terça-feira, 30 de outubro de 2012

LIMA BARRETO, 90 anos -- III

no dia 1 novembro de 1922 -- portanto há 90 anos -- morria Lima Barreto. qual um réquiem, apresentam-se aqui,a cada dia desta semana, claves temáticas às quais ele dedicou muito de suas reflexões,suas críticas
,seus escritos.

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                                                           Lima Barreto e o Futebol





N
a efetiva contramão de um contexto de franco,amplo entusiasmo em torno do futebol -- não apenas entre o público mas em especial literatos e intelectuais,no que destacava-se Coelho Neto--  emerge  Lima Barreto e seu  inquebrantável repúdio ao futebol. O repúdio barretiano ao futebol integrava-se à ojeriza visceral e irredutível ao estrangeirismo, a tudo que fosse alienígeno à nacionalidade --vistas também como ‘estrangeiras’ as elites republicanas. Via a sociedade brasileira como o fruto da combinação de distintas etnias, mestiçagem essa que atingira grau elevado de intimidade e adaptabilidade á natureza tropical; abominava por isso a preocupação obsessiva das elites  em fomentar e transmitir a imagem de uma ‘nação branca e civilizada’, fato que as tornava tão estrangeiros quanto os europeus e americanos “ invasores, as mais das vezes sem nenhuma cultura e sempre rapinantes.”.

Na crítica à violência gerada pelo futebol dentro e fora dos campos, inseria-se também em sua crença e pregão dos ideais de fraternidade, harmonia e paz entre os homens; na crítica aos  elitismo,  sectarismo e exclusão social promovidos pelo futebol, a manifestação de sua ideologia anarquista-maximalista; e ainda , na essência mesmo do futebol, encontrava-se  a figura de Coelho Neto, epígono e personificação da escrita/linguagem ‘empolada, de expressões cediças e figuras de efeito, cheias de arabescos estilísticos’, expressão da frivolidade e mundanismo então prevalecentes. Sobretudo o futebol como exemplo da pretensa, falsa e “obtusa” (sic) modernização preconizada e pretendida pela, segundo ele, “nefanda República
 Lima Barreto alinhava-se entre  “os tantos inimigos que pela imprensa o combatem” e que logo passou a fazer do futebol um de seus temas prediletos nas páginas da imprensa carioca. Com espaço e  reconhecimento já  assegurados nos círculos literários , com três romances e uma infinidade de  crônicas, Lima inaugurou seus ataques em 15 de agosto de 1918 no artigo “Sobre o Foot-ball” no jornal Brás Cubas :
         “ Diabo ! A cousa é assim tão séria ? Pois um divertimento é capaz de inspirar um período tão gravemente apaixonado a um escritor ?
            (...) Reatei a leitura, dizendo cá com os meus botões : isto é exceção, pois não acredito que um jogo de bola e sobretudo jogado com os pés, seja capaz de inspirar paixões e ódios. Mas , não senhor ! A cousa era a sério e o narrador da partida, mais adiante, já falava em armas...
            Não conheço os antecedentes da questão; não quero mesmo conhecê-los; mas não vá acontecer que simples disputas de um inocente divertimento causem tamanhas desinteligências entre as partes que venham a envolver os neutros ou mesmo os indiferentes, como eu, que sou carioca, mas não entendo nada de foot-ball . “
            
Lima atentava, desde o princípio, para a força social do jogo: longe de ser um mero passatempo sem sentido, era capaz de inspirar “paixões e ódios” — e o futebol adquiria para ele uma seriedade ímpar, que o obrigaria como ‘crítico de costumes’ a dedicar-se profundamente ao novo fenômeno. Transformando-se no paladino do combate ao jogo de bola, Lima elegeria justamente Coelho Neto como o principal adversário. . Iniciou-se então um  acirrado confronto pelas páginas da imprensa carioca , logo depois de mais um empolgante discurso de Neto, por ocasião da inauguração da piscina do Fluminense em 1919 — discurso que para Lima parecia um verdadeiro pecado, manifestado na crônica “Histrião ou literato” , na Revista Contemporânea, de 15 de fevereiro de 1919 :
 Lima Barreto acusava Coelho Neto de fazer “somente brindes de sobremesa para satisfação dos ricaços”, e sustentava que a simpatia de Neto pelo futebol  seria mero oportunismo, um meio de agradar às ricas famílias , vindo de “um homem que não entende sequer a alma de uma criada negra”. A partir daí, Lima aumentaria nos meses seguintes a quantidade e intensidade dos ataques, em crônicas quer em tom agressivo quer  irônico, nas quais surge a imagem de um jogo brutal e sem sentido, totalmente diferente do elemento de regeneração social preconizado por Coelho Neto, para desespero da imprensa carioca, quase toda ela empenhada em prestigiar o futebol — com raríssimas exceções como, por exemplo, a do jornalista e escritor Carlos Sussekind de Mendonça, que incorporou-se à luta de Lima Barreto contra o futebol, que ele considerava entre outros aspectos “micróbio de corrupção e imbecilidade”, “estrangeirismo estéril e inútil”. Propunha  sobretudo   combater , de todas as formas, a “nefasta defesa do futebol” feita por intelectuais e escritores — rejeitando, inclusive, qualquer teoria de que “o esporte possa manter alguma relação com a razão e o intelecto” — e denunciar as “verdadeiras atrocidades,até dentro dos próprios clubs” promovidas pelo futebol : como Lima Barreto, enfatizava o “blefe de  regeneração social” contido no futebol e os malefícios “físicos, sanitários,sociais e culturais” de sua disseminação “que só pode ser bocado de feitiçaria” em campos “onde se apinham centenas de ociosos assistindo inertes, a transpirar, os vinte e dois heróis de maxambona ou caixa pregos” .Em 1921, então  editor do jornal A Época, do Rio de Janeiro, Sussekind de Mendonça teve seu livro O sport está deseducando a  mocidade brasileira - hoje obra raríssima - publicado com o subtítulo “dedicado a Lima Barreto”.
 Ainda em 1919, crescente sua oposição ao futebol, Lima Barreto passa a contar com a solidariedade de outros adversários do jogo: junto com ele, o dr. Mário de Lima Valverde — quem, cerca de dois meses antes ,discorrera para Lima sobre os malefícios à saúde provocados pela prática de futebol — o jornalista Antonio Noronha Santos e o “homem de letras” Coelho Cavalcanti resolvem criar, em março de 1919, uma “Liga Contra o Futebol”, cuja constituição é discretamente anunciada em pequena nota na edição do Rio-Jornal de 12 de março.
As aludidas “verdadeiras atrocidades promovidas pelo futebol”, eram denunciadas por Lima Barreto — como na crônica intitulada “Divertimento?”, publicada na revista Careta em 04 de dezembro de 1920, em que  destacava os inúmeros conflitos e constantes brigas ocorridos nos campos, com tumultos e batalhas entre torcidas diferentes, registradas nos jornais diários a cada segunda-feira, culminando  com o tiroteio num jogo entre o Metropolitano e o São Paulo e Rio em 18 de dezembro de 1920 — como atestados de que, mais do que casos isolados, seriam “ o fim próprio e natural do jogo”, como sustenta no artigo “Uma conferência esportiva”, na revista Careta de 1 de janeiro de 1921.
 Por trás da oposição crítica barretiana estava muito mais do que uma questão literária ou mera contestação do papel de redenção social que Coelho Neto atribuía ao futebol: Lima via nele um fator de degeneração da cultura e da política nacional, pois patrocinava uma injusta e gritante diferenciação social e regional, como declarou em entrevista ao Rio-Jornal   em  13 de março de 1919 :“ – Está aí, uma grande desvantagem social do nosso foot-ball. Nos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do ponta-pé propaga sua separação e o governo o subvenciona . “  
Lima criticava os “favores e favorezinhos”  que os clubes de futebol recebiam do governo para “criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros , e longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, separa-as” : segundo ele, os clubes de futebol seriam “portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc”. Isso porque os defensores do futebol, Coelho Neto à frente, sustentavam  ser “um sport que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo “ (jornal Sports, de 6 de agosto de 1915 ) e reclamavam “que alguns jogadores não tinham o nível social de há uns anos atrás” (Jornal do Brasil, de 3 de maio de 1920).
Porém, não eram apenas econômicas e sociais as distinções combatidas por Lima Barreto, mas também raciais, vedando aos negros  participação nos grandes clubes de futebol: em 1921 quando o próprio presidente Epitácio Pessoa proíbe jogadores negros de fazerem parte do selecionado que ia à Argentina disputar um campeonato, Lima foi duro nas críticas,  publicando no mesmo dia  1 de outubro de 1921 dois artigos — “O meu conselho” e “Bendito foot-ball” — no jornal  A . B. C., onde afirma que “quando não havia foot-ball, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer parte” e  aponta o caráter nocivo do futebol para o país.“ É o fardo do homem branco : surrar os negros, a fim de trabalharem para ele. O foot-ball não é assim : não surra, mas humilha, não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam .”
Vendo nos sócios dos grandes clubes os herdeiros dos antigos senhores de escravos, Lima enxerga no futebol “uma das formas de continuação da dominação exercida durante décadas pelo regime escravista, onde se troca a violência pela humilhação de quem paga impostos para sustentar, com subvenções oficiais, um jogo ao qual não tem acesso”, o futebol aparece em seus  textos como “ um poderoso instrumento de domínio utilizado por uma raça que se julga eleita por Deus graças às suas habilidades nos pés ; como a escravidão, sua única finalidade é criar uma separação idiota entre os brasileiros, perpetuando as desigualdades e continuando um passado de diferenciação e segregação” (artigo “O nosso esporte”, publicado no jornal A . B. C., de 26 de agosto de 1922 ).
Direta ou indiretamente, não há dúvida de que os literatos como Coelho Neto e Lima Barreto e suas polêmicas alimentavam um processo que anos depois faria do futebol, como o é hoje, uma verdadeira instituição nacional. A dinâmica da transformação do jogo em fenômeno nacional — com suas implicações sociológicas, políticas  e culturais — no entanto, foi muito menos compreendida por Coelho Neto do que por Lima Barreto, que indignado com o fato de “indivíduos que não davam para nada “ serem transformados em verdadeiros “heróis nacionais”, refutava  no último artigo escrito antes de morrer ( “O herói”, para a revista Careta de 18 de novembro de 1922 ) a lógica que fazia desses “pobres esforçados, que nada fazem para o benefício comum, injustas ‘glórias do Brasil’”.

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