sábado, 19 de janeiro de 2008

a propósito de futebol,literatura, Mario de Andrade,etc


"esporte das multidões",paixão nacional", o futebol abre sua temporada pelos campos brasileiros certamente fadado a provocar as mais deslavadas emoções e os mais acirrados confrontos. também classificado como "uma caixinha de surpresas", nada mais decorrente que se abra também a Caixa de Pandora para refletir sobre as relações entre futebol e intelectuais -- que as houveram,e muito. o texto em seguida enfoca essa relação no âmbito (interativo\comparativo ) das cidades do Rio e de São Paulo : comecemos pela Paulicéia -- até porque às vésperas(dia 25) de mais um aniversário e a propósito do relançamento anunciado (editora Agir) da obra do grande Mario de Andrade.

O futebol , os literatos e duas cidades -I

em São Paulo...
Na esteira e na órbita do pioneirismo que sempre caracterizou a cidade — pioneirismo manifesto intensa e explicitamente, por exemplo, na literatura e nas artes [cf. Rosso, Mauro: São Paulo , a cidade literária; ed. Expressão e Cultura,São Paulo, 2004] — São Paulo foi ‘o berço do futebol no Brasil”, a primeira cidade a organizá-lo e disseminá-lo em campos oficiais, pelas ruas e pelos terrenos baldios.Principalmente por causa dos imigrantes europeus,sobretudo ingleses,que — também no Rio de Janeiro — contribuíram para a disseminação dos esportes em geral e para fundação de clubes esportivos, a princípio de cricket (e depois, de futebol).

Foi um paulistano de berço que introduziu o futebol no Brasil: Charles Miller, descendente de ingleses e escoceses , nascido no Brás, aos 9 anos seguiu para a Inglaterra com a finalidade de estudar , e lá, aprendeu - e bem - a jogar futebol. No ano de 1894, retornando de seus estudos na Inglaterra, trouxe na bagagem uma bola de futebol e começou então a catequizar seus companheiros de trabalho e de críquete - altos funcionários da Companhia de Gás, do Banco de Londres e Ferrovia São Paulo Railway, fundando em 1888 o primeiro clube de futebol do Brasil, o São Paulo Athletic, clube que congregava os britânicos residentes em São Paulo.

Nenhuma cidade brasileira como São Paulo apresenta tamanha precocidade na introdução do futebol : já no final do século XIX era praticado em clubes, empresas (de capital inglês) e escolas; em 1896, por exemplo, o velódromo da família Prado, na Consolação, foi reformado para abrigar partidas de futebol ; em 1902 a cidade organiza o primeiro campeonato de futebol do país — a primeira partida de futebol realizada no Brasil, dentro das regras oficialmente estabelecidas na Inglaterra em 1863, aconteceu na Várzea do Carmo, entre as equipes inglesas São Paulo Railway e The São Paulo Gaz, em 14 de abril de 1895 (jogo ganho pela primeira por 4 x 2); e o primeiro clube de futebol formado essencialmente por brasileiros foi o Mackenzie College, criado em 1898.

Em 1899 são fundados primeiro o S.C. Internacional, e quinze dias depois o S.C. Germânia. Em 1900, pode-se dizer, nasceu a verdadeira organização do futebol paulistano quando chegou, de volta de seus estudos na Suíça, o jovem Antonio Casimiro da Costa, que começou a lutar para a constituição de uma Liga dos clubes já existentes, e pela organização de um campeonato . Neste mesmo ano deu-se a fundação do Clube Atlético Paulistano ; e em 1904 apareceu a Associação Atlética das Palmeiras — que até 1915 foi constituída por doutorandos, engenheiros e futuros advogados. Isso porque o futebol era o coqueluche da mocidade estudiosa de São Paulo, no início do século : quase que se limitava aos estudantes naquele

tempo, quase todos filhos de famílias abastadas ; a verdadeira diversão domingueira da alta sociedade paulistana, não se compreendia então um acadêmico de direito sem ser integrante de um dos clubes já existentes. A classe dominava abertamente no Paulistano, Palmeiras, Mackenzie e Internacional : muitos rapazes, grandes craques do início do século, foram e são homens públicos, cientistas, diplomatas, jurisconsultos e engenheiros famosos. [ Tornaram-se os ídolos máximos desse geração Rubens Sales e Arthur Friedenreich, este considerado o primeiro craque do futebol brasileiro ( e autor do primeiro gol da seleção nacional, em 1914).Em 1920 o futebol já dominava a cidade inteira e Palestra Itália, Paulistano e Corinthians formavam o “trio de ferro” dividindo entre si a preferência quase geral.Memorável entre todos os fatos esportivos, foi a excursão do Paulistano à Europa em 1925—que propiciou o poema “E a Europa curvou-se ante o Brasil “ de Oswald de Andrade ].

Estudiosos sugerem duas hipóteses para tentar explicar a razão pela qual São Paulo — que já contavamdesde o início com um espaço específico, o velódromo da Consolação — antecede o Rio de Janeiro na adoção do futebol : primeiro, o Rio já possuía um esporte de relativa popularidade, o remo, que o futebol somente conseguiu destronar por volta de 1910; segundo, por causa da índole de modernidade paulistana embrião da metrópole frenética que naquele momento melhores condições possuía para assimilar inovações, e dentre elas o futebol. E São Paulo foi a primeira cidade a atrair grandes multidões aos campos,

O futebol, como prática popular de entretenimento, se insere na própria formação da classe operária paulistana, como elemento de sua cultura : certamente, o grande número de imigrantes e operários contribuiu para a rápida popularização do futebol em São Paulo.

Mas, de acordo com interpretações históricas, um dos proeminentes vetores da popularização do jogo de futebol, tanto no Rio como em São Paulo, teria sido resultado direto da intervenção dos patrões, das autoridades, do Poder Público — no Rio, como contraposição à capoeira, já prática proibida; em São Paulo, como antídoto contra as greves : a emergência e fortalecimento do movimento operário por volta de 1917 ‘revelou’ ao governo e aos empresários que a cidade precisava de “um esporte de massas”(sic); os operários seriam então ‘mandados a jogar futebol’, para o que os patrões “deveriam construir grounds”. O futebol seria assim um eficiente instrumento ‘disciplinador’ utilizado e patrocinado pelos industriais “para ordenar os trabalhadores e dinamizar a produção”, “um ensinamento de disciplina e de harmonia” — o esporte sendo muito mais uma imposição ou uma ‘dádiva’, muito menos prazer e desejo e iniciativa de quem o praticava.
Ao mesmo tempo, em São Paulo os campos de futebol se constituíram em importante elemento na caracterização das vilas operárias , que eram “espaços de ordenação”: o futebol ajudava a manter o operário num “espaço de ordem e disciplina, livre do caos e da desordem” e proporcionava aos trabalhadores “o relaxamento necessário para depois produzirem mais e melhor...”.

Em São Paulo, o Poder Público isentava os campos de impostos, os industriais construíam grounds — e a polícia deixava de reprimir os “rachas” em terrenos baldios : já era bastante difundida e rotineira a prática do jogo nas várzeas e terrenos baldios.
Naquele ano de 1902 em que os paulistas organizam o primeiro campeonato de futebol no Brasil surgiram os primeiros campos de várzea, que logo se espalham pelos bairros operário; já em 1908/1910 a várzea paulistana congregava vários e concorridos campeonatos, de forma que São Paulo não é apenas pioneira nacional no futebol "oficial", mas também (e sobretudo) no "futebol popular".


E é na cidade que, não por acaso, surge em 1910 aquele que, dentre os grandes clubes do futebol brasileiro, foi o primeiro a se formar a partir de uma base popular: o Sport Clube Corinthians Paulista .

Um mais abrangente pano de fundo histórico registra que, pela a necessidade de um reordenamento geral de todo o contexto social, o futebol passou a ser considerado como parte do processo modernizador e o desenvolvimento de práticas esportivas considerado uma forma de atenuar as tensões políticas.Caracterizado já nas décadas de 1930/40 como um fenômeno popular e de massa, o futebol,assim como as atividades esportivas em geral, já era visto pelas elites governantes como um componente fundamental a ser atingido numa “cruzada disciplinadora”, correspondendo a um movimento cultural e político mais amplo, envolvendo tanto os interesses de disciplina social do Estado quanto a produção de uma identidade nacional (expressa e reforçada, por exemplo, pela participação da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de 1938 ).
Nacionalismo e autoritarismo constituíam-se em eixos fundamentais tanto na prática política quanto na obra de vários intelectuais brasileiros. Para estes, a República até então não havia sido capaz de forjar uma verdadeira nação, já que, entre outros motivos, os particularismos regionais ainda eram dominantes. Assim, para os setores que exerciam o domínio político no país, uma tarefa urgente se impunha: construir a nação brasileira. Para tal, o futebol, com sua extraordinária adesão popular, foi sem dúvida um excepcional instrumento [Nesse particular, por exemplo, a construção de estádios de futebol passou a constituir prioridade para sua disseminação e arregimentação de massas populares : em abril de 1940 foi aberto ao público,em São Paulo, o Estádio Municipal do Pacaembu, “de linhas tão imponentes quanto harmoniosas , maravilhosa obra coletiva que encarna plenamente a modernidade paulistana”, com o qual nasceu uma das principais tradições políticas do futebol brasileiro: a construção generalizada de estádios com recursos públicos ] .

(continua)

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