sexta-feira, 4 de janeiro de 2008


O governo – apesar do que anunciara – acabou mesmo por aumentar impostos para ‘compensar a perda da CPMF (nada surpreende em se tratando deste governo...).
Como sempre, é bom ler Machado de Assis [
não damos início aqui ,agora, propriamente, ao "ano Machado": nós o faremos, um belo programa nos aguarda,mas ainda não é hora de pular a agenda cultural --antes, trataremos da hegada da Família Real] .

impostos inconstitucionais ...
16 de maio de 1885, Balas de Estalo
Ontem, ao voltar uma esquina, dei com os impostos inconstitucionais de Pernambuco
[1]. Conheceram-me logo; eu é que, ou por falta de vista, ou porque realmente eles estejam mais gordos, não os conheci imediatamente. Conheci-os pela voz, vox clamantis in deserto [2]. Disseram-me que tinham chegado no último paquete. O mais velho acrescentou até que, já agora, hão de repetir com regularidade estas viagens à Corte.
- A gente, por mais inconstitucional que seja, concluiu ele, não há de morrer de aborrecimento na cela das probabilidades. Uma chegadinha à Corte, de quando em quando, não faz mal a ninguém, exceto . . .
- Exceto . . . ?
- Isso agora é querer perscrutar os nossos pensamentos íntimos. Exceto o diabo que o carregue, está satisfeito? Não há coisa nenhuma que não possa fazer mal a alguém, seja quem for. Falei de um modo geral e abstrato. Você costuma dizer tudo o que pensa?
- Tudo, tudo, não; nem eu, nem o meu vizinho boticário, e mais é um falador das dúzias.
- Pois então!
- Em todo caso, demoram-se?
- Temos essa intenção. O pior é o calor, mas felizmente começa a chover, e se a chuva pega, junho aí vem com o inverno, e ficamos perfeitamente. Está admirado? É para ver que já conhecemos o Rio de Janeiro. Contamos estar aqui uns três meses, não pode ser que vamos a quatro ou cinco. Já fomos à Câmara dos Deputados.
- Assistiram à recepção do Saraiva
[3], naturalmente?
- Não, fomos depois, no dia 13, uma sessão dos diabos. Ainda assim, o pior para nós não foi propriamente a sessão, mas o demônio do José Mariano
[4], que, apenas nos viu na tribuna dos diplomatas, logo nos denunciou à Câmara e ao Governo. Não pode calcular o medo com que ficamos. Eu, felizmente, estava ao pé de duas senhoras que falavam de chapéus, voltei-me para elas, como quem dizia alguma coisa, e dissimulei sem afetação; mas os meus pobres irmãos é que não sabiam onde pôr a cara. Hoje de manhã, queriam voltar para Pernambuco; mas eu disse-lhes que era tolice.
- São todos inconstitucionais?
- Todos.
- Vamos aqui para a calçada. E agora, que tencionam fazer?
- Agora temos de ir ao imperador, mas confesso-lhe, meu amigo receamos perder o tempo. Você conhece a velha máxima que diz que a história não se repete?
- Creio que sim.
- Ora bem, é o nosso caso. Receamos que o imperador, não dar conosco, fique aborrecido de ver as mesmas caras, e, por outro lado, como a história não se repete. . . Você, se fosse imperador, o que é que faria?
- Eu, se fosse imperador? Isso agora é mais complicado. Eu, se fosse imperador, a primeira coisa que faria era ser o primeiro cético do meu tempo. Quanto ao caso de que se trata, faria uma coisa singular, mas útil: suprimiria os adjetivos.
- Os adjetivos?
- Vocês não calculam como os adjetivos corrompem tudo, ou quase tudo; e quando não corrompem, aborrecem a gente, pela repetição que fazemos da mais ínfima galanteria. Adjetivo que nos agrada está na boca do mundo.
- Mas que temos nós outros com isso?
- Tudo. Vocês como simples impostos são excelentes, gorduchos e corados, cheios de vida e futuro. O que os corrompe e faz definhar é o epíteto de inconstitucionais. Eu, abolindo por um decreto todos os adjetivos do Estado, resolvia de golpe essa velha questão, e cumpria esta máxima, que é tudo o que tenho colhido da história e da política, e que aí dou por dois vinténs a todos os que governam este mundo: Os adjetivos passam, e os substantivos ficam.
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[1] em meados dos anos 1880 várias assembléias provinciais estabelecerem impostos sobre a exportação, uma parte da receita dos quais podiam reter, e também sobre a importação, o que era expressamente vedado pela Constituição. Sob pressão de Associações Comerciais e dos delegados regionais da Fazenda, diversas assembléias foram forçadas a votar a supressão desses impostos-- apenas Pernambuco, Bahia e Maranhão ainda resistiam
[2] a voz do que clama no deserto; pregar no deserto, com o significado bíblico de “sermão perdido”.
[3] referência a José Antônio Saraiva, o Conselheiro Saraiva (1823-95), que retornou ao Senado depois de deixar a presidência do Conselho de Ministros em 1884.
[4] José Mariano Carneiro da Cunha (1850-1912), jornalista e político, ativo militante abolicionista, deputado constituinte republicano, eleito prefeito de Recife em 1891.

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