomitantemente apontam para vetores  na constituição,hábitos,gostos e perfis de leitores a sua época, vale dizer serem  vistas como fontes de informação e conhecimento dessas referências autorais e bibliográficas a seus leitores, por extensão ao leitor brasileiro de seu tempo : no que registra e faz aparecer em seus textos, Machado os ‘apresenta’ e transmite aos que o lêem. Há um claro, relevante processo de ‘transferência’ e transmissão de conhecimento literário, bibliográfico,cultural, histórico, político, etc, de insofismável formação cognitiva e de modulação de padrões de leitura da época.

Neste particular, tão quantitativamente extenso quanto qualitativamente significativo é o elenco de  autores portugueses, os quais  a par de exercerem marcante influência em  sua formação literária, Machado de Assis informou e difundiu junto a seus leitores. Desde autores mais antigos – como Joham Zorro e  D. Dinis – a   Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, João de Barros, D. João de Castro, Damião de Góis, Fernão Mendes Pinto, Pêro de Andrade Caminha,  Antônio Ferreira, Francisco de Andrade, Diogo do Couto, Frei Luís de Sousa, Damião de Góis, Antônio José, o Judeu, Antônio Vieira, Francisco Manuel de Melo, Manuel Bernardes, Antônio Caetano de Sousa, Antônio José da Silva, Correia Garção,  Luís, Manuel de Figueiredo, Cruz e Silva,Mendes Leal, Rebelo da Silva, Camilo Castelo Branco, Ernesto Biester, João de Deus, Tomás Ribeiro, Ramalho Ortigão,Teófilo Braga, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro.

Hegemônico foi Luis de Camões (quem, de resto, pode-se considerar, no cômputo geral das menções e referências de Machado, somente superado por Shakespeare) -- e Os Lusíadas, a  obra mais citada por Machado depois da Bíblia ; e mais Almeida Garret, Alexandre Herculano,Bocage, Antonio F. de Castilho, Antonio .Dinis da Cruz e Silva,  Nicolau  Tolentino.
O papel e influências de poetas portugueses  na formação de Machado de Assis, inserido  de resto na própria  tradição poética luso-brasileira da época, têm exemplos cristalinos em Camões,Garret e Castilho, que  marcaram forte e intensamente a poética machadiana, bem como um daqueles co-viventes no Rio de Janeiro, Francisco Gonçalves Braga-- a quem Machado designou como “meu primeiro mestre”. A se destacar também as influências significativas de Alexandre Herculano – ao lado de Garret, considerado por Machado como modelo na prosa -- e João de Barros na constituição de seu conhecimento histórico.
Almeida Garret, mister enfatizar, além da acentuada influência temática e estilística na poética machadiana, teve seu “Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa”, de 1827, estudo fundamental para a história da literatura no Brasil, a apontar caminhos da emancipação literária – o que viria a se constituir na égide do movimento deflagrado na década de 1830 por Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, em prol de um “nacionalismo literário brasileiro” (que, aliás, propicia a reflexão  exposta adiante) – como  forte inspiração para as reflexões de Machado acerca da literatura brasileira, expressas nos ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira”(1858), “Instinto de nacionalidade”(1873) e “A nova geração”(1879), e sua obra Viagens da minha terra como uma das peças que moldaram,no teor da sátira menipéica-luciânica (ao lado das obras de Sterne,Diderot e Xavier de Maistre),  a célebre inflexão machadiana no início da década de 1880. 
A se arrolar ainda Camilo Castelo Branco, que inspirou Machado em certos recursos narrativos, como as digressões metaliterárias, as interferências do narrador em diálogo com o leitor, o uso da ironia (já foram apontados elementos da novela  Coração ,cabeça e estômago: uma estética da ambiguidade, de Camilo, em Memórias póstumas de Brás Cubas).
Na ‘seara’ teatral de Machado, de inquestionável influência foi Antônio José da Silva, a quem inclusive foi dedicado  belo ensaio (publicado originalmente na Revista Brasileira, 17.07.1879). E um português que não era escritor ou literato, Furtado Coelho, que  produtor teatral propiciou a Machado , porque as levava a cena, o incrementar de sua importantíssima atividade de tradutor (que Mario de Alencar, considerando-o “um dos maiores tradutores brasileiros”, lamentava tivesse Machado interrompido ).

*
Por fim, uma reflexão a respeito de questão que muito me instiga, e julgo pertinente. Machado – como representante proeminente do movimento de ‘nacionalização literária’ brasileira -- parece ter sido o primeiro, se não o único a se aproximar e interagir aos portugueses: não se tem referência, por exemplo, das   presença e atuação, nesse sentido, de Gonçalves de Magalhães, José de Alencar e dos demais românticos empenhados,no Brasil, nesse projeto (que se dava simultaneamente em Portugal, convém frisar) de afirmação de nacionalidade literária e cultural.
Não existem dúvidas de quanto ambíguos, ou no mínimo reticentes, postaram-se os românticos brasileiros com relação ao legado lingüístico e cultural dos portugueses: mesmo tendo em conta a importância, ou necessidade, de estabelecer, e sedimentar, traços  diferenciadores do novo país depois da independência de 1822, o curioso – e  contraditório – é que desenrolou-se um processo de obediência e preservação dos padrões lingüísticos,sintáticos,gramaticais,léxicos portugueses como uma espécie de atestado de qualificação cultural  e ‘civilidade’ intelectual. Isto é, intentavam os primeiros românticos brasileiros se constituírem nos agentes a afirmação nacionalista brasileira, no âmbito cultural, sem no entanto romperem com o arcabouço lusitano...


[1] Este artigo, constituído como escopo para a palestra proferida durante o “6º. Colóquio Portugal no Brasil: pontes para o presente”, realizado pelo Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, abriga elementos inerentes a Estudo, a ser publicado  neste 2012 – aliás,  designado como  “ano de Portugal no Brasil e do Brasil em Portugal”.
[2] Nesse particular, poder-se ter em consideração que muito do perfil político-ideológico desse grupo seria aquele inerente aos portugueses vindos para o Rio de Janeiro em 1837(e que criaram o Real Gabinete Português de Leitura) refugiados do levante político do Porto,em Portugal – o que taxativamente comprova  o papel  capital  dos lusitanos também na formação do pensamento político de Machado.
[3] Texto que oferece aos estudiosos amplo arsenal de elementos para uma reflexão, até mesmo de cunho ‘revisionista’, acerca da (até então e,de resto, quase consensualmente tida) índole e perfil ‘monarquista-liberal’ machadianos.
                “(Graças ao jornal...) completa-se  a emancipação da inteligência e começa a dos povos.O direito da força,o direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis já não têm púrpura,envolvem-se nas constituições. As constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica” [“O Jornal e o Livro”, in Correio Mercantil, Rio de Janeiro :10-12.01.1859].

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O presente e o futuro das bibliotecas (especialmente da Biblioteca Nacional)


 a partir do  oportuno comentário de Elio Gaspari na Folha de S.Paulo,em 02.09 :
"A Biblioteca Nacional  é uma instituição secular que precisa de trato, cadeia de fast-books é outra coisa.Biblioteca, como diz o nome, é um lugar onde se guardam livros catalogados, acessíveis ao público. No caso da Biblioteca Nacional, um transeunte que entra no prédio para sapear o catálogo precisa deixar até os cadernos na portaria. Caneta não entra, só lápis preto.Se alguém for à página da BN na internet, terá à mão um catálogo de 576 mil obras, apesar de o acervo ser de pelo menos 2 milhões.
Mais, nas palavras do seu Relatório de Gestão: "Para evitar sobrecarga (da rede elétrica), não é permitido aos leitores utilizar carregadores para equipamentos como computadores, gravadores e assemelhados".Neste ano, em duas ocasiões, vazamentos do sistema de ar refrigerado inundaram áreas em vários andares, formando poças com até 10 centímetros de profundidade.Há estantes que dão choque, sua fachada centenária solta pedaços e tapumes protegem os pedestres.
Funcionários da instituição fizeram uma manifestação na sua escadaria celebrando "o aniversário das baratas que infestam o prédio, com destaque para seu 'berçário', no quinto andar; das pragas que gostam muito de papel; brocas, traças e cupins" bem como "dos ratos do primeiro andar".
Nesse cenário de real ruína, ressurge a cantilena: faltam recursos. Coisa nenhuma. O governo da doutora Dilma e a administração do companheiro Galeno Amorim, atual diretor da BN, botam dinheiro da Viúva em coisas que nada têm a ver com a tarefa de guardar, catalogar e tornar acessíveis os livros.Em 2011, o Orçamento deu à BN R$ 30,1 milhões para gastos sem relação com pessoal e encargos. De outras fontes públicas, para diversas finalidades, recebeu mais R$ 63,4 milhões.A digitalização dos sacrossantos Anais da BN parou em 1997, mas ela gastou alguns milhões em coedições, no patrocínio de traduções (inclusive para o croata) e na manutenção de um Circuito Nacional de Feiras do Livro. Colocou R$ 16,7 milhões num programa de compra e distribuição de livros populares, ao preço máximo de R$ 10 para distribuí-los pelo país afora. (Quem achou que por R$ 10 compram-se também estoques de livros encalhados ganha uma passagem de ida e volta a Paris.)
A criação de um polo de irradiação editorial pode ser uma boa ideia, mas essa não é a atribuição da Casa. Mercado de livros é coisa privada, biblioteca é coisa pública. Se ela não tivesse ratos no primeiro andar, baratas em todos, estantes que dão choque e um catálogo eletrônico mixuruca, poderia entrar no que quisesse, até mesmo na exploração do pré-sal.
Se Galeno Amorim pode revolucionar o mundo editorial brasileiro, a doutora Dilma deveria criar o Programa do Livro Companheiro, o Prolico. Nomeando-o para lá, deixaria a Biblioteca Nacional para quem pudesse cuidar dela."
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[cada vez que tenho de ir na BN -- e sou fadado a ter de ir muito --irrito-me previamente; o que não acontece nunca com relação a outros acervos que frequento,para consultas e pesquisas.vo u lá a priori irritado por (entre as que Elio registra e outras coisas detestáveis)
1. só o documento oficial de identidade, não a cópia (ora,preservo o original em casa e uso a cópia no dia a dia)
2.nada de caneta,só lápis (paranóia,que os demais acervos,inclusive públicos não têm, de que se vá rabiscar o livro)
3.nada de papel impresso, folhas virginalmente imaculadas (a troco de quê ? outra paranóia inadmissível)
4.não utilizar o carregador de energia para o laptop (absurdo dos absurdos ! por vezes passo um dia inteiro lá -- e imaginem a ginástica que se é obrigado a fazer)
5. para se entrar com o laptop, a burocracia - inclusive com andanças pra lá e pra cá -- é inacreditável.
6.talvez o pior de tudo: o site da BN só abriga e exibe os elementos para 576 mil obras, contra 2 milhões que compõem o acervo total. e mais : experimente acessar o site,mesmo vc. numa máquina (desktop ou laptop,ou tablet,etc) poderosa, em determinados horários, ainda mais se o acesso desejado,que se necessite,requeira urgência : pobre pesquisador ...]

É a mais importante biblioteca do país: por isso, merecia\merece 'melhor tratamento' (para dizer o mínimo...). A Biblioteca Nacional -- essa denominação assumida em 1876 -- originariamente constituída como Biblioteca Real, trazida por d. João VI,com um acervo de 60 mil peças, tornou-se o principal elemento para os esforços de então para disseminação do livro e da leitura. Denominada depois da Independência Biblioteca Imperial e Pública da Corte,começando a se "abrasileirar e se modernizar" a partir da década de 1840 -- quando começou a configurar-se a formação de um público leitor no Brasil,evidenciado pela pela implementação de redes de bibliotecas e pela instalação de sociedades de leitores (Sociedade Literária do Rio de Janeiro;Ginásio Científico-Literário Brasileiro;Sociedade Ensaios Literários;Grêmio Literário Português; Retiro Literário Português;Sociedade Phil'Euterpe) e de gabinetes de leitura (alguns situados no interior de livrarias [!]) -- dos quais o mais importante e de maior acervo era o Real Gabinete Português de Leitura.

{estes dados encontram-se em meu estudo,a se dar em livro, "As leituras dos formadores de leitores:Machado de Assis,Lima Barreto e Monteiro Lobato".informa,mapeia,focaliza e analisa,entre outros elementos --mormente os inerentes às fontes(autores e obras) influenciadoras da formação literária dos aludidos três escritores -- o processo e a dinâmica de constituição do público leitor brasileiro}
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o presente e o futuro das bibliotecas
 sempre presente em simpósios e debates de que participo, o "futuro das bibliotecas" é tema recorrente em todas as reflexões sobre livro e leitura. antes disso, porém : qual o "presente das bibliotecas"-- definida por Mario de Andrade ainda em 1935 como "centros de informação e cultura" -- nestes tempos de informação imediata (e imediatista),de convívio (sim,o termo é este) virtual,de redes sociais,de formação educacional-cultural a distância ?
uma resposta : bibliotecas públicas modernizadas, a conviverem, e interagirem, com as novas e dinâmicas (e alvissareiras) mídias digitais, a 'compartilharem' com bibliotecas escolares,bibliotecas comunitárias,e, retomando os 'modelos' daqueles idos do pós-1840 [vide meu post anterior] , com núcleos e gabinetes de leitura e sociedades literárias.
a meu juízo, tudo no presente e no futuro depende\dependerá da capacidade de as bibliotecas incorporarem e se integrarem à cultura digital,vale dizer à realidade inexorável - e eficaz -- do mundo contemporâneo.

{neste sentido,busco viabilizar -- primeiramente a nível de biblioteca universitária (encontro-me em tratativas com uma) -- a implementação de acervos digitais(não de obras e textos apenas digitalizados como as ações de 'biblioteca digital' até aqui praticadas em geral mas sim disponibilizados em arquivos pdf a permitir leitura correta e mesmo gravação), sob projetos que tenho devidamente formatados e constituídos}