segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
Por que esquecer este centenário ?
Há 100 anos, neste 21 janeiro,
morria Aluisio Azevedo(1857-1913) – um excepcional escritor, autor de romances
(um pouco mais conhecido, e lido, por estes : inclusive pelo status de O mulato,1881, como marco do Naturalismo
– que à época gerou escândalo e sucesso,maior do que Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado, publicado no mesmo
ano) ,contos e crônicas, mas sem ter até hoje devidamente reconhecida e
enaltecida toda sua grandeza literária (embora
o provavelmente mais lido e estudado
de seus romances, O cortiço,
1890, seja consensualizado como obra-prima).
A obra literária de Aluisio,de
alta qualidade, sempre provocou controvérsias – por isso mesmo deveria permanecer, por todos os motivos, intensamente
‘viva’. O que lamentavelmente não ocorre nas proporções, medidas e escalas
exigidas para um autor tão significativo na historiografia literária
brasileira..
Aluisio,e aqui uma faceta
extremamente importante desse notável escritor, foi um lúcido e ativo comentarista
da literatura e da vida literária brasileira de seu tempo, em crônicas e contos
– sabiam dele contista e cronista ?... -- publicados na imprensa. Dado como um dos primeiros homens a viver das Letras no
Brasil, seus escritos são bastante emblemáticos
para descrição e traçado críticos
sobre a leitura, a recepção e a circulação de obras literárias no período. Muitas de suas cartas e crônicas
demonstram sobejamente a dificuldade da formação de um público leitor já no
século XIX, tanto que levou o próprio Aluísio à decisão de abandonar a
Literatura e dedicar–se exclusivamente à carreira pública,especificamente de cônsul
no exterior.
No exercício da crítica literária, Aluisio chegou a inovar :
inseriu-a,ou ‘enxertou-a’, em meio ao folhetim,
algo exemplarmente híbrido no cenário do roda-pé de página do século XIX.
Fez isso em “Girândola de amores”, que ganhou o título de “Mistério da Tijuca”
na edição folhetinesca do jornal Folha
Nova do Rio de Janeiro entre 1882-1883 (seus comentários apontavam para a necessidade de agradar a dois
tipos de público: o romântico, o leitor médio de folhetim, e outro de formação
crítica mais refinada, ao mesmo
tempo em que alfinetavam os
críticos, que o atacavam que o atacavam – o que poderia ser válido pra hoje,
como refuto a restrições atuais à sua obra -- por escrever nos padrões
românticos,quando o realismo-naturalismo já empolgava os homens de letras e o
público).
______________
Aqui, duas crônicas de Aluisio
sobre a literatura e a vida literária brasileira de seu tempo: “Do vendeiro ao
poeta” e “Literatura nacional”, publicadas em O Combate , março de 1892.
Do vendeiro ao poeta
I
Meu Deus! como o Rio de Janeiro
ainda está longe de ser uma cidade artística e principalmente um centro
literário.
Nas grandes capitais do velho
mundo civilizado a primeira camada social é formada pelos homens de espírito,
pelos sábios, pelos homens de letras, pelos artistas de talento, pelos
investigadores e reformadores científicos, pelos exploradores notáveis; depois
seguem-se os políticos em evidência, os estadistas de pulso e os militares
distintos pelo saber profissional, pela honra e pela coragem; depois os grandes
funcionários jurídicos; depois os homens da alta indústria, os que movem
grandes massas de operários; depois os banqueiros milionários; depois os
grandes agricultores; depois vêm os artistas auxiliares, os cortesãos de
merecimento, os reprodutores dos quadros vitoriosos, os propagadores da ciência
e das letras, os peritos executores da boa música, os cantores, os gravadores,
os tipógrafos, os atores de gênero ligeiro; enfim, todo esse mundo de
habilidosos, que são incapazes de criar, mas que servem de veículo à grande
obra dos artistas criadores; e afinal, em último plano, chega a vez dos
mercadores, isto é, daqueles que, por falta de talento para conceber e por
falta de técnica para executar ou reproduzir qualquer trabalho científico ou
artístico, limitam-se a servir de intermediários entre a ciência, a arte e a
indústria e entre o público que o consome.
Esta última camada social
constitui o comércio, em grosso e a retalho. Na Inglaterra, na Alemanha, na
Itália, e na Rússia, as portas da boa sociedade lhe são vedadas
escrupulosamente.
A França, depois que se
democratizou, limita-se a empurrá-la para o fim da ordem social, e, se lhe não
fecha as portas da alta sociedade, faz pior: despreza-a, trata-a com desdém e
até com repugnância.
Em França, hoje essa classe só
serve para fornecer sogros ricos e noivas com bom dote.
É que a França vê no comerciante
o homem que nada produz e mais lucra; o homem que vive exclusivamente para a
ganância e para a especulação.
E o negociante, com efeito, ao
mesmo tempo que é o intermediário entre o produtor e o consumidor, é o feroz
parasita do homem de ciência, do homem de letras, do artista e do inventor
industrial.
Estes quase sempre acabam pobres,
e o negociante acaba rico, rico e são, porque durante toda a sua vida de lucros
nunca fez o menor esforço intelectual e por conseguinte nunca se gastou
nervosamente. Em toda a extensa classe social o negociante é o único que não
trabalha.
A sociedade dá-lhe o direito de
viver sem produzir, comprando por dois para vender por dois e meio; mas o
negociante abusa sempre desse direito, comprando por dois e vendendo por quatro
quando não vende por seis ou por oito. A consciência do comércio e muito
elástica quando se trata de negócios, porque faz parte dos principais
requisitos do seu ofício enganar o comprador. E tanto assim é, que eles
inventaram para uso prático, provérbios da ordem filosófica deste: "Amigos,
amigos - negócios à parte".
Efetivamente, entre os
negociantes não se respeita a amizade, nem se observam certos deveres de
consciência quando se trata de vender. Uma vez recebi de certa família do
interior, a quem devo obrigações, o pedido de comprar aqui uma dúzia de certos lenços especiais de
cambraia de linho que então estavam em grande moda e custavam bastante caro.
Como não entendo de fazendas e
não queria servir mal a quem me fez a encomenda, dirigi-me a certo dono de
armarinho, que eu conhecia de muito tempo e a quem tinha na conta de homem
sério.
- Não podias cair melhor!
disse-me ele, quando lhe expus o que me levava à sua casa. Não encontrarias em
outra parte fazenda como a que tenho no gênero que precisas. É o que há de
melhor, vais ver!
- Não preciso ver, porque, já
disse, não entendo da matéria. Uma vez me afianças que tens o que procuro, é
quanto basta.
Ele embrulhou os lenços, paguei e
saí.
Daí a alguns passos encontro
outro negociante meu amigo.
Paramos a conversar um instante e
contei-lhe a compra que fizera, dizendo que supunha aviar bem a encomenda
recebida.
Ele pediu para ver os lenços,
observou-os um instante e segredou-me:
- Foste enganado... Isto não é
cambraia de linho. Se queres servir bem a família que te encomendou os lenços,
não lhe mandes estes, vai à casa do Leite (e ensinou-me onde era) que é o único
no mercado que possui hoje dessa fazenda. E tive de ir eu de novo comprar os
lenços, pagando também quanto paguei pelos primeiros.
E agora digam-me com franqueza:
Fui ou não fui roubado?
E se com efeito fui; se o dono do
primeiro armarinho é um tratante, porque motivo hei de eu tratá-lo com mais
consideração do que aos outros gatunos, menos velhacos e que mais se expõem,
desses que roubam um queijo à porta de uma venda?...
Esses ao menos são mais sinceros
e arriscam a dormir na cadeia.
Os negociantes, em geral, são
como o amigo que me vendeu os lenços falsos; unicamente, eles lá na sua alta
filosofia comercial entendem que não praticam ato desonesto quando nos impingem
gato por lebre.
Concordo que assim vivam;
concordo que enganem o freguês sempre que possam; concordo que enriqueçam, sem
jamais produzir, concordo que o livreiro seja rico e que o autor que mais o
enriqueceu morra de fome; concordo que o empresário de teatro tenha milhões,
enquanto os artistas que trabalham para ele, escrevendo comédias, representando
os papéis, fazendo música, pintando cenografia, não tenham onde cair mortos;
concordo que o especulador engorde e que o produtor entisique e estoure de
esgotamento nervoso a força de trabalhar; mas com um milhão de raios! não
queiram que o parasita ignorante e sem escrúpulo venha colocar-se ao lado do
artista de talento, do escritor de espírito, do homem de ciência ou do soldado
de honra.
Dois proveitos não cabem no mesmo
saco! As cocotes não sofrem as provocações da mulher honesta, mas também não
gozam das regalias que esta goza!
Pois bem: para se calcular com
justiça do nosso estado de civilização e cultivo intelectual, basta lembrar-nos
de que aqui a escala social acha-se rigorosamente invertida.
Aqui, a primeira camada é feita
pela classe comercial, e a última pelos homens de espírito.
Rompe a marcha na ordem social,
em primeiro plano, o glorioso e brutal comendador, o vendeiro com o seu ventre
de monstro, a sua indecorosa fortuna e a sua obscena estupidez.
E quando precisamos alugar ~a
casa, diz-nos o proprietário:
- Não alugo sem carta de fiança
de vendeiro ou negociante matriculado.
Não! Definitivamente o Brasil
poderá ser um país civilizado, enquanto a grande revolução, a verdadeira, a
única, não o tomar pelas duas extremidades e sacudi-lo violentamente, até
deslocar todas as camadas sociais e obriga-las a tomar o lugar que lhes
compete.
Antes disso, não passará esta
terra de um grande porto comercial, onde os estrangeiros aventurosos vêm
procurar fortuna rápida.
O Combate, 6 de março de 1892.
II
Começo a convencer-me de que esta
seção não tem razão de ser e não devia existir, porque infelizmente a vida
literária de hoje no Brasil é uma cousa tão hipotética como a vida elegante na
costa d'África.
Dantes surgia ainda um livro de
vez em quando; vinha à tona, de longe em longe, um volume de versos ou de
contos; mas agora, valha-me Deus! não aparece com que dar à gente uma hora de
regalo ao apetite de letras pátrias.
E no entanto, o que dantes
inspirava versos aos poetas, e o que dantes fornecia aos romancistas capítulos
de enredo ou páginas de observação, continua por aí afora, inalteravelmente,
enchendo a vida de cousas bonitas, de cousas tristes e de cousas heróicas.
O amor, o grande manancial onde
os líricos e os românticos abeberaram por longos séculos as suas musas, não nos
consta que fosse também deposto, antes pelo contrário parece que se tem
desenvolvido ultimamente e que hoje é o único que não morre de fome no Brasil.
Eva continua, como Jesus Cristo,
a atravessar as gerações de braços abertos, à espera dos aflitos que precisam
de consolo e que se queiram abrigar na religião da ternura e do carinho. As
flores, ao que me consta, nada perderam da integridade do seu perfume primitivo
e as rosas continuam a ser belas e os lírios a ser cândidos que faz gosto. Os
lagos e os vales, afogados de verdura, perseveram em ter-se misteriosos e as brisas
não deixaram ainda de ciciar depois que o Sr. Floriano tomou conta da
República.
Segundo as minhas observações, o
azul do céu não desbotou e está novinho em folha como saísse da fábrica; as
estrelas são inalteravelmente as mesmas; e eu seria capaz de apostar que os
sabiás cantam tal qual como no bom tempo de Gonçalves Das, e que as roas não
são menos legítimas e gemebundas que as do falecido Casimiro de Abreu.
Por que pois acabaram-se os
poetas? Se há azul de céu, se há crepúsculos, e há lua, como pois não há
versos?
Como diabo não há versos e
poetas, havendo tudo aquilo e, o que é mais, o soberbo e inestimável elemento
da fome, da fome e da miséria?
Os senhores sabem quanto vale a
fome para os poetas!...
Não sei que mais desejam, os
exigentes!
Boa lua, mágoas de primeira
ordem, estrelas a discrição, um ditador sanguinário no poder, que é uma tetéia;
mulheres que só desejam ser cantadas e decantadas; lágrimas e luto por toda a
parte, do que se pode desejar de melhor; uma ótima peste desoladora, um belo sol
de rachar, uma falta absoluta de residências, e, por cima de tudo isso, que já
é muito, a carne seca a 1$200 o quilo!
Pois mesmo assim, com todas essas
vantagens, incrível! os senhores poetas conservam-se na moita e - nem pio! nem
um verso!
Os romancistas e os contistas e
novelistas, pelo eu lado, também não sei do que se possam queixar. Já não há
Portelas para desviá-los do trabalho literário; o governo da legalidade
fornece-lhes por dia assassinatos e tenebrosas perseguições, que dão para uma
enfiada de volumes; os conspiradores esfervilham de todos os lados; há no ar
gritos de agonia e fartum de sangue; rosna-se a respeito de fuzilamentos e
cabeças cortadas e assaltos a mão armada; um tesouro!
E os romancistas - moita!
Pelo teatro a mesma cousa: as revoluções
sucedem-se; os chefes políticos lutam como atletas; os estados transformam-se
em campos de batalha; a peste e a fome, de mãos dadas, invadem a casa do pobre
e promovem cenas de grande sensação. E, no entanto, não aparece um dramazinho,
uma tragédia, e nem sequer uma comédia em um ato, apesar de que o elemento
cômico não abunda menos que o dramático, se dermos crédito ao vizinho da Vida fluminense que conhece muita gente
engraçada e capaz de provocar as maiores pilhérias e as mais largas gargalhadas.
Os Melos, por exemplo! Como
aqueles dois gaiatos irmãos estão a pedir por amor de Deus que os ponham em
cena, de cócoras, um defronte do outro, a torcerem-se de patriotismo! E que
belo efeito não faria o Floriano de guarda ao tesouro, como o descreveu Pierrot,
de espingarda ao ombro e vela de sebo ao lado? E o batalhão patriótico a gingar
na frente da música? E a manifestação popular, obrigada a balõezinhos chineses
e descompostura às folhas da oposição?
Oh! definitivamente, não vejo
razões para não haver comédias, dramas, romances e poemas!
Se os Srs. literatos não
aproveitarem esta boa ocasião, se não aproveitarem enquanto Brás é tesoureiro
do Estado do Rio de Janeiro, nunca mais pilharão outra tão boa.
E é pena, porque o momento
histórico que atravessamos, devia passar à história, cantado em prosa e verso,
para gozo e regalo dos futuros brasileiros.
Um Floriano não se bispa duas
vezes no mesmo século!
Vamos, coragem, meus senhores!
mãos à obra, que a literatura brasileira precisa, para a sua glória, de ter
também, como a literatura italiana, o seu Bertoldinho e o seu Cacasseno.
Vá o país à garra, mas salvem-se
as letras, com um milhão de raios!
O Combate, 10 de março de 1892.
________________
Literatura nacional
I
Agora, sempre que por aí se fala
de literatura nacional, diz-se que ultimamente há grande desfalecimento entre
os escritores brasileiros e que diminui o numero de volumes publicados, e que
só se escreve sobre finanças e sobre política.
É exato. Mas a culpa não é dos
escritores; é das dificuldades que se apresentam hoje em dia para realizar a
publicação de qualquer trabalho. A falecida baronesa de Mamanguape levou os
seus timos anos de vida a publicar; na casa Pinheiro, um volume de versos, que
nunca veio à luz e lhe abreviou naturalmente os dias de existência.
Aluízio Azevedo, tem há quase ano
e meio, um volume de contos a publicar-se na casa Mont'Alverne, hoje Companhia
Editora; e, apesar de haver pago adiantado a primeira folha de composição,
ainda não teve o prazer de ver uma página impressa do seu livro; outros e
outros homens de letras queixam-se de iguais contrariedades, e não é natural
que alguém se disponha a escrever com boa vontade, tendo uma obra encalhada no
prelo.
Repetimos: a culpa não é de quem
escreve; a culpa é dos que imprimem. Hoje, no Rio de Janeiro, dar um livro à
publicidade é quase tão difícil como viver, ou talvez mais ainda, se atendermos
ao que por aí vai pelas tipografias e casas editoras.
É que no Rio de Janeiro
atualmente, ninguém quer trabalhar. A febre do jogo, criada desde o ministério
Ouro-Preto e desenvolvida depois pela revolução, o desespero de enriquecer
forte e rapidamente, o desalento causado pelos graves prejuízos trazidos pelo descalabro
de companhias, que eram a grande esperança dos ambiciosos; tudo isso
transformou a maior parte da população fluminense num infernal bando de
jogatineiros decavés, doidos perdidos, furiosos, desanimados, sem vintém e sem
ânimo para o mais insignificante trabalho honesto.
Vai-se a uma tipografia para
imprimir uma obra. Aparece-nos o dono da casa, triste, desorientado, pensando
nas suas tantas mil ações sem valor, e ouve-nos distraidamente, sem conseguir
ligar importância ao trabalho que lhe encomendamos; e, quando lá voltamos, o
homem já nem se lembra do que lhe dissemos a primeira vez.
Mas, se apesar de tudo, a
encomenda fica feita, por um preço paradoxal, e tornamos lá para ver as provas,
ai! que triste espetáculo nos espera! Cada tipógrafo é também uma vítima da
bolsa; cada tipógrafo tem em casa, inúteis como um baralho de bilhetes brancos
de loteria, unia infinidade de títulos de companhias arrebentadas.
E, macambúzio, dedos enterrados
no cabelo, cotovelos fincados na caixa de composição, cada desgraçado desses
olha sonambulamente para os tipos empastelados, mortos, emudecidos e cobertos
de pó, e não encontra em si coragem para compor um paquet.
Compor! Trabalhar! Para quê?...
Para receber uma soldada que, com os preços atuais do pão, mal chega para não
morrer de fome?... Ganhar 5$000 por dia, quando, se não rebentasse tal
companhia ou banco tal, deveríamos empolgar 300 ou 400 contos?... Não!
definitivamente não há valor de homem capaz de ir até lá!
E o tipógrafo, convencido de que
não vale a pena trabalhar tão resignadamente para ganhar tão pouco, faz como a
maior parte dos operários, toma o chapéu, despede-se da casa em que está
empregado, e sai de cabeça baixa e o coração encharcado de desalento; vai pedir
dinheiro emprestado a um amigo, ou empenhar alguma joiazinha da mulher, para
correr à roleta, que nada mais e do que a caricatura da bolsa; a roleta a
ultima esperança de lucro rápido; a roleta, donde o infeliz nunca mais voltará
ao trabalho e à dignidade da vida, porque a engrenagem daquela máquina infernal
jamais largou a presa que lhe caiu nos dentes!
E diz o dono da tipografia,
quando o autor vai à vigésima vez, pelas provas do seu pobre livro:
- Vê, meu caro senhor?... Estou
sem gente!... Os operários foram-se todos! Estou disposto a pagar o duplo do
que pagava dantes, mas ninguém aparece! E se isto continua assim - fecho a
porta!
E a verdade inteira é que este
dono de tipografia está morrendo por fazer como fez o tipógrafo: correr à
roleta! Correr à tavolagem!
E lá, em volta dos malditos trinta
e oito números, de 0O a 36, ou à música implacável do Trente et quarente irá
ele encontrar como em uma praia de desilusão todos esses náufragos da
megalomania, arrojadas à casa do jogo pelas ondas do oceano da bolsa.
Todos lá vão ter, desde o
assombroso titular até o magro poeta, que interrompeu os estudos, para meter-se
no ensilhamento. Banqueiros, doutores, funcionários públicos, artistas,
caixeiros, todos, todos!
Triste e desconsoladora romaria
que só tem uma fé - ganhar. Só tem uma esperança - levar a banca à glória.
Todos e tudo lá vão ter à praia
da tavolagem. Sim, meus senhores, aqueles belos carros, aqueles cavalos de
raça, aqueles diamantes, tudo isso rolará para sempre na areia e, com os tipos
da composição e com as páginas, os poetas e prosadores.
O Combate, 2 de março de 1892.
II
Ontem encontrei de novo o meu
querido romancista Ernesto Branco. Vinha ainda com o ar enfastiado e, ao
ver-me, foi logo me passando o braço pela cintura e levando-me para a
confeitaria dos pássaros.
-Estou furioso contigo! disse me
ele, quando nos assentamos, e depois que o garçon se afastou para ir buscar uma
garrafa de cerveja. - Furioso, mas o que se pode chamar "Furioso!".
-Por quê?
-Por causa do tal artigo de ontem
Li a tua detestável Vida Literária! Aquilo não se faz! É uma infâmia!
-Mas o que fiz eu?
-Fizeste pilhéria com as letras!
-Ora!
-Ora não! Não admito que se
brinque com a cousa mais séria que há no mundo! Não admito que se meta a
ridículo a Literatura, a sagrada e imaculada arte de escrever! Sabes tu o que é
um poeta pobre, meu amigo? sabes quanto é venerável essa criatura de sapatos
rotos, que só vive da amarga desgraça de não ser imbecil ou medíocre, e que vai
atravessando cinicamente e corajosamente a dantesca escala de todas as torturas
e de todas as misérias, olhos fitos no ideal e pé calcado sobre a convenção
burguesa e sobre as conveniências sociais?
Sabes tu o que é esse sombrio
boêmio que a multidão acotovela e que os felizes desdenham e odeiam; esse negro
espetro que tem a alma branca e palpitante como as estrelas da manhã? Esse, que
entre toda essa magra canalha que luta inconscientemente para comer e respirar
sobre a terra, é o único que sofre, porque é o único que tem inteira
consciência da lama em que se arrasta, com as asas inutilizadas pelo lodo da
miséria? esse é o poeta, e ao poeta tu ofendeste com as tuas abomináveis chufas
de cabotin de imprensa! Queres fazer graça? Que diabo! imita o Pierrot ou o
Clown; toma as marionetes do governo; enfileira-as defronte de ti, sobre a tua
mesa de trabalho, e pinta-lhes bigodes; põe-lhes chifres; puxa-lhes pela língua
até ao umbigo; rasga-lhes a boca até às orelhas; prega-lhes rabos de papel;
dá-lhes piparotes no nariz; toma-as entre as palmas da mãe e boleia-as até
reduzi-las a uma grande pílula; atira com esta ao ar, torna a apanha-la, torna
a atira-la; deixa-a cair ao chão; levanta-a com ponta do pé; atira-lhe outro
antes que ela torne a cair; mas, por amor de Deus, por amor de quem mais ames!
não fales de carne seca, quando falares de poesia! não exijas versos aos poetas
que dormem para não ver o que vai pela República! não peças gracejando obra
literária, quando o nosso país geme apunhalado por um salteador político!
- Mas, por isso mesmo, respondi
eu, esquentando-me também. Por isso mesmo que o Brasil chora de dor; por isso
que o Brasil é traído, é saqueado, é reduzido a ruínas, é que os poetas deviam
erguer-se cheios de indignação e arrancar das liras, ao menos para dar com elas
na cabeça do governo! Tu mesmo, que estás aí a declamar a favor deles; porque
não atiras agora ao público um livro patriótico, um grito de revolta que
fizesse tremer o palácio de Itamarati e gelar nas veias o sangue desses
assassinos que acabam de ensangüentar o Ceará?
- Eu? Por uma razão muito
simples: porque o talento é como os títulos da bolsa - sobe e baixa conforme a
procura.
O meu neste momento está muito
por baixo. Ainda ontem quis principiar um trabalho: dispus o papel sobre a
pasta, enchi o tinteiro, acendi um charuto, assentei-me corajosamente à mesa,
molhei com energia a pena e... em vez de escrever, pus-me a pensar... E em que
pensava eu? Pensava em uma carta do meu senhorio que nesse dia me comunicara
amavelmente a sua generosa resolução de aumentar-me 5O$OOO no aluguel da casa;
pensava na minha rnenagêre que me avisara na véspera que o dinheiro que eu lhe
dou agora para as despesas diárias não chega, apesar de ser quase que o duplo
do que lhe dava dantes; e pensei nos escandalosos preços que me cobrava agora o
alfaiate, e pensei no chapeleiro, e no sapateiro; e, insensivelmente, fui pondo
a pena de parte e levantando-me para ir assentar-me à janela, a contemplar o
céu.
Fez-se noite e eu continuava a
pensar em cousas alheias ao meu trabalho. Lembrei-me com mágoa de um amigo meu,
tão bom rapaz, tão simpático e tão bem educado, o Garcia do Amorim, que na
véspera tinha sido, como muitos outros, devorado pela maldita febre-amarela;
lembrei-me de o ter visto quatro dias antes, bom e esperançoso, a falar-me de
seus versos e de sua próxima viagem a Roma.
Fiquei triste com esta idéia, e
pus-me então a cismar no estado e no destino desta pobre terra em que
vegetamos, acabrunhados pela peste, pelo calor, pela infernal carestia da vida,
ameaçados a todos os instantes pela guerra civil... Pobre República viúva!
Pobre noiva a quem arrancaram o esposo ainda na lua-de-mel, para entregá-la à
prostituição, para entregá-la à torpe sensualidade da maruja! Ah! maldito
Floriano! maldita raça de traidores!
E de todos esses negros
pensamentos ficou-me no espírito uma surda amargura, uma funda e dura tristeza,
um vago desejo de desertar desta infeliz pátria, correndo à procura de um lugar
onde se respire um ar menos assassino, onde a vida não seja tão amarga e tão
tenebrosa, onde se não vejam cair tantas vítimas da peste e onde se não
encontrem pelas praias cadáveres boiando misteriosamente. E uma dor imensa,
terrível, sem esperanças de remédio, apoderou-se de mim e fez-me amaldiçoar a
hora em que vim ao mundo. Imagina se trabalhei!
- E por que não aproveitaste a
tua própria dor para fazer uma obra? Por que não fizeste da tua dor um poema?
- Porque era verdadeira demais
para isso! Desconfia das lágrimas descritas em prosa e verso. A dor legítima é
egoísta, é besta, é inútil, não serve senão para doer! A arte nasceu para
cantar e não para chorar!
Ia replicar, metendo as botas no
governo, mas o meu amigo cortou-me a palavra, segredando-me rapidamente:
- Caia-te! Esse sujeito que se
assentou agora atrás de ti é um espião de polícia... Cuidado!
Embucbei.
O Combate, 11 de março de 1892
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