sábado, 19 de janeiro de 2008

a propósito de futebol,literatura, Mario de Andrade,etc- II


O futebol , os literatos e duas cidades: em São Paulo (continuação)

Os intelectuais entram em campo
Embora por volta de 1905 o futebol ainda fosse desconhecido para a ampla maioria dos brasileiros, em São Paulo já atraía grande interesse popular — tanto que até Monteiro Lobato, então acadêmico de direito, que numa carta a Godofredo Rangel, em 11.07.1904,escrevia : "(...)E cá estou de novo em São Paulo, mas ainda atribulado. Mudei-me para um quarto de frente na rua Araújo 26, com um lampião de rua bem junto à minha janela. Tenho luz de graça. E defronte há uma vizinha janeleira que já piscou. Em vez de namorá-la, meti-me no futebol - "Palmeiras". Joguei vários dias seguidos e fiquei mais derreado que com as léguas do sertão. Estou cheio de pisaduras e dodóis. Isto deve ser o que na "Vida Intensa" o Th. Roosevelt quer. O futebol empolgou-me de alma e corpo; escrevo crônicas de futebol e jogo. Diz o Tito que é mania - e diz-lhe o Raul: "Jacques, tu es un âne". Seja como fôr, asseguro-te que o futebol apaixona e contunde".O mesmo Lobato de um discurso fervoroso em 1905 após assistir a jogos entre paulistanos e ingleses: "(...) Essa luta tinha para a população de São Paulo um significado moral dez vezes maior do que a eleição para um presidente do Estado (...) O último goal do Paulistano provocou a maior tempestade de aplausos jamais conhecida em São Paulo (...) É desta espécie de homens que precisamos. Menos doutores, menos parasitas, menos bajuladores, e mais struggle-for-life. Mais homens, mais nervos, mais corpúsculos vermelhos, para que um Camilo Castelo Branco não possa repetir que ele tem sangue corrompido nas veias e farinha de mandioca nos ossos".
Apesar disso, não conseguia suscitar grandes paixões que extrapolassem o âmbito esportivo Intelectuais e escritores -- caso de Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, Hilário Tácito --apenas esparsa e timidamente o registravam em seus escritos : quando muito admitiam e exaltavam a plasticidade do jogo, a elasticidade das jogadas, a empolgação dos que praticam e assistem as partidas . Mais tarde, já pelo final da década de 1910 e início de 1920 — no Rio de Janeiro ,o futebol visto como instrumento de ‘modernização pretendida pela República’, com as adesões entusiasmadas de Coelho Neto, Olavo Bilac e Afrânio Peixoto ,e a oposição ferrenha de Lima Barreto — em São Paulo dava-se a dedicação documental-historiográfica de Antonio Figueiredo e Leopoldo Santana , um relativo envolvimento de Menotti Del Picchia (registrando-o em poemas, no roteiro do primeiro filme do cinema brasileiro sobre futebol, “Campeão de futebol” homenageando Friedenreich, na frase “o Corinthians é um fenômeno sociológico a ser estudado em profundidade”) referências de Cassiano Ricardo, a simpatia de Raul Bopp (em artigo sobre o “élan magnético” que o atraía para o futebol), e sobretudo o ‘fervor’ de Alcântara Machado (não só pelo famoso conto “Corinthians (2) vs. Palestra(1)”,mas por uma relação direta com a difusão dos esportes no Brasil, fundador da primeira Liga Atlética Acadêmica do Brasil, “uma entidade poliesportiva devotada à propaganda, à prática e ao apoio de todas as formas de cultura física, vista como chave para se entrar na vida moderna propriamente dita”),o completo envolvimento de Francisco Rebolo (artista plástico e jogador de futebol , e um dos pioneiros na luta pela incorporação do negro no futebol brasileiro), a motivação de Candido Portinari ( em duas séries de trabalhos “Futebol em Brodósqui”), dos artistas Rodolfo Chambelland , André Lhote , Antônio Gomide . Tudo, no entanto, sem aquela empolgação --até mesmo de cunho filosófico e ideológico, como no Rio de Janeiro—que a cidade, pioneira na introdução do futebol no Brasil, na fundação dos clubes especificamente de futebol , na prática generalizada e popular do futebol,merecia.
Inclusive recebendo, por outro lado , de Mário de Andrade e Oswald de Andrade crítica e repúdio (mas em ambos amenizando-se ao longo do tempo, muito mais em Oswald do que em Mário, sem nunca alcançar o engajamento empolgado...) . Mario o via como “uma moda fútil entre tantas que aportam da Europa” em Paulicéia desvairada, “uma praga” em Macunaíma, não deixa de realçar a violência e o teor elitista do futebol “permeado de expressões estrangeiras” - a la Lima Barreto- em algumas crônicas, embora em 1939 acentue a transformação verificada em torno do futebol, o processo de apropriação pela identidade da nação chegando a adquirir um caráter antropofágico onde se afirmava a capacidade brasileira de deglutição, bem como de assimilação das influências estrangeiras e de sua transformação em expressões genuinamente nacionais. Oswald referiu-se com uma certa simpatia (mais irônica) nos versos do poema “E a Europa curvou-se ante o Brasil”, em que refere-se à excursão do Paulistano à Europa,em 1925, e em “Bungalow das rosas e dos pontapés”, sarcástico sobre a violência do futebol; embora sempre combatesse o futebol, como veículo de “alienação”, mais tarde iria referir-se, num artigo de jornal, como “um fenômeno da modernidade de fundamento religioso, ao lado dos festivais de cinema e da política” ; e ligou-se a Mario Filho e a Candido Portinari justamente por causa do futebol...
Também o escritor e jornalista paulista, Antônio de Godói, a princípio interessado pelo futebol — em 17 agosto de 1918, no Correio Paulistano, com o pseudônimo de Egas Muniz, na seção “Naipe de Paus”, comentando um jogo realizado em São Paulo, saudara “oxalá que o entusiasmo desses moços não se esmoreça, que continue com o mesmo fervor, constituindo assim núcleos para o desenvolvimento da nossa mocidade tão indispensável para a nossa vida” — em artigo de 22 de dezembro de 1920 já considera o futebol moda que haveria de passar , uma coisa “brutal, perigosa, intolerável”, não merecendo outro qualificativo semelhante exercício “em que a inteligente moderação e o irônico predomínio do espírito” desapareciam para dar lugar a “uma simples exibição de força muscular, a um delírio de corridas, de encontrões, de pontapés e de tombos”. Em nome do bom gosto, continuava, “esse esporte devia ser repelido como nocivo à integridade física da geração que despontava”.
O futebol ,posteriormente, encontrou acolhida em muitos contos de Orígenes Lessa, em João Antonio, Ignácio de Loyolla Brandão ; ‘receptividade’ em escritos de Sergio Milliet, de Sergio Buarque de Holanda, Paulo Emilio Salles Gomes. Sobretudo em Anatol Rosenfeld, ‘o irrequieto escritor’ que em fins da década de 1930 auto-exilou-se no Brasil devido às perseguições sofridas na Alemanha hitlerista e aqui deu continuidade a sua vasta produção intelectual, escrevendo contos, poesias e crônicas, além de opinar sobre arte, sobre o pensamento europeu, sobre teatro, imprensa, rádio, filosofia, política ,antropologia — e sobre o futebol : no texto “O futebol no Brasil”, publicado originalmente em alemão no Anuário do Instituto Hans Staden em 1956, comenta sua introdução no país, preocupou-se em analisar os elementos sócio-econômicos do futebol, da ascensão das massas aos componentes típicos dos jogos de bola - o torcedor, o ídolo, o clube, explicando ao público germânico que em terras brasileiras, (...) entre os negros, mulatos e brancos pobres, havia um grande número de jogadores de primeira classe, seja porque os ajudava o talento natural, seja porque a ´sucção de subida´ e o remoinho das chances do futebol os envolvia e canalizava, seja porque eles não eram estudantes de medicina ou direito e freqüentemente não tinham uma profissão, podiam lançar toda a sua paixão no jogo; em suma, porque levavam o jogo a sério e ´não tinham nada a perder´. (...) Dar pontapés numa bola era um ato de emancipação(...)”. Intelectuais paulistanos , paulistas e migrantes/radicados — como Décio de Almeida Prado, Nicolau Sevcenko, Waldenir Caldas, José Sérgio Leite Lopes, Francisco Costa, Luiz Henrique de Toledo , Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes — que se dispuseram a buscar uma compreensão do futebol construíram “uma percepção do esporte como uma ágil e poderosa forma de expressão do caráter nacional; uma codificação positivista da estrutura social brasileira: o indivíduo, valendo-se de características muito peculiares, sobressairia-se a quaisquer empecilhos à sua sobrevivência e/ou ao relacionamento social, e assim alcançaria o sucesso e aceitação coletiva”.
futebol e modernistas
Relevante é observar especificamente o ‘relacionamento’ dos intelectuais modernistas com o futebol , recebido de modo diametralmente oposto na primeira, na segunda e na terceira fase (assim Afrânio Coutinho caracterizava o ciclo modernista) : o fenômeno futebolístico no Brasil dos anos de 1920 passando muito ao largo das preocupações missionárias dos primeiros, o esporte visto como “subproduto de importação, a adoção de mais um artigo de luxo , com sua linguagem integralmente inglesa e seu vestuário britânico desconhecido , provindo de uma matriz européia transplantada por uma elite anglófila e francófila, ávida por novidades e exotismos, típico da dependência cultural brasileira”; depois, já na década de 1930, o futebol interpretado sob a questão da representatividade nacional , uma forma de se chegar às suas concepções sobre a brasilidade; e no decênio seguinte , entrando em cena os regionalistas oriundos do Nordeste —Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge de Lima, Olívio Montenegro, a maioria já radicada no Rio de Janeiro — a interpretação modernista colocando o futebol também no terreno da cultura popular, retomando o projeto modernista de construção de símbolos nacionais,que a música popular e o folclore já haviam tornado possíveis e que, naquele momento, por meio de uma ‘brasilidade esportiva’, o futebol também facultava.
O modernismo pareceu à primeira vista lidar com certa cautela e muitas reservas, casos de Mario de Andrade e Oswald de Andrade – quando não, com explícita antipatia, como foi o caso de Graciliano Ramos que o repudiava ("Futebol não pega, tenho certeza; estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho.", em 1919) – diante do crescente e contagiante processo de popularização de um esporte de origem e teor eminentemente europeus. Mas a tradução e a decodificação sofrida pelo futebol ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, metamorfoseando-se de esporte elitista estrangeiro em esporte nacional-popular, possibilitou aos escritores modernistas da segunda fase uma paulatina alteração no enfoque do fenômeno, ainda que não de uma maneira unânime e consensual.
Como mencionado, a relação dos esportes com a identidade da nação tornara-se decisiva , acionando a idéia de “uma unidade nacional que tinha a seleção brasileira como uma das instâncias principais de representação simbólica”, coincidindo com um projeto de configuração do Estado-nação de Getulio Vargas E em consonância com a noção de antropofagia desenvolvida por Oswald de Andrade em seu manifesto de 1928, Gilberto Freyre identificou no futebol um exemplo indubitável da capacidade do brasileiro de transplantar, de assimilar e de reinterpretar os inúmeros produtos que historicamente vinham importados e impingidos da Europa.Mas Oswald de Andrade ainda combatia a popularidade do futebol no Brasil, sob o tema da “alienação”, o “futebol como ópio do povo”, já levantado por Lima Barreto e Graciliano Ramos, elegendo para este confronto de idéias José Lins do Rego (reprisando o espírito de polêmica de Lima Barreto x Coelho Neto).

(continua)

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