Machado ao longo de sua ficção levantava ,incentivava, insuflava e cultuava todas essas dúvidas,praticava quase que permanentemente esse exercício, e as colocava no leitor. Então, ao mesmo tempo em que Machado moldava ,e mutava, sua trama e seus protagonistas, também moldava e mutava narradores e, conseqüentemente, leitores. Esse culto ao questionamento passou para o leitor, que começou a ler,ou pelo menos deveria ler – o que é mais do válido para o leitor de hoje, também -- as histórias de Machado de forma diferente. E nisso está plenamente demonstrada a genialidade de um autor : na evolução literária de Machado, alteram-se formas e ritmos narrativos (condimentados de ironia e humor,adquirem um tom mais coloquial e de certa forma intimista), transformam-se protagonistas, transmutam-se narradores e leitores. Mutações e transformações, dos protagonistas , que se manifestam também em transmutação do narrador e da voz narrativa e a criação de um ‘novo’ leitor, o leitor- modelo em contraponto ao leitor-empírico. Machado construiu em seu texto ,e por meio dele, um novo “leitor-modelo” — definido este conforme a conceituação de “leitor-modelo’ e “leitor-empírico” de Umberto Eco. Machado formou seus leitores recorrendo a estratégias temáticas,tramáticas,narrativas,estilísticas que ,como poucos, tinha e sabia usar -- entre essas estratégias ,as digressões,fragmentações narrativas,retardamentos de fatos anunciados ou prometidos ao leitor, metamorfoses de vozes narrativas, de forma e de linguagem .Machado descondicionou o leitor empírico do leitor-modelo, como ninguém na literatura brasileira, 'desconstruiu' essa relação, embora via de regra seja ela utilizada para que o leitor chegue aonde o autor deseja. Contudo, não satisfeito,na esteira desse 'dissídio' fez o leitor(o empírico) oscilar em "grave"-- que espera algo mais do que um 'simples texto', ou um 'puro romance', ou uma 'obra correta',um leitor que deseja reflexões de caráter mais realista-- e "frívolo"-- que espera impactos e emoções no texto ou na obra,um leitor de tipo romântico ; ora graves ora frívolos, esses leitores são por assim dizer 'transportados' para dentro dos romances e para a maioria dos contos pós-1880 : na obra machadiana, o leitor empírico é o ‘frívolo’, e ‘grave’ é o leitor-modelo. Até o final da década de 1870, os romances e contos , atendiam ao leitor empírico\frívolo , como aliás não poderia deixar de ser, condicionado e formado no âmbito do Romantismo e seus valores ; ao passo que o grave mantinha-se em ‘surdina’. As metamorfose ao longo do tempo, a partir da década de 1860, deram-se concomitantes : na medida da evolução literária machadiana,o leitor empírico\frívolo vai ‘cedendo espaço’ ao leitor-modelo (inclusive um novo,criado por Machado)\grave, ao mesmo tempo em Machado 'camufla' as diferenças existentes entre injunções ficcionais e reais ,incentiva o leitor a acreditar no fictício,ou embuste\artimanha, e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando um narrador de pouca,ou nenhuma, confiabilidade, uma espécie de 'narrador volúvel' que habita e conduz muitos de seus contos. E o leitor situa-se como um ‘espelho’ desse narrador.No fim , ainda que sob o controle do autor, ou do narrador cabe ao leitor,quase que exclusivamente, o acesso a unidade dentro da imensa e complexa obra ficcional de Machado – que nisso parece contrariar Nietzsche\Zaratustra : “Alguém que conhece o leitor, nada fará por ele...”
Vale lembrar que desde seu primeiro livro publicado,em 1861 , Queda que as mulheres têm para os tolos – que título instigante, provocador ! – Machado fomenta o enigma,o mistério, o disfarce,o subterfúgio: porque persiste a dúvida histórica de ser uma tradução ou uma criação original dele – de que não tenho a menor dúvida que seja(criação) : vejam a propósito minha edição crítica sobre esse livro. Cá entre nós e para nós, a versão de ser criação original é muito mais,digamos,’charmosa’, muito mais – não há dúvida alguma — ao estilo e espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado -- a par de outras igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado. Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’— e é esse teor ‘hamletiano’, a ligá-lo e referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores admirações e citação constante .Dele, Machado assimilou e incorporou à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ – presente e atuante em romances como Ressureição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos : binômio que remete a Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...— os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise, desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”.
O certo é que Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é , primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressureição (1872), e finalmente na opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.1899) . Queda que as mulheres têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia, de seu primeiro romance, e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora. Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” -- traduzida ou não por Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
Em Dom Casmurro a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês : Machado embebeu-se nas lições shakespeareanas e delas impregnou seu romance mais lido e estudado , conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo, e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose, inclusive, Machado como que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigente no âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX — proposta por especialista, “a ficção vista como nova fonte de teorização para a tradução”, a tradução aparecendo como fio condutor e meio operandi , quer tendo sido feita realmente em Queda que as mulheres têm para os tolos , quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro, e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida literária de Machado.Um elo a ligar ‘primeiras obras’ — a pioneira publicada, o exercício teatral inicial, o romance precursor — com aquela que é a síntese, corolário, consolidação. Elo que se alonga mais , visto por outros aspectos e ângulos: vai a Esaú e Jacó e atinge o corolário final em Memorial de Aires. Nos dois derradeiros trabalhos, Machado opta por um expediente ficcional — dentre os vários que utiliza ao longo de sua obra – atribuindo a um morto a autoria desses romances, deslocando-se para uma condição ambígua de editor e crítico de si mesmo, fingindo abrir mão da autoria de seu texto –- ambiguidade gerada e conduzida pelo mesmíssimo vetor que o fez, nos primórdios, assumir a também condição ambígua de ‘tradutor’ em Queda... e da mesma forma abrir mão da autoria de seu texto.
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