sexta-feira, 5 de outubro de 2012

MACHADO DE ASSIS,POLÍTICA,RIO DE JANEIRO -- III

a propósito do iminente pleito municipal em todo o país, convém conhecer o que Machado de Assis -- que tratou muito de política em suas crônicas -- comentou (com ironia crítica e lúcida observ
ação) sobre eleições na cidade do Rio de Janeiro e sobre a Câmara Municipal 

-- veiculo aqui algumas das 53 crônicas que compõem a totalidade do conjunto -- 





crônica 11
30 de junho de 1878
o cruzeiro –  Notas Semanais[1]
                                                                                           abertura legislativa da Câmara Municipal;
                                            dificuldades do erário municipal
A sociedade fluminense atravessa um período de inaugurações. Temos amanhã a do Skating-rink, depois de amanhã a da Câmara  Municipal. Ontem foi a do homem-peixe; há dias a do Cassino e a do Jockey-Club; em breve a da companhia Ferrari. Se é lícito lembrar outras coisas mínimas, direi que inauguro hoje uma dispepsia, e que o meu vizinho fronteiro inaugura o uso de não pagar o bonde pelos outros : lição de estômago e de passageiro. Vivemos num longo pórtico, entre infinitas estréias.
De todas estas, a mais importante é a da Câmara Municipal. Sabe-se que não só a Câmara é diferente da outra, mas até de si mesma. Vereador, que o era há dois meses, não passa de um modesto contribuinte; contribuinte, que o era, acordou há dias vereador. Ali há choro e ranger de dentes; aqui, um riso da bem-aventurança. Sorrisos e lágrimas, como diria um vate piegas, se não preferisse dizer lágrimas e sorrisos, que é absolutamente a mesma coisa.
A Câmara velha quis fazer as coisas fidalgamente ; mandou dar uma mão de cal à sala das sessões, espanar as janelas, deitar meia dúzia de pontos às cortinas. Há nisto mais cortesia do que sagacidade. Eu, no caso da Câmara velha, recebia a nova com as mesmas teias de aranha e dedadas dos contínuos, como se lhe dissesse: - "Veja Vossa Ilustríssima a virtude espartana que deve ter um vereador; é obrigado a meditar um contrato e catar uma pulga, a diminuir as despesas dos calçamentos e o lustro do calçado. Todo o sebo que poderia adquirir a consciência, aqui ficou colado a esta mesa de pinho. Não lhe importe cair dessa cadeira velha; é o meio de não cair da opinião pública". Em vez disto, a câmara velha prefere dar à nova um espécime do palácio de  Armida, alguma coisa semelhante ao luxo do Califa de Bagdá. É polido, mas impolítico.
II
Não tarda, pois, que as ilustríssimas cadeiras, assim repintadas, recebam galantemente os novos vereadores; e eu seria o último dos cidadãos e o menos zeloso dos munícipes, se lhes não lembrasse dois fatos capitais : primo, que o erário municipal se acha necessitado de um forte peitoral de cereja ; secundo, que de nenhum modo convém dar-lhe o peitoral de Ayer, bebida infecta e pobre de substâncias restauradoras e confortivas, mas só e somente o xarope Alvear, o mais enérgico e substancial de todos os que conhece a farmácia moderna.
Com efeito, li em jornais desta semana que, achando-se o erário municipal de Buenos Aires nas mesmas ou análogas condições do nosso, um certo Alvear, membro da edilidade portenha, depois de consultar todos os livros da ciência fiscal, tratou de tirar de seu próprio cérebro alguma idéia útil e capaz de restaurar o enfermo, de um modo pronto, científico e perpétuo. Não se demorou em acudir aos gritos da necessidade; revolveu os miolos, deu um forte sacudimento às faculdades inventivas, e ao cabo de algum tempo de concentração, sacou um imposto capaz de restituir a vida a um moribundo. Trata-se nada menos que de uma taxa anual de 5 pesos, sobre todos os habitantes ou transeuntes do município, sem exceção do sexo, que contarem de 10 a 70 anos de idade.
Confesso que esta idéia tem um forte cheiro de opereta, e que à primeira vista parece copiada de Offenbach. Vou além ; cheguei a imaginar que os jornais faziam confusão de notícias; que se tratava efetivamente de uma ópera-cômica. Direi tudo: com os poucos indícios que tinha à mão, construí a peça, qual me pareceu que devia ser, e dei-lhe um título, talvez improvável, mas eminentemente possível. Chamei-lhe “D. Ana Govarrubias ou um vereador original” ; dividi-a em três atos, e supus-lhe os personagens seguintes: O ERÁRIO. - PRIMUS INTER PARES. - O COLETOR DOS IMPOSTOS. --UM VEREADOR, extremamente original. --PICO DE LA MIRANDOLA. -- O CONGRESSO DE BERLIM. - PROCUSTO. - UM CÁLCULO BIILIÁRIO. - O DR. RUIBARBO. - D. ANA COVARRUBIAS, filha do COLETOR.- BUENA BEBA, mulher de ERÁRIO. - Lugar da cena : ilhas Malvinas.
ATO I - PRIMUS INTER PARES calca o botão do tímpano; aparece-lhe o coletor dos impostos, a quem ele pergunta se há numerário disponível para comprar um lenço de tabaco. Consternação do coletor, que lhe responde com lágrimas nos olhos :
          Não, para um lenço de tabaco,
          Tabaco, baco,
          Não há um s6 real no saco,
          No saco, saco.
A rima não é rica (diria ele em prosa), mas richesse ne fait pas le bonheur. Contestação do PRIMUS, cuja felicidade naquela ocasião seria justamente a riqueza do erário; conseqüentemente, replica dizendo que é preciso um imposto novo, rendoso, universal, e portanto igual para todos. O coletor aflito propõe que sejam consultados os outros edis. Entram os edis a passo de cão. Um deles jura que possui uma idéia nova na ciência financeira. - Uma idéia nova ! exclama o coletor, abanando as orelhas. – Novíssima ! bradam todos os outros edis, depois de ouvirem a idéia.
os EDIS
         Novíssima,
         Raríssima,
         Riquíssima,
         Com que pode Vossa Ilustríssima
         Encher o erário municipal. (bis)
o COLETOR
         Na verdade, é originalíssima,
         Sim, senhor, é original.
Infelizmente, aparece a filha do coletor, d. Ana Covarrubias, debulhada em lágrimas, ajoelha-se, e roga ao pai que não cobre nunca o terrível imposto. O coletor começa a fraquear; mas os edis sacam as varas municipais, e juram sobre elas que, ou o imposto há de ser cobrado, ou eles hão de verter a última gota de sangue. O coletor desmaia; passa ao fundo a sombra de Nino. Cai o pano rapidamente.
ATO II - Em casa do Erário. O dr. Ruibarbo toma o pulso ao doente e receita-lhe um passeio ao mais alto pico do Monte do Socorro. Enquanto o doente discute com o médico a oportunidade do remédio, entram os edis e declaram achar-se votado um novo imposto, extremamente original. Explicam-lho; o Erário cai das nuvens nos braços dos vereadores; dá graças aos deuses, e promete-lhes um edil de cera, se o imposto for levado a cabo. Nisto, Buena Sera, esposa do Erário, que tem espreitado a conversa, entra impetuosamente, e jura que o imposto não se há de cobrar nunca. Estupefação do Erário e dos vereadores. Um destes, com a franqueza que o caracteriza, pondera que a vida do ilustre enfermo depende do novo imposto - Imposto ou morte! - Antes a morte, brada a matrona. O Erário empalidece, gargareja uma imprecação, e sai fortemente apoiado na maioria.
Sobrevém d. Ana Covarrubias, e propõe a Buena Sera uma aliança ofensiva e defensiva contra os cinco pesos. Confessam uma à outra que amam um guapo mancebo desapatacado, e que ete seria compelido a mudar de terra, se o imposto fosse convertido em lei.. Efusão de sentimentos, fusão de interesses, profusão de volatas. Vão a sair; mas um coronel de dragões, peitado pelos vereadores, apodera-se de ambas ; elas resistem e cedem enfim protestando solenemente à face da Europa contra essa violação domiciliária e pessoal.
ATO III - Um café. Pico de la Mirandola, Procusto, o  Congresso de Berlim, e um Cálculo Biliário conversam alegremente dos sucessos do dia. Sabe-se, pelo que dizem, que o  guapo  mancebo amado pelas damas é o mesmo e único indivíduo, um estrangeiro, um Tártaro, talvez emético, que viaja para conhecer os costumes dos povos cultos. Sabe-se mais que, por motivos particulares, o digno estrangeiro não entra na peça . O imposto está em execução : já se tem cobrado 4.000.000.000.000 de. pesos. O Erário está ameaçado de obesidade ; o coletor  morreu; d. Ana Covarrubias e Buena Sera morreram ; o coronel dos dragões morreu ; o Tártaro, cada vez mais emético, morre à última hora. Os quatro personagens resolvem acabar a peça, com um brinde ; não o permitindo a hora adiantada da noite, cai o pano.
III
Sucedeu à corrida de cavalos outra corrida de homens, com o acréscimo dos “saltos", que os  cavalos obrigam a dar, mas não dão eles próprios. Nada posso dizer do novo torneio, porque escrevo estas linhas, na ocasião justamente em que ele começa ; mas posso julgá-lo pelo do ano passado, e creio que será delicioso...para os espectadores.
Essa usança, que parece ser também um gosto, é companheira daquele bife cru, de que tratei na minha crônica do dia 2 do corrente, com uma diferença, e é que, se o bife entrou nos nossos costumes, a usança não entra, embora sejam um e outro venerados pelos dignos bretões. Quando uma raça se nutriu durante três séculos com a bela goiabada de Campos, precisa de mais três séculos de carne sangrenta para apostar corridas e saltos. Somos demasiado melífluos para tão aspérrima canseira. Acresce que não estou perfeitamente convencido de que um bom banho frio, longos passeios, forte ginástica, e alguns jogos de força, sejam exercícios inferiores a deitar os bofes pela boca fora. Opinião de homem débil.
Em todo caso, antes ver correr os homens que ver brigar os galos, uso que floresceu com igual vida em Atenas e na Gamboa, do mesmo modo que floresce às margens do Tâmisa - ou Tamesis, como escrevia o Garrett. Donde se conclui que o homem é um animal eternamente brigão.
IV
Lastimei as desgraças de Chique-Chique: não me atrevo a lastimar a 2ª. edição das de Macaúbas. Começo a suspeitar que a luta travada nessas duas vilas é uma simples metáfora de estudantes de retórica. É sabido que, em geral, quando um correspondente escreve estas solenes palavras: "a província está ardendo" - quer dizer simplesmente que foram demitidos dois subdelegados; e quando diz: "o povo dorme tranqüilo à sombra da paz", anuncia, de um modo poético, a nomeação de outros dois.
A "tribuna parlamentar", que é uma simples poltrona de mogno, deve abrir-nos os olhos. A metáfora é um abscesso nas organizações políticas; convém rasgá-lo ou resolvê-lo, e voltarmos à frase sadia e nua : pão, pão; queijo, queijo.
V
Melhor notícia do que essa é a de ter sido aprovada, na Bahia, uma senhora que fez exame de dentista. Registro o acontecimento, com o mesmo prazer com que tomo nota de outros análogos; vai-se acabando a tradição, que excluía o belo sexo do exercício de funções, até agora unicamente masculinas. É um característico do século : a mulher está perdendo a superstição do homem. Tomou-lhe o pulso : compreendeu que se ele fez a guerra de Tróia, e se serviu quatorze anos a Labão, foi unicamente por causa dela; e desde que o reconheceu, subjugou-o.
No entanto, se aprovo que as senhoras façam concorrência ao Napoleão Certain, acho perigoso que as outras senhoras entreguem a boca aos dentistas do seu sexo. Em primeiro lugar, há de ser preciso muita e rígida virtude para que uma mulher não despovoe a boca de outra, quando lhe vir uns dentes de pérola, que obscurecem os seus; em segundo lugar, quem os trouxer postiços arrisca-se a ver o caso denunciado nos mais discretos salões. Imagine-se o caso de rivalidade amorosa ...
VI
Fio-me muito mais na discrição de uma casa da rua do Ouvidor, que anuncia um "sabão nupcial", acrescentando, entre parênteses: - "inédito !" Nupcial - deu-me trinta minutos de reflexão; inédito, levar-me-á com certeza ao fim da vida. Ao pé deste sabão, há um "leite de Aspásia", destinado a amaciar a pele; e ainda mais abaixo, umas "pastilhas de Vesta", que quando acesas deitam "azuladas nuvens de incenso, perfumadas de ambrosia, semelhantes às que as Vestais respiravam nos templos de Corinto !"
Última utilidade da história : ensaboar os anúncios.
VII
Não se fechou a semana sem que a agência Havas nos desse uma notícia lúgubre. Dessa vez foi a morte súbita de d. Mercedes, a jovem rainha de Espanha. Não lhe resvalou a coroa da cabeça, foi ela que se subtraiu ao peso deste diadema difícil - levando consigo as venturas todas de um mancebo, que o coração e a política lhe haviam deparado, como um penhor de felicidade doméstica e de paz pública. A morte, de parceria com a estrela de Espanha, empenha-se em fazer essas súbitas mudanças de cenários.
De outra parte, não é a morte, é a filosofia de um doutor de trinta anos, que não encontra no arsenal da liberdade melhor arma do que um revólver. Parecia que esse velho recurso do fanatismo político estava para sempre embotado e inútil; e jamais podíamos contar que ele nos saísse agora de uma universidade alemã. Pois saiu; e, nem por ser mais científico, se tornou mais sensato ... nem mais útil. Pobre filosofia ! pobre filosofia !
VIII
Pobre folhetim !
Eleazar
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crônica  23
10 de janeiro de 1887
gazeta  de  notícias –  Gazeta de Holanda[2]
                                                                          eleições municipais  no Rio de Janeiro; 
 dívidas do Governo
Voilà ce que l’on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”

Depois de férias tão longas,
Tão docemente compridas,
Ó musa, minhas candongas,
Voltemos às nossas lidas.
Assim faz a Pátria, às vezes,
E é certo que não estoura;
Descansa um mês ou dois meses
O nosso C. B. de Moura.
E a Pátria, meia enfadada
Daquelas extensas férias,
Volta mais fortificada
Aos combates e às pilhérias.
Eia, pois, minha gorducha,
Vê que recomeça a aurora,
Puxa daqui, puxa, puxa,
Vamos trabalhar lá fora.
E antes de tudo, inclinando
O gesto a todos os lados
Vai a todos desejando
Plácidos dias folgados.
Desejarás uma boa
Vereança aos cariocas,
Que se não esgote à toa
Em longas brigas e mocas;
Que eleja pacatamente,
Sem atos tumultuários,
O seu vice-presidente
E os restantes comissários.
Pouco calor, pouca chuva,
Nenhuma peste que assole,
Algum vinho feito de uva,
E menos gente que amole.
Grandes bailes mascarados
E passeatas nas ruas,
Câmaras de deputados
Sem as discussões tão cruas.
Boatos sobre boatos,
De modo que quem passeie
Por esses bondes ingratos
Tenha coisa que recreie.
E mais que tudo, meu anjo,
Anjo meu do meu sacrário,
Desejo um bonito arranjo
Ao nosso estafado erário.
Não sei se leste a mensagem
De Cleveland,[3] um documento
De americana homenagem
Lá para o seu parlamento.
Pois conta-se aí (por esta
Luz do céu minh'alma jura
Que não é pêta funesta,
Mas pura verdade, pura);
Conta-se que a renda é tanta
Que urge cortar-lhe os babados,
Que é demasiada a manta
Para tão vastos Estados.
Que, se vão nessa carreira,
Pagam aqueles senhores
Em breve a dívida inteira,
E ficarão sem credores.
Depois vem maior excesso
De renda, e será tamanho
Que não haverá processo
De o dar a melhor amanho,
Porque ou fica no Tesouro,
Inútil, mudo e parado,
Ou saem carradas de ouro
Para os delírios do Estado.
Ora bem, estes fenômenos
Dados como desastrosos,
Terríveis paralipômenos [4]
De grandes livros lustrosos,
Hás de pedi-los, amiga,
Mas pedi-los de maneira
Que uma segunda barriga
Coma sem dor da primeira.
Es decir, que aquela caixa
Que ronca de tanta altura,
Se quiser ficar mais baixa
Tem receita mais segura.
Pegue em si, tire metade
E verá como lhe pego,
Pego-lhe com ansiedade,
Com ansiedade de cego.
E digo ao Tesouro nosso:
- Amigo, aqui tens dinheiro;
Precisas dele, aqui posso
Dá-lo às tuas mãos inteiro.
Vê tu que singular obra
A deste mundo peralta:
Geme um pelo que lhe sobra,
E outro pelo que lhe falta.                                                                                            Malvólio

crônica 43
9 de dezembro de 1894
gazeta  de  notícias –  A Semana
 eleições para Câmara Municipal do Rio de Janeiro;
  eleições e organismo social ;
 ideias e planos de candidatos municipais

Tudo tende à vacina. Depois da varíola, a raiva; depois da raiva, a difteria; não tarda a vez do cólera-morbo. O bacilo-vírgula, que nos está dando que fazer, passará em breve do terrível mal que é, a uma simples cultura científica, logo de amadores, até roçar pela banalidade. Uma vez regulamentado, fará parte dos cafés e confeitarias. Que digo? Entrará nos códigos de civilidade, oferecer-se-á às visitas um cálix de cólera-morbo ou de outro qualquer licor. Os cavalheiros perguntarão graciosamente às damas: “V. Ex. já tomou hoje o seu bacilo?” Far-se-ão trocadilhos.
— Que tal este vírgula?
— Vale um ponto de admiração!
Todas as moléstias irão assim cedendo ao homem, não ficando à natureza outro recurso mais que reformar a patologia. Não bastarão guerras e desastres para abrir caminho às gerações futuras; e demais a guerra pode acabar também, e os próprios desastres, quem sabe? obedecerão a uma lei, que se descobrirá e se emendará algum dia. Sem desastres nem guerras, com as doenças reduzidas, sem conventos, prolongada a velhice até às idades bíblicas, onde irá parar este mundo? Só um grande carregamento, ó doce mãe e amiga Natureza; só um carregamento infinito de moléstias novas.
Mas a vacina não se deve limitar ao corpo; é preciso aplicá-la à alma e aos costumes, começando na palavra e acabando no governo dos homens. Já a temos na palavra, ao menos, na palavra política. Graças às culturas sucessivas, podemos hoje chamar bandido a um adversário, e, às vezes, a um velho amigo, com quem tenhamos alguma pequena desinteligência. Está assentado que bandido é um divergente. Corja de bandidos é um grupo de pessoas que entende diversamente de outra um artigo da Constituição. Quando os bandidos são também infames, é que venceram as eleições, ou legalmente, ou aproximativamente. Com tais culturas enrija-se a alma, poupam-se ódios, não se perde o apetite nem a consideração. Antes do fim do século, bandido valerá tanto como magro ou canhoto.
Assim também as opiniões. A vacina das opiniões é difícil, não como operação, mas como aceitação do princípio. Diz-se, e com razão, que o micróbio é sempre um mal; ora, a minha opinião é um bem, logo... Erro, grande erro. A minha opinião é um bem, de certo, mas a tua opinião é um mal, e do veneno da tua é que eu me devo preservar, por meio de injeções a tempo, a fim de que, se tiver a desgraça de trocar a minha opinião pela tua, não padeça as terríveis conseqüências que as idéias detestáveis trazem sempre consigo. E porque não é só a tua idéia que é perversa, mas todas as outras, desde que eu me vacine de todas, estou apto a recebê-las sucessivamente, sem perigo, antes com lucro.
O bacilo zig-zag, causa da embriaguez... Mas para que ir mais longe? Conhecido o princípio, sabido que tudo deriva de um micróbio, inclusive o vício e a virtude, obtém-se pelo mesmo processo a eliminação de tantos males. O boato tem sido descomposto de língua e de pena, é um monstro, um inimigo público, é o diabo, sem advertirem os autores de nomes tão feios, que o boato é a cultura atenuada do acontecimento. Daqui em diante a história se fará com auxílio da bacteriologia.
As eleições — uma das mais terríveis enfermidades que podem atacar o organismo social, — perderam a violência, e dentro em pouco perderão a própria existência nesta cidade, graças à cultura do respectivo bacilo. Aposto que o leitor não sabe que tem de eleger no último domingo deste mês os seus representantes municipais? Não sabe. Se soubesse, já andaria no trabalho da escolha do candidato, em reuniões públicas, ouvindo pacientemente a todos que viessem dizer-lhe o que pensam e o que podem fazer. Quando menos, estaria lendo as circulares dos candidatos, cujos nomes andariam já de boca em boca, desde dois e três meies, ou apresentados por si mesmos, ou indicados por diretórios.
Nem o leitor julgaria somente das idéias e dos planos dos candidatos, conheceria igualmente do estilo e da linguagem deles. Sei que a circular não basta; pode ser obra de algum amigo, sabedor de gramática e de retórica. O discurso, porém, mostrará o homem, e, ainda quando seja alheio e decorado, os ouvintes têm o recurso de lançar a desordem no rebanho das palavras e das idéias do orador. Este, roto o fio da oração, acabará dando por paus e por pedras. Deus meu! não exijo raptos de eloqüência. Os discursos municipais podem ser mal feitos, sem conexão, nem lógica, nem clareza, atrapalhados, aborrecidos; é negócio que, salvos os gastos da impressão, só importa à fama dos autores. Mas as leis? O município tem leis, e as leis devem ser escritas.
Agora mesmo, anteontem, foi promulgada a lei que autoriza o Prefeito a regularizar a direção dos veículos. Esta lei tem um art. 2° que diz assim:
           “Art. 2°. Os trilhos que servem de leito a veículos (bonds), os quais sobre os mesmos rodam normalmente, poderão ser mudados para lugares diversos dos que ocupam, somente com prévia aquiescência do conselho, exceto quando se tratar de ligeiras mudanças de trilhos na mesma rua ou outra mais próxima e mais larga do que aquela em que entronca, os mesmos assentados”.
Este art. 2.° não está escrito. As palavras que o deviam compor, não saíram do tinteiro; saíram outras, inteiramente estranhas, e ainda assim, com a grande pressa que havia, foram deixadas no papel para que se arrumassem por si mesmas; ora, as orações, como os regimentos, não marcham bem senão com muita lição do instrutor. As conseqüências são naturalmente graves. Como há de o Prefeito cumprir esse artigo? Como hei de eu obedecer a outras leis que saiam assim desconjuntadas? Já não trato de algumas conseqüências mínimas. Conheço uma pessoa, muito dada a metáforas, que nunca mais dirá bonde, e sim “veículo que roda normalmente sobre trilhos”.O legislador municipal achou-se aqui na mesma dificuldade em que, há anos, esteve o redator de um projeto de lei contra os capoeiras. Não me recordo das palavras todas empregadas na definição dos delitos; as primeiras eram estas: “Usar de agilidade”... Compreendo o escrúpulo em definir bem o capoeira; mas porque não disse simplesmente capoeira? Não estivesse eu com pressa (os minutos correm) e iria pesquisar o texto de um ato ministerial do princípio do século, em que se davam ordens contra os capoeiras — mas só capoeiras, nada mais.
Sendo preciso escrever as leis municipais, não seria fora de propósito criar um ou dois lugares de redatores, nomeando-se para eles pessoas gramaticadas. Aí está uma idéia que podia servir a algum candidato, em circular ou discurso, se não estivéssemos vacinados contra o vírus eleitoral. A capital não quer saber de si. Alguns candidatos obscuros, lembrados por cidadãos ainda mais obscuros, irão aparecendo na última semana. Os mais econômicos mandarão apontar o seu nome, com duas linhas de impressão, entre o licor depurativo de taiuiá e o xarope de alcatrão e jataí. 0 mais será trabalhinho surdo, pedido particular e abstenção do costume, achaques leves que não matam nem amofinam. Teremos, depois do último domingo deste mês, outro vaudeville como o de anteontem? Mudemos os homens se é preciso, mas não se perca a boa e velha chalaça. A peça é da verdadeira escola dos vaudevilles, enredo complicado, ditos alegres, muito qui-pro-quo, diálogo vivo, desfecho inesperado, ainda que pouco claro. Os couplets finais vivíssimos. Mas por que chamar a esta peça Sunt lacrymae rerum?



[1] Machado publicou crônicas em O Cruzeiro ,com a série “Notas Semanais”, de 9 junho a 1 setembro 1878 ,todas sob o  pseudônimo Eleazar.
[2] Série publicada  ,com  extrema regularidade,de  1 novembro 1886 a 24 fevereiro 1888 , com 48  crônicas em forma de  versos -- a que Machado batizou de ‘versiprosa’ (criando o termo, muito mais tarde utilizado por Carlos Drummond de Andrade), assinadas pelo  pseudônimo de Malvólio, personagem bufo de Shakespeare em “The Twefth Night” (Noite de Reis) -- .sob tom,timbre e estilo satírico, extremamente irônico e crítico.
[3] Stephen Grover Cleveland,,então  presidente dos Estados Unidos  (1885 – 1889) : voltaria ao governo de 1893 a  1897.
[4] Nome dado pela Vulgata e pelos autores gregos e hebraicos a dois dos livros históricos da Bíblia (Crônicas I e II), que apresentam um relato complementar da história do povo hebreu até o exilio babilônico ;p.ext.  Qualquer suplemento a uma obra literária  

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