quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

São Paulo, a cidade literária - III


(continuação)

Modernismo , destruidor”e criador
Nos primeiros anos do século XX, quando novas correntes artísticas começaram a circular pela Europa, a maior parte do mundo ocidental encontrava-se em meio a transformações sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e culturais que alteraram radicalmente a forma de viver e de sentir o mundo. Invenções revolucionárias como o rádio, o telefone, o automóvel e o cinema passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, cada vez mais urbanizadas. A industrialização modificara a economia das potências, e os lucros acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados garantiam tamanha sensação de conforto, segurança e otimismo em relação ao futuro, que o período ficou conhecido como belle époque — uma época de efervescência artística sem precedentes. Mas no extremo oposto,para as classes trabalhadoras o tempo era de lutas por melhores condições de vida e, no plano internacional um conjunto de fatores econômicos e políticos levaram à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. O Brasil vivia então período de grandes mudanças, com a urbanização e a adoção de novas tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário das grandes cidades, e que pareciam alterar a percepção do mundo. O intenso crescimento urbano e industrial ,acelerado desde o começo do século, e a chegada em massa de imigrantes, principalmente italianos, muitos dos quais haviam vivido a experiência da luta de classes em seus países, propiciando inclusive a difusão de idéias anarquistas e socialistas, fizeram com que o proletariado crescesse e se organizasse : nas primeiras décadas do século XX ocorreram várias greves em São Paulo, a maior delas em 1917 - mesmo ano da Revolução Russa. Nos primeiros anos do século XX vieram radicais transformações políticas, com acontecimentos decisivos para a vida nacional, como as revoltas deflagradas pelo movimento tenentista( julho de 1922 no Rio de Janeiro; julho de 1924 em São Paulo),a Coluna Prestes, a fundação do Partido Comunista, a derrocada da República Velha, das oligarquias rurais e da "política café-com-leite", o início da Era Vargas.
É nesse contexto de crises e incertezas que surgiram as correntes de vanguarda (do francês avant-garde, "o que marcha à frente"), entre elas o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo, recebidas com entusiasmo por escritores que procuravam renovar as formas de expressão artística. Muito antes de 1922 os artistas participantes da Semana já produziam obras influenciadas pelas novas correntes européias, como a publicação, em 1917, de diversos livros de poemas em que jovens autores buscavam uma nova linguagem, ainda não bem realizada : Nós, de Guilherme de Almeida; Juca Mulato, de Menotti del Picchia; Há uma gota de sangue em cada poema, de Mário de Andrade) — e a célebre exposição de Anita Malfatti, em 1917, duramente criticada por Monteiro Lobato no famoso artigo “Paranóia ou mistificação ?”
A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o fato concreto que definitivamente integrava o Brasil no contexto filosófico-estético-cultural do século XX e levava-o a inserir-se nas coordenadas culturais, políticas e socioeconômicas dos novos tempos —o mundo da técnica, o mundo mecânico e mecanizado. A partir dela caminha o movimento modernista em busca de padrões autônomos e formas autênticas para a criação estética nacional —e não somente no âmbito artístico : da mesma forma no campo do pensamento social, os intelectuais procuravam estabelecer novos modos de se tratar e compreender a cultura e a história do Brasil, estabelecendo novas interpretações e valores para a identidade nacional e dando início à consolidação institucional do pensamento sociológico brasileiro. Gerou sobretudo um estado permanente, latente , criativo, estimulante, instigante, de inquietação intelectual, e iniciou um processo de unificação cultural sem precedentes no Brasil.
Fica para a História o depoimento de Mário de Andrade:
"A Semana de Arte Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos dissolvia nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E vivemos uns oito anos até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história do país registra. (...) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor.".
A "destruição" tinha como objetivo, em um primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas, especialmente a parnasiana — em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico parnasianos, os poetas modernistas valorizavam a incorporação de gírias e de sintaxe irregular, e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da sociedade brasileira— e mais : a preparação de um terreno onde se pudesse reconstruir a a cultura brasileira, sobre bases nacionais, a realização de uma revisão crítica da história e das tradições culturais do país. Os autores do Modernismo procuraram no índio e no negro os elementos primordiais da cultura brasileira que proporcionariam a reconstrução da realidade nacional, e procuraram retratar a mistura de culturas e raças existente no país.
Porém, o nacionalismo, a mais marcante característica do Modernismo, iria separar ideologicamente os adeptos do movimento, opondo os grupos “Pau-Brasil”,e depois “Antropofágico”(que incorporva o comunismo, o freudianismo e o matriarcalismo), de Oswald de Andrade , Raul Bopp e Tarsila do Amaral , e o “Verde-Amarelismo , de Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Estudiosos sustentam que a verdadeira ‘revolução’ modernista se deu mesmo em 1924 , ano do rompimento de Graça Aranha com a Academia Brasileira de Letras, ano do “Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, anos de dois textos fundamentais de Mario de Andrade : A escrava que não é Isaura — a ‘teoria’ do modernismo compendiada — e seu livro mais ousado, em termos formais, Losango caqui.
Adiante, o ano de 1928 marca a publicação de Macunaíma, de Mario de Andrade, máxima obra literária do movimento, excepcional romance-retrato do Brasil de grande miscigenação cultural — as tradições culturais indígenas dos primórdios ao lado da modernidade europeizada dos centros urbanos brasileiros da época — e de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, inaugurando o ensaio de cunho ao mesmo tempo histórico e sociológico que abriria caminho para o grande ciclo de “interpretações do Brasil”.À renovação estética modernista,na década de 1920, alia-se no decênio seguinte o ensaio de interpretação e crítica social, que tenta recontar o processo de formação histórica do país: a procura da identidade social passa igualmente pela busca premente de uma ponte entre uma completa renovação cultural e a reforma da sociedade, uma ponte entre a modernidade e a modernização do país .
O ano de 1930 é a época de instauração do Estado Novo, que se ‘apropria’ ideológica e retoricamente do Modernismo — Getulio Vargas declarava em seu discurso de posse: “As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do Modernismo na literatura brasileira foram as mesmas que precipitaram no campo social e político a Revolução de 1930” (seguindo uma sugestão formulada por Cassiano Ricardo) — mas inicia um período de intensa fermentação política, social e cultural. É na primeira metade dessa década que nascem as primeiras tentativas de interpretação de conjunto da história, da economia e da sociedade brasileira.Sobretudo a prosa literária se desenvolve, ficcionalmente no romance e no conto, que retratam decadência da aristocracia rural, a formação do proletariado urbano, a luta do trabalhador, o êxodo rural, as cidades em rápida transformação — os cenários para a expansão e proliferação dos ensaios de interpretação do País, de Gilberto Freyre , Paulo Prado (Retrato do Brasil), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) ,Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo), todos lastreados pela ‘índole’ modernista em busca da síntese explicativa dos múltiplos aspectos da vida social brasileira e de seu desenvolvimento histórico.
Acima de tudo um processo de mudança cultural geral , em direção a uma nova reconstrução sócio-política da identidade nacional, o Modernismo “difunde-se no tempo, balizando grande parte dos sequentes debates intelectuais, espalha-se no espaço, o poderoso ímã da literatura interferindo com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil”, sentencia Antonio Candido.Irradiante , difuso e difusor, o Modernismo modelou substancialmente a literatura brasileira no século e desdobrou-se pelas décadas seguintes em irreversível processo de amadurecimento : uma terceira fase do movimento,na busca de uma nova linguagem, que expressasse os anseios de renovação do pós-guerra, veio na denominada “geração de 1945”, depois, na Poesia Concreta, da mesma forma na Poesia-Práxis , na atual narrativa em prosa — caracterizada esta por novas formas de linguagem , ora intensa e ágil, ‘cinematográfica’ , ora densa e introspectiva, ‘filosófica’,e pela preponderante ambiência urbana retratando “a vivência vertiginosa nas grandes cidades”, confluiu no último decênio do século XX e no despontar deste Terceiro Milênio para o irreversível despontar de uma nova geração de escritores, que abre espaço na literatura brasileira com uma marcante característica vetorial : o deslocamento maciço do eixo principal da nova criação literária para São Paulo.
Na cidade,os novos e novíssimos ficcionistas exercem sua prosa “de estrutura desconstrutivista , subversiva da linearidade, de narrativa fragmentada, quebradiça, de temática citadina, com os elementos da urbanidade pós-moderna , as tensões sociais e os conflitos individuais, o envolvimento pela violência urbana , os impasses existenciais — fomentando uma produção literária como não é feita em nenhuma outra cidade do País.
A São Paulo heterogenética continua abrigando escritores, naturais ou imigrantes, paulistas ou radicados, que produzem uma literatura ímpar, diferenciada, atualizada com os elementos da realidade, afinada com a modernidade, determinante — hoje como ontem, e desde sempre — da própria cultura brasileira.

Mauro Rosso
autor de São Paulo , a cidade literária (2004,ed. Expressão e Cultura)

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