quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Machado de Assis, a crônica, a política, a História. o Brasil, o Rio de Janeiro


a propósito do iminente pleito municipal em todo o país, convém conhecer o que Machado de Assis -- que tratou muito de política em suas crônicas -- comentou 
(com ironia crítica e lúcida observação) sobre eleições na cidade do Rio de Janeiro e sobre a Câmara Municipal 

Este conjunto de 53 crônicas de Machado de Assis transcende uma temporalidade determinada, por exemplo, pela realização das eleições municipais deste ano de 2012 no Brasil. Referenciadas à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ao governo municipal e à política inerente à cidade -- constitui-se numa coletânea significativamente  relevante, diferenciada e inédita.
Relevante, por intentar-se fundamentalmente mostrar - e dar a conhecer - o quanto Machado de Assis, ao contrário da equivocada e distorcida interpretação difundida ao longo dos anos, tinha opiniões políticas, escreveu muito sobre política, e tratou de questões institucionais e governamentais com toda a largueza de visão e discernimento que lhe eram peculiares. Depois,por tratar-se de coletânea absolutamente diferenciada do comumente organizado porquanto abriga  escritos machadianos sobre tema que nunca foi objeto de seleção específica, ao contrário esteve sempre imiscuído no conjunto geral de suas crônicas --  formando,no caso,  um corpus bastante específico de comentários machadianos sobre a cidade do Rio de Janeiro e o Brasil  de então.
Machado de Assis fez da crônica meio, instrumento e veículo de  expressão de seu testemunho – crítico, analítico, lúcido – da política e da história brasileiras da segunda metade do século XIX; e, no caso especial do Rio de Janeiro – foco e cenáculo dos presentes textos, até porque,como capital federal,exercia a função de microcosmo político,econômico, social do país – o próprio   consubstanciador da indissociável interação do escritor com a cidade onde nasceu,sempre viveu e morreu.
Importante ainda realçar que o tema específico sob o qual se organiza e constrói o conjunto em tela – a destacar sobremodo um dos propósitos básicos que o norteiam --  oferece,de resto, elementos significativos e propícios a reflexões de ordem política e de cidadania inerentes à administração,governo e destinos da cidade do Rio de Janeiro, quaisquer que sejam as épocas,circunstâncias conjunturais e temporalidades datadas.
                                                                                                                                                                              Mauro Rosso.

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crônica 1
22 de agosto de 1864
DIÁRIO DO RIO DE JANEIROAo Acaso[1]
 indiferença pública com as eleições municipais;
os três preceitos para a  Câmara Municipal;

Hoje é dia de gala para o folhetim. Visitam-me dois poetas ilustres.
Para recebê-los, eu devia estender os melhores tapetes, queimar os melhores óleos e ornar com as flores mais belas os mais ricos vasos de porcelana.
Não podendo ser assim, faço o que posso com os meus poucos teres.
Os meus hóspedes são americanos, um da América do Sul, outro da América do Norte; ambos poetas - cantando um na língua de Camões, outro na de Milton - e para que, além de talento, houvesse neste momento um elo de união entre ambos - um criou uma página poética sobre uma lenda do Amazonas, o outro criou outra página poética, traduzindo literal, mas inspiradamente, a página do primeiro.
O primeiro é John Greenleaf Whittier, autor de um livro de baladas e poesias, intitulado In War Time, Em tempo de guerra -- livro, onde vem inserta a página poética em questão.
Chama-se o segundo, na linguagem simples das musas - Pedro Luís, poeta fluminense, dotado de uma imaginação ardente e de uma inspiração arrojada e vivaz, autor da magnífica Ode à Polônia, que aí corre nas mãos de quantos apreciam as boas letras.
Tratando do poeta, não é ocasião de mencionar o deputado eloqüente , cuja estréia despertou todas as esperanças nacionais e pôs em atividade todas as reações do clero.
A poesia de Whittier, traduzida pelo sr. dr. Pedro Luís, intitula-se  “O grito de uma alma perdida. É o modo por que os índios designam o grito melancólico de um pássaro que se ouve à noite nas margens do Amazonas.
A poesia tradução parece poesia original, tão naturais, tão fáceis, tão de primeira mão, são os seus versos.
Não quero privar os entendedores do prazer de compararem as duas produções, os dois originais, deixem-me assim chamá-los.
Aqui vai a do sr. dr. Pedro Luís:
O GRITO DE UMA ALMA PERDIDA
Quando, à tardinha, na floresta negra,
Resvala o Amazonas qual serpente,
Sombrio desde a hora em que o sol morre
Até que resplandece no oriente,
Um grito, qual gemido angustioso
Que o coração do mato soltaria
Chorando a solidão, aquelas trevas,
O não haver ali uma alegria,
Agita o viajor, com som tão triste
De medo, do ansiar da extrema luta,
Que o coração lhe pára nesse instante
E no seu peito, como ouvido, escuta.
Como se o sino além tocasse a mortos,
O guia estaca, o remo que segura
Deixa entregue à piroga, e se benzendo:
"É uma alma perdida", ele murmura.
"Senhor, conheço aquilo.
Não é pássaro.
É alma de infiel que anda penando,
Ou então é de herege condenado
Que do fundo do inferno está gritando.
“Pobre louca! Mofar crê que ainda pode
Da perdição; à meia-noite grita,
Errante, a humana compaixão pedindo
Ou dos cristãos uma oração bendita.
"Os Santos, em castigo, a tornem muda!
A mãe do céu nenhuma reza ensina
Para quem, no mortal pecado, arde
Na fornalha da cólera divina!"
Sem replicar, o viandante escuta
Do pagão batizado essa mentira,
Tão cruel que de novo horror enchia
O grito amargurado que se ouvira.
Frouxamente arde o fogo da canoa;
Em torno aumenta a sombra da espessura
Dos altos troncos com cipós nodosos;
Silenciosa corre a água escura.
Porém no coração do viajante,
Secreto sentimento de bondade
Que a natureza dá, e a fé constante
Do Senhor na infinita piedade
Levam seus olhos à estrelada estância;
E ali os gritos ímpios censurando
Por toda a terra - a Cruz do perdão brilha
Esses céus tropicais alumiando.
"Meu Deus!" exalta a súplica fervente,
"Tu nos amas, a todos; condenado
Para si, pode estar teu filho errante,
Jamais será por ti abandonado.
"Todas as almas te pertencem, todas:
Ninguém se afasta, ó Deus Onipotente,
De teus olhos, nas asas matutinas,
Pois até lá no inferno estás presente.
"Apesar do pecado, da maldade,
Do crime, da vergonha e da amargura,
Da dúvida, e do mal - sempre ilumina
Teu meigo olhar a tua criatura.
Em teu ser, ó Princípio e Fim eterno !
Reata o fio dessa triste vida;
Oh ! muda, muda em cântico de graças
Esse grito infeliz da alma perdida !"
Aqui vai agora o original:
THE CRY OF A LOST SOUL
In that black forest, where, when day is done.
With a snake's stillness glides the Amazon
Darkly from sunset to the rising sun,
A cry, as of the pained heart of the wood,
The long, despairing moan of solitude
And darkness and the absence of all good,
Startles the travel1er, whit a sound so drear
So ful1 of hopeless agony and fear,
His heart stands still and listens like his ear.
The guide, as if he heard a death-bell toll,
Starts, drops his oar against the gunwhale's thole
Crosses himself. and whispers. - "A Lost Soul !"
"No, senhor, not a bird.
I know it well,
It is the pained soul of some infidel
Or cursed heretic that cries from hell.
"Poor fool! with hope still mocking his despair,
He wanders, shrieking on the midnight air,
For human pity and for Christian prayer.
"Saints strike him dumb ! Our holy mother hath
No prayer for him who, sinning unto death,
Burns always in the furnace of God's wrath !
Thus to the baptized pagan's cruel lie,
Lending new horror to that mournful cry,
The voyager listens, making no reply.
Dim burns the boat-lamp; shadows deepen round.
From giant trees with snake-like creepers wound,
And the black water glides without a sound.
But in the traveller's heart a secret sense
Or nature plastic to benign intent,
And an eternal good in Providence,
Lifts to the starry calm of heaven his eyes;
And 101 rebuking all earth's ominous cries,
The Cross of pardon lights tropic skies !
"Father of all !" he urges his strong plea,
"Thou lovest all' thy; erring child may be
Lost to himself, but never lost to Thee !
"All souls are Thine; the wings of morning bear
None from that Presence which is everywhere,
Nor hell itself can hide, for Thou art there.
Through sins oí sense, perversities of will,
Through doubt and pain, through guilt and shame
Thy pitying cry is on thy creature still. [and ill,
"Wilt Thou not make, Eternal Source and Goal !
In Thy long years, life's broken circle whole,
And change to praise the cry of  a lost soul!"
Feitas as devidas honras da casa, como devia e como podia, aos dois eminentes filhos das musas, passo a lançar os olhos aos acontecimentos da semana.
Dois assuntos preocupam atualmente o espírito público: os negócios do Rio da Prata e o casamento de Suas Altezas.
Parece que eu devia acrescentar: - e as eleições municipais. Fá-lo-ia sem reserva se acaso fosse assim; mas ninguém se preocupa atualmente com as eleições, que hão de ser feitas daqui a 15 dias.
Ninguém, digo mal; ocupam-se e preocupam-se os candidatos, isto é, um quinto da população, ao menos aqui na Corte. Fora desses, ninguém mais gasta dois minutos em pensar no voto que se há de dar no dia 7 de setembro, para renovar a primeira e a última das instituições de um país, como se exprime um grande escritor.
A um dos candidatos à vereança escrevi há dias um bilhete nestes termos: - "Quero um bilhete para assistir aos funerais do município. Espero igualmente ser o poeta escolhido para escrever o epitáfio do ilustre finado."
Quando este candidato me encontrou, dias depois, mostrou-se magoado pela liberdade das minhas expressões, e estranhou que eu desse por morto o município, cuja vitalidade demonstrava com as publicações dos jornais... a pedido.
- Olha, dizia-me ele ontem, mostrando-me a segunda página do Jornal do Commercio, vês esta infinidade de listas? Queres maior prova da vida do município?
- Meu caro, isso prova apenas a vida dos candidatos, não a do município. Se o município não está morto, está doente; a indiferença pública não pode ser maior do que é hoje. Se o povo se agita e comove na ocasião da eleição política, com igual razão devia comover-se e agitar-se na eleição municipal, porque a municipalidade é o poder que lhe fica mais à vista, aquele que mais direta e freqüentemente influi na satisfação das suas primeiras necessidades.
Poupo aos leitores o resto do meu discurso que, apesar de sensato, como se vê, não abalou o candidato; o que não me admirou - porquanto a vaidade dele exigia que o povo tomasse grande interesse na luta eleitoral, e que, naquele momento, debaixo de todos os telhados do Rio de Janeiro se discutisse o valor e o alcance de um nome tão distinto como o seu.
Et omnia vanitas.
Os leitores não exigem de mim a enumeração das causas múltiplas que originam esta indiferença pública. Creio, porém, que lerão com prazer algumas palavras com que vou auxiliar o espírito da futura Câmara.
A futura Câmara, para bem desempenhar os seus deveres e levantar a instituição do abatimento em que jaz, deve observar três preceitos. Esses preceitos são os seguintes:
1º. - Cuidar do município.
2.° - Cuidar do município.
3.° - Cuidar do município.
Se fizer isto, terá cumprido um dever, sem que daí lhe resulte nenhum direito à menor parcela de louvor, e contribuirá com o exemplo para que as câmaras futuras entrem no verdadeiro caminho de que - tão infelizmente - se hão desviado.
Não entrando nas preocupações do espírito público a eleição municipal, reduzem-se aquelas aos negócios do Rio da Prata e ao casamento de Suas Altezas; os negócios do Rio da Prata, pela situação extrema a que chegaram; o casamento, pela próxima chegada dos augustos noivos, segundo corre.
Aqui devo eu dizer qual é a situação do espírito do sr. presidente do Conselho.
S. Excia. vive atualmente sob a influência de dois grandes desejos - espécie de Prometeu, roído por dois abutres - um no fígado, como o antigo, outro no cérebro, abaixo da parte posterior e superior do osso parietal. Segundo a doutrina de Gall e Spurzheim, é neste último ponto que reside o órgão da vaidade.
Deseja o ilustre estadista : uma retirada e uma chegada; a retirada das câmaras e a chegada dos augustos noivos. Sua Excia. vê que no alto posto em que se acha colocado, não pode deixar de obter o sacramento da confirmação, e S. Excia. é muito bom católico para não ir em procura dele. Uma vez alcançado o sacramento, Sua Excia. que pode viver independente, mesmo das leis do dever constitucional, passará tranqüilamente a vara a outros, recitando o célebre verso de Sila:
]'ai gouverné sans peur, et j'abdique sans crainte.
A propósito do assunto guerreiro da semana, não quero esquecer-me de uma reflexão que ouvi a um deputado, orando há dias na Câmara.
- É necessário, dizia ele, que o Brasil tenha uma forte organização militar, porque é esse o. meio de fazer-se respeitar pelas outras potências.
Esta reflexão é de uma justeza irrepreensível, e mostra bem como estamos longe da denominação que aprouve a alguns poetas dar ao nosso século.
Ó força! ó divina força! - Quem é que teve a triste idéia de dar-te por morta, enterrar-te e embalsamar-te? Não és tu ainda  a grande razão, a ultima ratio do nosso tempo?
Despovoado o céu dos pagãos, tenho para mim que ainda lá ficaram dois deuses, aceitos pelo tempo, Mercúrio e Palas ; esta, armada em guerra. Assim, quando em janeiro.de 1863 se deu no nosso porto o fato das represálias britânicas, imagino que houve entre as duas divindades o seguinte diálogo:
“PALAS - Ah! o Império resistia, armava-se do direito contra as minhas fragatas! Respondia com altivez ! levantava a cabeça diante dos meus canhões! - Pois agora sofra as conseqüências do erro.
MERCÚRIO - Longe de mim, ó Palas, contrariar o teu justo ressentimento; mas lembro-te que, na desforra legítima que tomaste, fui eu quem sofreu. . . Respeito as tuas fragatas, por que não respeitarias os meus brigues?
PALAS - Mas o insulto que recebi? Ah! eles vão ver coisas bonitas...Londres os espera, Londres há de fazer ouvir a razão àqueles senhores.
MERCÚRIO - Ouso ainda, ó Palas, fazer uma observação. Se o teu conde Russell quiser levantar a grimpa, o que será de Manchester e Liverpool? E as fazendas de algodão? E a cerveja? E a manteiga? E o canhamaço? E a aniagem?
PALAS - E a força da força?”
A discussão continuou naturalmente por esse tom, até que Mercúrio, à força de representações e petições, conseguiu acalmar Palas, ficando tão amigos como dantes.
É naturalmente fundado neste diálogo, que o deputado a quem me referi, julga a organização militar um princípio econômico.
Esta situação dos povos armados para terem seguros os direitos, é a mesma situação dos habitantes de uma cidade que não dispensam as fechaduras das portas.
Duas coisas provam que ainda não chegamos ao progresso perfeito: as fechaduras e os tabeliães. Estas duas precauções contra os ratoneiros e os velhacos não existirão decerto no tempo em que uma verdadeira civilização tiver descido a este mundo. Isto não quer dizer que se suprima a fechadura - meio de segurança contra os ladrões corajosos - e o tabelião, garantia contra os ladrões de má fé,como não se pode ainda suprimir a fechadurazinha de vinte mil homens, para guardar a nossa casa americana.
Uma última observação antes de sair da Câmara.
Temos admirado todos o procedimento do sr. Lopes Neto que, a 16 ou 17 de janeiro, cumprimentou o ministério com um discurso de oposição decidida, e que daí para cá recolheu-se ao mais prudente silêncio.
Embora me acusem de excentricidade, devo confessar que a mim nada me admirou.
O ilustre deputado, tendo adivinhado o espanto causado pelo silêncio em que se mantinha, lançou agora mão de um meio curioso. Acompanha todas as discussões com um chuveiro de apartes, uns ministeriais, outros duvidosos, nenhum oposicionista.
Aproveitando um dos seus apartes, alusivo ao sr. ministro da Marinha e da Guerra,  eu direi que o ilustre deputado apareceu na Câmara armado de duas espadas, uma com que combateu o ministério ao nascer, outra com que o defende agora. Sua Excia., por uma singularidade, de que nos dá exemplos o sistema parlamentar, vira do avesso o sistema dos Abissínios: apedreja o sol ao nascer, para adorá-lo no resto da viagem.
É evidente que o sistema dos apartes, dúbios ou ministeriais, tem por fim fazer uma transição para os discursos positivamente ministeriais.
Entretanto, devo comunicar ao público a predileção que o sr. Lopes Neto tem pelos trocadilhos. Um dia, não me lembro em que discussão, pediram a palavra vários deputados. Entre eles estavam alguns de nome Brandão. Alguém que se achava nas galerias, com o ouvido alerta, ouviu ao sr. Lopes Neto as seguintes palavras a um colega :
- Esta discussão há de ser luminosa.
- Por quê?
- Porque estão inscritos todos os brandões.
O colega riu-se, e o sr. Lopes Neto também - o que me admirou bastante, porque achei o tal trocadilho muito medíocre, e sobretudo já octogenário.
Se me sobrasse tempo e espaço, discutiria aqui algumas opiniões do sr. senador Ferraz, acerca da imprensa, em um discurso publicado na semana passada. Ficará para a semana seguinte.
Também adio para a semana seguinte a apreciação do romance do sr. A. de Pascual, A morte moral, cujo 4.° volume acaba de chegar de Paris.
Os leitores já conhecem naturalmente o volume das fábulas do sr. dr. J. J. Teixeira, algumas das quais viram primeiro a luz nas colunas do Jornal do Commercio.
As fábulas do distinto poeta são geralmente engenhosas e conceituosas, cheias de muito sal cômico e muita propriedade. É sobretudo um fabulista brasileiro. Não faz falar somente o mundo animal, faz falar o mundo animal do Brasil.
Dou os meus sinceros parabéns às letras nacionais.
Foi também publicado o 4.° volume do Pequeno panorama, obra do sr. dr. Moreira de Azevedo.
O nome do sr. dr. Moreira de Azevedo é já conhecido do nosso público, por seus trabalhos de investigação histórica acerca dos monumentos do Rio de Janeiro.
Tão modesto quão talentoso, o sr. Moreira de Azevedo pertence ao número daqueles escritores que não almejam a fortuna das reputações pânicas. Esconde-se o mais que pode para trabalhar, investigar, - enfim, concluir a obra encetada há poucos anos sob o título de Pequeno panorama.
Esta obra deve ser aceita como um verdadeiro serviço público.
Só agora me chega às mãos o número da Cruz que foi distribuído ontem. Nada tem de novo, a não ser uma noticiazinha curiosa.
Diz a Cruz:
A repartição da caridade da irmandade da Candelária distribuiu pelas suas 600 pobres a quantia de 7: 000$ durante este último trimestre.
Leram, não? Pois bem: diz agora o evangelho de S. Mateus, capítulo V, versículos 2, 3 e 4:
2. - Quando derdes alguma esmola, não façais tocar diante de vós a trombeta, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo, esses já têm o devido prêmio.
3. - Mas quando derdes alguma esmola, que a vossa mão esquerda não saiba o que fez a vossa mão direita.
4. - A fim de que a vossa esmola seja em segredo, e vosso pai, que vê em segredo, vos dará a recompensa.
Apliquem el cuento.
Direi em último lugar que se apresentou no Teatro Lírico ao público fluminense o jovem pianista portuense Hernani Braga. Não o ouvi; mas todos são acordes em louvar a talentosa criança e predizer-lhe um futuro brilhante.
Unindo os meus aplausos aos de quantos o ouviram, acrescentarei uma reflexão:  importa muito para o futuro do menino Hernani que, gastando o maior tempo que puder, aperfeiçoe-se na arte para que nasceu, a fim de que, daqui a alguns anos, possa-se admirar, em vez de um, dois prodígios: um moço de talento e um moço de talento instruído.
Agora é força parar. Urge o tempo e manda o calor.
É o  agosto de mais feia catadura que tenho visto. Se é assim hoje, que será quando a folhinha de Laemmert nos disser que entrou oficialmente o verão?
Eu não sou como o cigano de Alvares de Azevedo:
SOU FILHO DO CALOR, ODEIO O FRIO.
Sou filho do inverno, ou antes irmão, pois que nasci com ele; sou profundamente inimigo desta estação contra a qual não há remédio, nem mesmo o Passeio Ppúblico - sobretudo o Passeio Público.
E com isto, deixo a trípode.
M.A.
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crônica  2
28 de agosto de 1864
Diário do rio de janeiro – Ao Acaso
                                                           a Câmara Municipal  e as  árvores da cidade do Rio de Janeiro
Mais alguns dias e está o ministério em férias.
Às férias ! às férias ! Livros para um lado, pedra para o outro, coração à larga, toca a saltar e a brincar, até que volte o tempo de entrar de novo no regime das sabatinas e das lições.
Até lá folgança e alma livre. O curso deste ano foi longo.
Durante oito meses andou o ministério de Herodes para Pilatos - do Senado para a Câmara, onde inventou uma maioria - da Câmara para o Senado, onde inventou um superlativo, por órgão do sr. Dias Vieira, com grave desgosto dos mestres da língua portuguesa.
Não sei por que guardaria eu este segredo que a posteridade pode ter a curiosidade de saber. O superlativo foi este:
- Não direi a este respeito, sr. presidente, mais COISÍSSIMA nenhuma.
Deste modo - ohl primogênita filha da latina ! - se um Vieira te ilustrou, outro Vieira te deslustra.
Mas, o que se não esquece com umas férias parlamentares? Aí vem o tempo dos lazeres e do recreio. Custa, mas há de chegar.
Todavia, nem sempre a ausência das câmaras traz tranqüilidade ao espírito do governo; se não há câmaras, há muitas outras coisas capazes de desesperar um santo, quanto mais o ministério que não é santo, o que, seja dito entre parênteses, verifica este dito de S. Francisco Xavier: - Que a igreja do diabo imita a igreja de Deus.
Por exemplo, aqui vai uma anedota. Disseram-me que num destes dias andou a Secretaria da Justiça numa verdadeira confusão.
Era meio-dia quando lá entrou o sr. Zacarias.[2] Parecia outro homem. Cabisbaixo, triste, meditabundo. Falava a todos, não falava a ninguém, porque mal dirigia uma palavra a qualquer, interrompia-se logo, antes de concluir.
De repente, apressava o passo, como se tomasse uma resolução súbita, depois voltava ao passo demorado com que entrara, tudo isso sem perder aquela graça única que faz de S. Excia. a Eufrosina ministerial.
                         .................... ses gardes affligés
                         imitaient son silence autour de lui rangés.
Sentou-se à mesa, assinou alguns papéis, ora em cima, ora em baixo, ora sobre a parte já escrita, e deste modo inutilizou grande soma de expediente.
Foi uma consternação geral. Choviam os comentários. Dizia um:
- Não tem que ver. Os negócios do Rio da Prata complicam-se; naturalmente o corpo diplomático estrangeiro mandou alguma nova nota coletiva, por insinuação do sr. Dias Vieira. Não é outra coisa.
Cochichava outro:
- Nada, não é isso. Inclino-me a crer que a legação inglesa insta pela emancipação geral dos africanos livres, e S. Excia. está agora entre a espada e a parede. A situação, na verdade, é difícil; mas S. Excia. é homem superior, patriota, et cetera ...
Acudia um terceiro:
- Quanto a mim, suponho que· S. Excia. Rompeu  com a maioria da Câmara. A maioria, naturalmente, quis governar, e S. Exeia. entende que ele é dono da fazenda, no que lhe acho razão. Verão que é isto.
Enfim, um quarto opinava por este modo: - Aposto o meu lugar em como S. Excia. está amofinado por outra coisa muito mais séria. Vê que a sessão legislativa está a findar-se, e que o orçamento não está pronto. Talvez não possa prorrogar a sessão, faute de combatttants.
Tais eram os comentários que circulavam nas salas e nos corredores; mas ninguém podia afirmar positivamente qual fosse o motivo de tanto alvoroço no faceiro cisne que dirige agora os negócios do Estado.
Pude investigar as coisas, e estou de posse do verdadeiro motivo, que é este :
S. EXCIA. TINHA PERDIDO UM BOTÃO DA CASACA.
Em aparência o motivo é frívolo, mas bem examinado é dos mais poderosos.
Motivo frívolo é a perda do concurso de dois ministros, o da Agricultura e da Guerra, o que faz do ministério (com perdão de quem me ouve), um ministério de pé quebrado.
Mas, como pelos domingos se tiram os dias santos, pode-se adivinhar o que fariam os ministros inválidos, por aquilo que fizeram e por aquilo que não fizeram.
Tenho já à mão um exemplo.
Uns fornecedores do arsenal de guerra incorreram em multas, não sei agora por que falta de condição. Requereram ao sr. ministro da Guerra para serem relevados das multas, e o ilustre ministro deu um despacho ... Ah! que despacho !I
Despachou S. Excia.:
"À vista das circunstâncias dos cofres públicos não tem lugar serem aliviados das multas. Cumprissem as condições do contrato se as não queriam pagar.”
Do que resulta:
1º. que não se dispensam multas quando os cofres públicos estão em penúria; .
2° que, quando nos cofres há dinheiro em abundância, o Estado distribui o caldo à portaria e perdoa todas as dívidas por sua conta e risco;
3.° que, se os fornecedores tivessem cumprido as condições não pagariam as multas, o que equivale a dizer que mr. de la Palisse
               Un quart d'heure avant sa mort
              Il était encore en vie.
Oh ! manes do cônego Filipe ! Não é verdade que este despacho vos está vingando das boas risadas que temos dado à vossa custa?
Ora, eu pergunto se, à vista deste despacho, à vista da nota Ad referendum do sr. Dias Vieira, à vista do artigo do código ressuscitado pelo Sr. Zacarias, pergunto se, à vista de tudo isto, pode o atual ministério ter a pretensão de dirigir seriamente os negócios do Estado?
Diz a isto o sr. Zacarias que as pastas ministeriais são as suas Termópilas, e que S. Excia. é o novo Leônidas - de modo que ninguém lá há de entrar enquanto viver um espartano que seja.
Esta resolução do sr. Zacarias e uma opinião do sr. senador Fonseca foram as duas coisas que mais me divertiram na semana passada.
O senador paulistano tratou da venalidade eleitoral. Denunciou que nas eleições se compravam votos, sem rebuço. Todavia, S. Excia. fez uma exceção à probidade ituana. Em Itu, conforme diz S. Excia., compram-se votos, é verdade, mas se o votante acha segundo comprador que lhe dá mais, aceita o segundo importe, e restitui o primeiro preço. A isto chama S. Excia. um fundo de probidade. Em português e boa moral chama-se - pôr a consciência em almoeda.
Desculpe-me a população ituana; eu falo pelas informações do ilustre representante de S. Paulo.
Tenho pressa em ver-me desde já livre dos assuntos da política amena.
Já reparei que alguns membros do parlamento costumam várias vezes suprimir os discursos nos jornais e nos anais, substituindo-os por estas palavras: “O sr. F... fez algumas observações....”
Qualquer que seja a insignificância das observações e a modéstia dos referidos membros do parlamento, como o parlamento não é uma academia onde se vão recitar períodos arredondados e sonantes, o país tem o direito de saber de tudo o que aí se diz, mesmo as observações insignificantes.
Porquanto, o fato da publicação dos discursos por extenso ou em resumo não tem por objeto mostrar que tal ou tal representante fala com elegância e propriedade, mas sim dar à nação o conhecimento da opinião que o dito representante manifestou e o modo por que a manifestou.
Isto quanto à razão de ser da publicação.Querem agora saber os inconvenientes deste sistema de supressão? Apliquemos a observação ao caso que me sugeriu este reparo, e que se deu há poucos dias com um sr. deputado na discussão de uma aplicação de lei.
O cidadão que reside, por exemplo, nos confins de Goiás, ao ver tão sucinta notícia dada pelo modesto deputado, diz consigo:
- Ah ! O sr. F. fez algumas observações sem declarar em que sentido ! Não se sabe, pois, como ele entende a aplicação da lei, de modo que pode, no caso de ser ministro, praticar inteiramente o contrário, sem que se lhe vá às mãos ! Ah ! o sr. F. é engenhoso ! o sr. F. é atilado ! o sr. F. é previdente !
E outras coisas que me parecem muito pouco agradáveis de ouvir.
Tudo isto se remediava se, em vez da sucinta notícia a que me referi, viessem as observações por extenso ou em resumo.
Enfim, para terminar com a política amena, o sr. Jobim orou de novo e declarou-se dotado de uma impassibilidade antiga diante dos insultos que recebeu de São Paulo.
S. Excia. refere-se à resposta que mereceu da Imprensa Acadêmica, a propósito do que ele disse dos costumes da faculdade de S. Paulo.
Tomo a liberdade de convidar S. Excia. a confrontar as suas apreciações com a resposta da Imprensa. Verá que, ao lado da linguagem digna e séria da Imprensa, as suas reflexões humorísticas fazem muito fraca figura.
Quer o sr. Jobim mais uma prova dos maus costumes da mocidade acadêmica de S. Paulo? Tenho diante de mim um folheto denominado: Uma festa da inteligência.
É escrito pelo sr. Belfort Duarte.
O sr. Belfort Duarte é membro efetivo e já foi orador de uma das sociedades que eu mencionei no folhetim antepassado, o Instituto Jurídico.
O dia 11 de agosto, aniversário da inauguração dos cursos jurídicos no Brasil, foi, como sempre, festejado em S. Paulo. O Instituto Jurídico festejou esse dia tão grato à família acadêmica. Essa festa é o objeto do folheto que tenho agora ante os olhos.
Talento brilhante e cultivado, espírito ardente e cheio de nobre entusiasmo, o sr. Bellfort Duarte comemorou a festa e o dia em algumas páginas que honram o seu nome e respondeu perfeitamente às esperanças da mocidade. Uma festa da inteligência não é só uma leitura simples, é uma página que se deve guardar, tão brilhante e vigoroso é o seu estilo, tão nobres e elevadas são as suas idéias.
O sr. Belfort Duarte, já o eu sabia, é daqueles talentos sérios e refletidos, cuja falange cresce e vigora cada dia, por bem do futuro do país.
Tal é o sr. Belfort Duarte, tal é a mocidade acadêmica, em que pese ao Sr. Jobim, que achou na defesa da Imprensa um insulto, e no seu discurso uma página oratória, - o que eu não contesto, se acaso é isso necessário ao sistema nervoso do ilustre senador.
Já lembrei as três condições essenciais que estão impostas à nova Câmara Municipal, a fim de que ela possa sobressair no meio das câmaras anteriores. Apontarei agora uma especialidade.
Os jornais reclamam todos os dias contra o abandono e o abuso a que estão condenadas as árvores plantadas em certos pontos da cidade. Tais são, por exemplo, as do Campo da Aclamação e as do Catete.
No Rio de Janeiro houve sempre horror às árvores. Ninguém pode explicar o fenômeno, mas ele existe. Infelizmente, tanto a população como a municipalidade acham-se animadas do mesmo sentimento, o que faz com que as árvores não possam medrar.
Todos sabem em que estado se acham, por exemplo, as árvores do bulevar Carceler, hécticas e dilaceradas, graças ao horror de que falei acima.
Já estou a ouvir daqui uma pergunta infeliz: - Se a Câmara Municipal tem horror às árvores, como as faz plantar? - Ao que eu respondo: - Se a Câmara Municipal não tem horror às árvores, por que as não faz conservar?
Estas observações foram-me sugeridas durante um passeio que eu dei anteontem à noite no terraço do teatro de S. Pedro, contemplando o plantio do largo e descrevendo na imaginação o estado em que havemos de vê-lo ainda, mais dia menos dia.
Dei o referido passeio no terraço do teatro de S. Pedro, enquanto se cantava o primeiro ato do Ernani, por não ter podido penetrar na sala.
Ah ! é que estava cheia a deitar fora. Todos quantos gostam da ópera italiana lá se achavam, levados por dois motivos - a ópera e a companhia.
Esta companhia foi entusiasticamente aplaudida na Bahia, onde esteve durante três meses.
Aqui veio encontrar outra no teatro lírico; mas, confiando em si e nos recursos de que podia dispor, conseguiu instalar-se no teatro de S. Pedro.
Não se enganou a companhia nas esperanças que nutriu; o acolhimento foi entusiástico e o sucesso dos mais completos. Dizer que o mereceu é confirmar a opinião do público escolhido que lá esteve.
Todos os artistas foram chamados à cena; especialmente prenderam a minha atenção, a sra. Tabachi e o sr. Pozzolini, soprano e tenor. A sra. Tabachi, apesar de comovida e incomodada, como se achava, mostrou possuir uma voz pura, simpática e maviosa. O sr. Pozzolini pôde revelar os grandes recursos de que dispõe e a bela voz de tenor que possui. Tanto o sr. Nerini, baixo, como o sr. Bonetti, barítono, mereceram, como já disse, sufrágios de verdadeira simpatia.
Alguns pedaços foram cantados de modo a arrebatar o público.
A sra. Francisca Tabachi não tem só a voz de que falei, é igualmente dotada de uma figura graciosa e de um rosto simpático. É positivamente um tipo de brasileira, parecendo ao vê-la, que a um tempo lhe embalaram o berço as brisas de Sorrento e as brisas da Guanabara.
Tão belos olhos e tão gracioso semblante explicam o amor de Ernani e os acontecimentos da tragédia.
Não só o mérito da companhia convida a concorrência; acrescem outras razões: a companhia nada percebe dos cofres públicos, confia unicamente em si; e, segundo sou informado, o sr. Merciaj associou à sua empresa um cavalheiro, patrício nosso. Enfim, possui um regente de orquestra, o sr. Bezanzoni, perfeito conhecedor das funções que exerce.
Pode-se dar como certo que o público concorrerá aos espetáculos da nova companhia. Os que ainda não viram, vão vê-Ia, que não se hão de arrepender.
Aí chega a Cruz; cessa tudo.
A Cruz dedica-me trinta e uma linhas, como resposta ao meu folhetim passado.
No folhetim passado transcrevi uma notícia da Cruz, e um texto do evangelho de S. Mateus. A notícia dava parte das esmolas feitas pela associação de caridade da Candelária, e o texto de S. Mateus recomendava o segredo de tais atos, para não imitar os hipócritas das sinagogas.
A esta simples confrontação responde a Cruz que ela não tem nada com a associação da Candelária; que, portanto, S. Mateus não escreveu para ela; finalmente que a boa razão lhe manda publicar as boas obras dos outros para terem imitadores.
Ora, para fazer a confrontação entre a notícia da Cruz e S. Mateus, eu fundava-me neste raciocínio : a Cruz escreve-se e distribui-se na Candelária, os redatores pertencem àquela igreja; logo, é claro que, havendo ali uma associação de caridade, os redatores da Cruz fazem parte dela, porque, mesmo que eles tenham um pão, é natural que o repartam com os pobres, não sendo possível acreditar que eles assistam impassíveis às esmolas que se lhes fazem nas barbas.
Isto posto, publicar os benefícios da associação é publicar os próprios benefícios.
Em vez de explicar estas coisas, a Cruz responde com aquela violência habitual, tão longe da mansidão evangélica. Não é nova, nem particular à freguesia da Candelária. Mas não há nada que irrite um homem como eu, que está disposto a divertir-se com todos os ridículos políticos, clericais, ou simplesmente humanos.
O que é certo é que eu tenho a vaidade de supor que já vou melhorando a Cruz; a respeitável folha da Candelária já não apresenta aquelas notícias e observações com que eu procurei distrair muitas vezes os meus leitores.
Isto mesmo - escrevendo ao acaso , meus caros amigos da Cruz.
Até domingo.
                                                                                                                               M.A.
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crônica  3
15 de setembro  de 1864
Imprensa acadêmica - Correspondência da Imprensa Acadêmica[3]
  a quebra de Souto & Cia., crise econômico-financeira; preocupação política;
andamento da eleição municipal
Corte, 11 de setembro de 1864.
Antes de passar a outras notícias tratarei de uma crise atual, de uma crise de ontem e que durará ainda alguns dias.
A praça do Rio de Janeiro está debaixo de um terror pânico. Ontem a rua Direita apresentava um espetáculo único. Regurgitava de novo. As casas dos banqueiros estavam invadidas, todos retiraram, as suas quantias, e os empregados mal podiam aviar tantos fregueses.
Pouco depois chegou o Chefe de Polícia, comandante Drago, acompanhado de tropa a pé  e a cavalo (uns oitenta homens). Enfim chegou a noite.
                        Et le combat finit faute des combattants
O que motivou tais acontecimentos ?
- A Casa Antonio José Alves Souto & Cia. suspendera os pagamentos !
Esta notícia percorreu a cidade com a rapidez de um raio; foi um alarma geral. Então, como sempre acontece, quem viu as barbas do vizinho a arder põe as suas de molho; quem tinha dinheiro nas outras casas bancárias foi logo retirá-lo, com medo que o desastre se estendesse a elas. Pagaram os santos pelo pecador ; santos e pecador entram aqui por metáfora.
Dos fatos que motivaram a suspensão de pagamentos na Casa do Souto, nada sei de positivo. Correm diferentes versões. Dizem uns que se protestara uma letra do Souto de 900 :000$000; outros que fora do Banco do Brasil querer sacar um cheque sobre a Casa do Souto mas que este não pudera pagar. Enfim pessoa de casa do Souto afirma que o fato tem causas muito removíveis e que a seu tempo serão conhecidas do público.
O que é certo é que houve a suspensão de pagamentos.
Um caso destes é importante e compreende-se o terror da praça.
Ontem mesmo reuniu-se o Ministério para tratar das medidas a empregar numa crise como esta.
O Banco do Brasil também se reuniu.
Não sei o que se passou nestas duas reuniões. O que sei é que hoje foi o ministro da Fazenda ao Banco e creio que também á praça, porque a praça está aberta hoje domingo e cheia de povo.
Todos sabem que em 1857 foi  o Governo quem salvou a praça numa crise semelhante.
Tal é rapidamente o estado da crise. Não se sabe o que acontecerá ainda, e todos esperam ansiosos o que acontecerá amanhã .
Não passarei ainda a outras notícias sem referir uma pequena ocorrência.
Jogava-se ontem à noite no Club. Como era natural, a crise foi o objeto das conversações. Mas entre os frequentadores havia um que de nada sabia. Estava jogando quando lhe disseram que o Souto suspendera os pagamentos. O homem deixou cair as cartas, e exclamou dolorosamente :
- Estou pobre !
Tinha lá oito contos.
Que triste começo de noite para quem ia procurar lá uma diversão ao espírito. Pois esta foi a impressão geral de quantos tinham capitais na Casa do Souto.
Vamos agora a outras notícias :
Por um dos paquetes passados mandei uma pequena Correspondência narrando as ocorrências políticas que derrubaram o Ministério de 15 de janeiro. Dei igualmente notícia de que se organizara. um novo Ministério, sob a presidência do sr. Furtado.
Dizia que o deputado J.[oaquim] M.[anuel] de Macedo estava com a pasta dos Negócios Estrangeiros. Tal foi com efeito a primeira combinação. Mas o sr. Macedo estava em Itaboraí e não havia chegado ainda, de modo que o Ministério apresentou-se às Câmaras com um ministro de menos, ficando a pasta dos Estrangeiros a cargo do ministro da Fazenda.
No dia 2 chegou o sr. Macedo e declarou que não aceitava.Nenhuma instância o demoveu desse propósito.
Começou-se então a procurar um novo ministro dos Negócios Estrangeiros. Convidaram ao deputado Pedro Luis, mas este não aceitou. Até agora não se falou mais em ninguém.
O Ministério foi bem recebido pela Câmara, sem entusiasmo é verdade, mas com certa cordialidade que talvez aproveite melhor ao novo Gabinete e ao país. Todos confiam no novo presidente do Conselho.
As Câmaras estão a fechar-se ; é no dia 12 que termina o prazo da prorrogação. Mas o orçamento ainda está no Senado e portanto não há orçamento este ano. Triste resultado do Ministério Zacarias !
Esquecia-me dizer que na Câmara só se apresentou um oposicionista : o sr. Dantas, da Bahia.
A eleição municipal corre bem. Vai por enquanto vencendo o lado liberal. Lado liberal é um modo de dizer, eu devia dizer : vão vencendo os liberais, porquanto não houve nesta eleição organização política compacta.
As festas da Independência fizeram-se como de costume.Assistiram a elas os príncipes, dois mocetões de agradável presença.
Os nossos augustos hóspedes já tem andado seca e meca. Já foram ao Corcovado, ao Passeio Público, ao Jardim Botânico, às fortalezas, enfim  não param nunca.
O  conde d'Eu é o  mais vivo. Já consegue falar português e fala-o de preferência. Quando lhe deram jantar à a européia, declarou que não queria, e que preferia cozinha brasileira. Isto é o  que dizem.
Não se sabe por hora quando é o  casamento; mas conta-se que será breve.
Eis em resumo as notícias mais importantes. Até outro vapor.
N.B. - Veja o  que é a pressa. Esquecia-me mencionar uma matéria importante. Estreou já a Emilia das Neves. Muitos aplausos; entusiasmo. O vapor está a partir ; não posso dizer mais.
                                                                                                                                 Sileno
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crônica 4
19 de setembro de 1864
Diário do rio de janeiro– Ao Acaso
eleições para a Câmara Municipal
Crise! Crise! Crise!
Tal foi o grito angustioso que se ouviu, durante a semana passada, de todos os peitos da população e de todos os ângulos da cidade.
A fisionomia da população exprimiu sucessivamente o espanto, o terror, o desespero --conforme cresciam as dificuldades e demorava-se o remédio.
Era triste o espetáculo : a praça em apatia, as ruas atulhadas de povo, - polícia pedestre a fazer sentinela, polícia eqüestre a fazer correrias - vales a entrarem, dinheiro a sair, vinte boatos por dia, vinte desmentidos por noite - ilusões de manhã, decepções à tarde - enfim uma situação tão impossível de descrever como difícil de suportar - tal foi o espetáculo que apresentou o Rio de Janeiro durante a semana passada.
Mas, se uns davam à crise esta feição e esta gravidade, outros - no desejo de aliar o zelo da lei e a salvação pública, viam na crise um alcance menor, e conseguintemente não aconselhavam o emprego de remédios heróicos.
Os remédios heróicos, que uns aconselharam e outros combatiam, eram medidas aplicadas pelo Governo, conforme o extraordinário da situação. Tais remédios, dizia-se, terão a virtude de atalhar o mal e acalmar os espíritos.
Os que pediam isto fundavam-se no princípio de que não se cura um cancro com água de malvas.
E fundavam-se igualmente na moral idade da seguinte anedota :
Um homem achava-se encerrado em uma sala. Cai uma vela e comunica o fogo a uma cortina. Ele procura extinguir o fogo, mas não pode; as chamas devoraram em poucos segundos a cortina, começavam a tisnar uma porta, e já lambiam o teto. Vendo a gravidade do perigo, o homem corre à porta da saída, mas desgraçadamente estava fechada; procura a chave sobre as mesas e cadeiras, nos bolsos, na secretária, e nada !
Entretanto, o fogo lavrava com intensidade.
Aturdido, e não querendo gastar mais tempo em procurar a chave, o infeliz chega à janela e grita por socorro.
A tempo o fez, porque exatamente passava nessa ocasião um homem que ouviu o grito e subiu.
Quando o infeliz sentiu que o salvador estava do outro lado da porta, gritou:
 - Fogo! Fogo!
- Espere um pouco, respondeu o outro.
- Arrombe a porta!
- Não; é preciso ver uma chave. Com chave é que se abre uma porta. Tenho algumas comigo, vou ver uma por uma - vejamos esta: é muito grande. Outra: nada! Bem. Outra : não entra!
- Cresce o fogo, arrombe a porta por favor!
- Não arrombo! - mais uma chave: esta há de servir. Mau ! não dá volta. Ah! Aqui vai a última : não serve.
- Por favor, arrombe a porta!
- Mas depois?
- Depois, fica arrombada até que se extinga o fogo; não faz mal; posso daí em diante fechá-la com uma tranca de pau, até que cheguem os ferreiros para consertar a fechadura. Depressa ! depressa ! o fogo está a alguns palmos de mim!
- Meu caro, está salvo.
- Ah!
- Está salvo, fazendo ato de contrição e encomendando a alma a Deus. Eu não abro as portas senão com chaves; quando não tenho chaves não arrombo as portas.
Ora, o homem morreu, e a casa ficou reduzida a um montão de cinzas.
Era o caso da crise comercial. É sempre conveniente abrir uma porta com chave, mas nos casos de incêndio, em não havendo chave, duvido muito que se possa recorrer a outro meio que não seja o arrombamento.
Felizmente, o Governo, auxiliado pelas vozes generosas da imprensa e pelo voto esclarecido do Conselho de Estado, compreendeu a magnitude da situação e aplicou o meio extraordinário do arrombamento, certo de que os ferreiros consertarão depois a fechadura.
Uma crise como esta não dá lugar a nenhum outro acontecimento. Tudo passou desapercebido. A crise era o último pensamento da noite, e o primeiro pensamento da manhã. Era o assunto obrigado das conversações nas ruas, nos cafés, nos jornais.
Aqui, esquecendo a gravidade das circunstâncias, devo mencionar um fato que prova em favor de um rifão popular : - em tempo de guerra, mentira como terra.
Correram mais mentiras em uma semana de crise, do que costuma correr em um ano de circunstâncias normais.
Era algum espirituoso que as inventava?
Era a interpretação exagerada que se dava a  alguns boatos fundados? Não sei, talvez uma e outra coisa; mas o certo é que, de meia em meia hora, todas as bocas repetiam, com a maior sinceridade e convicção, os boatos mais incongruentes e as mais inconsistentes asseverações.
Mas, no meio de tantas asseverações e conjeturas, foi agradável de ver que nada se articulou contra a casa, cuja falência produziu a crise. De ordinário, as coisas passam-se de outro modo: também as ovações do infortúnio têm os seus apedrejadores. Doença humana  - vocação de apedrejar.
A crise trouxe o fechamento dos teatros.Não se repetiu por isso, na quinta-feira, “A mulher que deita cartas”, com Emília das Neves.
Ainda não tive ocasião de falar aos meus leitores acerca de Emília das Neves no papel de Geméia, naquele drama.
O drama, como se sabe, foi um drama de ocasião e feito por encomenda imperial. Tira o assunto do fato do pequeno Mortara. Segundo se disse então, Napoleão III encomendara a composição de uma peça em que aquele episódio servisse de base. Disse-se mais que, além do autor confesso, outro havia da própria casa do Imperador. A presença deste no espetáculo confirmou os boatos.
Isto basta para predispor contra a peça a crítica sensata. Naquelas condições não se faz drama, faz-se panfleto. Encomenda não é arte.
Todavia, se no caso atual a gente não ouve uma peça literária, também não ouve o que conta ouvir: argumento em vez de diálogo, silogismo em vez de lance dramático. Ganha-se sempre alguma coisa.
A moral idade da “Mulher que deita cartas” é a tolerância religiosa; a peça acaba quando a mãe cristã e a mãe judia confundem as suas lágrimas sobre a cabeça da filha comum.
Este desenlace, que eu esperava ver ontem combatido na Cruz, se a Cruz não tivesse suprimido o número de ontem, tranqüiliza e alivia o espírito das fortes comoções que recebe durante a peça.
O interesse consiste na perseverança com que a mãe judia procura a filha adotada pela mãe cristã, e, uma vez encontrada a filha, na luta entre as duas mães, no conflito doloroso entre o amor da educação e o amor da natureza.
Apesar da importância relativa dos outros papéis, Geméia é a personagem que nos atrai mais a atenção.
Li a peça a fio, e creio poder julgá-la em breves palavras.
Geméia devia ser a um tempo a mulher judia e a mulher humana. Tenho visto muitas judias em cena; o erro capital dos autores está em reunir nas suas heroínas todos os distintivos do caráter judeu, sem cuidar em lhes dar um coração humano.
Ora, Geméia poucas vezes é mulher, mas é sempre judia. De princípio a fim, procura com amor, com perseverança, com desespero, a filha de suas entranhas, mas em tudo isso está longe de ser a Raquel das Escrituras ou a Hécuba de Eurípides.
O enunciado basta para reunir muitos votos à minha opinião. Não descerei a minuciosidades. Vê-se em geral que o autor da peça tem presente o contrato da encomenda, e busca fugir ao movimento natural para ceder à necessidade de produzir tal efeito, ou chegar a tal conclusão.
Em prova disto citarei apenas a cena capital do drama, aquela em que as duas mães levam a filha à situação de escolher uma ou outra. É uma cena absurda e fora da natureza. Não negarei que há aí lugares tocantes e expressões pungentes; mas isso não legitima a totalidade da cena, nem justifica a existência do lance.
Feitos estes reparos ao drama, confessarei que alguns pontos foram aplaudidos com justiça.
Emília das Neves desempenhou o papel de Geméia.
Tendo já conhecimento do drama, direi que, apesar do imenso talento da artista, receei que nem sempre pudesse triunfar das escabrosidades do papel.
Mas então esquecia-me de que muitas vezes os artistas realçam as obras, dando relevo às belezas secundárias, ou criando novas belezas nos lugares em que elas são inteiramente nulas.
Ouvi a peça até o fim, e, se me devesse guiar pelos aplausos, outro seria o meu juízo. Os aplausos não pagaram o merecimento. Emília das Neves confirmou plenamente a apreciação feita neste mesmo lugar por ocasião de “Joana doida”.
Uma arte consumada dá-lhe os meios de tudo criar e colorir tudo. Ou exprima um sentimento, ou acentue uma palavra, ou faça um gesto, vê-se que ela sabe realizar a difícil e rara aliança da arte e da natureza.
O papel de Geméia tem, como disse, defeitos capitais. O talento da artista pode disfarçar esses defeitos, e dar-lhe, não o interesse da curiosidade, mas o interesse da humanidade.
Em mais de uma cena subiu ao patético; teve gritos de leoa para as agonias supremas, teve lágrimas tocantes para as dores do coração; soube ser mãe e mulher.
Familiar aos grandes efeitos da cena, Emília das Neves emprega-os com a discrição necessária para não cair das alturas da natureza e da arte. Sombria ou radiante, irada ou terna, amorosa ou odienta, ela sabe que, em cada uma dessas fases do sentimento, a arte exige um toque ideal.
As duas peças representadas bastam para julgá-la. Dizem que as duas peças que ainda falta representar são de gênero diverso, de modo a mostrar ao público as diferentes faces do talento da artista. Cita-se as “Proezas de Richelieu”, em primeiro lugar, e depois a “Dama das camélias” ou a “Judite”. Eu preferia a “Judite”, não por supor que o seu talento, tão variado como é, não possa reproduzir a paixão de Margarida Gauthier; mas pelo desejo de vê-la calçar o coturno trágico e brandir o punhal de Melpómene.
A representação da “Mulher que deita cartas” teve lugar antes da crise. Como disse, durante a semana passada, o teatro esteve fechado por ordem superior.
É que realmente aquele acontecimento absorvia todos os outros. Até a própria eleição concluiu-se no meio da indiferença geral.
A apuração de todos os sufrágios do município está feita. Acha-se, portanto, composta a nova Câmara Municipal; acha-se composta de novos homens, uns conservadores, outros liberais - estes em maioria.
Já tive ocasião de manifestar os meus desejos de que a nova câmara realize os desejos de todos os munícipes.
Esses desejos limitam-se a que trate do município seriamente, acudindo às suas necessidades mais urgentes, empregando utilmente as suas rendas, melhorando o pessoal do seu serviço, corrigindo ainda, se for preciso, os regulamentos a que está sujeito esse pessoal, de maneira que o clamor público venha a calar-se, e a cidade e os seus subúrbios possam viver contentes e felizes.
Por exemplo, não haverá um melhor sistema de limpeza da cidade, em virtude do qual não ande a gente condenada, - em tempo de chuva, à lama, - em tempo de sol, à poeira?
Não haverá um meio de vigilância que venha garantir as árvores plantadas em vários pontos da cidade, do vandalismo que as torna hécticas e mofinas? E na transplantação dessas árvores não convirá consultar os meios que a ciência fornece para que das cicatrizes produzidas rio ato da transplantação não lhes resulte a morte certa?
Tais são alguns dos inumeráveis pontos para que se espera que a nova Câmara Municipal atenda, a fim de produzir todos os bens que promete e que se lhe devem exigir.
Aqui devia eu acabar se não houvesse de dar uma notícia grata para as letras.
Um jovem acadêmico de S. Paulo acaba de publicar um livro de versos. Chama-se o livro Vozes da América, e o poeta  Fagundes Varela.
Varela é uma vocação poética das mais robustas que conheço; seus versos são inspirados e originais. Goza na Academia de S. Paulo, e já fora dela, de uma reputação merecida ; as esperanças que inspira, ele as vai realizando cada dia, sempre com aplauso geral e singular admiração.
Ainda não vi as Vozes da América. Mas por cartas e jornais de S. Paulo sei que é um livro, não só digno irmão dos que Varela publicou anteriormente, mas ainda um notável progresso e uma brilhante promessa de outras obras de subido valor.
Apenas receber o volume, hei de lê-lo, e direi com franqueza e lealdade aos leitores o que pensar dele. Estou certo de bater palmas.
                                                                                                                             M.A.
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crônica  5
25 de setembro  de 1864
Imprensa acadêmica - Correspondência da Imprensa Acadêmica
conclusão da eleição na cidade do Rio de Janeiro ;
 formação da  nova Câmara Municipal
Corte, 21 de setembro de 1864
Na minha passada “Correspondência” dei notícia do começo da crise comercial.
O abalo público acha-se felizmente desfeito graças às medidas tomadas pelo Governo, a instâncias de alguns jornais, do Conselho de Estado e do comércio.
Mas antes que isto se alcançasse, andamos durante uma semana atordoados e apavorados.
Como disse, a suspensão de pagamentos por parte da Casa Souto & Cia. deu lugar à crise. As outras casas bancárias foram logo atacadas por todos os portadores de vales que retiravam os seus capitais. Foi preciso intervir a polícia, a cavalo e a pé. As ruas Direita, da Alfândega e Sabão, estavam atalhadas de povo, desde a manhã até a noite. A praça não fazia uma operação que fosse. A alfândega tinha um rendimento ridículo e em um dos dias foi obrigada a fechar-se. Tal foi o estado da capital durante uma semana.
A desconfiança crescia porque, além da falta de medidas adequadas, cada dia marcava, não uma, mas seis e oito quebras.
Quebraram as principais casas. E não parava aqui, quebravam os banqueiros. Hoje os banqueiros Souto, Gomes, Montenegro e Oliveira Belo vão entrar em liquidação.
Entretanto a imprensa e o Diário do Rio à frente, pediam urgentes medidas. O Correio Mercantil e o Constitucional divergiam da opinião dos outros jornais, dizendo que o Governo não podia nem devia tomar medidas, porque elas seriam ilegais.
O Governo começou por expedir dois decretos, um alargando a emissão do Banco do Brasil, e outro dando curso forçado às suas notas.
Mas estas medidas não eram suficientes. A imprensa e a comércio continuavam a insistir. Finalmente, o Banco do Brasil, o Banco Hipotecário, o Banco Português, o Banco Inglês e os banqueiros ainda não quebrados reuniram-se e representaram instando com o Governo para que salvasse a praga e o povo , indicando-lhe algumas medidas.
O Governo fez reunir-se duas vezes o  Conselho de Estado, às 7 horas da manhã, e às 9 horas da noite, do dia 16. O Conselho de Estado foi unânime no voto de que o Governo devia adotar as medidas indicadas pela representação.
Assim, no dia 17 apareceu o seguinte decreto , assinado por todos os ministros e secretários de Estado :
           "Atendendo a suma gravidade da crise comercial, que domina atualmente a praça do Rio de Janeiro, perturba as transações, paralisa todas as indústrias do país, e pode abalar profundamente a ordem pública, e a necessidade que há de prover de medidas prontas e eficazes, que não se encontraram na legislação em vigor os perniciosos resultados que se temem de tão funestas ocorrências. Hei por bem, conformando-me com o parecer unânime do Conselho de Estado decretar :
            Art. 1.° Ficam suspensos e prorrogados por  60 dias, contados do dia 9 do corrente mês, os vencimentos das letras, notas promissórias e quaisquer outros títulos comerciais pagáveis na Corte e província do Rio de Janeiro ; e também suspensos e prorrogados pelo mesmo tempo os protestos, recursos em garantia e prescrições dos referidos títulos.
             Art. 2.° São aplicáveis aos negociantes não matriculados as disposições do art. 898 do Código Comercial, relativa às moratórias ; as quais bem como as concordatas, poderão ser amigavelmente concedidas pelos credores que representem dois terços no valor de todos os créditos.
              Art. 3.° As falências dos banqueiros e casas bancárias, ocorridas no prazo de que trata o art. 1.°, serão reguladas por um decreto que o Governo expedirá.
             Art. 4.° Estas disposições serão aplicadas a outras praças do Império por deliberação dos presidentes de Província.
             Art. 5.° Ficam revogados provisoriamente as disposições em contráario. 
             Os meus Ministros e Secretários de Estados dos negócios das diversas repartições, assim o tenham entendido e façam executar.
              Palácio do Rio de Janeiro, em 17 de setembro do ano de 1864, 43º. da Independência e do Império -- Com a rubrica de Sua Majestade o Imperador. - Francisco José Furtado - José Liberato Barroso - Carlos Carneiro de Campos - Henrique de Beaurepaire Rohan - Francisco Xavier Pinto Lima - Jesuino Marcondes de Oliveira e Sá."
Este decreto serenou os ânimos ; começa a restabelecer-se a confiança, e o único banqueiro que era ainda anteontem perseguido, o sr. Bahia, já ontem não teve muitos vales a pagar.
Em todo este negócio o deputado Saldanha Marinho, tanto na imprensa, como pelos conselhos parciais, tomou grande parte e mereceu por isso as simpatias do público e da praça.
Mas, golpe sobre golpe ; resolvida a crise, cá ficamos com a questão do Rio da Prata.
Chegou de Montevidéu na fragata “Amazonas” os srs. Saraiva e Tavares Bastos.
O Governo Oriental tinha mandado os passaportes ao sr. Loureiro, nosso ministro residente, e aos cônsules e vice-cônsules brasileiros.
Pela nossa parte, já o Governo mandou fazer o mesmo aos cônsules orientais.
O Exército brasileiro, segundo parece, vai entrar no território da República.
O caso que motivou a cólera do governo de Montevidéu, foi a perseguição feita por um dos nossos vasos nas águas do Uruguai contra um dos seus vapores.
Está concluída a eleição municipal. A nova Câmara acha-se composta do seguinte modo :
1. dr. Batista dos Santos  ..............................................5061
2.dr. Bezerra de Meneses ..............................................881
3. dr. Dias da Cruz ........................................................612
4. dr. José Pereira Rego ................................................172
5. tenente-coronel Frias .............................................. 4149
6 . Tavares Guerra .........................................................056
7. dr. Claudino José Viegas ......................................... 3791
8. dr. Fontes ..................................................................3777
9. dr. Monteiro dos Santos .........................................3667
10. Bento Barroso Pereira............................................3471
11. Leite Junior ............................................................3442
12. Santos Peixoto ...................................................... 3366
13.dr. Costa Lima ...................................................... 3130
14.dr. Queiroz ............................................................2535
15.Bitencourt da Silva.................................................2443
16.José Bernardo da Cunha .......................................2372
17.M. Dias da Cruz .....................................................2046
18.Fragoso ...................................................................1968
Estão oficialmente pedidas as nossas princesas. Casa S.A. Imperial D. Isabel com o conde d'Eu, e S.A. D. Leopoldina, com o duque de Saxe. O casamento efetua-se a 15 ou 18 de outubro.
Os dois príncipes têm visitado tudo ; são infatigáveis, o que vai perfeitamente com o espírito ativo de Sua Majestade o Imperador.
O conde d'Eu, sobretudo, tem merecido as simpatias gerais. Supõe-se que D. Fernando vira até cá.
É por ora o que há de mais importante. Se ocorrer alguma coisa antes de partir o vapor ,  aqui lhe direi.
                                                                                                                             Sileno
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[1] Sob este título, Machado publicou, no Diário do Rio de Janeiro ,uma série de  42  crônicas ,com intervalos de uma semana, de  5 de junho 1864 a  16 de maio 1865, sempre com a assinatura M.A.

[2] Zacarias de Góis e Vasconcelos ,político ,foi presidente das províncias do Piauí, Sergipe e Paraná, deputado provincial ,presidente da Câmara dos Deputados, deputado geral, senador,ministro da Marinha, da Justiça, da Fazenda ,presidente do Conselho de Ministros por três vezes(maio 1862; jan.-ago 1864; ago 1866- jul. 1868).


[3] Na Imprensa Acadêmica, jornal “comercial, agrícola, noticioso e literário”, dos estudantes de São Paulo,que circulou de 1864 a 1871, Machado  colaborou com crônicas e artigos sob as rubricas “Correspondência”, “Correspondência da Corte” e “Correspondência da Imprensa Acadêmica” – e em 1868 – sob a rubrica  “Correspondência da Imprensa Acadêmica”– todas com  pseudônimo Sileno ,exceto a de 20.08.1868  com pseudônimo Glaucus.

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