terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O patrimonialismo, dos ‘donos do poder no Brasil, e Lima Barreto


A propósito dos 50 anos de publicação de uma das maiores obras ensaísticas da literatura brasileira – Os donos do poder, 1958– convém uma necessária ilação do patrimonialismo, primorosa e irretocavelmente conceituado,exposto e dissecado por Raymundo Faoro , com uma das mais importantes e significativas peças da vibrante obra de Lima Barreto.

Em essência, Lima Barreto sempre tratou mais de política do que qualquer outro tema. Ninguém como ele, em seu tempo, escreveu tanto sobre o tema e, por extensão, sobre questões sociais. Toda a obra barretiana desenvolve-se a partir e em torno de um tema nuclear: o poder e seus efeitos discricionários — o poder visto e descrito por ele como “o variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis, tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa inserção social”. Tinha a visão verticalizada, analisando desde as estruturas políticas como o governo e as ideologias, e as instituições culturais como a imprensa e a ciência, até os modelos determinantes do comportamento coletivo e do relacionamento cotidiano. Lima Barreto era, acima de tudo, um anti-patrimonialista.
Exemplares insofismáveis da veemente oposição de Lima Barreto à República, da ferrenha crítica aos governos republicanos , expressão do intransigente e obstinado repúdio para as coisas da política, aos políticos, aos conchavos partidários,às oligarquias , são , na obra barretiana, os “contos argelinos” que têm em seu cerne paródico a ascensão dos militares, com sua crescente participação na política, e o militarismo. E em outro viès de leitura e interpretação trazem em si a emblematização ficcional do patrimonialismo, contra o qual Lima Barreto se colocava na própria essência de sua ideologia.
Os “contos argelinos”, per se dotados de excepcional especificidade e acentuadas peculiaridades,constituem um conjunto único na obra ficcional de Lima Barreto , com características próprias de temática mas também muito especiais de teor, 'timbre', linguagem,estilo, ambiência. Sobretudo porque utilizam ,mais do que em quaisquer outros — e desse recurso muito se valeu em sua obra ficcional — a sátira , o sarcasmo e em especial um expressivo tom de alegoria,uma fina ironia alegórica que os percorre e faz se ‘entrecruzarem’, pioneiro exercício barretiano de intertextualidade a solicitar pois leitura em conjunto, cada um motivando novos aspectos interpretativos sobre o mundo ficcional neles desenhado.
Sob essa denominação, Lima Barreto escreveu 13 contos, publicados seqüencialmente sob numeração contínua, na revista Careta , do Rio de Janeiro , entre 1915 e 1922 . Comportam,cada um deles, no mise-em-scéne as maquinações do sistema de poder no Brasil -- vale dizer, manifestações do patrimonialismo -- desveladas e reveladas em ambiências de sultanatos,canatos — os estados brasileiros: “Al-Bandeirah” é São Paulo, “Al-Súgar” [açúcar] como Pernambuco, “Hbaya” sendo a Bahia — domínios de sultões, xeiques e personagens ‘orientalizados’ deliberadamente inspirados e relacionados a figuras políticas e estabelecendo claras referências a acontecimentos da época : o Brasil recriado como “o País de Al-Patak”, governado pelo “usurpador Abu-Al-Dhudut”, vale dizer Hermes da Fonseca, mais tarde por Basileus Epitaphio, isto é, Epitácio Pessoa ; palco das aventuras e desventuras de tipos secundários, como o “ministro da guerra, o polemarca Bem-Zuff Kalogheras e os modos desastrados de comandar o exército” , o “ministro dos negócios internos do reino, Cide Ércu Bem-Lânod” e seus “hábitos sacrílegos”, o “kaïa, chefe da polícia militar, Pessh Bem-Hoa” — os recursos à clef’ fazendo-se presentes em todos os Lima Barreto os teria concebido e criado -- com seus jogos de simulacros ,alegorias e paródias, e pela conotação que o âmbito de “sultões, quedivas, felás do Império Otomano” e da cultura muçulmana contêm -- como a própria expressão ficcional do patrimonialismo e seus fundamentos ideológicos e históricos.
[em 2009 publicarei “Lima Barreto e a política : os ‘contos argelinos' e outros textos recuperados]
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