domingo, 29 de abril de 2012

Euclydes da Cunha e o 1º. de Maio


Euclydes da Cunha foi essencialmente um ser político – um pensador,a princípio convicto militante republicano, depois,desiludido com o regime, crítico vigoroso,por fim (em essência, depois de Canudos) presumivelmente socialista ( com efeito,se achegou,por influência do  amigo Francisco Escobar, ao grupo socialista de São José do Rio Pardo ,onde deu forma final ao texto de Os sertões ) --o que, na verdade, delineara-se,configurara-se e consolidara-se gradativamente  em todas as fases e  estágios de seu espectro político-ideológico. 
Haja vista, a expressar e comprovar com clareza absoluta a postura euclidiana face à questão social e ao socialismo, três  textos em três períodos distintos  todos datados de 1º. de maio : um artigo de 1892; o texto,de 1899, do programa de O Proletário, órgão do “Clube Internacional Os Filhos do Trabalho”,em São José do Rio Pardo; o artigo,de 1904, intitulado  “Um velho problema” – este, o mais avançado de sua lavra e um dos mais radicais de seu tempo

o estado  de  S. Paulo,  1º. maio  1892

Extraordinário amanhecer o de hoje nas velhas capitais da Europa...
Como que assaltada por uma síncope, subitamente, se paralisa a complicadíssima vida da mais alta civilização; todo o movimento das grandes sociedades, toda a espantosa atividade de um século e a admirável continuidade dessa existência moderna tão poderosa e tão vasta, se extinguem, aparentemente, esvaindo-se em vinte e quatro horas de inatividade sistemática.
Abandonam o cérebro dos políticos os interesses nacionais mais urgentes; desaparecem por um dia todas as fronteiras; reconciliam-se incorrigíveis ódios seculares de governos - e aqueles exércitos formidáveis, que a todo o instante ameaçam abalar a civilização, num espantoso duelo, formam silenciosos, pela primeira vez, sob uma mesma bandeira...
Tudo isto porque o anônimo extraordinário que é o maior colaborador da história, o Povo que trabalha e que sofre - sempre obscuro - entende, nessa festiva entrada da primavera, deixar por momentos as ásperas ferramentas e sonhar também como os felizes, pensar, ele que só tem um passado, no futuro.
O escravo antigo, que ia nos circos romanos distrair o humor tigrino dos reis, num pugilato desigual e trágico com as feras; o servo da gleba, o vilão cobarde que atravessou a idade média, à sombra dos castelos sob a guante do feudalismo; que tem alimentado com o sangue a alma destruidora das guerras; ele - a matéria prima de todas as hecatombes, seguindo sempre acurvado a todos os jugos - transfigura-se realmente, alentado por uma aspiração grandiosa e apresenta esta novidade à história - pensa!
Deu todas as energias ao progresso humano, sempre inconsciente da própria força, e quando no fim do século XVIII, uma grande aura libertadora perpassou a terra, ele se alevantou, aparentemente apenas - para trazer às costas, até os nossos dias - a burguesia triunfante.
Cansado de escutar todas as teorias dos filósofos ou os devaneios dos sonhadores, que de há muito, intentam-lhe a regeneração - desde os exageros de Proudhon às utopias de Luis Blanc - ele inicia por si o próprio levantamento.
E para abalar a terra inteira basta-lhe um ato simplíssimo - cruzar os braços.
E que triste e desoladora perspectiva esta - de vastas oficinas e ruidosas fábricas desertas, sem mais a movimentação fecunda do trabalho - e as profundas minas, abandonadas, abrindo para os céus as gargantas escuras - num tenebroso bocejo...

*
Se entrarmos na análise dos cambiantes que tem assumido o socialismo, temo-lo como uma ideia vencedora.
O Quarto Estado adquirirá, por fim, um lugar bem definido na vida universal.
Nem se lhe faz para isto preciso agitar o horror da anarquia ou fazer saltar a burguesia a explosões de dinamite. Fala todas as línguas e é de todas as pátrias.
Toda a sua força está nessa notável arregimentação, que ora desponta à luz de uma aspiração comum; a anarquia é justamente o seu ponto vulnerável - quer se defina por um caso notável de histeria - Luiza Michel, ou por um caso vulgar de estupidez - Ravachol.
Não existe, talvez, um só político proeminente hoje, que se não tenha preocupado com esse grave problema - e o mais elevado deles, o menos inglês dos pensadores britânicos, Gladstone, cedendo à causa dos home-rulers o espírito robusto - é, verdadeiramente, um socialista de primeira ordem.
Realmente, a vitória do socialismo bem entendido, exprime a incorporação à felicidade humana dos que foram sempre dela afastados. Em nossa pátria - moça e rica - chegamos as vezes a não o compreender - transportando-nos porém aos grandes centros populosos, observando todas as dificuldades que assoberbam a vida ali, sentimos quão criminosa tem sido a exploração do trabalho. Ali, aonde o operário mal adquire para a base material da vida, a falsíssima lei de Malthus parece se exemplificar ampla e desoladora. Preso a longas horas de uma agitação automática e além disto cerceado da existência civil, o rude trabalhador é muito menos que um homem e pouco mais que uma máquina.
*
Os governos da Europa hão de transigir porém; hão de entabular os preliminares da paz, pelas concessões justas e inevitáveis que terão de fazer.
Nós assistimos ao espetáculo maravilhoso da grande regeneração humana.
Pela segunda vez se patenteia na História, o fato de povos que se fundem num sentimento comum - e não sabemos qual mais grandioso, se o quadro medieval das Cruzadas ou se esta admirável cruzada para o futuro.
Seja qual for este regime porvir, traduza-se ele pela proteção constante do indivíduo pela sociedade, como pensa Spencer ou pelas inúmeras repúblicas, em que se diferenciará o mundo, segundo acredita Augusto Comte - ele será, antes de tudo, perfeitamente civilizador.
Que se passe sem lutas este dia notável. O socialismo, que tem hoje uma tribuna em todos os parlamentos, não precisa de se despejar nas revoltas desmoralizadas da anarquia.
Que saia às ruas das grandes capitais a legião vencedora e pacífica; e levante altares à esperança, nessa entrada iluminada de primavera, sem que se torne preciso ao glorioso vencido - o Exército - abandonar a penumbra em que lentamente emerge à medida que sobe a consciência humana.
E.C.
___________________

o proletário,1º. maio  1899

Programa
I. Proibição do trabalho das crianças de qualquer dos sexos até a idade de 14 ou 15 anos.
II. Escolas gratuitas, com o ensino leigo e obrigatório para todas as crianças, sem distinção de sexo, de cor e de nacionalidade, tendo as crianças pobres todo o necessário para freqüentar as escolas: roupa, comida, cuidados médicos, farmácias, etc, etc.
III. Estabelecimentos apropriados para recolher os inválidos do trabalho, pobres, velhos e defeituosos, dando-lhes com abundância roupa, comida, médico, farmácia, etc., para não irem morrer nas enxergas dos hospitais e nos adros das igrejas, ou nas calçadas das ruas, implorando aviltadora caridade, ministrada pelos ricos, e remédios.
IV. Emancipação da mulher, reconhecendo-se-lhes iguais direitos e iguais deveres: aos do homem, inclusive o de votar e ser votadas.
V. Impostos diretos e pesadíssimos sobre a renda.
VI.Substituição das Forças Armadas pelo povo armado.
VII. Organização do trabalho por ser o único fator de riqueza.
VIII. Estabelecimento de bolsas de trabalho.
 IX. Proporcionar a preços módicos a cada família uma casa confortável para sua residência.
X. Fornecer água e luz grátis a todos em geral.
XI. Tribunais arbitrais obrigatórios para as questões internacionais.
XII. Justiça gratuita para todos.
XIII. Supressão dos empréstimos internos e externos.
XIV. Tribunais arbitrais para decidir as questões entre patrões e operários.
XV. Decretar leis de oito horas de trabalho e a proibição do trabalho à noite para os assalariados.
XVI. Leis repressivas contra os usurários, estabelecendo uma só taxa de juros para todos os negócios.
XVII. Nacionalização do crédito.
XVIII. Leis reguladoras da venda de bebidas, para acabar com o alcoolismo.
XIX. Leis que estabeleçam o divórcio, dando à mulher as mesmas garantias que ao homem.
XX. Pensão aos inválidos do trabalho.
XXI. Reivindicação dos bens do clero para a comunhão social.
                                                     A mensagem
Festa  exclusivamente popular, ela se destina a preparar o advento da mais nobre e fecunda das aspirações humanas : a reabilitação do proletariado pela exata distribuição da justiça, cuja fórmula suprema consiste em dar cada um o que cada um merece. Daí a abolição dos privilégios derivados quer do nascimento, quer da fortuna, quer da força. Para esse fim é mister promover a solidariedade entre todos os que formam a imensa maioria dos oprimidos sobre que pesam as grandes injustiças das instituições e preconceitos sociais da atualidade, destinados a desaparecer para que reine a paz e felicidade entre os povos civilizados. Promovendo, entre nós, a comemoração de uma data tão notável, o Clube "Filhos do Trabalho" promoverá a divulgação dos princípios essenciais do programa socialista, empenhando –se em difundi-los entre todas as classes sociais.

____________________

O estado de s. paulo,  1º. maio  1904

                                                          Um velho problema

Li há tempos alentada dissertação sobre um singularíssimo direito expresso em velhas leis consuetudinárias da Borgonha. Direito de roubos...
Recordo-me que, surpreendido com tal antinomia, tão revolucionária, sobretudo para aquela época, ainda mais alarmado fiquei notando que a patrocinava o maior dos teólogos, S. Thomaz de Aquino; e com tal brilho e cópia de argumentos, que a perigosa tese repontava com a estrutura inteiriça de um princípio positivo. Realmente a repassava uma nobre e incomparável piedade, fazendo que aquela extravagância resumisse e espelhasse um dos aspectos mais impressionadores da justiça.
Tratava-se, ao parecer, de um código da indigência; e os graves doutores, no avantajarem-se tanto, rompendo com nobre rebeldia as barreiras da moral comum, para advogarem a causa da enorme maioria de espoliados, chegavam à conclusão de que a opulência dos ricos se traduzia como um delitum legale, um crime legalizado. Impressionava-os o problema formidável da miséria na sua feição dupla - material e filosófica - pois é talvez menos doloroso refletido nos andrajos das populações vitimadas, que na triste inopia de elementos da civilização para o resolver.
E como lhes faleciam, mais do que hoje nos falecem, elementos para a extinção do mal, justificavam aos desvalidos num crudelíssimo título de posse a todos os bens - a fome.
O indigente tornava-se um privilegiado afrontando impune toda a ortodoxia econômica. O roubo transmudava-se, do mesmo passo, num direito natural de legítima defesa contra a Morte e num dever imperioso para com a Vida.
Mas não foram além deste expediente, e dessas declamações, os piedosos doutores. Tolhia-os, senão a situação mental da Idade Média imprópria a uma apreciação exata do conjunto do progresso humano, a mesma ditadura espiritual do catolicismo, na plenitude de força, e para o qual a miséria - eloqüentíssima expressão concreta do dogma do pecado original - era sempre um horroroso e necessário capital negativo, avolumando-se com as provações e com os martírios para a posse anelada da bem-aventurança, nos céus...
Por outro lado, os pensadores leigos do tempo, e os que os encalçaram até ao século XVIII, não partiram esta tonalidade sentimental Mais sonhadores que filósofos, o que os atraía era o lado estético do infortúnio, a visão empolgante do sofrimento humano, a que nos associamos sempre pela piedade. Os seus livros, pelos próprios títulos hiperbólicos, à maneira dos das novelas do tempo, retratam uma intervenção brilhante e imaginosa, mas inútil. São como títulos de poemas. De fato, na Utopia de Thomaz Morus, na Oceana de Hallis, ou na Basilidade de Morelly, a perspectiva de uma existência melhor, oriunda da riqueza eqüitativamente distribuída e dos privilégios extintos, irrompe :num fervor de ditirambos, aos quais não faltam, para maior destaque, prólogos arrepiadores de agruras e tormentas indescritíveis...
As medidas propostas raiam pelos exageros máximos da fantasia: do nivelamento absoluto de João Libburne, ao platonismo adorável de Fontenelle e ao niilismo religioso de Diderot; e para lhes não faltar grotesco, esse cruel e antilógico grotesco imanente às mais trágicas situações, culmina-as o desvairado comunismo de Campanella com os seus trezentos monges, trezentos ascetas barbudos e melancólicos, tentando uma república igualitária que seria o desabamento de todas as conquistas do progresso.
Ora, tudo isto caracteriza bem o completo desequilíbrio das almas rudemente trabalhadas pelas doutrinas opostas e de todo desapercebidas, então, de uma síntese filosófica que ao mesmo passo as emancipasse do apego tradicional ao catolicismo, cuja missão findara, e dos impulsos demolidores da metafísica triunfante.
Assim, ao arrebentar a crise decisiva de 1789, não é de estranhar ficasse inapercebido, e talvez sacrificado, o grande problema que desde Pitágoras e Platão vinha agitando os espíritos. E que a grande revolução, inspirada pela filosofia social do século XVIII, oferece o espetáculo singular de repudiar, desde os seus primeiros atos, os seus próprios criadores. A consideração de Guizot é profunda: nunca uma filosofia aspirou tanto ao governo do mundo e nunca foi tão despida do império.
Os filósofos foram, de pronto, suplantados, na agitação revolta dos panfletos e da retórica explosiva dessa literatura política sempre efêmera, com ser modelada pelos desvarios repentinos da multidão. A sólida estrutura mental de um d’Alembert antepôs-se o espírito imaginoso e pueril de um Vergniaud, e aos sonhos desmedidos de Mably e excesso de objetivismo do trágico casquilho que passeou pelas ruas de Paris :a deusa da Razão...
De sorte que a última pancada do antigo regime - já longamente solapado e prestes a cair por si mesmo - se fez com excesso de energias que atirou sobre os destroços da ordem antiga as ruínas da ordem nova planeada. Exclusivamente atraída pelo programa, que se lhe afigurava enorme e pouco valia, de derruir as classes privilegiadas, a Revolução firmou, nos "direito:; do homem", um duro individualismo que na ordem espiritual significava a negação dos seus melhores princípios e na ordem prática equivalia a destruir as corporações populares, isto é, a única criação democrática da Idade Média.
"Os direitos do homem... No entanto, a fórmula superior daquela filosofia, visava, de preferência, através da solidariedade humana crescente, exatamente o contrário - os deveres do homem". Mas era exigir muito à loucura política do momento. Fazia-se mister, antes de tudo, que as franquias recém-adquiridas tivessem um traço incisivamente antiaristocrático. Que o camponês, absolutamente livre, fosse absolutamente dono da quadra de terra onde nascera e onde tanto tempo jazera aguilhoado à gleba feudal; enquanto o burguês das cidades pudesse agir libérrimo, dispondo a bel-prazer de todos os seus bens, despeado do liame das jurandes.
E o trono vazio dos Capetos teve em roda a concorrência tumultuária de não sei quantos milhões de liliputinianos reis...
Despojados o clero e a aristocracia de suas propriedades (não raro precárias como privilégios sujeitos aos caprichos do poder monárquico) ficou em seu lugar - intangível, absoluta e sacratíssima - a propriedade burguesa, para a qual o ilustre Condorcet não encontrara limites no texto que forneceu à Convenção.
Por isto, a breve trecho, se patenteou a inanidade das reformas executadas; ao invés de um número restrito de privilegiados, nos quais o egoísmo se atenuava com as tradições cavalheirescas da nobreza, um outro, maior e formado pela burguesia vitoriosa, mais inapta ainda a compreender a missão social da propriedade,. .ávida por dominar na arena livre que se lhe abria, e tornando maior o contraste entre a sua opulência recente e a situação inalterável do proletariado sem voto naquele tumulto e destinada apenas a colaborar anonimamente na epopéia napoleônica, quando em breve, culminando a catástrofe revolucionária, o mais pequenino dos grandes homens surgisse, concretizando a reação disfarçada do antigo regime, e fosse restaurar, entre os fulgores de uma glória odiosa, o anacronismo da atividade militar.
Destruída desta maneira a obra memorável da Convenção, vê-se, contudo, que ela tinha latentes e aguardando apenas um meio propício, os princípios de uma distribuição mais eqüitativa da fortuna. Para o rígido Camus a propriedade "não era um direito natural, era um direito social"; acompanhava-o neste conceito o romântico Saint Just; e sobre todos, mais incisivamente, num dizer claríssimo que lhe dá as honras de um precursor do coletivismo moderno, o incomparável Mirabeau atirava na anarquia das assembléias estas palavras singularmente austeras: "Le proprietarie n’est lui-même que le premier des salariés. Ce que nous appelons vulgairement la proprieté n’est autre chose que le prix qui lui paye la societé pour les distribuitions qu’il est chergé de faire aux autres individus par ses consommations et ses depenses. Les proprietaires sont les agents, les economes du corps social".
Estas frases admiráveis, porém, que ainda hoje, transcorridos cento e tantos anos, são a síntese de todo o programa econômico de socialismo, ninguém as escutou. De modo que à massa infelicíssima do povo, a quem a revolução libertara para a morte despeando-a da gleba para jungi-la ao carro triunfal de um alucinado, restavam ainda, como nos velhos tempos, apenas as fórmulas enérgicas, mas inócuas, de alguns doutores canonizados; e em pleno repontar do século XIX - quando a filosofia natural já aparelhara o homem para transfigurar a terra um triste, um repugnante, um deplorável, e um horroroso direito: o direito do roubo
Mas esta filosofia natural, tão crescentemente revigorada e favorecendo tanto, no século que passou, o ascendente industrial, era por si mesma - isolada no campo das suas investigações - inapta à verdadeira solução do problema. Dizem-no os insucessos de todos os que o consideraram esteando-se nela, das estupendas utopias de Saint-Simon e dos seus extraordinários discípulos, às alienações de Proudhon, às tentativas bizarras de Fourier e ao soçobro completo da política de Luiz Blanc.
Fora logo acompanhá-los. Se o fizéssemos, veríamos que, malgrado todos os recursos das ciências, eles pouco se avantajaram aos sonhadores medievais: o mesmo agitar de medidas fantásticas, e tão radicais, algumas, abalando tanto os fundamentos da sociedade, a começar pela organização da família, que acarretavam ante novos elementos perturbadores e novas faces à questão, dando-lhe um caráter por igual revolucionário e complexo capaz de a tornar  perpetuamente insolúvel.
Assim ela chegou até meados do último século - até Karl Marx - pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhon que o socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva.
Nada de idealizações: fatos; e induções inabaláveis resultantes de uma análise rigorosa dos materiais objetivos; e a experiência e a observação, adestradas em lúcido tirocínio ao través das ciências inferiores; e a lógica inflexível dos acontecimentos; e essa terrível argumentação terra-a-terra, sem tortuosidades de silogismos, sem o idiotismo transcendental da velha dialética, mas toda feita de axiomas, de verdadeiros truísmos, por maneira a não exigir dos espíritos o mínimo esforço para a alcançarem, porque ela é quem os alcança independentemente da vontade, e os domina e os arrasta com a fortaleza da própria simplicidade.

A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as má quinas, nem o capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível: a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é uma espoliação.
Não se pode negar a segurança do raciocínio.
De efeito, desbancada a lei de Malthus, ante a qual nem se explicaria a civilização, e demonstrada a que se lhe contrapõe consistindo em que "cada homem produz sempre mais do que consome persistindo os frutos do seu esforço além do tempo necessário à sua reprodução" - põe-se de manifesto o traço injusto da organização econômica do nosso tempo.
A exploração capitalista é assombrosamente clara, colocando o trabalhador num nível inferior ao da máquina. De fato, esta, na permanente passividade da matéria, é conservada pelo dono; impõe-lhe constantes resguardos no trazê-la íntegra e brunida, corrigindo-lhe os desarranjos; e quando morre - digamos assim - fulminada pela pletora de força de uma explosão ou debilitada pelas vibrações que lhe granulam a musculatura de ferro, origina a mágoa real de um desfalque, a tristeza de um decréscimo da fortuna, o luto inconsolável de um dano. Ao passo que o operário, adstrito a salários escassos demais à sua subsistência, é a máquina que se conserva por si, e mal; as suas dores recalca-as forçadamente estóico; as suas moléstias, que, por uma cruel ironia, crescem com o desenvolvimento industrial - o fosforismo, o saturnismo, o hidrargirismo, o oxicarborismo - cura-as como pode, quando pode; e quando morre, afinal, às vezes subitamente triturado nas engrenagens da sua sinistra sócia mais bem aquinhoada, ou lentamente- esverdinhado pelos sais de cobre e de zinco, paralítico delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos de mercúrio, asfixiado pelo óxido de carbônico, ulcerado pelos cáusticos dos pós-arsenicais, devastado pela terrível embriaguez petrólica ou fulminado por um coup de plomb - quando se extingue, ninguém lhe dá pela falta na grande massa anônima e taciturna, que enxurra todas as manhãs à porta das oficinas.
Neste confronto se expõe a pecaminosa injustiça que o egoísmo capitalista agrava, não permitindo, mercê do salário insuficiente, que se conserve tão bem como os seus aparelhos metálicos, os seus aparelhos de músculos e nervos; e está em grande parte a justificativa dos socialistas no chegarem todos ao duplo princípio fundamental:
             Socialização dos meios de produção e circulação;
             Posse individual somente dos objetos de uso.

Este princípio,  unanimemente aceito, domina toda a heterodoxia socialista - de sorte que as cisões, e são numerosas, existentes entre eles, consistem apenas nos meios de atingir-se aquele objetivo. Para alguns, e citam-se apenas João Ligg e Ed. Vaillant, os privilégios econômicos e políticos devem cair ao choque de uma revolução violenta. É o socialismo demolidor que, entretanto, menos aterroriza a sociedade burguesa. Outros, como Emílio Vendervelde, se colocam numa atitude expectante: as reformas serão violentas ou não, segundo o grau de resistência da burguesia. Finalmente, outros ainda - os mais tranqüilos e mais perigosos - como Ferri e Colajanni, corretamente evolucionistas, reconhecendo a carência de um plano já feito de organização social capaz de substituir, em bloco, num dia, a ordem atual das coisas, relegam a segundo plano as medidas violentas, sempre infecundas e só aceitáveis transitoriamente, de passagem, num ou noutro ponto, para abrirem caminho à própria evolução.
Ferri, em belíssimo paralelo entre o desenvolvimento social e o terrestre, mostra como os imaginosos cataclismos de Cuvier, perturbaram, sem efeito, a geologia para explicarem transformações que se realizam sob o nosso olhar, sendo os grandes resultados, que mal compreendemos no estreito círculo da vida individual, uma soma de efeitos parcelados acumulando-se na amplitude das idades do globo. Deslocando à sociedade este conceito, aponta-nos o processo normal das reformas lentas, operando-se na consciência coletiva e refletindo-se pouco a pouco na prática, nos costumes e na legislação escrita, continuamente melhoradas.
Nada mais límpido. Realmente, as catástrofes sociais só podem provocá-las as próprias classes dominantes, as tímidas classes conservadoras, opondo-se a marcha das reformas - como a barragem contraposta a uma corrente tranqüila pode gerar a inundação. Mesmo nesse caso, porém, a convulsão é transitória; é um contrachoque ferindo a barreira governamental. Nada mais. Porque o caráter revolucionário do socialismo está apenas no seu programa radical. Revolução: transformação. Para a conseguir, basta-lhe erguer a consciência do proletário, e - conforme a norma traçada pelo Congresso Socialista de Paris, em 1900 - aviventar a arregimentação política e econômica dos trabalhadores.
Porque a revolução não é um meio, é um fim; embora, às vezes, lhe seja mister um meio, a revolta. Mas esta sem a forma dramática e ruidosa de outrora. As festas do primeiro de maio são, quanto a este último ponto, bem expressivas. Para abalar a terra inteira, basta que a grande legião em marcha pratique um ato simplíssimo: cruzar os braços...
 Porque o seu triunfo é inevitável.
Garantem-no as leis positivas da sociedade que criarão o reinado tranqüilo das ciências e das artes, fontes de um capital maior, indestrutível e crescente, formado pelas melhores conquistas do espírito e do coração...

      





quarta-feira, 25 de abril de 2012

23 de abril : Dia Mundial do Livro e do Direito do Autor.
"O livro deixai pingar os anos na cuba de um século. Cheio o século, passa o livro a documento histórico,psicológico, anedótico. Hão de lê-lo a frio; estudar-se-á nele a vida íntima do nosso tempo, a maneira de amar, a de compor os ministérios e deitá-los abaixo, se as mulheres eram mais animosas que dissimu-ladas, como é que se faziam eleições e galanteios, se eram usados xales ou capas, que veículos tínhamos, se os relógios eram trazidos à direita ou à esquerda, e multidão de coisas interessantes para nossa história pública e íntima." ( Machado de Assis)

domingo, 22 de abril de 2012

Machado e a nova capital no "planalto de Goiás"

21 abril também registra aniversário da fundação de Brasília. e Machado de Assis ['sempre ele'] tratou do tema da mudança da capital da República, aliás desde então preconizada em matéria constitucional. saibam que : Machado de Assis [objeto de meu estudo\obra "Machado de Assis,política,a história brasileira do século XIX (com as 385 crônicas a respeito)] comentou em 20.11.1892, sobre a mudança da capital federal para o Planalto Central,já à época prevista em Constituição,a transformação do Distrito Federal em estado, e um novo nome sugerido por ele  : Guanabara (como sabemos, ele sempre antecipador...) ;em 22.01.1893, sobre nova capital da República como matéria constitucional; em 07.06.1896, sobre projeto de lei acerca de mudança da capital da República no “planalto de Goiás”[e nesta,comentou também sobre possíveis futuras “ponte de ferro” e “ponte política” entre o Rio de Janeiro e Niterói (note,mais uma vez, o quanto de antecipador...) --- todas as crônicas publicada na Gazeta de Notícias,série "A Semana".

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Machado de Assis e Tiradentes

Neste dia, vale a pena reportar à importante ilação que o maior nome da literatura brasileira construiu com uma das figuras primordiais da história nacional – ilação retratada em um significativo conjunto de crônicas escritas a propósito do 21 de abril.

Talvez nenhum dos escritores do século XIX admirassem, reverenciassem e cultuassem Tiradentes como Machado de Assis : um vínculo respeitoso ,que remonta à sua postura política durante a década de 1860 , pelo qual Machado investiu Tiradentes com algo semelhante “a aura cristã do martírio e sacrifício” . Só que justamente essa aura,de ‘martírio e sacrifício’, e a loa machadiana ao “homem do povo que sofrera por sua visão de um Brasil independente” foram os fatores, ou motes, determinantes ,cruciais para tornar Tiradentes um ‘símbolo republicano’ – suprema ironia : Machado de Assis, simpatizante da monarquia e crítico da República, foi quem no fundo provocou a assunção do inconfidente a ícone anti-monarquista , dele ‘apropriando-se’ o novo regime e instituindo o dia 21 de abril como feriado nacional.
Machado fez de Tiradentes tema em várias crônicas . A começar pelos ácidos comentários críticos à edificação da estátua de d. Pedro I no Largo do Rocio (atual praça Tiradentes, no centro da cidade do Rio de Janeiro), que se constituiu em um dos maiores conflitos políticos em torno da figura do alferes : no lugar onde fora enforcado ‘o mártir’, o governo imperial erguia uma estátua ao neto da rainha que o condenara à morte ; o líder liberal mineiro Teófilo Otoni chamou a estátua de “mentira de bronze”, e Machado participou intensamente dos protestos.
Na crônica de 1 abril de 1862, publicada no Diário do Rio de Janeiro, a propósito da festiva inauguração da estátua, Machado escreveu :
Inaugurada a estátua eqüestre do primeiro imperador.
Os que a consideram como saldo de uma dívida nacional nadam hoje em júbilo e satisfação.
Os que, inquirindo a história, negam a esse bronze o caráter de uma legítima memória, filha da vontade nacional e do dever da posteridade, esses reconhecem-se vencidos, e, como o filósofo antigo, querem apanhar mas serem ouvidos. Já é de mau agouro se à ereção de um monumento que se diz derivar dos desejos unânimes do país precedeu uma discussão renhida, acompanhada de adesões e aplausos.
O historiador futuro que quiser tirar dos debates da imprensa os elementos do seu estudo da história do império, há de vacilar sobre a expressão da memória que hoje domina a praça do Rocio.
A imprensa oficial, que parece haver arrematado para si toda a honestidade política, e que não consente aos cidadãos a discussão de uma obra que se levanta em nome da nação, caluniou a seu modo as intenções da imprensa oposicionista. Mas o país sabe o que valem as arengas pagas das colunas anônimas do Jornal do Commercio. O que é fato, é que a estátua inaugurou-se, e o bronze lá se acha no Rocio, como uma pirâmide de época civilizada, desafiando a ira dos tempos.
O Rocio vestia anteontem galas e louçanias desusadas.
As ruas por onde passou o préstito estavam ornadas de bandeiras e colchas, e juncadas de folhas odoríferas, segundo as exigências oficiais.
Mas sabe o leitor quem teve grande influência na festa de anteontem? O adjetivo. Não ria, leitor, o adjetivo é uma grande força e um grande elemento . Foi o adjetivo quem fez as despesas das arengas escritas anteriormente em defesa da estátua.(.....)
Três anos depois, a 25 abril 1865, publicou também no Diário do Rio de Janeiro uma crônica que é uma verdadeira ode a Tiradentes , inclusive prenunciando e acabando por vir a formalizar,tempos depois, a mitificação do inconfidente – logo por Machado – e fomentar, depois de 1889, sua construção como signo da República :
Os povos devem ter os seus santos. Aquele que os tem merece o respeito da história, e está armado para a batalha do futuro.
Também o Brasil os tem e os venera; mas, para que a gratidão nacional assuma um caráter justo e solene, é preciso que não esqueça uns em proveito de outros; é preciso que todo aquele que tiver direito à santificação da história não se perca nas sombras da memória do povo.
É uma grande data 7 de setembro; a nação entusiasma-se com razão quando chega êsse aniversário da nossa independência. Mas a justiça e a gratidão pedem que, ao lado do dia 7 de setembro, se venere o dia 21 de abril. E quem se lembra do dia 21 de abril? Qual é a cerimônia, a manifestação pública?
Entretanto, foi nesse dia que, por sentença acordada entre os da alçada, o carrasco enforcou no Rocio, junto à rua dos Ciganos, o patriota Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado o Tiradentes.
A sentença que o condenou dizia que, uma vez enforcado, lhe fosse cortada a cabeça e levada a Vila Rica, onde seria pregada em um poste alto, até que o tempo a consumisse; e que o corpo, dividido em quatro pedaços, fosse pregado em postes altos, pelo caminho de Minas.
Xavier foi declarado infame, e infames os seus netos; os seus bens (pelo sistema de latrocínio legal do antigo regime) passaram ao fisco e à câmara real. A casa em que morava foi arrasada e salgada.
Ora, o crime de Tiradentes foi simplesmente o crime de Pedro I e José Bonifácio. Ele apenas queria apressar o relógio do tempo; queria que o século XVIII, data de tantas liberdades, não caísse nos abismos do nada, sem deixar de pé a liberdade brasileira.
O desígnio era filho de alma patriótica; mas Tiradentes pagou caro a sua generosa sofreguidão. A idéia que devia robustecer e enflorar daí a trinta anos, não estava ainda de vez; a metrópole venceu a colônia; Tiradentes expirou pelo baraço da tirania.
Entre os vencidos de 1792, e os vencedores de 1822, não há senão a diferença dos resultados. Mas o livro de uma nação não é o livro de um merceeiro; ela não deve contar só com os resultados práticos, os ganhos positivos; a idéia, vencida ou triunfante, cinge de uma auréola a cabeça em que ardeu. A justiça real podia lavrar essa sentença digna dos tempos sombrios de Tibério; a justiça nacional, o povo de 7 de setembro, devia resgatar a memória dos mártires e colocá-los no panteon dos heróis.
No sentido desta reparação falou um dos nossos ilustrados colegas, nestas mesmas colunas, há quatro anos. As palavras dele foram lidas e não atendidas; não ousamos esperar outra sorte às nossas palavras.
Entretanto, consignamos o fato: o dia 21 de abril passa despercebido para os brasileiros. Nem uma pedra, nem um hino, recordam a lutuosa tragédia do Rodo. A última brisa que beijou os cabelos de Xavier levou consigo a lembrança de tamanha imolação.
Pois bem, os brasileiros devem atender que este esquecimento é uma injustiça e uma ingratidão. Os deuses podem aprazer-se com as causas vencedoras: aos olhos do povo a vitória não deve ser o criterium da homenagem.
É certo que a geração atual tem uma desculpa na ausência da tradição; a geração passada legou-lhe o esquecimento dos mártires de 1792. Mas por que não resgata o êrro de tantos anos? Por que não faz datar de si o exemplo às gerações futuras?
Falando assim, não nos dirigimos ao povo, que carece de iniciativa.
Tampouco alimentamos a idéia de uma dissensão política; conservadores ou liberais, todos são filhos da terra que Tiradentes queria tornar independente. Todavia, há razão para perguntar ao partido liberal, ao partido dos impulsos generosos, se não era uma bela ação, tomar ele a iniciativa de uma reparação semelhante; em vez de preocupar-se com as questões de subdelegados de paróquia e de influências de campanário.
Em desespero de causa, não hesitamos em volver os olhos para o príncipe que ocupa o trono brasileiro.
Os aduladores hão de ter-lhe lembrado que Tiradentes queria a república; mas o imperador é um homem ilustrado, e há de ver como se distancia dos aduladores o heróico alferes de Minas. Se os ânimos recuam diante de uma idéia que julgam ofensiva à monarquia, cabe ao príncipe sufocar os escrúpulos, tomando êle próprio a iniciativa de um ato que seria uma das mais belas páginas do seu reinado. Um príncipe esclarecido e patriota não podia fazer uma ação mais nobre, nem dar uma lição mais severa.
Uma cerimônia anual, com a presença do chefe da nação, com assistência do povo e dos funcionários do Estado, - eis uma coisa simples de fazer-se, e necessária para desarmar a justiça da história.
Não sabemos até que ponto devemos confiar nesta esperança; mas, ao menos, deixamos consignada a idéia.
Morro pela liberdade! disse Tiradentes do alto da forca: estas palavras, se o Brasil não reparar a falta de tantos anos, serão um açoite inexorável para os filhos do império.(......)

Em 1892, a propósito do centenário de morte de Tiradentes, Machado fez questão de marcar , o início da importante série “A Semana”, publicadas na Gazeta de Notícias de 1892 a 1900, escrevendo em tom vibrante,pungente e patriótico no dia 24 abril :
(..)
Para não ir mais longe, Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tivemos esta semana o centenário do grande mártir. A ,prisão do heróico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra cousa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos Estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração de glória. Merecem, decerto, a nossa estima aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nêle, o enforcado, o esquartejado, o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos..
Um dos oradores do dia 21 observou que a Inconfidência tem vencido, os cargos iam. para os outros conjurados, não para o alferes.. Pois não é muito que, não tendo vencido, a história lhe dê a principal cadeira. A distribuição é justa. Os outros têm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um coro igual ao das Oceânides diante de Prometeu encadeado. Relede Ésquilo, amigo leitor. Escutai a linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é envolvido na conflagração geral das coisas. Mas, principalmente ouvi as palavras de Prometeu narrando os seus crimes às ninfas amadas : Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinará todas as artes". Foi o que nos fez Tiradentes. .
Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma cousa, a alcunha. Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião - dentista. Era o mesmo• herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião.(....)
Um mês depois, Machado torna a referir-se ao alferes , utilizando-se do tom mais irônico que sua contumaz verve satírica poderia conceber. Na crônica de 22 maio, estampada no mesmo jornal, o sarcasmo machadiano chega a criar uma fantasia – cheia de significados -- ao construir impagável narrativa, exemplar insofismável do alegórico, acerca de um embuste imaginário :
Este Tiradentes, se não toma cuidado emr si, acaba inimigo público. Pessoa, cuje nome ignoro, escreveu esta semana algumas linhas com o fim de retificar a opinião que vingou, durante um longo século, acerca do grande mártir da Inconfidência. "Parece (diz o artigo no fim) parece injustiça dar-se tanta importância a Tiradentes, porque morreu logo, e não prestar a menor consideração aos que morreram de moléstias e misérias na costa d'África." E logo em seguida chega a esta conclusão: "Não será possível imaginar que, se não fosse a indiscrição de Tiradentes, que causou o seu suplício, e o dos outros, que o empregaram, teria realidade o projeto ?"
Daqui a espião de polícia é um passo. Com outro passo chega-se à prova de que ele nem mesmo morreu; o vice-rei mandou enforcar um furriel muito parecido com o alferes, e Tiradentes viveu até 1818 de uma pensão que lhe dava D. João VI. Morreu de um antraz, na antiga rua dos Latoeiros, entre as do Ouvidor e do Rosário, em uma loja de barbeiro, dentista e sangrador, que abriu em 1810, a conselho do próprio D. João, ainda príncipe regente, o qual lhe •se (formais palavras):
- Xavier, já que não podes ser alferes, ,ma por ofício o que fazias antes por curioso ; vou mandar dar-te umas casas da rua ,os Latoeiros ...
- Oh ! meu senhor I
- Mas não digas quem és. Muda de nome, Xavier; chama-te Barbosa. Compreendes, não ? O meu fim é criar a lenda que tu é que foste o mártir e o herói da Inconfidência, e diminuir assim a glória de João Alves Maciel.
- Príncipe sereníssimo, não há dúvida que esse é que foi o chefe da detestável conjuração.
- Bem sei, Barbosa, mas é do meu real agrado passá-lo ao segundo plano, para fazer crer que, apesar dos serviços que prestou, das qualidades que tinha e das cartas de Jefferson, pouco valeu, e que tu é que vales tudo. É um plano maquiavélico, para desmoralizar a conjuração. Compreendes agora ?
- Tudo, meu senhor.
- Assim é bem possível que, se algum dia, quiserem levantar um monumento à Inconfidência, vão buscar por símbolo o mártir, dando assim excessiva importância ao alferes indiscreto, que pôs tudo de pernas para o ar, e a pretexto de haver morrido logo. Não abanes a cabeça; tu não conheces os homens. Adeus; passa pela ucharia, que te dêem um caldo de vaca, e pede por Sua Real Majestade e por mim nas tuas orações, Consinto que também rezes pelo furriel Como se chamava ? Esquece-me sempre o nome.
- Marcolino.
- Reza pelo Marcolino.
- Ah! Senhor, os meus cruéis remorsos nunca terão fim!
- Barbosa, têm sempre fim os remorso! de um leal vassalo!
E assim ficará retificada a história, antes de 1904 ou 1905, Tiradentes será apeadodo pedestal que lhe deu um sentimentalismo que se .lembra de glorificar um só porque morreu logo, como se não morresse sempre antes de outros, e demais, enforcado, que é morte Quanto ao esquartejamento e exposição da cabeça, está provado empírica cientificamente que cadáver não padece, e tanto faz cortar-lhe as pernas como dar-lhe calças. Mas ainda restará alguma coisa ao alferes ; pode-se-lhe expedir a patente de capitão honorário. Se está no céu, e se os mártires formam lá em cima, pode comandar uma companhia. Antes isso que nada. (.....)


E um ano depois, a 23 abril 1893, menciona Tiradentes e sua coragem e disposição para sacrificar a vida – ainda que graciosa e bem-humoradamente :
(..)
Para mistério, mistério e meio. Saí dali, corri à casa de um armeiro, onde comprei algumas espingardas e bastante cartuchame. Além disso, com o pretexto de saudar o dia 21 de abril, alcancei por empréstimo duas peças de artilharia. Assim armado, recolhi-me a 1 casa, jantei, digeri, e meti-me na cama. Naturalmente não dormi; mas também não vi a aurora, nem o sol de quinta-feira. Portas e janelas fechadas. Nenhum rumor em casa, comidas frias para não fazer fogo, que denunciasse pelo fumo a presença de refugiados. Ensinei à família a senha monástica; andávamos calados, interrompendo o silêncio de quando em quando para dizermos uns aos outros que era preciso morrer. Assim se passou a quinta-feira.
Na sexta-feira, pelas seis horas da manhã, ouvi tiros de artilharia. Ou é a salva de Tiradentes, disse à família, ou é a revolução que venceu. Saí à rua; era a salva. Perguntei pelos mortos. Que mortos ? Pelos acontecimentos. Que acontecimentos ? Nada houvera; toda a cidade vivera em paz. Assim se desvaneceram os sustos, filhos de boatos, filhos da imaginação. Assim se desvaneçam todos os demais ovos do marido de La Fontaine.
Só um fato se havia dado, como disse, o do coreto. Fui à praça ver os destroços, mas já não vi nada; achei a estátua e curiosos. Desandei, atravessei o largo de S. Francisco e desci pela rua do Ouvidor, ao encontro do préstito de Tiradentes. Soube que já não havia préstito. Era pena; esta cidade tem, para Tiradentes, não só a dívida geral da glorificação, como precursor da independência e mártir da liberdade, mas ainda a dívida particular do resgate. Ela festejou com pompa a execução do infeliz patriota, no dia 21 de abril de 1792, vestindo-se de galas e ouvindo cantar um Te-Deum.
Espiando para casa , lembrei-me que esse dia 21 era ainda aniversário de outra tentativa política. O povo desta cidade e os eleitores convocados revolucionariamente pelo juiz da comarca, reuniram-se na praça do Comércio e pediram ao rei a constituição espanhola, interinamente. A constituição foi dada na mesma noite, contra a vontade de algumas pessoas, e retirada no dia seguinte, depois de alguns lances próprios de tais crises, não por ser constituição, - visto que, dois anos depois, tínhamos outra -- mas naturalmente por ser espanhola. De Espanha só mulheres, guitarras e pintores.(......)

As referências e menções a Tiradentes – como de resto os comentários e alusões feitas a diversas personalidades históricas, assim como a cobertura dos fatos políticos de sua época – constituem provas e exemplos eloqüentes do quanto Machado de Assis participava ativamente da história (política,institucional, econômica, social) e em nada – ao contrário da equivocada interpretação, que exige de uma vez por todas sua revisão.Certamente pelo uso do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza – e do disfarce e do enigma—Machado de Assis recebeu, indevidamente, a pecha de “despolitizado”, “alienado”, “alheio às questões políticas e sociais de seu tempo”.
Ledo e puro engano. Machado de Assis foi um crítico ‘avassalador’ da sociedade e das instituições brasileiras, e escreveu – ou a elas se referiu -- em crônicas e artigos, mesmo em contos e romances e até na poesia. , sobre política (muito) [e,para surpresa de alguns, sobre economia (em menor monta)]. Machado de Assis tinha opiniões políticas — era um monarquista liberal, não apoiava a República, repudiava Floriano Peixoto (que ,apoiado em golpe de Estado em 1891, governava com poderes autoritários, levando o País à ditadura, à censura e à guerra civil) — e por meio de sua obra é possível observar a política brasileira de sua época através do olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio ) sentenciou que pode-se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra de Machado : tanto na não-ficção quanto na ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e textos , utilizando uma série de categorias políticas - escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura ,aparelho policial, autocracia absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua escritura literária, de uma crítica da ideologia brasileira e de uma teoria política avançada,que no campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos especialistas.
As crônicas e artigos tratando de política são justamente aquelas que registram opiniões nunca expressadas por Machado com tanta clareza e coerência.

terça-feira, 10 de abril de 2012

'antecedentes' do Modernismo de 22

a propósito de  exposição na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro – “Modernismos, 90 anos” (atenção ! vai somente  até 29 abril)—que tem significativa estrutura de organização e enfoque, estabelecendo vínculos temporais e setoriais com o movimento propriamente dito,deflagrado em 1922 em São Paulo : p. ex., exibe certos ‘antecedentes’,artísticos e culturais,dados à luz anos antes, bem ligações decorrentes da Semana de Arte Moderno manifestas em Minas Gerais,Recife e em outras  expressões artísticas (como o cinema). Extremamente atraente é esta exposição.
-- coadunando com os elementos  de ‘antecedência’ propostos pela mostra, vale reportar e refletir  sobre o quanto o preconizaram duas das maiores figuras da literatura brasileira

Lima Barreto e Machado de Assis, preconizadores do Modernismo
Um anunciador, antecipador, no início do século XX. Um ‘visualizador’, precursor, no século XIX

Comecemos com proximidade a 1922. De imediato, convém realçar: o Modernismo começou  exatos 18 anos antes. Em 1904. Com Lima Barreto, na confecção dos romances Recordações do escrivão Isaias Caminha e Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá, escritos simultaneamente a partir desse ano (ele preferiu - por razões que ora eu estudo- publicar aquele primeiro, em 1907; este, somente em 1919) ao expressar, ainda incipientes, os primeiros elementos-indícios depois assimilados pelos modernistas, manifestos tanto  na concepção ‘filosófico-literária’ quanto na linguagem das duas obras, ambas carregados de muitas intertextualidades temáticas, ambas  representando, emblematizando e sintetizando decisiva guinada de concepção  ficcional e  a  própria evolução literária barretiana.
 Vale notar, ainda, que Isaias Caminha e Gonzaga de Sá estão, por sua vez e cada um deles, ‘ligados’ a “Clara dos Anjos”,obra que  aparece na obra ficcional de Lima Barreto, sob o mesmo título, em três versões, defasadas no tempo, e distintas entre si,nem tanto pelo enredo em si,este  mantido essencialmente o mesmo mas pelos focos e enfoques temáticos que Lima imprimiu ao longo do tempo : a primeira versão é de 1904, um romance inacabado, com apenas quatro capítulos, inserido em Diário íntimo; a segunda, um conto publicado em 1919 e incluído na coletânea Histórias e sonhos ; a terceira, um romance ‘acabado’,veiculado postumamente em 1923-34, em folhetins na Revista Souza Cruz.e publicado em livro somente em 1947. Tanto Clara..., em suas três versões, como Isaias Caminha e Gonzaga de Sá  expressam crucial desvio de uma intenção inicial de enfoque temático nas questões de negritude e situação do negro no país – a concepção inicial da novela (de obra sobre preconceito racial a obra psicológica,existencial, denunciadora de discriminação social-racial) e o projeto historicista de elaboração de uma “História da escravidão no Brasil” -- para o romanesco (a de 1907 e a de 1919,ambas obras crítico-satíricas ao mundo jornalístico e literário),mas de cunho político,com foco no cenário institucional e na sociedade brasileiros (assim foi nos romances que vieram depois e nos contos), assumindo a observação crítica, demolidora, da  vida política e institucional inerentes à República.Na construção ficcional tanto de “Clara dos Anjos”, em suas três versões,  como de Isaias Caminha- e de Gonzaga de Sá,- Lima ‘descobriu’ o caminho a seguir em sua ficção.
As três obras, mais do que a evolução literária, sintetizam a própria evolução filosófico-ideológica de Lima Barreto -- e,  no desvio  do foco étnico em favor do mundo romanesco,sem no entanto valer-se da superficialidade ou da “palavra oca,inócua”, deve-se apor a esse processo a  conotação tolstoiana (de Tolstoi,e seu célebre ensaio O que é a Arte ?, e  “percepção religiosa da arte”), de resto autor da  maior,e crucial,  influência absorvida por Lima do começo ao fim de  sua obra,em especial no que tange à  transformação de  ideais literários e o imprimir de um novo rumo à sua temática ficcional, e a seus conceito e pregação da “literatura como missão”.
Guinada, para reflexão e discussão do país e da sociedade, da concepção de literatura e também – e significativamente – da escrita e da linguagem literária,de resto elementos que se revelariam,desdobrariam e influiriam no Modernismo.
Lima Barreto impôs na ficção e na nãoficção  — com seu estilo simples, direto e objetivo, baseada na oralidade, contrária ao rebuscamento estéril que caracterizava a época, que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc -- os prenúncios do Modernismo logo a seguir  rompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana. Não à toa  despertou interesse e respeito por parte de Mario de Andrade, do alto de sua ‘autoridade’ de contista e teórico da construção ficcional, e  levou p. ex. Sergio Milliet a escrever  “(...) Lembro-me da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. Alguns entre nós, como Alcântara Machado, andavam obcecados .O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres” (artigo “Noticiário’, in O Estado de S. Paulo, São Paulo,  11.11.1948); concomitantemente, nas páginas da então incipiente revista Klaxon (1921), os modernistas paulistas se propunham também a “descoelhonetizar”(ref. a Coelho Neto) a literatura brasileira, rompendo com os cânones acadêmicos., objetivos bastante semelhantes da  revista Floreal, que Lima criara em 1907 e só durou quatro números
Importante lembrar que a época era dominada por duas vogas literárias, de um lado o parnasianismo, inócuo, oco e ressonante, de outro, a linguagem empolada, o ‘clássico’ calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos estilísticos — ambas, uma literatura  impregnada de vocábulos garimpados, do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da frivolidade dominante.No Rio de Janeiro, os intelectuais e literatos,de certa forma alheios às contradições, logo se integraram ao processo de construção e aceitação dos novos ideais republicanos — no que, delinearam o movimento literário da chamada Belle Èpoque carioca,  definida por “uma produção narcisista, descompromissada, escapista, aristocraticamente (pseudo-)refinada, de temática elitista,de muito epigonismo, exercícios academicistas, vocabulário rebuscado e sintaxe preciosa, ornamentações lingüísticas , a estética do brilho\luxo na atitude de épater le bourgeois”, tendo como escritores típicos, entre outros, Olavo Bilac, Coelho Neto, João do Rio, Afrânio Peixoto, Elisio de Carvalho,Figueiredo Pimentel (é dele a conhecida frase “o Rio de Janeiro civiliza-se!”), Medeiros e Albuquerque. Praticava-se um estilo mundano, meio jornalístico, pretensamente sofisticado,como apregoado  por   Afrânio Peixoto e sua ‘yese’ de a literatura como “sorriso da sociedade”.
No pólo oposto ao aristocratismo da escrita de então e aos nefelibatas da linguagem,  tinha-se em Lima Barreto um registro da língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente nacional que prenunciava a linguagem modernista”. Como realça Nicolau Sevcenko, “chama muito à atenção quando se lê a obra do Lima Barreto, a atualidade dessa obra não só em termos de linguagem — uma linguagem bastante acessível, bastante próxima até da oralidade — pela qual foi muito criticado pelos seus pares e intelectuais da época. Mas não só por essa linguagem mas também pelos temas de que ele trata e pelo modo como os trata . Pode-se  ir além porque muitos problemas de Brasil que ele pensa naquela época, que ele critica, e que ele, enfim, desenvolve como reflexão, permanecem absolutamente atuais.
Convictamente decidido a romper com o figurino estilístico e literário vigente, sua escrita simples, direta e objetiva nada tinha a ver com a pompa, o floreio da retórica de então, Lima Barreto  era o anti-acadêmico por excelência. Contrariamente à maioria de seus contemporâneos, praticantes dessa escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil, conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo,de uma nação, da humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com objetivo concreto e definido : as idéias contidas no artigo “Amplius!”( publicado originalmente no primeiro número da Floreal , em 25.10.1907 , depois em A Época, em 18.02.1916, e  incorporado como abertura da coletânea de contos Histórias e sonhos ), expressam suas concepções sobre  a arte literária.
E a propósito do Prémodrnismo : Lima, como sua figura literária maior e seu epígono,só confirma a condição,taxativa, de ser este um ciclo efetivo da historiografia literária brasileira,com características e elementos peculiares próprios, ao contrário do que sustentam alguns estudiosos,que o dizem ‘apenas uma extensão[sic] do Realismo”; e contraria a interpretação de Sergio Micceli, que diz ter sido a denominação “inventada” pelos modernistas,com um sentido de ‘diminuir’ e para,isto sim,valorizar e enfatizar o Modernismo,classificando o que o antecedeu de ‘preliminar’. Mas,em outro viés, Lima Barreto, prenunciador,anunciador e antecipador do Modernismo, por via dos elementos precursores aqui apontados, corrobora justamente o quanto o Prémodernismo,,com suas manifestações específicas e marcantes, foi um verdadeiro ciclo e,mais : verdadeiramente ‘preparador do Modernismo – este, iniciando-se portanto nele,bem antes de 22.[e vale lembrar : 2012, 90 anos do Modernismo; 90   anos da morte de Lima –01.11.1922]

Antes, um ‘visualizador’ no século XIX...

Mas para concluir estas anotações antecipatórias do Modernismo, vou mais longe, mais atrás no tempo: vou a ...Machado de Assis – que, ainda no século XIX, refletia e punha em discussão a relação do país com a tradição nacional e as influências estrangeiras, de resto, idéia-baluarte da concepção de “cultura brasileira” sustentada, preconizada e postulada pelos modernistas – não somente na prática da absorção de influências, obras e autores estrangeiros, nas traduções que realizou e  em centenas de citações,referências,recorrências e intertextualidades em toda sua obra,ficcional e nãoficcional (tema que pauta e compõe meu estudo “Machado de Assis e Literatura Comparada : os franceses,os ingleses,os portugueses,os alemães,os gregos, os espanhóis,italianos e latinos” – a ser publicado), como em especial em seus célebres ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira”( A Marmota, 1858), “Notícias sobre a atual literatura brasileira : Instinto de nacionalidade”(New World, 1873) e “A nova geração” (Revista Brazileira,1879), ), nos quais concreta e explicitamente propõe a mediação no antagonismo entre passadismo e modernidade,que os modernistas somente postulariam na 2ª. fase do movimento,ao contrário da postura aguerrida e intransigente quanto a isso na 1ª. fase.
Mas sobretudo em Machado de Assis pode-se perfeitamente denotar, qual notáveis antecipação,o ‘espírito’ – e a prática – da antropofagia cultural que viria a ser entronizada pelo modernistas, Oswald de Andrade à frente, anos depois.Pois Machado, se incorporou intensa e essencialmente influências e elementos literários estrangeiros em toda sua obra –ao mesmo tempo em que (faz parte,sabemos, da deliberada ambigüidade machadiana) nos primeiros anos de sua carreira criticava severamente a “invasão das artes estrangeiras”,inclusive propondo como solução a nacionalização da produção artística e o aperfeiçoamento do gosto do público,a serem executadas pelos escritores -- soube ‘mastigá-los e deglutí- los’, incorporando-os adequadamente a um ‘modelo’ de brasilidade (ainda que eivado de universalidade no trato de elementos e questões inerentes à própria espécie humana) e à sedimentação de uma linguagem literária brasileira (de resto, preconizada e constituída em seu primórdio por José de Alencar).



quarta-feira, 4 de abril de 2012

Machado de Assis,respeitoso, e a Semana Santa

Machado,em duas oportunidades, por ocasião da  Semana Santa -- a primeira, com o poema "A morte no Calvário"(in A Marmota, 24.04.1858-- vide ao lado); a segunda, com o artigo "A Paixão de Jesus" -- expressou ,não necessariamente um,digamos,'sentimento religioso', mas um respeitoso tributo à figura (e ao significado) de Jesus .  e para quem não sabe, Machado era profundo conhecedor da Bíblia (uma das maiores citações e referências em sua obra,somente superada em incidência quantitativa por Shakespeare)

A Paixão de Jesus
                   in   Jornal do Commercio, RJ, 01.04.1904.     

Quem relê neste dia os evangelistas, por mais que os traga no coração ou de memória, acha uma comoção nova na tragédia do Calvário. A tragédia é velha; os lances que a compõem passaram, desde a prisão de Jesus até a condenação judaica e a sanção romana; as horas daquele dia acabaram com a noite de sexta-feira, mas a comoção fica sempre nova; por mais que os séculos se tenham acumulado sobre tais livros. A causa, independente da fé que acende o coração dos homens, bem se pode dizer de duas ordens.
Não é preciso falar de uma. A história daqueles que, pelos tempos adiante, vieram confessando a Jesus, padecendo e morrendo por Ele, e o grande espírito soprado do Evangelho ao mundo antigo, a força da doutrina, a fortaleza da crença, a extensão dos sacrifícios, a obra dos místicos, tudo se acumula naturalmente diante dos olhos, como efeito daquelas páginas primitivas. Não menos surge à vista o furor dos que combateram, pelos séculos fora, as máximas cristãs ouvidas, escritas e guardadas, alguma vez esquecidas, outras desentendidas, mas acabando sempre por animar as gerações fiéis. Tudo isso, porém, que será a história ulterior, é neste dia dominado pela simples narração evangélica.
A narração basta. Já lá vai a entrada de Jesus em Jerusalém, escolhida para o drama da paixão. A carreira estava acabada. Os ensinamentos do jovem profeta corriam as cidades e as aldeias, e todos se podiam dizer compendiados naquele sermão da montanha, que, por palavras simples e chãs, exprimia uma doutrina moral nova, a humildade e a resignação, o perdão das injúrias, o amor dos inimigos, a prece pelo que calunia e persegue, a esmola às escondidas, a oração secreta. Nessa prédica da montanha a lei e os profetas são confessados, mas a reforma é proclamada aos ventos da terra. Nela está a promessa do benefício aos que padecem, a consolação aos que choram, a justiça aos que dela tiverem fome e sede. Jerusalém destina-se a vê-lo morrer. Foi logo à entrada, quando gente do povo correu a receber Jesus, juncando o chão de palmas e ramos e aclamando o nome daquele que lhe vinha trazer a boa-nova, foi desde logo que os escribas e fariseus cuidaram de lhe dar perseguição e morte, não o fazendo sem demora, por medo do povo que recebia a Jesus com hosanas de amor e de alegria.
Jesus reatou então os seus atos e parábolas, mostrando o que era e o que trazia no coração. Os fariseus viram que ele expelia do templo os que lá vendiam e compravam, e ouviram que pregava no templo ou fora dele a doutrina com que vinha extirpar os pecados da terra. Alguma vez as imprecações que lhe saíam da boca, eram contra eles próprios: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque devorais as casas das viúvas, fazendo longas orações...” — “Ai de vós, escribas e fariseus, porque alimpais o que está por fora do copo e do prato, e por dentro estais cheios de rapinas e de imundícies...” — “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque rodeais o mar e a terra por fazerdes um prosélito, e depois de o terdes feito, o fazeis em dobro mais digno do inferno do que vós”. Era assim que bradava contra os que já dali tinham saído alguma vez, a outras partes, a fim de o enganar e enlear e ouviram que ele os penetrava e respondia com o que era acertado e cabido. As imprecações seguiram assim muitas e ásperas, mas de envolta com elas a alma boa e pura de Jesus voltava àquela doce e familiar metáfora contra a cidade de Jerusalém: “Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados, quantas vezes quis eu ajuntar teus filhos, do modo que uma galinha recolhe debaixo das asas os seus pintos, e tu não o quiseste!”
A diferença que vai desta fala grave e dura àquele sermão da montanha, em que Jesus incluiu a primeira e ingênua oração da futura igreja, claramente mostra o desespero do jovem profeta de Nazaré. Não havia esperar de homens que a tal ponto abusavam do templo e da lei, e, em nome de ambos, afivelavam a máscara de piedade para atrair os que buscavam as doutrinas antigas de Israel. Sabendo que tinha de morrer às mãos deles, não lhes quis certamente negar o perdão que viessem a merecer, mas condenar neles a obra da iniqüidade e da perdição. Todo o mal recente de Israel estava nos que se davam falsamente por defensores do bem antigo.
A comoção nova que achamos na narração evangélica abrange o espaço contado da ceia à morte de Jesus. Judeus futuros, ainda de hoje, ao passo que negam a culpa da sua raça, confessam não poder ler sem mágoa essa página sombria. Em verdade, a melancolia do drama é grande, não menor que a do próprio Cristo, quando declara ter a alma mortalmente triste. Era já depois da ceia, naquele horto de Gethsemani, a sós com Pedro e mais dois, enquanto os outros discípulos dormiam, foi ali que ele confessou aquela profunda aflição. Tinha já predito a proximidade da morte. A aversão dos escribas e fariseus, indo a crescer com o poder moral do Nazareno, punha em ação o desejo de o levar ao julgamento e ao suplício, e cumprir assim o prenúncio do jovem Mestre. Tudo foi realizado: a noite não acabou sem que, pela traição de Iscariotes, Jesus fosse levado à casa de Anás e Caifás e, pela negação de Pedro, se visse abandonado dos seus amigos. Ele predissera os dois atos, que um pagou pelo suicídio e o outro pelas lágrimas do arrependimento.
Talvez ambos pudessem ser dispensados, não menos o primeiro que o segundo, por mais que o grupo dos discípulos escondesse o Mestre aos olhos dos inimigos. Se assim fosse, o suplício seria igualmente certo, mas a tragédia divina não teria aquela nota humana. Nem tudo é lealdade, nem tudo é resistência na mesma família.
A parte humana nasceu ainda, não já naqueles que deviam amor a Jesus, se não nos que o perseguiam; tal foi esse processo de poucas horas. Jesus ouviu o interrogatório dos seus atos religiosos e políticos. Era acusado de querer destruir a lei de Moisés e não aceitar a dominação romana, fazendo-se Rei dos Judeus. “Mestre, devemos pagar o imposto a César?”, tinham-lhe perguntado antes, para arrastá-lo a alguma palavra de rebelião. A resposta (uma de tantas palavras que passaram daqueles livros às línguas dos homens) foi que era preciso dar a César o que era de César e a Deus o que era de Deus. Caifás e o Conselho acabaram pela condenação; para o crime político e para a pena de morte era preciso Pilatos. Segundo o sacerdote da lei, era preciso que um homem morresse pelo povo.
Pilatos foi ainda a nota humana, e acaso mais humana que todas. Esse magistrado romano, que, depois de interrogar a Cristo, não lhe acha delito nenhum; que, ainda querendo salvá-lo da morte, pensa em soltá-lo pelo direito que lhe cabia em tal ocasião, mas consulta ao povo, e ouve deste que solte Barrabás, e condene a Jesus; que obedece ao clamor público, e faz a única ressalva de lavar as mãos inocentes de tal sangue; esse homem não finge sequer a convicção. A consciência brada contra o crime que lhe querem impor, mas a fraqueza cede aos que lho pedem, e entrega o acusado à morte.
A morte, fecho da Paixão, termo de uma vida breve e cheia, foi cercada de todos os elementos que a podiam fazer mais trágica. O riso deu as mãos à ferocidade, e o açoite alternou com a coroa de espinhos. Fizeram do profeta um rei de praça, com a púrpura aos ombros e a vara na mão. Vieram injúrias por atos e palavras, agravação do suplício dado entre dois ladrões; mas ainda nos falta alguma coisa para completar a parte humana daquela cena última.
As mulheres vieram rodear o instrumento do suplício. Com outro ânimo que faltou alguma vez aos homens, elas trouxeram a consolação e a paciência aos pés do crucificado. Nenhum egoísmo as conservou longe, nenhum tremor as fez estremecer de susto. A piedade era como alma nova incutida naqueles corpos feitos para ela. Com os olhos nos derradeiros lampejos de vida, que estavam a sair daquele corpo, aguardavam que este fosse amortalhado e sepultado para lhe darem os bálsamos e os aromas.
Tal foi a última nota humana, docemente humana, que completou o drama da estreita Jerusalém. Ela, e o mais que se passou entre a noite de um dia e a tarde de outro completaram o prefácio dos tempos. A doutrina produzirá os seus efeitos, a história será deduzida de uma lei, superior ao conselho dos homens. Quando nada houvesse ou nenhuma fosse, a simples crise da Paixão era de sobra para dar uma comoção nova aos que lêem neste dia os evangelistas.