segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

em torno de Capitu e o exercício machadiano da dúvida.


a propósito da "Capitu" televisiva


Machado sempre cultivou a dúvida como instrumento de reflexão, e evitava o maniqueísmo de personagens por não aflorar os questionamentos. Uma das expressões de sua evolução literária foi a narração. O narrador machadiano muda. Existem as expressões cunhadas no estudo machadiano do narrador confiável e do narrador não-confiável; o narrador não-confiável se sobressaindo a partir da segunda fase, iniciada em 1880. Esse tipo de narrador é quem coloca dúvidas sobre as coisas. Nesse particular, costuma-se conferir importância desmesurada àquela grande questão do romance Dom Casmurro: Capitu traiu ou não traiu? – o que é absolutamente descartável e desprezível. E aqui peço licença para abrir um longo parênteses e me estender nesse assunto, que é importante para caracterizar um elemento fundamental , um dos fulcros capitais de toda a ficção machadiana . A tola discussão se Capitu traiu ou não traiu é o que menos -- na verdade,nada – importa :Machado faz de Dom Casmurro -- a meu juízo, a maior obra da literatura brasileira, anos-luz acima de qualquer outra, comparável às maiores obras-primas da literatura universal -- um transcendental exercício da dúvida, um ensaio sobre a dúvida, que de resto permeia toda sua ficção : evoca-se,nesse romance, o 'shakespearianismo' [sic : neologismo meu...] do ciúme e traição a la Otelo \Desdêmona, mas o que existe mesmo, assim entendo,é uma conotação 'hamletiana', vale dizer o 'ser ou não ser', que seria traduzido, sob a égide do exercício machadiano da dúvida,pelo 'traiu ou não traiu' inerente a Capitu -- aliás, a mais complexa e bem construída protagonista feminina da literatura brasileira , a suma da mulher machadiana criada e fomentada em toda sua ficção . Nesse ‘teor hamletiano’ reside toda a ficção machadiana, mormente na seara contística : é o 'fez\nãofez',''disse\não disse', ' saiu\não saiu', 'roubou\não roubou', 'recaiu\não recaiu' (caso do primoroso conto "Singular ocorrência"), e por aí vai. E o narrador é o agente dessas dúvidas .Examinado, ou lido, pela ótica, ou na órbita do ciúme --'oteliano': e Shakespeare foi a maior influência sobre Machado, suas referência e citação prediletas, mil vezes referenciado em contos e crônicas -- Capitu é julgada infiel pelo narrador Bentinho, um ciumento nato e hereditário,doentio,e dissimulado -- e aqui entra outra grande influência de Machado : Freud , pois fomenta a pseudo-traição de Capitu como processo de transferência de sua atração pela mulher de Escobar. Bentinho é o narrador da história . e aqui chegamos ao âmago da coisa, no âmbito da análise literária, que creio 'mata' a questão : o narrador-em –primeira- pessoa machadiano, mormente pós-1880 é um narrador não-confiável, que de resto Machado adotou em muitos dos textos ficcionais desse período -- justo os mais importantes e impactantes -- ao contrário do narrador confiável de antes, que se expressa pelo chamado narrador-em terceira-pessoa (embora Machado tenha também criado um ‘falso’ narrador-em-terceira-pessoa, mas isso faz parte de outra digressão) . Se o narrador de Dom Casmurro fosse este, distanciado e isento tanto quanto possível, haveria campo para se cogitar de Capitu infiel, adúltera , mas não : sendo em primeira-pessoa, nada a declarar, ou melhor nada a discutir. Dom Casmurro surgiu cerca de 3 ou 4 anos depois de Madame Bovary, de Flaubert, e de O primo Basilio, de Eça de Queiroz, dois 'parentes' sanguíneos ,literariamente, do romance de Machado, mas neles o narrador –em- terceira-pessoa não deixa dúvidas quanto à infidelidade de Ema Bovary e de Luisa , que são personagens 'chapados',definidos, mulheres praticantes nitidamente da infidelidade --não cabe aqui discutir quais os motivos que as levaram, ainda que saibamos ter sido o abandono por parte dos maridos ou a insatisfação com o casamento, etc : aliás, a infidelidade que Machado insinua em suas protagonistas, ao longo de sua ficção, é exatamente motivada ou gerada por esse comportamento dos homens, vide como exemplo emblemático disso o conto "Uma partida',neste livro que ora publico. Capitu não, não é nada 'chapada', é primorosamente construída como figura literária , sua grandeza ficcional é comparável á de Ana Karenina, e por aí vai.
Machado ao longo de sua ficção levantava ,incentivava, insuflava e cultuava todas essas dúvidas,praticava quase que permanentemente esse exercício, e as colocava no leitor. Então, ao mesmo tempo em que Machado moldava ,e mutava, sua trama e seus protagonistas, também moldava e mutava narradores e, conseqüentemente, leitores. Esse culto ao questionamento passou para o leitor, que começou a ler,ou pelo menos deveria ler – o que é mais do válido para o leitor de hoje, também -- as histórias de Machado de forma diferente. E nisso está plenamente demonstrada a genialidade de um autor : na evolução literária de Machado, alteram-se formas e ritmos narrativos (condimentados de ironia e humor,adquirem um tom mais coloquial e de certa forma intimista), transformam-se protagonistas, transmutam-se narradores e leitores. Mutações e transformações, dos protagonistas , que se manifestam também em transmutação do narrador e da voz narrativa e a criação de um ‘novo’ leitor, o leitor- modelo em contraponto ao leitor-empírico. Machado construiu em seu texto ,e por meio dele, um novo “leitor-modelo” — definido este conforme a conceituação de “leitor-modelo’ e “leitor-empírico” de Umberto Eco. Machado formou seus leitores recorrendo a estratégias temáticas,tramáticas,narrativas,estilísticas que ,como poucos, tinha e sabia usar -- entre essas estratégias ,as digressões,fragmentações narrativas,retardamentos de fatos anunciados ou prometidos ao leitor, metamorfoses de vozes narrativas, de forma e de linguagem .Machado descondicionou o leitor empírico do leitor-modelo, como ninguém na literatura brasileira, 'desconstruiu' essa relação, embora via de regra seja ela utilizada para que o leitor chegue aonde o autor deseja. Contudo, não satisfeito,na esteira desse 'dissídio' fez o leitor(o empírico) oscilar em "grave"-- que espera algo mais do que um 'simples texto', ou um 'puro romance', ou uma 'obra correta',um leitor que deseja reflexões de caráter mais realista-- e "frívolo"-- que espera impactos e emoções no texto ou na obra,um leitor de tipo romântico ; ora graves ora frívolos, esses leitores são por assim dizer 'transportados' para dentro dos romances e para a maioria dos contos pós-1880 : na obra machadiana, o leitor empírico é o ‘frívolo’, e ‘grave’ é o leitor-modelo. Até o final da década de 1870, os romances e contos , atendiam ao leitor empírico\frívolo , como aliás não poderia deixar de ser, condicionado e formado no âmbito do Romantismo e seus valores ; ao passo que o grave mantinha-se em ‘surdina’. As metamorfose ao longo do tempo, a partir da década de 1860, deram-se concomitantes : na medida da evolução literária machadiana,o leitor empírico\frívolo vai ‘cedendo espaço’ ao leitor-modelo (inclusive um novo,criado por Machado)\grave, ao mesmo tempo em Machado 'camufla' as diferenças existentes entre injunções ficcionais e reais ,incentiva o leitor a acreditar no fictício,ou embuste\artimanha, e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando um narrador de pouca,ou nenhuma, confiabilidade, uma espécie de 'narrador volúvel' que habita e conduz muitos de seus contos. E o leitor situa-se como um ‘espelho’ desse narrador.No fim , ainda que sob o controle do autor, ou do narrador cabe ao leitor,quase que exclusivamente, o acesso a unidade dentro da imensa e complexa obra ficcional de Machado – que nisso parece contrariar Nietzsche\Zaratustra : “Alguém que conhece o leitor, nada fará por ele...”
Vale lembrar que desde seu primeiro livro publicado,em 1861 , Queda que as mulheres têm para os tolos – que título instigante, provocador ! – Machado fomenta o enigma,o mistério, o disfarce,o subterfúgio: porque persiste a dúvida histórica de ser uma tradução ou uma criação original dele – de que não tenho a menor dúvida que seja(criação) : vejam a propósito minha edição crítica sobre esse livro. Cá entre nós e para nós, a versão de ser criação original é muito mais,digamos,’charmosa’, muito mais – não há dúvida alguma — ao estilo e espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado -- a par de outras igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado. Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’— e é esse teor ‘hamletiano’, a ligá-lo e referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores admirações e citação constante .Dele, Machado assimilou e incorporou à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ – presente e atuante em romances como Ressureição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos : binômio que remete a Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...— os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise, desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”.
O certo é que Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é , primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressureição (1872), e finalmente na opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.1899) . Queda que as mulheres têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia, de seu primeiro romance, e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora. Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” -- traduzida ou não por Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
Em Dom Casmurro a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês : Machado embebeu-se nas lições shakespeareanas e delas impregnou seu romance mais lido e estudado , conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo, e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose, inclusive, Machado como que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigente no âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX — proposta por especialista, “a ficção vista como nova fonte de teorização para a tradução”, a tradução aparecendo como fio condutor e meio operandi , quer tendo sido feita realmente em Queda que as mulheres têm para os tolos , quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro, e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida literária de Machado.Um elo a ligar ‘primeiras obras’ — a pioneira publicada, o exercício teatral inicial, o romance precursor — com aquela que é a síntese, corolário, consolidação. Elo que se alonga mais , visto por outros aspectos e ângulos: vai a Esaú e Jacó e atinge o corolário final em Memorial de Aires. Nos dois derradeiros trabalhos, Machado opta por um expediente ficcional — dentre os vários que utiliza ao longo de sua obra – atribuindo a um morto a autoria desses romances, deslocando-se para uma condição ambígua de editor e crítico de si mesmo, fingindo abrir mão da autoria de seu texto –- ambiguidade gerada e conduzida pelo mesmíssimo vetor que o fez, nos primórdios, assumir a também condição ambígua de ‘tradutor’ em Queda... e da mesma forma abrir mão da autoria de seu texto.


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