Lima Barreto e o Futebol
terça-feira, 30 de outubro de 2012
LIMA BARRETO, 90 anos -- III
no dia 1 novembro de 1922 -- portanto há 90 anos -- morria Lima Barreto. qual um réquiem, apresentam-se aqui,a cada dia desta semana, claves temáticas às quais ele dedicou muito de suas reflexões,suas críticas
Por trás da oposição crítica barretiana estava muito mais do que uma
questão literária ou mera contestação do papel de redenção social que Coelho
Neto atribuía ao futebol: Lima via nele um fator de degeneração da cultura e da
política nacional, pois patrocinava uma injusta e gritante diferenciação social
e regional, como declarou em entrevista ao Rio-Jornal em 13
de março de 1919 :“ – Está aí, uma grande
desvantagem social do nosso foot-ball.
Nos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram
apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e
profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do ponta-pé
propaga sua separação e o governo o subvenciona . “
,seus escritos.
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Lima Barreto e o Futebol
Lima Barreto e o Futebol
N
a efetiva contramão de um contexto de franco,amplo entusiasmo em torno do futebol -- não apenas entre o público mas em especial literatos e intelectuais,no que destacava-se Coelho Neto-- emerge Lima
Barreto e seu inquebrantável repúdio ao
futebol. O repúdio barretiano ao futebol integrava-se à ojeriza visceral e
irredutível ao estrangeirismo, a tudo que fosse alienígeno à nacionalidade
--vistas também como ‘estrangeiras’ as elites republicanas. Via a sociedade
brasileira como o fruto da combinação de distintas etnias, mestiçagem essa que
atingira grau elevado de intimidade e adaptabilidade á natureza tropical;
abominava por isso a preocupação obsessiva das elites em fomentar e transmitir a imagem de uma
‘nação branca e civilizada’, fato que as tornava tão estrangeiros quanto os
europeus e americanos “ invasores, as mais das vezes sem nenhuma cultura e
sempre rapinantes.”.
Na crítica à violência gerada pelo futebol dentro e fora dos campos,
inseria-se também em sua crença e pregão dos ideais de fraternidade, harmonia e
paz entre os homens; na crítica aos
elitismo, sectarismo e exclusão
social promovidos pelo futebol, a manifestação de sua ideologia
anarquista-maximalista; e ainda , na essência mesmo do futebol,
encontrava-se a figura de Coelho Neto,
epígono e personificação da escrita/linguagem ‘empolada, de expressões cediças
e figuras de efeito, cheias de arabescos estilísticos’, expressão da
frivolidade e mundanismo então prevalecentes. Sobretudo o futebol como exemplo
da pretensa, falsa e “obtusa” (sic) modernização preconizada e pretendida pela,
segundo ele, “nefanda República
Lima Barreto alinhava-se entre
“os tantos inimigos que pela imprensa o combatem” e que logo passou a
fazer do futebol um de seus temas prediletos nas páginas da imprensa carioca. Com
espaço e reconhecimento já assegurados nos círculos literários , com
três romances e uma infinidade de crônicas,
Lima inaugurou seus ataques em 15 de agosto de 1918 no artigo “Sobre o Foot-ball” no jornal Brás Cubas :
“ Diabo ! A cousa é assim tão séria ? Pois um divertimento é capaz de
inspirar um período tão gravemente apaixonado a um escritor ?
(...) Reatei a leitura, dizendo cá com
os meus botões : isto é exceção, pois não acredito que um jogo de bola e
sobretudo jogado com os pés, seja capaz de inspirar paixões e ódios. Mas , não
senhor ! A cousa era a sério e o narrador da partida, mais adiante, já falava
em armas...
Não conheço os antecedentes da
questão; não quero mesmo conhecê-los; mas não vá acontecer que simples disputas
de um inocente divertimento causem tamanhas desinteligências entre as partes
que venham a envolver os neutros ou mesmo os indiferentes, como eu, que sou
carioca, mas não entendo nada de foot-ball . “
Lima atentava, desde o princípio, para a força social do jogo: longe de
ser um mero passatempo sem sentido, era capaz de inspirar “paixões e ódios” — e
o futebol adquiria para ele uma seriedade ímpar, que o obrigaria como ‘crítico
de costumes’ a dedicar-se profundamente ao novo fenômeno. Transformando-se no
paladino do combate ao jogo de bola, Lima elegeria justamente Coelho Neto como
o principal adversário. . Iniciou-se então um
acirrado confronto pelas páginas da imprensa carioca , logo depois de
mais um empolgante discurso de Neto, por ocasião da inauguração da piscina do
Fluminense em 1919 — discurso que para Lima parecia um verdadeiro pecado,
manifestado na crônica “Histrião ou literato” , na Revista Contemporânea, de 15 de fevereiro de 1919 :
Lima Barreto acusava Coelho Neto
de fazer “somente brindes de sobremesa para satisfação dos ricaços”, e
sustentava que a simpatia de Neto pelo futebol
seria mero oportunismo, um meio de agradar às ricas famílias , vindo de
“um homem que não entende sequer a alma de uma criada negra”. A partir daí,
Lima aumentaria nos meses seguintes a quantidade e intensidade dos ataques, em crônicas
quer em tom agressivo quer irônico, nas
quais surge a imagem de um jogo brutal e sem sentido, totalmente diferente do
elemento de regeneração social preconizado por Coelho Neto, para desespero da
imprensa carioca, quase toda ela empenhada em prestigiar o futebol — com
raríssimas exceções como, por exemplo, a do jornalista e escritor Carlos
Sussekind de Mendonça, que incorporou-se à luta de Lima Barreto contra o
futebol, que ele considerava entre outros aspectos “micróbio de corrupção e
imbecilidade”, “estrangeirismo estéril e inútil”. Propunha sobretudo combater , de todas as formas, a “nefasta
defesa do futebol” feita por intelectuais e escritores — rejeitando, inclusive,
qualquer teoria de que “o esporte possa manter alguma relação com a razão e o
intelecto” — e denunciar as “verdadeiras atrocidades,até dentro dos próprios clubs”
promovidas pelo futebol : como Lima Barreto, enfatizava o “blefe de regeneração social” contido no futebol e os
malefícios “físicos, sanitários,sociais e culturais” de sua disseminação “que
só pode ser bocado de feitiçaria” em campos “onde se apinham centenas de
ociosos assistindo inertes, a transpirar, os vinte e dois heróis de maxambona
ou caixa pregos” .Em 1921, então editor
do jornal A Época, do Rio de Janeiro, Sussekind de Mendonça teve seu
livro O sport está deseducando a
mocidade brasileira - hoje obra raríssima - publicado com o
subtítulo “dedicado a Lima Barreto”.
Ainda em 1919, crescente sua
oposição ao futebol, Lima Barreto passa a contar com a solidariedade de outros
adversários do jogo: junto com ele, o dr. Mário de Lima Valverde — quem, cerca
de dois meses antes ,discorrera para Lima sobre os malefícios à saúde
provocados pela prática de futebol — o jornalista Antonio Noronha Santos e o
“homem de letras” Coelho Cavalcanti resolvem criar, em março de 1919, uma “Liga
Contra o Futebol”, cuja constituição é discretamente anunciada em pequena nota
na edição do Rio-Jornal de 12 de março.
As
aludidas “verdadeiras atrocidades promovidas pelo futebol”, eram denunciadas
por Lima Barreto — como na crônica intitulada “Divertimento?”, publicada na
revista Careta em 04 de dezembro de
1920, em que destacava os inúmeros
conflitos e constantes brigas ocorridos nos campos, com tumultos e batalhas
entre torcidas diferentes, registradas nos jornais diários a cada
segunda-feira, culminando com o tiroteio
num jogo entre o Metropolitano e o São Paulo e Rio em 18 de dezembro de 1920 —
como atestados de que, mais do que casos isolados, seriam “ o fim próprio e
natural do jogo”, como sustenta no artigo “Uma conferência esportiva”, na
revista Careta de 1 de janeiro de
1921.
Lima criticava os “favores e favorezinhos” que os clubes de futebol recebiam do governo
para “criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros , e longe de
tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral
entre as divisões políticas da União, separa-as” : segundo ele, os clubes de
futebol seriam “portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc”.
Isso porque os defensores do futebol, Coelho Neto à frente, sustentavam ser “um sport
que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo “ (jornal Sports, de 6 de agosto de 1915 ) e
reclamavam “que alguns jogadores não tinham o nível social de há uns anos
atrás” (Jornal do Brasil, de 3 de
maio de 1920).
Porém, não eram apenas econômicas e sociais as distinções combatidas
por Lima Barreto, mas também raciais, vedando aos negros participação nos grandes clubes de futebol: em
1921 quando o próprio presidente Epitácio Pessoa proíbe jogadores negros de
fazerem parte do selecionado que ia à Argentina disputar um campeonato, Lima
foi duro nas críticas, publicando no
mesmo dia 1 de outubro de 1921 dois
artigos — “O meu conselho” e “Bendito foot-ball”
— no jornal A . B. C., onde afirma que “quando não havia foot-ball, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer
parte” e aponta o caráter nocivo do
futebol para o país.“ É o fardo do homem branco : surrar os negros, a fim de
trabalharem para ele. O foot-ball não é assim : não surra, mas humilha, não
explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam .”
Vendo nos sócios dos grandes clubes os herdeiros dos antigos senhores
de escravos, Lima enxerga no futebol “uma das formas de continuação da
dominação exercida durante décadas pelo regime escravista, onde se troca a
violência pela humilhação de quem paga impostos para sustentar, com subvenções
oficiais, um jogo ao qual não tem acesso”, o futebol aparece em seus textos como “ um poderoso instrumento de
domínio utilizado por uma raça que se julga eleita por Deus graças às suas
habilidades nos pés ; como a escravidão, sua única finalidade é criar uma
separação idiota entre os brasileiros, perpetuando as desigualdades e
continuando um passado de diferenciação e segregação” (artigo “O nosso
esporte”, publicado no jornal A . B. C.,
de 26 de agosto de 1922 ).
Direta ou indiretamente, não há dúvida de que os literatos como Coelho
Neto e Lima Barreto e suas polêmicas alimentavam um processo que anos depois
faria do futebol, como o é hoje, uma verdadeira instituição nacional. A
dinâmica da transformação do jogo em fenômeno nacional — com suas implicações
sociológicas, políticas e culturais — no
entanto, foi muito menos compreendida por Coelho Neto do que por Lima Barreto,
que indignado com o fato de “indivíduos que não davam para nada “ serem
transformados em verdadeiros “heróis nacionais”, refutava no último artigo escrito antes de morrer ( “O
herói”, para a revista Careta de 18
de novembro de 1922 ) a lógica que fazia desses “pobres esforçados, que nada
fazem para o benefício comum, injustas ‘glórias do Brasil’”.
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