segunda-feira, 14 de maio de 2012

Machado de Assis tradutor


-- antes, no poema "Minha mãe" [abaixo] falei de Machado  como um “senhor tradutor”, então :

Machado de Assis tem em seu ‘curriculo’, 48  textos traduzidos  entre 1856 e 1894 :  estreando com o poema “On the receipt of my mother’s picture” [“Minha mãe”], publicado como “uma imitação de William Cowper”, e  logo depois com o texto “A literatura durante a Restauração”, de Lamartine,em 1857,seguiram-se 16  peças de teatro (a primeira, “La chasse au lion”, de Vattier et De Najac ), 24 poemas, 3 ensaios, 2 romances, 1 conto ,  1 fábula e até  1 canção — sendo 39 textos oriundos do francês,4 do inglês, 3 do alemão, 1 texto cada do italiano e do espanhol. — de autores, entre outros, como Lamartine, Dante Alighieri, Alexandre Dumas Filho, Chateaubriand, Racine, La Fontaine, Alfred de Musset, Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Schiller e Heine (ambos a partir de  versões francesas) —  p. ex.  o Canto XX do “Inferno”, da Divina Comédia , de Dante , monólogo de Hamlet “To be or not to be”, de William Shakespeare  , Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, parte de Oliver Twist. , de Charles Dickens, “Suplício de uma mulher”, de Alexandre Dumas Filho e Emile de Girardin , “Prólogo do Intermezzo”, de Heinrich Heine, “O corvo”, de  Edgar Allan Poe.

Há de se considerar que, no contexto cultural do Rio de Janeiro, durante as décadas de 1850-70, a atividade tradutória era quase que exclusivamente praticada para o teatro, porquanto a esmagadora maioria das peças levadas a cena eram de origem estrangeira — o teatro traduzido ocupando tanto os espaços públicos das casas de espetáculos, quanto os  saraus literários privados . Ao mesmo tempo em que  também os denominados  romances-folhetim, oriundos sobretudo da França, nos primórdios do  Romantismo entre nós, requeriam  o tradutor .

Na “Advertência” da coletânea de peças teatrais de Machado de Assis, anota Mario de Alencar que entre 1860 e 1870 deu-se “a época da mais fervorosa e duradoura fase da literatura dramática que já houve no Brasil, quando a influência dos escritores franceses dominava como sempre em primeira mão  a literatura brasileira e o êxito da nova escola de teatro em França estimulava os ensaios dramáticos entre nós, tanto que quase não houve escritor brasileiro que não experimentasse a sua vocação para o gênero. E quem não podia compor obra original contentava-se com traduzir as recentes produções chegadas da Europa”. Ao mesmo tempo, Alencar explica não ter incluído na coletânea, por darem-se como perdidas, as traduções machadianas de  “Os descontentes”, de Racine – da qual “falava com muito louvor Artur Azevedo”—“Pipelet”, “O anjo da meia noite”, “O barbeiro de Sevilha”, “A família Benoiton”, “Montjoye”,  e em especial “O suplicio de uma mulher”, de Alexandre Dumas Filho e Emile  de Gerardin —  esta ,“atendendo à circunstância de estar riscado da cópia ,doada com outros papéis à Academia Brasileira [de Letras], o nome do tradutor, o que pareceu indicar a intenção de Machado de Assis de não dar a obra à publicidade em livro, ou talvez a sua opinião de não a ter literariamente acabado”. Aí está outro plausível subterfúgio machadiano, similar ao supostamente praticado em Queda que as mulheres têm para os tolos : nesta, omitiu o nome do autor original, naquela omitiu o nome do tradutor (no caso, ele próprio).

 Machado em sua ação tradutória não compartilhava com seus contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo – o etnocentrismo, o indigenismo, a paisagem natal como elementos essenciais para se criar uma literatura nacional genuína” – colocando-o em discordância com o momento cultural do País no século XIX. E ia além, criando e praticando um conceito da tradução – na verdade, um processo criador -- que, entre outros aspectos, incorporava  em maior ou menor grau sua célebre “teoria do molho” , segundo a qual  "pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica" : vale dizer, embora bebesse nas fontes européias utilizadas como ‘comida para seus pensamentos’,  ruminava os diversos alimentos e os transformavam em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que praticava pioneiramente como ninguém --  reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas por ele  próprio, em muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada

Vale examinar aqui alguns aspectos da atividade de tradutor em Machado de Assis . Em todas as traduções que fez, “se permitiu algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o traduzir não deveria ser um ofício de menor valor que qualquer outro na carreira de um escritor, embora assim continue a ser considerado e, respeitando o original, sem servilidade, exerceu essa atividade durante toda a sua carreira literária ,de 1856 a 1908.
Por subtração, ele elaborou uma teoria da tradução, que em muitos aspectos assemelha-se às teorias de tradução desenvolvidas a partir da década de 1970 , notadamente com relação ao entendimento moderno de tradução proposto por especialistas, “a ficção vista como nova fonte de teorização para a tradução”.

Tese contemporânea confirmada pela importância da tradução para Teoria Literária e Literatura Comparada conferida por ensaístas, críticos e teóricos – e que uma citação do próprio  Machado de Assis serve para  demonstrar o quanto seus pressupostos teóricos para o exercício da tradução, formulados na época,aproximam-se desse conceito atual  :
            A literatura, como Proteu, troca de formas, e nisso está a condição de  sua vitalidad         

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