Exemplares insofismáveis da veemente oposição de Lima Barreto à República, da ferrenha crítica aos governos republicanos , expressão do intransigente e obstinado repúdio para as coisas da política, aos políticos, aos conchavos partidários,às oligarquias , são , na obra barretiana, os “contos argelinos” que têm em seu cerne paródico a ascensão dos militares, com sua crescente participação na política, e o militarismo. E em outro viès de leitura e interpretação trazem em si a emblematização ficcional do patrimonialismo, contra o qual Lima Barreto se colocava na própria essência de sua ideologia.
Os “contos argelinos”, per se dotados de excepcional especificidade e acentuadas peculiaridades,constituem um conjunto único na obra ficcional de Lima Barreto , com características próprias de temática mas também muito especiais de teor, 'timbre', linguagem,estilo, ambiência. Sobretudo porque utilizam ,mais do que em quaisquer outros — e desse recurso muito se valeu em sua obra ficcional — a sátira , o sarcasmo e em especial um expressivo tom de alegoria,uma fina ironia alegórica que os percorre e faz se ‘entrecruzarem’, pioneiro exercício barretiano de intertextualidade a solicitar pois leitura em conjunto, cada um motivando novos aspectos interpretativos sobre o mundo ficcional neles desenhado.
Sob essa denominação, Lima Barreto escreveu 13 contos, publicados seqüencialmente sob numeração contínua, na revista Careta , do Rio de Janeiro , entre 1915 e 1922 . Comportam,cada um deles, no mise-em-scéne as maquinações do sistema de poder no Brasil -- vale dizer, manifestações do patrimonialismo -- desveladas e reveladas em ambiências de sultanatos,canatos — os estados brasileiros: “Al-Bandeirah” é São Paulo, “Al-Súgar” [açúcar] como Pernambuco, “Hbaya” sendo a Bahia — domínios de sultões, xeiques e personagens ‘orientalizados’ deliberadamente inspirados e relacionados a figuras políticas e estabelecendo claras referências a acontecimentos da época : o Brasil recriado como “o País de Al-Patak”, governado pelo “usurpador Abu-Al-Dhudut”, vale dizer Hermes da Fonseca, mais tarde por Basileus Epitaphio, isto é, Epitácio Pessoa ; palco das aventuras e desventuras de tipos secundários, como o “ministro da guerra, o polemarca Bem-Zuff Kalogheras e os modos desastrados de comandar o exército” , o “ministro dos negócios internos do reino, Cide Ércu Bem-Lânod” e seus “hábitos sacrílegos”, o “kaïa, chefe da polícia militar, Pessh Bem-Hoa” — os recursos à clef’ fazendo-se presentes em todos os Lima Barreto os teria concebido e criado -- com seus jogos de simulacros ,alegorias e paródias, e pela conotação que o âmbito de “sultões, quedivas, felás do Império Otomano” e da cultura muçulmana contêm -- como a própria expressão ficcional do patrimonialismo e seus fundamentos ideológicos e históricos.
[em 2009 publicarei “Lima Barreto e a política : os ‘contos argelinos' e outros textos recuperados”].
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