sexta-feira, 5 de outubro de 2012
MACHADO DE ASSIS,POLÍTICA,RIO DE JANEIRO -- III
a propósito do iminente pleito municipal em todo o país, convém conhecer o que Machado de Assis -- que tratou muito de política em suas crônicas -- comentou (com ironia crítica e lúcida observ
ação) sobre eleições na cidade do Rio de Janeiro e sobre a Câmara Municipal
-- veiculo aqui algumas das 53 crônicas que compõem a totalidade do conjunto --
crônica 11
30 de junho de 1878
o cruzeiro – Notas Semanais[1]
abertura
legislativa da Câmara Municipal;
dificuldades
do erário municipal
A sociedade fluminense atravessa
um período de inaugurações. Temos amanhã a do Skating-rink, depois de amanhã a
da Câmara Municipal. Ontem foi a do
homem-peixe; há dias a do Cassino e a do Jockey-Club; em breve a da companhia
Ferrari. Se é lícito lembrar outras coisas mínimas, direi que inauguro hoje uma
dispepsia, e que o meu vizinho fronteiro inaugura o uso de não pagar o bonde
pelos outros : lição de estômago e de passageiro. Vivemos num longo pórtico,
entre infinitas estréias.
De todas estas, a mais importante
é a da Câmara Municipal. Sabe-se que não só a Câmara é diferente da outra, mas
até de si mesma. Vereador, que o era há dois meses, não passa de um modesto
contribuinte; contribuinte, que o era, acordou há dias vereador. Ali há choro e
ranger de dentes; aqui, um riso da bem-aventurança. Sorrisos e lágrimas, como diria um vate piegas, se não preferisse
dizer lágrimas e sorrisos, que é
absolutamente a mesma coisa.
A Câmara velha quis fazer as
coisas fidalgamente ; mandou dar uma mão de cal à sala das sessões, espanar as
janelas, deitar meia dúzia de pontos às cortinas. Há nisto mais cortesia do que
sagacidade. Eu, no caso da Câmara velha, recebia a nova com as mesmas teias de
aranha e dedadas dos contínuos, como se lhe dissesse: - "Veja Vossa
Ilustríssima a virtude espartana que deve ter um vereador; é obrigado a meditar
um contrato e catar uma pulga, a diminuir as despesas dos calçamentos e o
lustro do calçado. Todo o sebo que poderia adquirir a consciência, aqui ficou
colado a esta mesa de pinho. Não lhe importe cair dessa cadeira velha; é o meio
de não cair da opinião pública". Em vez disto, a câmara velha prefere dar
à nova um espécime do palácio de Armida,
alguma coisa semelhante ao luxo do Califa de Bagdá. É polido, mas impolítico.
II
Não tarda, pois, que as
ilustríssimas cadeiras, assim repintadas, recebam galantemente os novos
vereadores; e eu seria o último dos cidadãos e o menos zeloso dos munícipes, se
lhes não lembrasse dois fatos capitais : primo,
que o erário municipal se acha necessitado de um forte peitoral de cereja ; secundo, que de nenhum modo convém
dar-lhe o peitoral de Ayer, bebida infecta e pobre de substâncias restauradoras
e confortivas, mas só e somente o xarope Alvear, o mais enérgico e substancial
de todos os que conhece a farmácia moderna.
Com efeito, li em jornais desta
semana que, achando-se o erário municipal de Buenos Aires nas mesmas ou
análogas condições do nosso, um certo Alvear, membro da edilidade portenha,
depois de consultar todos os livros da ciência fiscal, tratou de tirar de seu
próprio cérebro alguma idéia útil e capaz de restaurar o enfermo, de um modo
pronto, científico e perpétuo. Não se demorou em acudir aos gritos da
necessidade; revolveu os miolos, deu um forte sacudimento às faculdades
inventivas, e ao cabo de algum tempo de concentração, sacou um imposto capaz de
restituir a vida a um moribundo. Trata-se nada menos que de uma taxa anual de 5
pesos, sobre todos os habitantes ou transeuntes do município, sem exceção do
sexo, que contarem de 10 a
70 anos de idade.
Confesso que esta idéia tem um
forte cheiro de opereta, e que à primeira vista parece copiada de Offenbach.
Vou além ; cheguei a imaginar que os jornais faziam confusão de notícias; que
se tratava efetivamente de uma ópera-cômica. Direi tudo: com os poucos indícios
que tinha à mão, construí a peça, qual me pareceu que devia ser, e dei-lhe um
título, talvez improvável, mas eminentemente possível. Chamei-lhe “D. Ana
Govarrubias ou um vereador original” ; dividi-a em três atos, e supus-lhe os
personagens seguintes: O ERÁRIO. - PRIMUS INTER PARES. - O COLETOR DOS
IMPOSTOS. --UM VEREADOR, extremamente original. --PICO DE LA MIRANDOLA. -- O
CONGRESSO DE BERLIM. - PROCUSTO. - UM CÁLCULO BIILIÁRIO. - O DR. RUIBARBO. - D.
ANA COVARRUBIAS, filha do COLETOR.- BUENA BEBA, mulher de ERÁRIO. - Lugar da
cena : ilhas Malvinas.
ATO I - PRIMUS INTER PARES calca
o botão do tímpano; aparece-lhe o coletor dos impostos, a quem ele pergunta se
há numerário disponível para comprar um lenço de tabaco. Consternação do
coletor, que lhe responde com lágrimas nos olhos :
Não,
para um lenço de tabaco,
Tabaco, baco,
Não há um s6 real no
saco,
No saco, saco.
A rima não é rica (diria ele em
prosa), mas richesse ne fait pas le
bonheur. Contestação do PRIMUS, cuja felicidade naquela ocasião seria
justamente a riqueza do erário; conseqüentemente, replica dizendo que é preciso
um imposto novo, rendoso, universal, e portanto igual para todos. O coletor
aflito propõe que sejam consultados os outros edis. Entram os edis a passo de
cão. Um deles jura que possui uma idéia nova na ciência financeira. - Uma idéia
nova ! exclama o coletor, abanando as orelhas. – Novíssima ! bradam todos os
outros edis, depois de ouvirem a idéia.
os EDIS
Novíssima,
Raríssima,
Riquíssima,
Com que pode Vossa
Ilustríssima
Encher o erário
municipal. (bis)
o COLETOR
Na
verdade, é originalíssima,
Sim, senhor, é original.
Infelizmente, aparece a filha do
coletor, d. Ana Covarrubias, debulhada em lágrimas, ajoelha-se, e roga ao pai
que não cobre nunca o terrível imposto. O coletor começa a fraquear; mas os
edis sacam as varas municipais, e juram sobre elas que, ou o imposto há de ser
cobrado, ou eles hão de verter a última gota de sangue. O coletor desmaia;
passa ao fundo a sombra de Nino. Cai o pano rapidamente.
ATO II - Em casa do Erário. O dr.
Ruibarbo toma o pulso ao doente e receita-lhe um passeio ao mais alto pico do
Monte do Socorro. Enquanto o doente discute com o médico a oportunidade do
remédio, entram os edis e declaram achar-se votado um novo imposto,
extremamente original. Explicam-lho; o Erário cai das nuvens nos braços dos
vereadores; dá graças aos deuses, e promete-lhes um edil de cera, se o imposto
for levado a cabo. Nisto, Buena Sera, esposa do Erário, que tem espreitado a
conversa, entra impetuosamente, e jura que o imposto não se há de cobrar nunca.
Estupefação do Erário e dos vereadores. Um destes, com a franqueza que o
caracteriza, pondera que a vida do ilustre enfermo depende do novo imposto -
Imposto ou morte! - Antes a morte, brada a matrona. O Erário empalidece,
gargareja uma imprecação, e sai fortemente apoiado na maioria.
Sobrevém d. Ana Covarrubias, e
propõe a Buena Sera uma aliança ofensiva e defensiva contra os cinco pesos.
Confessam uma à outra que amam um guapo mancebo desapatacado, e que ete seria
compelido a mudar de terra, se o imposto fosse convertido em lei.. Efusão de
sentimentos, fusão de interesses, profusão de volatas. Vão a sair; mas um
coronel de dragões, peitado pelos vereadores, apodera-se de ambas ; elas
resistem e cedem enfim protestando solenemente à face da Europa contra essa
violação domiciliária e pessoal.
ATO III - Um café. Pico de la Mirandola , Procusto, o Congresso de Berlim, e um Cálculo Biliário
conversam alegremente dos sucessos do dia. Sabe-se, pelo que dizem, que o guapo
mancebo amado pelas damas é o mesmo e único indivíduo, um estrangeiro,
um Tártaro, talvez emético, que viaja para conhecer os costumes dos povos
cultos. Sabe-se mais que, por motivos particulares, o digno estrangeiro não
entra na peça . O imposto está em execução : já se tem cobrado
4.000.000.000.000 de. pesos. O Erário está ameaçado de obesidade ; o
coletor morreu; d. Ana Covarrubias e
Buena Sera morreram ; o coronel dos dragões morreu ; o Tártaro, cada vez mais
emético, morre à última hora. Os quatro personagens resolvem acabar a peça, com
um brinde ; não o permitindo a hora adiantada da noite, cai o pano.
III
Sucedeu à corrida de cavalos
outra corrida de homens, com o acréscimo dos “saltos", que os cavalos obrigam a dar, mas não dão eles
próprios. Nada posso dizer do novo torneio, porque escrevo estas linhas, na ocasião
justamente em que ele começa ; mas posso julgá-lo pelo do ano passado, e creio
que será delicioso...para os espectadores.
Essa usança, que parece ser
também um gosto, é companheira daquele bife cru, de que tratei na minha crônica
do dia 2 do corrente, com uma diferença, e é que, se o bife entrou nos nossos
costumes, a usança não entra, embora sejam um e outro venerados pelos dignos
bretões. Quando uma raça se nutriu durante três séculos com a bela goiabada de
Campos, precisa de mais três séculos de carne sangrenta para apostar corridas e
saltos. Somos demasiado melífluos para tão aspérrima canseira. Acresce que não
estou perfeitamente convencido de que um bom banho frio, longos passeios, forte
ginástica, e alguns jogos de força, sejam exercícios inferiores a deitar os
bofes pela boca fora. Opinião de homem débil.
Em todo caso, antes ver correr os
homens que ver brigar os galos, uso que floresceu com igual vida em Atenas e na
Gamboa, do mesmo modo que floresce às margens do Tâmisa - ou Tamesis, como escrevia
o Garrett. Donde se conclui que o homem é um animal eternamente brigão.
IV
Lastimei as desgraças de
Chique-Chique: não me atrevo a lastimar a 2ª. edição das de Macaúbas. Começo a
suspeitar que a luta travada nessas duas vilas é uma simples metáfora de
estudantes de retórica. É sabido que, em geral, quando um correspondente
escreve estas solenes palavras: "a província está ardendo" - quer
dizer simplesmente que foram demitidos dois subdelegados; e quando diz: "o
povo dorme tranqüilo à sombra da paz", anuncia, de um modo poético, a
nomeação de outros dois.
A "tribuna
parlamentar", que é uma simples poltrona de mogno, deve abrir-nos os
olhos. A metáfora é um abscesso nas organizações políticas; convém rasgá-lo ou
resolvê-lo, e voltarmos à frase sadia e nua : pão, pão; queijo, queijo.
V
Melhor notícia do que essa é a de
ter sido aprovada, na Bahia, uma senhora que fez exame de dentista. Registro o
acontecimento, com o mesmo prazer com que tomo nota de outros análogos; vai-se
acabando a tradição, que excluía o belo sexo do exercício de funções, até agora
unicamente masculinas. É um característico do século : a mulher está perdendo a
superstição do homem. Tomou-lhe o pulso : compreendeu que se ele fez a guerra
de Tróia, e se serviu quatorze anos a Labão, foi unicamente por causa dela; e
desde que o reconheceu, subjugou-o.
No entanto, se aprovo que as
senhoras façam concorrência ao Napoleão Certain, acho perigoso que as outras
senhoras entreguem a boca aos dentistas do seu sexo. Em primeiro lugar, há de
ser preciso muita e rígida virtude para que uma mulher não despovoe a boca de
outra, quando lhe vir uns dentes de pérola, que obscurecem os seus; em segundo
lugar, quem os trouxer postiços arrisca-se a ver o caso denunciado nos mais
discretos salões. Imagine-se o caso de rivalidade amorosa ...
VI
Fio-me muito mais na discrição de
uma casa da rua do Ouvidor, que anuncia um "sabão nupcial",
acrescentando, entre parênteses: - "inédito !" Nupcial - deu-me
trinta minutos de reflexão; inédito, levar-me-á com certeza ao fim da vida. Ao
pé deste sabão, há um "leite de Aspásia", destinado a amaciar a pele;
e ainda mais abaixo, umas "pastilhas de Vesta", que quando acesas
deitam "azuladas nuvens de incenso, perfumadas de ambrosia, semelhantes às
que as Vestais respiravam nos templos de Corinto !"
Última utilidade da história :
ensaboar os anúncios.
VII
Não se fechou a semana sem que a
agência Havas nos desse uma notícia lúgubre. Dessa vez foi a morte súbita de d.
Mercedes, a jovem rainha de Espanha. Não lhe resvalou a coroa da cabeça, foi
ela que se subtraiu ao peso deste diadema difícil - levando consigo as venturas
todas de um mancebo, que o coração e a política lhe haviam deparado, como um
penhor de felicidade doméstica e de paz pública. A morte, de parceria com a estrela
de Espanha, empenha-se em fazer essas súbitas mudanças de cenários.
De outra parte, não é a morte, é
a filosofia de um doutor de trinta anos, que não encontra no arsenal da
liberdade melhor arma do que um revólver. Parecia que esse velho recurso do fanatismo
político estava para sempre embotado e inútil; e jamais podíamos contar que ele
nos saísse agora de uma universidade alemã. Pois saiu; e, nem por ser mais
científico, se tornou mais sensato ... nem mais útil. Pobre filosofia ! pobre
filosofia !
VIII
Pobre folhetim !
Eleazar
____________________________
crônica 23
10 de janeiro de 1887
gazeta de
notícias – Gazeta de Holanda[2]
eleições municipais no Rio de
Janeiro;
dívidas do Governo
Voilà ce que l’on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”
Depois de férias tão longas,
Tão docemente compridas,
Ó musa, minhas candongas,
Voltemos às nossas lidas.
Assim faz a Pátria, às vezes,
E é certo que não estoura;
Descansa um mês ou dois meses
O nosso C. B. de Moura.
E a Pátria, meia enfadada
Daquelas extensas férias,
Volta mais fortificada
Aos combates e às pilhérias.
Eia, pois, minha gorducha,
Vê que recomeça a aurora,
Puxa daqui, puxa, puxa,
Vamos trabalhar lá fora.
E antes de tudo, inclinando
O gesto a todos os lados
Vai a todos desejando
Plácidos dias folgados.
Desejarás uma boa
Vereança aos cariocas,
Que se não esgote à toa
Em longas brigas e mocas;
Que eleja pacatamente,
Sem atos tumultuários,
O seu vice-presidente
E os restantes comissários.
Pouco calor, pouca chuva,
Nenhuma peste que assole,
Algum vinho feito de uva,
E menos gente que amole.
Grandes bailes mascarados
E passeatas nas ruas,
Câmaras de deputados
Sem as discussões tão cruas.
Boatos sobre boatos,
De modo que quem passeie
Por esses bondes ingratos
Tenha coisa que recreie.
E mais que tudo, meu anjo,
Anjo meu do meu sacrário,
Desejo um bonito arranjo
Ao nosso estafado erário.
Não sei se leste a mensagem
De Cleveland,[3]
um documento
De americana homenagem
Lá para o seu parlamento.
Pois conta-se aí (por esta
Luz do céu minh'alma jura
Que não é pêta funesta,
Mas pura verdade, pura);
Conta-se que a renda é tanta
Que urge cortar-lhe os babados,
Que é demasiada a manta
Para tão vastos Estados.
Que, se vão nessa carreira,
Pagam aqueles senhores
Em breve a dívida inteira,
E ficarão sem credores.
Depois vem maior excesso
De renda, e será tamanho
Que não haverá processo
De o dar a melhor amanho,
Porque ou fica no Tesouro,
Inútil, mudo e parado,
Ou saem carradas de ouro
Para os delírios do Estado.
Ora bem, estes fenômenos
Dados como desastrosos,
Terríveis paralipômenos [4]
De grandes livros lustrosos,
Hás de pedi-los, amiga,
Mas pedi-los de maneira
Que uma segunda barriga
Coma sem dor da primeira.
Es decir, que aquela caixa
Que ronca de tanta altura,
Se quiser ficar mais baixa
Tem receita mais segura.
Pegue em si, tire metade
E verá como lhe pego,
Pego-lhe com ansiedade,
Com ansiedade de cego.
E digo ao Tesouro nosso:
- Amigo, aqui tens dinheiro;
Precisas dele, aqui posso
Dá-lo às tuas mãos inteiro.
Vê tu que singular obra
A deste mundo peralta:
Geme um pelo que lhe sobra,
E outro pelo que lhe falta. Malvólio
crônica 43
9 de dezembro de 1894
gazeta de
notícias – A Semana
eleições para Câmara Municipal do Rio de
Janeiro;
eleições e organismo social ;
ideias e planos de candidatos municipais
Tudo tende à vacina. Depois da
varíola, a raiva; depois da raiva, a difteria; não tarda a vez do cólera-morbo.
O bacilo-vírgula, que nos está dando que fazer, passará em breve do terrível
mal que é, a uma simples cultura científica, logo de amadores, até roçar pela
banalidade. Uma vez regulamentado, fará parte dos cafés e confeitarias. Que
digo? Entrará nos códigos de civilidade, oferecer-se-á às visitas um cálix de
cólera-morbo ou de outro qualquer licor. Os cavalheiros perguntarão
graciosamente às damas: “V. Ex. já tomou hoje o seu bacilo?” Far-se-ão
trocadilhos.
— Que tal este vírgula?
— Vale um ponto de admiração!
Todas as moléstias irão assim
cedendo ao homem, não ficando à natureza outro recurso mais que reformar a
patologia. Não bastarão guerras e desastres para abrir caminho às gerações
futuras; e demais a guerra pode acabar também, e os próprios desastres, quem
sabe? obedecerão a uma lei, que se descobrirá e se emendará algum dia. Sem
desastres nem guerras, com as doenças reduzidas, sem conventos, prolongada a
velhice até às idades bíblicas, onde irá parar este mundo? Só um grande
carregamento, ó doce mãe e amiga Natureza; só um carregamento infinito de
moléstias novas.
Mas a vacina não se deve limitar
ao corpo; é preciso aplicá-la à alma e aos costumes, começando na palavra e
acabando no governo dos homens. Já a temos na palavra, ao menos, na palavra
política. Graças às culturas sucessivas, podemos hoje chamar bandido a um
adversário, e, às vezes, a um velho amigo, com quem tenhamos alguma pequena
desinteligência. Está assentado que bandido é um divergente. Corja de bandidos
é um grupo de pessoas que entende diversamente de outra um artigo da
Constituição. Quando os bandidos são também infames, é que venceram as
eleições, ou legalmente, ou aproximativamente. Com tais culturas enrija-se a
alma, poupam-se ódios, não se perde o apetite nem a consideração. Antes do fim
do século, bandido valerá tanto como magro ou canhoto.
Assim também as opiniões. A
vacina das opiniões é difícil, não como operação, mas como aceitação do
princípio. Diz-se, e com razão, que o micróbio é sempre um mal; ora, a minha
opinião é um bem, logo... Erro, grande erro. A minha opinião é um bem, de
certo, mas a tua opinião é um mal, e do veneno da tua é que eu me devo
preservar, por meio de injeções a tempo, a fim de que, se tiver a desgraça de
trocar a minha opinião pela tua, não padeça as terríveis conseqüências que as
idéias detestáveis trazem sempre consigo. E porque não é só a tua idéia que é
perversa, mas todas as outras, desde que eu me vacine de todas, estou apto a
recebê-las sucessivamente, sem perigo, antes com lucro.
O bacilo zig-zag, causa da
embriaguez... Mas para que ir mais longe? Conhecido o princípio, sabido que
tudo deriva de um micróbio, inclusive o vício e a virtude, obtém-se pelo mesmo
processo a eliminação de tantos males. O boato tem sido descomposto de língua e
de pena, é um monstro, um inimigo público, é o diabo, sem advertirem os autores
de nomes tão feios, que o boato é a cultura atenuada do acontecimento. Daqui em
diante a história se fará com auxílio da bacteriologia.
As eleições — uma das mais
terríveis enfermidades que podem atacar o organismo social, — perderam a
violência, e dentro em pouco perderão a própria existência nesta cidade, graças
à cultura do respectivo bacilo. Aposto que o leitor não sabe que tem de eleger no
último domingo deste mês os seus representantes municipais? Não sabe. Se
soubesse, já andaria no trabalho da escolha do candidato, em reuniões públicas,
ouvindo pacientemente a todos que viessem dizer-lhe o que pensam e o que podem
fazer. Quando menos, estaria lendo as circulares dos candidatos, cujos nomes
andariam já de boca em boca, desde dois e três meies, ou apresentados por si
mesmos, ou indicados por diretórios.
Nem o leitor julgaria somente das
idéias e dos planos dos candidatos, conheceria igualmente do estilo e da
linguagem deles. Sei que a circular não basta; pode ser obra de algum amigo,
sabedor de gramática e de retórica. O discurso, porém, mostrará o homem, e,
ainda quando seja alheio e decorado, os ouvintes têm o recurso de lançar a
desordem no rebanho das palavras e das idéias do orador. Este, roto o fio da
oração, acabará dando por paus e por pedras. Deus meu! não exijo raptos de
eloqüência. Os discursos municipais podem ser mal feitos, sem conexão, nem
lógica, nem clareza, atrapalhados, aborrecidos; é negócio que, salvos os gastos
da impressão, só importa à fama dos autores. Mas as leis? O município tem leis,
e as leis devem ser escritas.
Agora mesmo, anteontem, foi
promulgada a lei que autoriza o Prefeito a regularizar a direção dos veículos.
Esta lei tem um art. 2° que diz assim:
“Art. 2°. Os trilhos que servem de
leito a veículos (bonds), os quais
sobre os mesmos rodam normalmente, poderão ser mudados para lugares diversos
dos que ocupam, somente com prévia aquiescência do conselho, exceto quando se
tratar de ligeiras mudanças de trilhos na mesma rua ou outra mais próxima e
mais larga do que aquela em que entronca, os mesmos assentados”.
Este art. 2.° não está escrito.
As palavras que o deviam compor, não saíram do tinteiro; saíram outras,
inteiramente estranhas, e ainda assim, com a grande pressa que havia, foram
deixadas no papel para que se arrumassem por si mesmas; ora, as orações, como
os regimentos, não marcham bem senão com muita lição do instrutor. As
conseqüências são naturalmente graves. Como há de o Prefeito cumprir esse
artigo? Como hei de eu obedecer a outras leis que saiam assim desconjuntadas?
Já não trato de algumas conseqüências mínimas. Conheço uma pessoa, muito dada a
metáforas, que nunca mais dirá bonde, e sim “veículo que roda normalmente sobre
trilhos”.O legislador municipal achou-se aqui na mesma dificuldade em que, há
anos, esteve o redator de um projeto de lei contra os capoeiras. Não me recordo
das palavras todas empregadas na definição dos delitos; as primeiras eram
estas: “Usar de agilidade”... Compreendo o escrúpulo em definir bem o capoeira;
mas porque não disse simplesmente capoeira? Não estivesse eu com pressa (os
minutos correm) e iria pesquisar o texto de um ato ministerial do princípio do
século, em que se davam ordens contra os capoeiras — mas só capoeiras, nada
mais.
Sendo preciso escrever as leis
municipais, não seria fora de propósito criar um ou dois lugares de redatores,
nomeando-se para eles pessoas gramaticadas. Aí está uma idéia que podia servir
a algum candidato, em circular ou discurso, se não estivéssemos vacinados
contra o vírus eleitoral. A capital não quer saber de si. Alguns candidatos
obscuros, lembrados por cidadãos ainda mais obscuros, irão aparecendo na última
semana. Os mais econômicos mandarão apontar o seu nome, com duas linhas de
impressão, entre o licor depurativo de taiuiá e o xarope de alcatrão e jataí. 0
mais será trabalhinho surdo, pedido particular e abstenção do costume, achaques
leves que não matam nem amofinam. Teremos, depois do último domingo deste mês,
outro vaudeville como o de anteontem? Mudemos os homens se é preciso, mas não
se perca a boa e velha chalaça. A peça é da verdadeira escola dos vaudevilles,
enredo complicado, ditos alegres, muito qui-pro-quo, diálogo vivo, desfecho
inesperado, ainda que pouco claro. Os couplets finais vivíssimos. Mas por que
chamar a esta peça Sunt lacrymae rerum?
[1]
Machado publicou crônicas em O
Cruzeiro ,com a série “Notas Semanais”, de 9 junho a 1
setembro 1878 ,todas sob o pseudônimo Eleazar..
[2]
Série publicada
,com extrema regularidade,de 1 novembro 1886 a
24 fevereiro 1888 , com 48 crônicas em
forma de versos -- a que Machado batizou
de ‘versiprosa’ (criando o termo, muito mais tarde utilizado por Carlos
Drummond de Andrade), assinadas pelo
pseudônimo de Malvólio, personagem bufo de Shakespeare em “The Twefth
Night” (Noite de Reis) -- .sob tom,timbre e estilo satírico, extremamente
irônico e crítico.
[3] Stephen Grover Cleveland,,então presidente dos Estados Unidos (1885 – 1889) : voltaria ao governo de 1893 a 1897.
[4] Nome dado pela Vulgata e pelos autores gregos e
hebraicos a dois dos livros históricos da Bíblia
(Crônicas I e II), que apresentam um relato complementar da história do
povo hebreu até o exilio babilônico ;p.ext.
Qualquer suplemento a uma obra literária
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