quinta-feira, 2 de abril de 2015
O cinema vai à literatura: um réquiem a Manoel de Oliveira
-- morreu em 01.04. um dos maiores cineastas da história
do cinema : mais, um dos magistrais artista do mundo.
O cinema vai à literatura
(e a literatura se vale do cinema)
Sempre é oportuno e indispensável tecer reflexões sobre a sempre
vigente relação literatura-cinema, com suas interseções, confluências ...e
divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de
sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de
“infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até
porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e
modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se
e na maioria dos casos contrastam- se;
são sempre difíceis as transposições de uma para o
outro, pois as características intrínsecas do texto literário --
originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não
encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, entre a página e a tela há laços estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ :
a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do
leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas
pelo expectador por meio de palavras.Entre
a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou
sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e
expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por
meio de um ‘cinema interior ou mental’
sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao
advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da
literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de
início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações
mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o
surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade
continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí,
adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à
cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói,
Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para
citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale
a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns,
tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras
literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão -- meios que privilegiam a linha narrativa —
também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em
empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período
clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de
legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela,
tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de
escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores
como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, , James
Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas
histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários
empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já
é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de
alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo
sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me
dizem para fazer; é um emprego, e pronto."
“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o
pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University
of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar
quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de
Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ em parceria com o
Globo Universidade para ministrar uma disciplina compactada sobre Cinema,
Literatura e TV. Para ele, as relações
entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a
tela, apontando três outros importantes pontos de encontro : o primeiro seria
os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam vários exemplos
em cinematografias distintas; outro, seria o uso estrutural ou incorporação de
textos literários no discurso cinematográfico – esta indubitavelmente a
ocorrência maior; e também o encontro da
literatura e do cinema poderia se dar através de referências como alusões
literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou
escritas diretamente na tela – um expediente cada vez mais recorrente na
produção contemporânea. Por outro lado,
Johnson critica
enfaticamente a valorização do
texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser muito comum entre os espectadores uma
exigência de fidelidade do filme ao livro. . A insistência na fidelidade da
adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode resultar em
julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra literária em
detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados
criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo. O
conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se na
discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita
em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos
filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como
está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no
original.
Esse freqüente
discurso da fidelidade baseia-se,a meu juízo, na crença difundida de que a
literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura
ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à idéia de que o livro é
historicamente mais nobre e o filme secundário -- além evidentemente do pensamento
de que cinema e literatura são rivais a partir da crença na idéia de que o
filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro.
Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem
sido um de seus pontos de partida – as relações entre o cinema e a literatura
são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes
mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a
qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos literários
anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como
especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da
incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse
modo, a narrativa cinematográfica já se encontraria latente em alguns textos
narrativos literários, e a relação logo
passou a trilhar indissolúvel (sic) mão dupla, quando literatos e dramaturgos
começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em
poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários
e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada
linguagem --- ísto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado
na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em
1950, etc ) : e o momento histórico de
cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum
filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme,
quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e
circulação de cada um de seus produtos.
Essa intrínseca, dialógica e dinâmica relação nasce no
momento em que o cinema descobre seu potencial digamos literário , ao absorver
o modelo narrativo do romance do século XIX a subsidiá-lo para melhor contar
histórias – malgrado podermos hoje levantar a reflexão em plena era da imagem digital em que vivemos : o
cinema continuaria ‘preso’ a um modelo
narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria literatura? .Se o
cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era da imagem
digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais alto,
continuam-se a ilustrar romances do século XIX?
Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo
da narrativa, em sua já longa história,
o cinema não sofreu muitas variações – malgrado certas exceções, como
experimentos ‘de vanguarda’ – e vem à
mente, por aproximação etimológica, a
“Nouvelle Vague” da década de 1960 , que se propunha a romper com a lógica linearizante da estética e da
narrativa fílmica de até então, inspirada num congênere da seara literária, o
“nouveau roman”—ambas dialogando entre si pelas respctivas técnicas narrativas,
num movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.Convém não
esquecer,entretanto, que sob a égide de suas
afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a
se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica
hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já
consagrados da narrativa literária – levando
Jorge Luis Borges a observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a
épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela
épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar as limitações formais e “não procurando ordenar o caos”, ao contrário, o caos
tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”,p. ex.,
queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que os caminhos são múltiplos; e por
fim aquilo que Jean Cocteau afirmou
sobre o cinema pode agora se efetivar, pois para ele, os filmes só seriam bons
quando fossem acessíveis como uma caneta e um papel.
Contudo, há de se atentar para um outro viés ,uma espécie
de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um
contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo
setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de
publicação de livros motivados... pelo
cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração
de filmes(making-of), edição ou
reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos
iconográficos que remetem para os filmes
realizados a partir da adaptação da obra para
o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura. De resto, uma tendência à qual avolumam-se
questionamentos sobre até que ponto
sinaliza tanto ‘perda de
prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’ da matéria literária, como sobretudo ‘dessacralização’
da literatura, tênues que se tornam cada
vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens culturais que circulam
pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.
Da mesma forma e desse processo decorrente,
deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX,por parte e ação do
setor editorial ,a contrapartida à incorporação da obra
literária,fosse best seller ou não –
muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o relançamento
de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros .Toda a
literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um filme, e
na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o espaço do
livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações derivadas de
filmes.
Por
outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas
e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o
timbre, o ritmo, o timing fílmico --
e menos literário. E além disso, mesmo que sua estória e trama seja de ação,de
movimento, costumam lidar com o onírico, o sonho , e com o psicológico -- que é,
sabemos, elemento recorrente ao extremo
no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais
a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles antes e acima
de tudo pessoas do cinema.
Tudo isso propicia
um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de
profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O
caso é que um diretor de cinema ou de tv
quando vai à literatura leva com
ele uma bagagem da linguagem -- o ritmo,
o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador --
e assim comete pecados e pecadilhos marcantes . Ao
contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre
-- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são
melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores
norte-americanos com Hollywood ,e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo
no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões
literárias atuarem numa espécie de
contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate --
literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias
por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no
caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme -- e vale lembrar que para o escritor Autran Dourado “não existe
livro filmado, existe filme baseado
em livro” -- mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de
seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo
instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto --
relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou
inferidos\induzidos, alguns elementos que responderiam a Stanley Kubrick --
para quem “tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” -- também provando o inevitável desejo de cineastas e roteiristas, ao
escreverem uma obra literária, que ‘tudo
que pode ser filmado poderia ser
escrito’...
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